Poemas de Deus
© Gregorius Vatis Advena 2012 – 2019, Records E2 E7, Engl. Passions and Guthlac, Hampshire, epic and sacred poetry, Portuguese.
© Gregorius Vatis Advena 2012 – 2019, Records E2 E7, Engl. Passions and Guthlac, Hampshire, epic and sacred poetry, Portuguese.
Curado de sua cegueira, Bartimeu é quem narra: Após a crucificação, o centurião, José de Arimateia e Madalena unem-se para tirar Jesus da cruz. Sua inaudita e perseverante coragem intercede a Pilatos e enfrenta o cataclismo.
Guthlac chega à ilha de Crowland para viver como eremita. O demônio porém se opõe: O rei, o mercante e o pai o visitam buscando dissuadi-lo. Resistindo a todo assédio e tormenta, Guthlac amadurece na ilha, até que se revela o prenúncio da sua morte.
| Folha II |
© Gregorius Vatis Advena 2012, Record E2, Engl. Passions, december 2012 to december 2013, Hampshire, dactylic hexameter, 1522 lines, epic poetry, Portuguese.

Curado de sua cegueira, Bartimeu é quem narra: Após a crucificação, o centurião, José de Arimateia e Madalena unem-se para tirar Jesus da cruz. Sua inaudita coragem intercede a Pilatos e enfrenta a tempestade. Buscam, além do direito de sepultar Jesus, essências para ungir o seu corpo.
Paixões retrata o sofrimento dos homens ao redor da cruz: À paixão de Cristo seguem as paixões dos amigos. Apesar do tema, o foco não é histórico ou teológico. É trágico ao refletir sobre a dor perante a injustiça, e transcendental ao abordar o valor duma coragem quase ilimitada. O milagre da inocência, aqui, é unir os homens em nome dum sacrifício maior do que a vida.
Noturno Op. 27, No. 2, em ré bemol maior, por Frederic Chopin, performance de Frank Levy – Musopen CC PD.
O verso é hexamétrico – seis tônicas separadas por uma ou duas átonas, ou por pausa. Em geral, o verso começa em tônica e termina em diérese bucólica – o ritmo tátata-táta. É datílico ao evocar o antigo dátilo no ritmo tátata. Todo verso possui ao menos um dátilo tonal. O dátilo classico, porém, era quantitativo.
O uso das formas épicas é tratado no ensaio Prosódia e Grafia. Ocorrem neste poema: formas átonas (è, eo, meo, seo etc.) e conjugações épicas. É um poema solene e classicizante.
Chegarom a Jericó. Dali saindo Jesus e os seus e muitos mais, sentava-se à beira do rumo Bartimeu, mendigo e cego. Este, ao ouvir quem ali passava, exclamou: “Piedade, Jesus! Filho que és de Davi, compaixão de mim!” Quando o repreenderom porque falava, ele alçou maior sua voz: “Piedade, Jesus, compaixão do que sou!” Mas Jesus ouviu, parou e pediu: “Chamai-o.” Pois chamarom o cego: “Coragem, levanta-te, Ele te chama!” Lançando fora o seo trapo, o mendigo ergueu-se e foi-lhe falar. Jesus indaga: “Que desejas de mim?” “Mestre”, implora o cego, “quero apenas ver!” Pois Jesus lhe responde: “Vai, filhinho, a tua fé te salvou.” E no mesmo instante reconheceu sua vista e foi seguindo Jesus pela estrada. (Cenas de Marcos, X)
| Vinde, filhos, mesclemos nosso pranto agitados | |
| ante o despertar duma dor invasora dos olhos: | |
| Morre condenado na cruz Jesus Nazareno, | |
| morre ensanguentado e coroado de espinhos. | |
| Mas ninguém ampara a mãe duma pura inocência | 5 |
| quando plange a sós pedindo aos céus piedade. | |
| Ele chegara a Jerusalém recebido com palmas, | |
| ele passara pela estrada atendendo pequenos. | |
| Vinha de longe a sua fama e serena lembrança | |
| pelos ermos onde passou confortava seo povo. | 10 |
| Mas enquanto repartia dos pães que comia | |
| foi traído, caluniado e vendido ao suplício. | |
| Ele orava no horto quando viu de repente | |
| pela sombra um turbilhão de guardas armados. | |
| Foi levado e torturado, e julgado culpado | 15 |
| foi condenado a carregar esta cruz e pregado. | |
| É assim porém que chega ao fim uma vida | |
| contra a voz promissora duma esfera celeste. | |
| Foi bonito escutar a narração desses homens | |
| quanto ao anjo aclamador duma doce existência, | 20 |
1
| quando de noite, dizem, veio à mãe avisando: | |
| Ave, mulher, está contigo o rei de Israel, | |
| ave, bendito o fruto dum ventre imaculado. | |
| Inda se narra pelos vãos uma noite remota | |
| quando a voz dum canto confortante ecoava: | 25 |
| Não temais, pastores, é bondosa a notícia, | |
| pois nasceu este dia um salvador de serenos. | |
| Não temer, buscar na estrela guia dos magos | |
| novo rumo e logo vereis o seo berço singelo. | |
| São histórias que a vida narra longe do tempo | 30 |
| como juras dum mundo apagador de promessas. | |
| Mas deixemos ora calada a voz das promessas | |
| pois ninguém acredita nem ouviu minha vida: | |
| Eu nasci sem luz e por onde passava buscava, | |
| eu cresci na beira da estrada à mercê de migalhas. | 35 |
| Dia e noite eo erguia as mãos ao céu implorando: | |
| Abre meus olhos, eo quero ver a cor deste mundo! | |
| Quando ouvi que Jesus se aproximava da estrada | |
| não esperei, larguei a vida e me ergui de meu rumo: | |
| «Onde está Jesus? Paixão de mim que não vejo!» | 40 |
2
| Quanto mais o mundo me separava da estrela | |
| mais a minha voz se interpunha e mais eo sabia: | |
| «Eu não tenho nada a perder, eo quero a verdade!» | |
| Como tomado talvez dum sentimento inaudito, | |
| ele parou e me viu, eo venci o mundo entre nós! | 45 |
| Eu me arrastei sem medo da vida nem da morte | |
| mas Jesus perguntou de mim e de mim respondia: | |
| «Abre meus olhos, eo quero ver a cor deste mundo!» | |
| Ele ordenou por piedade que o mundo parasse, | |
| ele estendeu as suas mãos e meus olhos se abriram! | 50 |
| Eu me ergui de meo barro e meditando a verdade | |
| vi que o céu era belo e vi que o sol me abraçava. | |
| Vim seguindo e contemplando a pureza das árvores | |
| quando o vento balança as folhas e a sombra se move. | |
| Ante as águas dum rio a transparência das ondas | 55 |
| ora flutuava em meus olhos espelhos do pranto. | |
| Eu avistei de muito longe a viagem das aves | |
| quando as asas navegavam no azul generoso. | |
| Pela noite eo vislumbrava deitado as estrelas | |
| como o porto final da felicidade e do sopro. | 60 |
3
| Mas è desengano este mundo tão belo e tão bruto | |
| pois abri meus olhos e vejo a cor da verdade: | |
| Vim seguindo Jesus e aqui chegamos da estrada | |
| mas aqui termina Jesus e termina esta estrada. | |
| Era melhor o rumo quando o rumo era escuro, | 65 |
| foi pedido infeliz a redenção das pupilas! | |
| Mas aí se vê, meos filhos, no que se convertem | |
| tanta esperança e tanta indagação duma vida. | |
| Eu vivia feliz mendigo à mercê de migalhas! | |
| Fecha meus olhos, bom Jesus, desfaz o milagre | 70 |
| pois o mundo ganhou a cor e perdeu a beleza. | |
| Ora um manto anil recobre as almas plangentes | |
| como o mar que vai colhendo o pranto das gentes. | |
| Derom aquela cruz ao nosso núncio de longe, | |
| prêmio de morte ao doador de pães e de peixe? | 75 |
| Como se esvai a voz dos salmos na lira quebrada, | |
| como se perde o canto estelar na poeira da morte! | |
| Mas será que vinhe algum corajoso, um amigo | |
| bom tirar da cruz este corpo? Será que veremos? | |
| Quem se confia ao poderoso escudo e se assenta | 80 |
4
| sob a sombra do altíssimo clama: Minha esperança! | |
| Pois è meu pastor o Senhor e nada me falta: | |
| Faz-me deitar em verdes pastos, sacia o sedento. | |
| Deus! Por que nos abandonas perante inimigos? | |
| Manda a tua luz que nos guia à sagrada montanha! | 85 |
| Mas por que te agitas, alma, e tanto te inquïetas? | |
| Não temer, Israel, porquanto ainda o veremos, | |
| inda seremos gratos a quem nos salva da espada. | |
| Não me abandones ao fim durante a minha velhice | |
| quando meus inimigos contra mim se congregam! | 90 |
| Quero proclamar por mim mesmo a tua justiça, | |
| todos os dias eo contarei o quanto me deste! | |
| Quero narrar melhor a compaixão de meo povo | |
| quando Jesus sofreu e como a Cristo ajudarom! | |
| Quero narrar porquanto vi, porquanto na estrada | 95 |
| vinha Jesus pedindo amor e meos olhos se abrirom. | |
| Vi dos homens o quanto agirom, disserom, pensarom, | |
| vi: não morre em vão quem se compadece do aflito. | |
| Inda os céus mirando abaixo este mundo sorriem | |
| como se fosse feliz a cruz no azul que nos cerca! | 100 |
5
| Tiras de nuvens sangram pelo horizonte e poente | |
| mancha vai lembrando o fim dum cruor nebuloso. | |
| Canta o coro das aves ao revoar o crepúsculo, | |
| passam ledas enquanto Jesus expira no tronco. | |
| Ora a mão pregada lembra as palavras de outrora: | 105 |
| “Pois olhai as aves do céu que nunca laboram, | |
| vão vivendo os dias e Deus provê do que falta. | |
| Pois olhai o lírio do campo e como se veste: | |
| Mas se assim se veste que vestido vos falta?” | |
| Ah, voavam sem medo as alegrias das aves, | 110 |
| eram a única voz caridosa perante a verdade. | |
| Dia e noite eo erguia o peito ao céu implorando: | |
| Abre meos olhos, eo quero ver o amor neste mundo! | |
| Ora que as cores naufragarom na sombra do lírio, | |
| ora è vão dizer ao cego que as flores existem! | 115 |
| Como confunde a mente a má constância das coisas | |
| quando ao gozo circundam tantas dores insanas. | |
| Deus escondido, por que vestir o lírio de amores? | |
| Aves por que proviste desta ternura sem termo, | |
| dono do céu, e ao homem deste o lauro de espinhos? | 120 |
| Mas narremos: Soldados lançam dados à tábua | |
| rindo como um louco pela espera da sorte. | |
| Vendo acima o crucificado na extrema agonia | |
| novo lazer se revela: “Eis o rei da Judeia, | |
| homens! Nossos anjos do Olimpo vêm buscá-lo. | 125 |
| Ele disse que sai da cruz sozinho e veremos: | |
| Bem lhe cabe a coroa real e troféu de bandidos!” | |
| Falam em gargalhadas retorcendo seos rostos: | |
| “Grande monarca, em suas mãos o cetro pregado | |
| vale menos que o trapo dum vagabundo na estrada!” | 130 |
| Mas passava um centurião vislumbrando calado, | |
| rude e montado a cavalo. Vendo chegar da cidade | |
| mais aflitos buscava em vão calar os soldados. | |
| “Este homem,” pensava o cavaleiro de Roma, | |
| “era um pobre inocente e morreu sem amparo.” | 135 |
| Ele portanto se amargurou de seo triste serviço | |
| pelo Império. Passava cavalgando em silêncio | |
| mas a imagem falava sempre altior à mente. | |
| Eram porém sem voz os seus monólogos longos: | |
| “É verdade! Em muitas terras passei que lutarom | 140 |
7
| contra o lábaro nosso, animalescas e brutas: | |
| Eram pessoas enlouquecidas de toda sorte! | |
| Pois andando em toda parte busquei de coragem | |
| mas em nenhuma eo encontrei a virtude do sábio, | |
| quanto mais pelejava mais perdia a sperança. | 145 |
| Vim lutando além com desassossego no peito, | |
| toda sorte de luto eo vi mas nada me assusta, | |
| crime nem deus. Tomei de todas armas, vencendo | |
| águias, dragões e tempestades, forte na estrada. | |
| Eu varai o mar tormentoso na paz e no prélio! | 150 |
| Pois mirei o rosto de respeitados guerreiros | |
| mas em parte alguma vi verdade em guerreiros. | |
| Já pensava saber o tamanho de toda injustiça, | |
| já pensava saber o nome de todos os crimes. | |
| Foi engano, mal nenhum è demais neste mundo: | 155 |
| Frente à cruz dum Nazareno e morto inocente | |
| quando afora tanto emprego justo e valente, | |
| ai de mim, aguarda ainda as armas e as almas, | |
| cá se arrasta a vida em vão dum homem de guerra.” | |
| Inda alguns soldados surdos replicam, clamando | 160 |
8
| alto que o homem da cruz dissera perante Pilatos | |
| ser o rei de Judeia. Tornavam ao jogo de dados | |
| muita vez fitanto as outras cruzes erguidas: | |
| “Vede o séquito são dum morto rei de falidos!” | |
| Mas o amigo retruca: “Que comédia, Quirites, | 165 |
| vejo o caso completo de como demanda o Senado | |
| César Hebraico, deus montado ao lombo dum asno!” | |
| Inda um outro tomando os dados da tábua pergunta: | |
| “Como foi isto, meninos? Prefere a morte à modéstia?” | |
| Mas um soldado irrompe em gargalhada e contesta: | 170 |
| “Cala a boca, patrício! Seo reino nõ é deste mundo – | |
| fica longe, longe o reino histrião do Esquilino, | |
| fica num mundo gostoso, num lupanar da Suburra.” | |
| Cifras novas e acaso passavam por sobre a tábua | |
| quando um militar enfadado para e completa: | 175 |
| “Mas è cada coisa que me aparece no mundo! | |
| É de rir para uma vida inteira e me acabo: | |
| Forom superadas mesmo as comédias de Plauto, | |
| forom superadas em grande estilo, meos caros.” | |
| Quando o corpo atormentado na cruz estremece, | 180 |
9
| um dos homens embebece a sponja em vinagre | |
| mas concede pouco: “Bebe com calma, monarca, | |
| mostra à gente o decoro dos reis,” sugere o verdugo | |
| frente à sua mãe que esconde o rosto nos braços. | |
| Não demora no monte o pôr do sol memorável | 185 |
| mas o sol verdadeiro já se vai deste mundo. | |
| “Pai!” o brado vem da cruz, “por que me deixaste?” | |
| Grito que repercute ao peito eterno silêncio, | |
| era a morte e quantos ali paravam sabiam. | |
| Foi tamanho o clamor daquele viço expirando | 190 |
| grave que o firmamento escureceu de repente. | |
| Ora os olhos converterom-se à cruz entendendo | |
| dentro do peito a voz do derradeiro suspiro. | |
| Ante à cena o centúrio desce e deixa o cavalo: | |
| Ele em tudo lamenta a displicência de estranhos | 195 |
| mas reluta contra um coração que se afirma: | |
| “É possível? Os assassinos correm libertos | |
| pelo rumo torto, o seo crime nunca punido. | |
| Nós contudo vivemos eludidos das leis e | |
| dando à cruz o generoso viver de inocentes. | 200 |
10
| Pois se ainda fosse vivo e conosco este homem, | |
| certo a minha espada seguiria os seos passos | |
| onde quer que vagasse em desolados espaços. | |
| Eu queria estar distante de tudo que vejo | |
| como cavalgar e deixar atrás este inferno. | 205 |
| Mas è isto o que a vida faz duma rota danada: | |
| Vejo uma cruz infame unindo os crimes de todos | |
| contra um Nazareno e contra a vida sem erro. | |
| Quem redime neste mundo tanta desgraça?” | |
| Isto dito, o homem d’armas retira uma lágrima, | 210 |
| limpa os olhos e adverte os soldados, dizendo: | |
| “Era de Deus este homem! Era grande, guerreiros!” | |
| Como porém a palavra caísse em solo infértil, | |
| lá se sentau e calau em misturando-se à turba, | |
| moendo a mente ao ver apiedado o defunto. | 215 |
| Mas ouviu talvez nas ilusões da tristeza | |
| voz que daquela cruz arrebatava-lhe o peito: | |
| “Certo rei deixara a veiga à conta de servos | |
| mas por trás do seu senhor renderom-se ao crime. | |
| Quando houverom matado os emissários de longe | 220 |
11
| veio o rei irado e mandou, chamando os juízes: | |
| Cada servo seja punido segundo os seos atos! | |
| Pois os homens forom condenados à morte | |
| mas o filho do rei intercedeu, explicando: | |
| Muitos desses réus se desviarom sem dolo, | 225 |
| muitos arrependidos vão mudando seo rumo. | |
| Há melhor maneira de consertar criminosos, | |
| ama, perdoa quem não sabe o que faz e liberta. | |
| Eu irei, direi a verdade e por fim morrerei! | |
| Pois no sacrifício verão que a vida inocente | 230 |
| mesmo castigada è bonita, è melhor, è vitória.” | |
| Mas um triste centúrio no seu diálogo interno | |
| quer saber o valor dum sacrifício tamanho. | |
| Pois decerto beirava a loucura tanta bondade, | |
| ele sacrificar-se por esta grei truculenta! | 235 |
| Que verdade nova se esconde trás um mendigo, | |
| corpo que adentra capitais ao lombo dum asno? | |
| Nem bondade apaga o mal dum feito funesto | |
| mas o novo rei mandará perdoar inimigos? | |
| Certo o centurião negava um perdão inumano: | 240 |
12
| “Eu de fato não mereço esse tipo de gesto, | |
| já me basta a punição, minha morte me basta!” | |
| Como ouvisse do cavaleiro o sincero lamento | |
| veio a fala qual se falara um sopro no lenho: | |
| “Toma apenas teo rumo e diz a Roma o que viste! | 245 |
| Como não podes recuperar da cruz o cordeiro, | |
| tão somente aceita o sangue aqui derramado, | |
| faz este derradeiro favor e dom de respeito!” | |
| Muito tempo um confundido centúrio reflete | |
| vendo o soldado perfurar o cadáver coa lança. | 250 |
| Dentro da sua vida recôndita nada se move, | |
| jorra somente pelo silêncio um líquido rubro, | |
| fel revestindo como a chuva a terra sedenta. | |
| Mas o homem d’armas num sobressalto inaudito | |
| brada um repentino brado grave e longuíssimo, | 255 |
| brada no meio da gente levantando-se o grito. | |
| Quem contudo acudia àquela estranha figura | |
| frente à cruz ouvia um militar impassível: | |
| “Hércules dê-lhe viço pois delira em fadiga.” | |
| Eram lançados os dados como se nada ocorresse. | 260 |
13
| Ele, porém, repudiando uma cena impostora | |
| monta o cavalo contra insuportável verdade, | |
| dando esporas contrito e sobretudo apressado. | |
| Mas o cavalo saltou, selvagem a presa do medo. | |
| Inda que a mente longe tente manter o controle, | 265 |
| perde as rédeas soltas para o bicho indomado. | |
| Vai lutando assustado, apalpa o nada co braço, | |
| urge no meio do susto recuparar o equilíbrio. | |
| Mas semelha à sombra a vida barca sem remo | |
| quando vai passando à deriva, o rumo largado | 270 |
| contra a ventania feroz no abismo das ondas. | |
| Ele se torce mas resiste em vão e despenca, | |
| bate co rosto em queda contra a terra e poeira. | |
| Mal se rasteja o centurião desdenhando socorro, | |
| sangue borbotando a roupa dos pés à cabeça. | 275 |
| Como esquecido de si pensando apenas na gente | |
| tenta erguer-se mais contendo o passo do bicho, | |
| mas o equestre nervoso foge rumo ao deserto: | |
| Não suportara tampouco a cena, morto no tronco | |
| ser querido que os animais protegaram outrora, | 280 |
14
| quando na choça a mãe o dera à luz e temera – | |
| fruto do quem o gado usau de mais piedade, | |
| quem diria, que o raciocínio reto dos homens. | |
| Pois tomarom ao braço o cavaleiro, seguindo | |
| rumo à cidade e descendendo a pé pelo monte. | 285 |
| Veio porém de encontro, ai, miséria sem nome, | |
| larga marcha morosa de velhos costados em varas. | |
| Vendo o coro dos anciãos que passava curvado, | |
| olhos direcionados à cruz, o ferido antecede: | |
| “Procurais Jesus? Jesus morreu, peregrinos!” | 290 |
| Quando vislumbrarom já de perto o cadáver, | |
| um dos idosos batendo fortemente no peito | |
| joga o cajado e despedaça a roupa do corpo. | |
| Cai de joelhos perante a multidão que se cala | |
| vendo o pesar que José de Arimateia atestava. | 295 |
| Era um homem de forte paixão. Debalde continha | |
| voz e verbo em vista à verdade, o mar prorrompia: | |
| “Que vislumbro e que vejo nesta cruz renegada? | |
| Vinde rasgar os vestuários que ainda me restam, | |
| venha o verdugo destruir as minhas entranhas! | 300 |
15
| Que se passou, Israel, em este monte Calvário? | |
| Eu não sei por onde vou, quem sou e que vejo: | |
| Deus dos céus, foi este o homem que apenas amou?” | |
| Mas desfalecia-lhe o fôlego e mal se expressava | |
| quando arfando e vencendo novamente a vertigem | 305 |
| toma força, pergunta calmo e baixa o seo brado: | |
| “Ele morreu? Os homens condenarom de fato | |
| quem pregava amor ao próximo e doce verdade? | |
| É mentira e não confio na cena que assisto: | |
| Quero descobrir quem permitiu este crime! | 310 |
| É preciso coragem para crer no meu pranto | |
| pois vivi demais, a desastres pouco resisto. | |
| Custa crer, contudo a cena se impõe à cidade: | |
| Foi crucificado, meo Deus, Jesus Nazareno!” | |
| Mas Maria, a mãe de Tiago que ali se encontrava, | 315 |
| vendo o conselheiro alçar a voz transtornada | |
| veio ouvir de perto o desandar das palavras. | |
| Pondo as mãos sobre a sua pele, ia secando | |
| pois suores dum velho que recusava consolo. | |
| Quando o torturado a divisa, olhos nos olhos | 320 |
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| tenta repreender querendo em vão argumento. | |
| Mas Maria passava ainda ao ombro a destra | |
| como lhe consolando a multidão de amarguras. | |
| Foi então apontando o desconforto dos pobres: | |
| “Que te ocorre, José? A sua mãe valerosa | 325 |
| sofre calada como a pedra velando sem termo. | |
| Que valor tiveram os brados aqui derramados, | |
| tanta dor, se a sua boca se abrisse gemendo | |
| males da crucificação duma pura existência! | |
| Onde já se viu a mãe dum homem sem erro | 330 |
| ver o fruto do próprio ventre morrer sem arrimo, | |
| onde o doador de pães coroado de espinhos? | |
| Onde se viu, pergunto, o curador de doenças | |
| d’alma como do corpo pendido à cruz e cuspido, | |
| núncio generoso de amor premiado com pregos? | 335 |
| Chora menos, senhor, o nosso pranto è bastante, | |
| já não carecemos de exagerados lamentos. | |
| Antes nos dá, José, teo generoso conselho, | |
| sai do chão, José, e dá consolo a quem sofre.” | |
| Mas o velho, rompendo a densidade da massa, | 340 |
17
| abre as alas da turba e chega à beira do toro | |
| vendo Jesus suspenso, os desvalidos abaixo: | |
| “Ó Israel, divide comigo a dor que te pesa | |
| quando a vida è castigada e ninguém a defende. | |
| Olha o teu passado e reflete: Antes morrêssemos | 345 |
| como escravos daquele Egito tumba de justos. | |
| Resta o quê de nós, quebrados pelo deserto? | |
| Basta um dia e já se reduz um povo a ruína.” | |
| Mas perdendo o controle replica à mãe de Tiago: | |
| “Nem consigo pensar num desfortunado destino | 350 |
| mas ousaste, mulher, pedir consolo e conselho? | |
| Este velho que sou de nada sabe nem posso! | |
| Era bonita a vida quando a vida era jovem, | |
| quando na voz do salmo ressoava a sperança: | |
| Eram poderosas as preces dum vivo lamento | 355 |
| quando redimindo a dor salvavam o mundo. | |
| Tristes bocas forom convertidas em riso | |
| quando o milagre dividiu a margem dos mares, | |
| pois eo sei, o coração sincero consegue. | |
| Mas o vento carregou para trás do deserto | 360 |
18
| nossa terra prometida e vitória do justo. | |
| Onde estão os templos duma oração fervorosa | |
| para que o tempo veja quanto amor construímos? | |
| Nossos templos onde a paz consola os caídos, | |
| onde se mata a sede das almas e a mágoa termina – | 365 |
| era bonita a vida quando a vida era o salmo. | |
| Quando a lira evocava em Deus a força do escudo, | |
| todo pranto era doce e toda a lida era alegre. | |
| Hoje o canto se perde e vou passando meo rumo | |
| vendo por onde passo o fim do canto e do passo. | 370 |
| Mas eo vivo e vivendo vejo o fim da esperança: | |
| Vou-me embora, filhos, vou buscar o deserto, | |
| vou morrer orando a Deus pelo bem de meu povo.” | |
| Não, José, não fales assim porque te equivocas: | |
| Foi bonita uma vida castigada e quebrada | 375 |
| quando se ergueu do chão desafiando o destino. | |
| Uma coisa eo entendi no abandono da estrada: | |
| Vem da vida quebrada a verdadeira esperança, | |
| é na vida quebrada que a fé se torna coragem. | |
| Esta foi a vida, ancião, que ergui da poeira | 380 |
19
| quando ouvi que Jesus se aproximava da estrada. | |
| Pois contrariando a voz duma turba impostora | |
| não me rendi: Busquei Jesus vencendo o destino | |
| pois se a vida è spada meo Deus è meu escudo. | |
| Não deixei para trás o trapo e tudo que havia | 385 |
| para enfraquecer meo passo perante a batalha: | |
| Eu ergui minha voz pedindo a luz de meos olhos! | |
| Mas Jesus não teria aberto meos olhos se o grito | |
| não tivesse força e se a vida ficasse na estrada. | |
| É para a vida castigada que o salmo se canta: | 390 |
| Deus se fez escudo, mas é preciso que o braço | |
| tenha a coragem de erguê-lo contra a mão inimiga! | |
| Ergue teo braço, ergue o teu escudo e defende | |
| quem merece a verdade na vida como na morte! | |
| Mas José ponderou, e enquanto ideias vagavam | 395 |
| um dos velhos do coro aproximou-se querendo: | |
| “Vais buscar o deserto enquanto o povo padece? | |
| Pensa melhor: Morrer orando a Deus è bonito, | |
| mas melhor è morrer amando quem necessita. | |
| Vais correr à sombra abandonada dos ermos? | 400 |
20
| Qual o valor da fuga quando o mal te persegue | |
| toda parte? Irá contigo a cor desta imagem: | |
| Morto na cruz Jesus Nazareno! Será verdade | |
| mesmo que tudo è vão, nenhuma ajuda bemvinda?” | |
| Mas José considera as palavras e vai escutando: | 405 |
| “Seja teu o destino. Se queres demérito foge, | |
| vai-te embora ao rumo destruïdor da verdade! | |
| Ó Israel, aurora vence o pranto das noites! | |
| Ó Israel, confia em teu escudo e prossegue!” | |
| Ele balançava a cabeça mirando a poeira, | 410 |
| ele reprimia nos olhos o peso das gotas | |
| mas a voz insiste interrompendo o silêncio: | |
| “Não è esta a retidão que se espera dum homem | |
| forte e poderoso e reparador de seo povo, | |
| pois a dor è de todos mas poder è de poucos. | 415 |
| Usa o bom império que tens, consola caídos, | |
| não agraves as desesperações desta turba! | |
| Inda negas o braço desdizendo os aflitos? | |
| Age bem primeiro, morre depois como o justo!” | |
| Pois José de Arimateia ergueu-se com força | 420 |
21
| quando a voz se calou: O conselheiro suspira, | |
| toma às mãos o cajado lançado à terra e seguro | |
| bate ao chão, impressionando os ouvidos e os olhos. | |
| Quando a massa agitada se volta e cala esperando, | |
| súbito o homem pronuncia perante os ouvintes: | 425 |
| “Descam da cruz por piedade o corpo vergado, | |
| descam da cruz o nosso bom Jesus Nazareno! | |
| Quero ter nos braços meu Jesus Nazareno! | |
| Seja entregue o curador de vidas ao túmulo | |
| pois morreu! Descei da cruz a vida sem crime, | 430 |
| mãos de Roma: Condenastes o homem errado.” | |
| Mas soldados gargalhando olhavam-se atônitos, | |
| punho à boca cobrindo coalgum pudor o deleite. | |
| Como o velho insistisse, reportarom guerreiros | |
| ordem de Roma e razão por que não fosse possível: | 435 |
| Pôncio Pilatos apenas possui poder sobre a pena. | |
| Isto ouvindo, José cismando hesita um momento, | |
| mas reflete inopinado uma empresa arriscada. | |
| Era preciso agir porquanto o tempo passava | |
| mas o pranto dos inocentes consolo aguardava. | 440 |
| Pois o velho batendo ao chão co mesmo cajado | |
| jura aos soldados misturando lágrima e fogo: | |
| “Pôncio Pilatos há de baixar da cruz este corpo!” |
| Paixões | Folha III |
| Medo arrebatou os rostos no monte Calvário | |
| quando José, tomando nova força no passo, | 445 |
| vara à mão, prossegue rumo a Pôncio Pilatos. | |
| Mas o destino muda repentino os seos planos | |
| quando se avança transtornada a mãe de Tiago: | |
| “Spera!” Ela duvidava da empresa arriscada, | |
| pois ainda que desejasse o socorro das horas | 450 |
| era grave o perigo que os peregrinos corriam. | |
| Como deixar passar uma caravana de simples | |
| sem nenhum poder ou proteção de peritos? | |
| Ela entrevia carnificina às portas do paço, | |
| como seria constrangida a língua de audazes, | 455 |
| como vexada de açoite e morte quiçá. Impedia: | |
| “Tem piedade, José, da nossa gente e pondera! | |
| Crês que alguém de tal governo como Pilatos, | |
| ora que inesitante lançove à morte inocentes | |
| tenha ainda a paciência de ouvir teo relato? | 460 |
23
| É demais a tua audácia, perdeste o juízo? | |
| Pois se até Jesus foi relegado à madeira | |
| quanto mais se fará de nós atordoados? | |
| Nada somos, somos terra e sombra esquecida! | |
| Usa de graça porque temos muito a temer, | 465 |
| já nos basta a punição que acabaumos de ver. | |
| Não desafies contra o fraco o gládio do forte! | |
| Não queremos senão a paz que dói nos vencidos. | |
| Cura não sofras tu dum sacrifício cruento, | |
| paga que o poderoso guarda ao gabo do servo. | 470 |
| Salva a própria vida pois a nossa è perdida: | |
| Pôncio Pilatos nunca acedeu a falas afoitas.” | |
| Algo de certo certamente havia no apelo, | |
| tanto que alguns titubeavam já pelo rumo. | |
| Mas um vulto conhecido se avança valente, | 475 |
| toma voz interrompendo a mãe que falava: | |
| “Isto veremos!” O verbo reverbera no ouvido. | |
| Era aquele centúrio que proferia em rugindo: | |
| Eis o bom emprego que cobiçava das armas! | |
| Era chegado, pensava, ensejo muito esperado, | 480 |
24
| hora honrosa. A fala ressaltava a coragem: | |
| “Quero morrer, mulher, se minha mão poderosa | |
| dere José, que defendo, a militares lazeres. | |
| Quero que trogloditas me partam em quatro, | |
| Cérbero venha contra mim se José perecere. | 485 |
| Sangue demais foi derramado e sangue inocente! | |
| Pois se mais alguém se crucificare por hoje | |
| quero destruir o mundo inteiro na espada: | |
| Roma e Grécia sentirão a força das armas. | |
| Mas eo sei que Roma escuta conselho correto: | 490 |
| Dá-me as mãos, José, porque Pilatos aguarda!” | |
| Mas José, tomado de amor pelo ímpeto heroico, | |
| poupa ao valente mais palavras, dizendo sereno | |
| tanto ao guerreiro quanto àquela mulher abalada: | |
| “Não me importa mais viver, morrer nõ importa. | 495 |
| Ora, se até Jesus foi morto na cruz que diviso, | |
| que destino e fortuna esperarei neste mundo? | |
| Muitas vezes morrer è melhor escolha que a vida | |
| nem me incomoda a recompensa das mãos de Pilatos! | |
| Quero cumprir um dever divino a Jesus Nazareno. | 500 |
25
| Tenho confiança na fé vencedora dos mares: | |
| Pôncio Pilatos, repito, há de ouvir o conselho!” | |
| Um e outro soldado impressionando-se agora | |
| vem ofertar a mão ao centurião corajoso, | |
| medo e confiança mesclados em cada rosto. | 505 |
| Antes porém que descendessem rumo ao governo, | |
| outra mulher aparecendo interrompe a jornada. | |
| Vinha arfando em longa andança quase correndo, | |
| pouco a pouco tomando forma incrível aos olhos. | |
| Mal se sabia como ainda em pé se mantinha: | 510 |
| Magra, mostrava claro que padecia de fome, | |
| certo chorara quïeta ao chão por horas inteiras. | |
| Mas a faminta não vem pedir em causa própria, | |
| antes sussurra desesperantes apelos aos velhos: | |
| “Como vos expeçais a tão perigosa jornada | 515 |
| quero apenas depor a vossos pés que se agitam | |
| minha requesta, dom decente a meo caro defunto: | |
| Quero embalsamar este corpo e preciso de aromas. | |
| Não volteis por favor de mãos vazias, guerreiros, | |
| mas trazei unguento, flores, óleo, fragrância: | 520 |
26
| Hei de ungir o corpo do nosso rei generoso!” | |
| Mas uma voz da massa interrompendo pondera: | |
| Onde buscar espécias frente a tanto perigo? | |
| Mal consegue conter na boca efusão de palavras: | |
| “Ó Madalena! Como pedes ora fragrâncias? | 525 |
| Vão de rumo incerto e pouco sabem se voltam. | |
| Inda cogitas tenham tempo a dar a perfumos, | |
| ver unguentos quando a morte certa ameaça? | |
| São vahidades da tua mente e menções levianas! | |
| Onde comprarão compostos caros de aromas, | 530 |
| perda de tanta prata por pouco, nulho proveito? | |
| Pois olores passam e resta somente a tristeza. | |
| Ousas pedir? O defunto carece mesmo de leito, | |
| nem a cova temos e queres cobri-lo de aromas? | |
| Não te basta arriscarem a própria vida na rota? | 535 |
| Cala a tua boca e seca os olhos dos outros: | |
| Não perturbes quem se sacrifica de graça.” | |
| Poucos sabiam donde aquela mulher proviera, | |
| mas as palavras reverberavam fundo na turba | |
| como nos velhos, cientes da retidão que apelava. | 540 |
27
| Ora, Madalena insistindo ganhava os afetos: | |
| Novo debate tomau lugar dividindo os espíritos, | |
| pois alguns sorriam de espanto, outros revolta | |
| quase ante aquela inusitada demanda de olores. | |
| Quem julgara ser, rogando favor semelhante? | 545 |
| Ela, contudo, acostumada a lidar com agreste | |
| gente sempre pronta a desaprovar as vidas, | |
| não se abalou. Pedindo novamente desculpas | |
| como se ali falasse a juízes, olhava baixo | |
| mas a voz elevava o seu apelo aos senhores, | 550 |
| simples, no entanto firme no coração que retinha: | |
| “Grandes de Hierusalém, por piedade escutade! | |
| Quero saber de quem impede uma coisa somente: | |
| É correto alguém tomar dum empréstimo farto, | |
| força, auxílio, compaixão que não se merece | 555 |
| sem um gesto de gratidão conquanto modesto? | |
| Eu seria a mais infeliz existência das eras – | |
| Deus me concedendo um reino mas eu renegando. | |
| É preciso alguém erguer do chão vossas vidas: | |
| Deste modo soubéreis quem eo sejo e veríeis | 560 |
28
| como Deus alevanta quem o mundo derruba. | |
| Disse Jesus uma feita à mesa quando escutava: | |
| Dous devedores havia, um duma grande quantia, | |
| doutro pequena. Mas o credor dos dous devedores | |
| ambos quitou de toda dívida. Pois indaguemos: | 565 |
| Quem dos dous lhe teve mais amor e respeito?” | |
| Ora Madalena apontava a Jesus pendurado. | |
| Quem de fato è mais perdoado mais agradece: | |
| Era afeto patente que tal mulher alentava. | |
| Homens indiferentes miravam o rosto rugoso | 570 |
| como duvidando talvez que um justo profeta | |
| fosse capaz de apiedar-se dum tal indivíduo. | |
| Não mentiam de fato traços dum rosto rasgado, | |
| faces fortemente alçadas no impulso da fala. | |
| Mas a mulher continuava explicando seo caso: | 575 |
| “Muito me deu e muito perdoáve este homem, | |
| é chegada a vez de retribuir, peregrinos! | |
| Mas de vós apenas pouco se pode esperar e | |
| nem atendo, sei que desprezais meo pedido. | |
| Corpos impuros como a derrocada do inferno, | 580 |
29
| ímpios de toda sorte vós ungis de perfumos. | |
| Este porém deixais aqui, entregue à vergonha: | |
| Ó Isreal! Eo não entendo o que vejo nem sinto! | |
| Cada um oferece aos bons a prenda que pode | |
| nem vos condeno e contudo condenais Madalena. | 585 |
| Vai o centurião defendendo José de Pilatos, | |
| vai José rogando-lhe o corpo e dom duma cova | |
| mas não posso pedir, eo não, a minha fragrância! | |
| É demais entrar numa tenda buscando uma essência! | |
| Ó lastimosos atos que a vida assiste e pranteia, | 590 |
| homens de grande nome e tão pequeno respeito. | |
| Mas sereis ingratos a sós, irei de meo rumo! | |
| Vou comprar o óleo que cabe a Jesus Nazareno, | |
| vou buscar a sós nos ermos o aroma do eterno.” | |
| Ela, alevantando-se bamba, escora-se a braços, | 595 |
| vaga atônita, vai procurando a cruz em silêncio. | |
| Limpa então dos olhos vermelhantes o pranto | |
| para tocar o tronco, para ungir o inocente | |
| como se aquelas gotas emanassem fragrância. | |
| Vai por fim descendo embora rumo à cidade | 600 |
30
| mas um vulto conhecido intervém: O centúrio | |
| qual se reconhecesse a dor deteve-lhe a marcha: | |
| “Spera, Madalena! Fica e socorre estes outros, | |
| dá consolo à mãe que chora o crime infinito. | |
| Não te desesperes porque traremos essências!” | 605 |
| Lá se forom repentinos, seguidos de poucos | |
| velhos andando logo e como a força deixava, | |
| quase tentando correr por ansiedade e coragem. | |
| Forom-se, desaparecendo ligeiro e deixando | |
| muitos outros desconfortados, a mente abalada. | 610 |
| Quem sabia se ainda ali voltavam coa nova? | |
| Ante o temor a turba busca em vão o verdugo, | |
| homem ao qual increpar a vida crucificada. | |
| Judas Iscariotes! Por quantas vezes o nome | |
| foi maldito na massa e novas buscas lançadas! | 615 |
| Onde, pois, estranhos indagavam de estranhos, | |
| foi esconder de nós uma vergonhosa presença? | |
| Como ousou trair e vender Jesus Nazareno? | |
| Venha dizer ao condenado a razão deste crime! | |
| Mas a turba nada escutara do fado de Judas. | 620 |
31
| Quando o núncio se aproxima de longe apressado, | |
| súbito a mãe de Tiago pressentindo a notícia | |
| toma pelo braço o novo estranho, implorando: | |
| “Que desgracioso mal te traz ao Calvário?” | |
| Vendo aglomeradas tantas presas da espera | 625 |
| quase hostil no desespero, o núncio de longe | |
| prestes a dar a sua mensagem pediu a palavra. | |
| Quando houverom visto naqueles olhos a gota, | |
| houve silêncio grave enquanto a boca entoava: | |
| “Justos, è nesta cima que pende Jesus Nazareno? | 630 |
| Venho pois a mando dum homem ora abismado, | |
| trago novas que a boca preferiria impossíveis. | |
| Poupa vigor nessas mãos furiosas, turba tremenda, | |
| foi-se já deste mundo a causa do vosso desgaste! | |
| Judas lançau-se duma altíssima forca na estrada. | 635 |
| Roga apenas dizer que ainda hoje na aurora | |
| foi falar com aqueles a quem vendera seo mestre. | |
| Trinta moedas jogou de si pedindo e bradando: | |
| – Dai de volta o bom Jesus e tomai vossa prata. | |
| Grave erro ocorreu, juízes, eo quero levá-lo! – | 640 |
32
| Era tarde demais, o seu remorso era tarde. | |
| Indo pois às ribanceiras dum monte elevado | |
| disse-me quando me viu enquanto ali trabalhava: | |
| – Vai àquele monte dos retos, pastor, o Calvário, | |
| diz o quanto viste e quantos puderes consola. | 645 |
| Chega ao fim meo erro e minha vida se acaba | |
| pela forca e pela ofensa maior do que a forca. | |
| Pois aprende comigo como termina a vergonha | |
| nem relates as gotas dum pranto vão que derramo: | |
| Quem se perdeu como eu merece apenas o ódio | 650 |
| frente a triste memória dum vergonhoso momento! | |
| Era um homem correto e redentor de perdidos, | |
| foi um homem de Deus que condenei ao suplício! | |
| Foi num gesto confuso e transtornado que Judas | |
| destruiu seo mestre, a sua vida e seo povo. | 655 |
| É pequeno, bom pastor, o abismo a que salto: | |
| É que não avistai por perto um maior precipício | |
| nem me permito tempo, ca nem na busca da morte | |
| fora-me lícito andar um dia a mais neste mundo. – | |
| Ele calou, romeiros, e assim calado lançou-se. | 660 |
33
| Vi cair das suas mãos o resto dalgumas moedas, | |
| vi rolar e desaparecer pelo chão poeirento.” | |
| Pois assim narrou o pastor da sombra que cega | |
| pelo caminho quem procurava apenas a estrela. | |
| Mas será que a veremos iluminar os abismos | 665 |
| onde o passo desavisado perde o seu rumo? | |
| Pois assim narrou o pastor, calando ouvintes | |
| almas dum caso triste e contritor de juízes. | |
| É bonito o perdão aos arrependidos dum crime | |
| pois maior que o crime infinito è perdão infinito. | 670 |
| Ó, filhinhos, o coração è pequeno mas grande | |
| foi a vida de quem bradau à beira da morte: | |
| “Pai, perdoa! Eles não sabem o mal que fazem.” | |
| Ele chorou da cruz por essas mãos criminosas | |
| pois è fácil planger a vida santa e sem erro. | 675 |
| Mas o pastor que silenciara o monte Calvário | |
| foi baixando e balançando lento a cabeça, | |
| foi notando os rostos e completando a verdade: | |
| “Era esta a novidade que tinha a dizer-vos. | |
| Ora que tudo ouvistes, irei embora se posso | 680 |
34
| rumo ao campo que atende. Já me pesam os olhos | |
| vendo pregada naquela cruz a causa da mágoa, | |
| dor que a minha boca aumenta e perturba somente.” | |
| Vai saindo confuso e sem ninguém que o despeça: | |
| Era apenas a mãe de Jesus que chorava serena, | 685 |
| era a mãe de Jesus que agradecia a coragem. | |
| Judas morrera! Mas uma gente ainda esperava | |
| pela noite a grande notícia, José, o centúrio: | |
| Iam passando amargamente as vidas e as horas. |
| Mas Pilatos passa apressado quando vislumbra | 690 |
| juntos José de Arimateia, o centúrio, soldados. | |
| Para um momento e percebendo a dor do semblante | |
| cede ao peregrino, responde irritado entretanto: | |
| “Quem me procura? Tu, andante? Diz o que queres, | |
| anda, o tempo è curto: Expõe teo caso e veremos.” | 695 |
| Já com isto um centurião se abateu no seo canto, | |
| já sabia a dificuldade da causa e dos homens. | |
| Viu que José ponderava procurando as palavras | |
| pelo silêncio enquanto Pilatos olhava inquïeto. | |
| Era preciso tomar o ensejo, usar hombridade, | 700 |
35
| era importante agir porque José se calava. | |
| Pois o bom amigo acorreu quebrando o receio, | |
| ele que afeito à guerra nada mais receava. | |
| Inda soava na sombra o temor da voz de Pilatos | |
| quando o centurião abriu a boca explicando: | 705 |
| “Este homem aqui, senhor, è José do sinédrio! | |
| Vem do Calvário testemunhar um crime hediondo | |
| pelo que foi lançado à lama o nome de Roma: | |
| Foi de fato punido um homem de bem e divino | |
| quando lavaste as mãos àquela morte inocente! | 710 |
| Quem enxergasse longe a cruz ao ombro sangrando | |
| certo veria Jesus, calado enquanto apanhava | |
| tantos golpes dum povo desordenado nas ruas! | |
| Quem deixou cair sem mão nenhuma de amparo, | |
| quem, uma vida quebrada a carregar uma cruz? | 715 |
| Era mais pesada que a vida o pedaço de tronco! | |
| Certo se apiedou quem viu cair nas vielas | |
| este inocente, o trapo despedaçado, o sangrento | |
| lauro de espinhos cravado no crânio. Era Jesus! | |
| Quem de fato assistiu uma injustiça inaudita | 720 |
36
| certo caiu por terra, certo orou por clemência. | |
| Quase saltei a tomar daquelas mãos a madeira | |
| quando a voz ofegante disse aos desesperados: | |
| Filhas de Hierusalém, chorade vossos rebentos! | |
| Era de Deus este homem! Inda deitado no tronco, | 725 |
| ele pediu ao céu que perdoasse o verdugo! | |
| Ele chorou, porque ninguém sabia o que agia. | |
| Hoje estarás no céu, promete ao ladrão renovado: | |
| Foi distinto o valor de quem perdoau condenados, | |
| era um deus este homem, era um homem sem erro. | 730 |
| Quem passava longe e não entendia a verdade | |
| vinha perto ouvir que triste evento assomava: | |
| Era então Barrabás que fugia causando tumulto? | |
| Não, senhor, não era a rebelião dos imundos. | |
| Era Jesus que carregava uma cruz criminosa, | 735 |
| era o grito dos odiosos e o pranto de amigos. | |
| Não, senhor, Jesus não merecia esta morte | |
| pois Jesus era amado e proclamava a bondade. | |
| Ele morreu, mas era nosso o dever da verdade | |
| como a resposta a quem indigava: Ele foi morto, | 740 |
37
| sim, cravarom à cruz o punho que apenas curava! | |
| Eu não quero falar porque palavra è poeira | |
| mas poeira passa e fica o que è dor de verdade. | |
| Ouve José que vem pedir um favor diminuto: | |
| Vem pedir por quem morreu e não pode falar!” | 745 |
| Mas Pilatos por um momento baixa a cabeça: | |
| Vai ouvindo calado aquele mar de palavras. | |
| Inda lembra quando no meio da noite sonhava | |
| sua esposa: Pôncio, deixa em paz este homem! | |
| Era então o presságio da verdadeira inocência? | 750 |
| É difícil demais amar as pessoas singelas, | |
| é demais para o mundo a sua vida sincera. | |
| Passa pela estrada o destruïdor de pequenos, | |
| passa sem medo o malfeitor e dono do mundo. | |
| Mas a vida que fala duma esperança serena | 755 |
| vive esquecida e castigada no meio do povo. | |
| Vem o ladrão carregar o fruto de quem trabalha, | |
| foge e ganha o mundo usurpador de tesouros. | |
| Mas o doador de alegria que ampara caídos | |
| tem de morrer na cruz, sem crime e sem alegria. | 760 |
38
| Sim, decerto foi correto o clamor dum distante | |
| sonho pedindo: Pôncio, deixa em paz este homem! | |
| Era um homem que ensinava uma vida bonita. | |
| Era um homem pregando amor, perdão, piedade. | |
| Foi um crime nascer um consolador de abatidos? | 765 |
| É direito e tesouro dos criminosos somente | |
| ver o lírio do campo e ver o céu estrelado? | |
| Quando da estrela revelou-se uma triste verdade, | |
| ela acordou, e sentindo o gosto do sonho chorou. | |
| Pois o fim se aproximava dum homem sem crime, | 770 |
| vinha pelas mãos do próprio esposo a certeza! | |
| Não, Pilatos: Poupa um homem bom dessa morte! | |
| Pensa na mãe que além da dor dum filho perdido | |
| tem de saber que chora por um filho inocente. | |
| Mas na noite a palavra certa è sonho somente, | 775 |
| pois a noite sim esconde o desassossego das mães. | |
| Era sua a razão! Uma voz piedosa intervinha | |
| pelo amor: Por que deixar de ouvir o seo sonho? | |
| Era um sonho bonito! Era melhor do que o mundo! | |
| Mas qualquer que seja sonho è melhor e Pilatos | 780 |
39
| vendo por sua vez o rosto do mundo suspira: | |
| “Homens de Hierusalém, percebo a vossa perfídia | |
| como repetis a mentira instigando guerreiros | |
| contra a minha vida e desdizendo o governo. | |
| Mas ouvi-me atentos pois vos devo a verdade, | 785 |
| devo mostrar o erro que corrompeu vossa mente, | |
| eu, que apenas quis salvar uma vida inocente. | |
| Quantas vezes o povo insistiu, num único dia, | |
| quantas vezes enfurecido pediu que morresse? | |
| Pondes um bom na cruz e agora chorais o crime? | 790 |
| Cedo esquecestes quanto ódio ocupau este paço, | |
| como durante horas a turba ordenava o suplício! | |
| Certo olvidais a minha relutância dizendo: | |
| Este homem è bom, condenais uma vida sem erro. | |
| Mas por que me torturais torturando um carente? | 795 |
| Sede justos comigo, vós que tapastes o ouvido | |
| quando a minha tristeza desafiava assassinos: | |
| Que pecado este homem calado fez que mereça | |
| morte na cruz, por que punir uma vida serena? | |
| Vejo que cedo vos esqueceis da romana clemência | 800 |
40
| como da intervenção que usei pedindo prudência. | |
| Mesmo a minha esposa se apiedou dum bendito, | |
| ela que nunca o viu mas conheceu sua pena. | |
| Ela sonhou dizendo: Poupa da cruz este homem! | |
| Só precisei de ver a vida que tanto acusavam | 805 |
| para entender uma crassa verdade: Nada fizeste! | |
| Tu que o mundo inteiro condena: Nada fizeste! | |
| Eu, contudo, cujo nome era um nome correto, | |
| eu lançai à lama num só momento o meu nome. | |
| Ora eo sei que a vida quando despreza um sonho | 810 |
| perde pelo arrependimento o resto das noites. | |
| Ora eo sei que o coração que falava dos olhos | |
| era maior que o sonho e que esta vida no mundo. | |
| Ele me olhou nos olhos recusando as palavras | |
| pois, centúrio, disseste bem: Palavra è poeira. | 815 |
| Que bonita a vida de quem não viu e acredita! | |
| Que vergonha è ver um homem daquela verdade | |
| como vi de perto e deixar morrer a verdade! | |
| Esta vida è tão somente ambição de tesouros! | |
| Foi errado, foi desperdício nascer este homem: | 820 |
41
| Foi errado destino passar pelo meu caminho | |
| quando vendo a luz perguntei: Por que te calaste? | |
| Ele não foi, coitado, capaz de erguer sua voz, | |
| era sem palavra a tristeza maior do que o sonho. | |
| Não havia expressão de denunciar a injustiça | 825 |
| nem precisava: Bastava ver, a verdade falava. | |
| Pois eo vi, e como um cego que a luz generosa | |
| duma aurora divina cura, entendi num momento: | |
| És o sacrifício do sol num mundo de cegos! | |
| Pois è esta perante nós a balança das coisas: | 830 |
| Ele abriu meos olhos, mas eu fechai os seus. | |
| Ele estendeu as mãos mas eu lavai minhas mãos. | |
| Antes da hora eo fiz o sol se pôr, anoitece: | |
| Tarde lamenta o mal quem cedo mal se lamenta! | |
| Mas a vida segue, è esta, anciãos, a verdade: | 835 |
| Que quereis de mim que despedacei uma estrela? | |
| Não è justo erguerdes esta voz que me acaba | |
| quando esperei por vós perante a massa agitada. | |
| Como è triste e desastrosa esta vossa jornada: | |
| Pôs-se o sol, a verdade, o sonho desvaneceu-se. | 840 |
42
| Ide embora! No tempo o que se fez està feito.” | |
| Houve surpresa e pesar no centurião que falara | |
| como nos outros pela espera dum longo silêncio. | |
| Era a coragem que parecia faltar a quem teme, | |
| mas José de Arimateia pondera e responde: | 845 |
| “Homem de Roma, concede ao ancião derribado | |
| pela sombra um derradeiro favor que te peço. | |
| Quero descer da cruz Jesus que morreu inocente! | |
| Quero carregar e subir uma escada bondosa: | |
| Eu tirarei dum rosto amado a coroa de espinhos, | 850 |
| eu tomarei nas minhas mãos os pregos e o corpo. | |
| Quando Jesus repousar no meu abraço tardio, | |
| quero deitar a carne castigada entre as flores. | |
| Trago comigo o tecido apagador da vergonha, | |
| sei de muitas mãos que já preparam perfumes. | 855 |
| Nunca nestas terras se viu tamanha clemência | |
| nem o homem rude ouviu sem desassossego: | |
| Não duvido da tua angústia, tremendo remorso. | |
| Sei que muito fizeres para salvar meo amigo: | |
| Mas ainda podes, Pilatos, salvar meo amigo, | 860 |
43
| dar amor senão aos vivos ao menos aos mortos. | |
| Antes de lamentares a negligência dos sonhos, | |
| deixa-me remover da cruz o crime que choras. | |
| Pois Jesus se tinha culpa, a culpa està paga, | |
| mas se foi inocente o crime è ficar onde está.” | 865 |
| Pôncio Pilatos interrompe, confuso, agitado: | |
| “Para, audaz, a lei de Roma proíbe o que pedes, | |
| antes, quem morreu na cruz na cruz apodreça! | |
| Olha bem onde estás e vê melhor a quem falas! | |
| Sou juiz duma lei que paira acima de todos, | 870 |
| cumpro não o que quero mas somente o que devo. | |
| Pois eo dei a escolha, avisei: Estais enganados! | |
| Mas o povo escolheu, cumpri, lavei minhas mãos! | |
| Não me arroguei o nome de salvador deste mundo, | |
| posso sim punir-vos por desacato ao mandado. | 875 |
| Eu, se pudesse, buscava a derrocada do tempo | |
| como lançava à cruz um povo inteiro de estultos. | |
| Eu, se soubesse que è isto a vida em nome de Roma, | |
| certo seria meu o cadáver que pende no tronco. | |
| Como a vida engana, como a vida è desgosto! | 880 |
44
| Não aguardeis porém que minhas mãos vos assolem | |
| como em dira sevícia nunca vista no inferno! | |
| Nada me custa de fato crucificar os milhares: | |
| Já que morreu Jesus, de que me vale esse resto? | |
| Morra consigo a raça desgraçada dos homens! | 885 |
| Quem morreu na cruz, ancião, na cruz apodreça!” | |
| Mas José se confirma perante Pôncio Pilatos: | |
| “Lei è lei, senhor, mas uma coisa è verdade: | |
| Esta minha gente de hebreus merece respeito. | |
| Não confundas este povo com turba agitada, | 890 |
| pois o povo hebreu também sou eu que te pede: | |
| Quero descer meo amigo daquela cruz indevida | |
| pois morreu amando Israel, Israel não se esquece. | |
| Não esqueço também que sou José do sinédrio, | |
| vida que vivo pelo amor de Israel e que insisto: | 895 |
| Quero prestar a Jesus um derradeiro seviço, | |
| eu, que ouvi demais ultrajes contra meo povo, | |
| eu, que represento o sinédrio pai desta terra. | |
| Lei meo povo tem também, escuta o meo povo: | |
| Não apodreça na cruz um criminoso sem crime! | 900 |
45
| Lei de Israel è a lei da consciência que sabes | |
| pois falou por um sonho portador da verdade – | |
| quando uma voz tamanha ordena ao juiz piedade | |
| como abafar o peito em nome dum mero tumulto? | |
| Como ouvir da voz dos atordoados «condena!» | 905 |
| quando a voz do coração implorava «liberta!»? | |
| Pois, Romano, agiste mal, condenaste uma gente | |
| quando chamaste «povo hebreu» a voz da injustiça. | |
| Não te defendas! Tu permitiste, tu condenaste! | |
| Mas será pela lei de Roma que deste essa ordem? | 910 |
| Quando a turba de paus e pedra e palavras de ódio | |
| pede a morte dum desarmado, calado e ferido, | |
| eles passam impunes e o outro morre na cruz? | |
| Mas se a lei de Roma è isto e isto è justiça, | |
| nem meo povo nem Roma pede lei nem justiça. | 915 |
| Já bastava o sonho que não se escreve direito. | |
| Ele calou, porquanto a vida que odeia não ouve, | |
| era em vão falar se o próprio olhar atestava: | |
| Ele baixou a cabeça ensanguentada e cravado | |
| pelos espinhos um piedoso pediu piedade. | 920 |
46
| Não tiveste, Pilatos, mas eu terei que te peço: | |
| Quero mostrar à cruz o coração de meo povo!” | |
| Ó Israel, confia em quem te ajuda e te abriga! | |
| Lá se afirmava frente ao sólio de Roma coragem | |
| pela boca dum homem defensor de ofendidos, | 925 |
| pois Jesus Nazareno apiedou-se de todos | |
| mas ninguém se apiedou de Jesus Nazareno. | |
| Contra uma sina ingrata alevantou seo escudo | |
| forte José de Arimateia e Pilatos calou-se. | |
| Não permitiu, fiel de Davi, a cruz do inocente, | 930 |
| não cedeu, Israel venceu a dor de seo povo. | |
| Mas Pilatos concatenando no escuro se aflige: | |
| Eu busquei, pensou, quem defendesse essa vida, | |
| pela turba passava os olhos buscando meo sonho | |
| mas o sonho era meu e não passava na turba. | 935 |
| Era por mim que aquele sonho esperava nascer, | |
| como o sol que não nasce por vontade da turba | |
| mas è filho da noite encubadora dos sonhos. | |
| Era eu esta noite, em mim a verdade encubava | |
| pelas estrelas o sonho redentor desta turba. | 940 |
47
| Pois percebo tarde o sacrifício da excelsa | |
| strela neste mundo sem lei que è lei de verdade. – | |
| Ele assim pensou, e como assim meditasse | |
| disse: “Podem tirar da cruz aquele inocente, | |
| podem tirar se quiserem.” E balançando a cabeça | 945 |
| como um navio distante flutuando nas ondas, | |
| Pôncio Pilatos fita a sombra em busca incerta: | |
| “Podem descer daquela cruz Jesus Nazareno!” | |
| Fala reticente, acena e mostra o Calvário | |
| pelo meneio cansado e desgostoso dos dedos. | 950 |
| Nada resta a dizer e nem por isto o silêncio | |
| cura angústia nem o amor da inocência perdida. | |
| Mas Pilatos intenta um derradeiro discurso: | |
| Abre a boca, vai buscando alguma palavra, | |
| vai tentando transcender um sopro vazio. | 955 |
| É em vão, desiste quando a destra que treme | |
| toca o peito como se fundo uma gruta doesse. | |
| Põe a cabeça entre as mãos e desaparece do adro, | |
| entra embora calado pela sombra que esquece! | |
| Mas escurece e José de Arimateia se apressa. | 960 |
| Paixões | Folha IV |
| Era quase de noite e como as pedras rolava | |
| pelas vielas ensanguentadas ora a lembrança. | |
| Mas José de Arimateia recorda um pedido: | |
| Inda cumpria buscar na vila mistura de óleos. | |
| Indo pela sombra parava estranhos querendo: | 965 |
| “Quem de vós me vende o perfume da boa morte? | |
| Meu amigo morreu, matarom Jesus meo amigo!” | |
| Quantos ouviam porém passavam reto e calados. | |
| Era de festa o dia e contudo a porta das tendas | |
| não se abria quando de fora uma voz conclamava: | 970 |
| “Quero comprar o perfume maior da boa morte, | |
| quero comprar, eo pago, quero ungir meo amigo!” | |
| Nem palavras do hebreu, do centurião e soldados, | |
| nem os lamentos comoverom o peito dos surdos. | |
| “Meu Jesus que morreu e cuja vida era essência | 975 |
| não merece nem perfume nem tenda que o venda?” | |
| Pois no silêncio forom-se dando conta das coisas | |
| como se um raio lhes revelasse a verdade do escuro: | |
| Desde que o éden viu correr a primeira das lágrimas | |
| foi lançada a nossa nudez ao caos do abandono. | 980 |
49
| Desde que a mão bateu por vez primeira o confrade | |
| fez-se dona então do prisco império das coisas. | |
| Foi além queimar as casas e a lida dos mansos, | |
| foi tomando de várias armas e agitos ferozes. | |
| Desde então um desassossego assoma existências | 985 |
| como um mal que domina o mundo, querela incurável. | |
| Muitos forom buscando a causa dum longo infortúnio | |
| crendo que a tanta dor insana seguissem ensinos. | |
| Mas a vida acusa em nós uma triste verdade: | |
| Ódio, guerra e morte, inimizade e desprezo | 990 |
| são as maiores artes que nossa história criou. | |
| Inda ressoa a voz magistral: “Caim, que fizeste?” | |
| Inda verbera o suplício de Abel desumana memória | |
| como entristece aos anjos a derrocada de Adão. | |
| Era tão belo o sereno jardim que outrora abrigava | 995 |
| nossas vidas, era formosa a flor da esperança. | |
| Quanto pranto, em qual desgracioso suspiro | |
| vemos, Deus, que paraíso e fortuna deixaumos. | |
| Ora o perdimento de nossos passos se arrasta | |
| pelo mundo testemunhado uma raça danada. | 1000 |
50
| Ora a felicidade cabe somente nos sonhos | |
| onde a sombra das árvores foi serena certeza. | |
| Voz que nos fez deitar em verdes pastos outroras, | |
| ai, por qual desventurosa ilusão te trocaumos. | |
| Era nosso o caminho, a verdade, a vida e perdemos | 1005 |
| nossa alegria pelos vãos duma triste ambição. | |
| Somos contrita gente e nosso pranto è tardio: | |
| Abre-te, inferno, devora o mal de nós condenados! | |
| Mas espera! Antes que venhas ouve o pequeno | |
| canto do amor buscando essência pelas estradas. | 1010 |
| Passa na sombra deixando a cor duma imagem bondosa, | |
| luz que consola um pouco o peso de nossos olhos: | |
| É verdade que amigos do bom Jesus prosseguiam | |
| pela noite como o brilho na estrela d’aurora? | |
| É verdade que impunham àquela sombra da morte | 1015 |
| pelos vãos a felicidade d’árvore da vida? | |
| Há de fato um campo longe e sagrado recanto | |
| cujos pomos son puros e já maiores que a fome. | |
| Quando ali se reencontram as almas e os anjos | |
| finda a dor e a flor exala um eterno esplendor. | 1020 |
51
| Passa pelo prado um sopro santo e preenche | |
| como olor da verdade as vidas, perene união. | |
| Nem por ali se ouviu clamor saudoso de mundo! | |
| Mas è mundo o que somos e caminhamos no mundo | |
| longe da trilha cujo fim è maior do que o mundo. | 1025 |
| É caminho estreito e por entre veigas estreitas | |
| ora andavam amigos dum homem atado à madeira. | |
| Somos mundo e Jesus, sentindo o gosto do mundo, | |
| ele também buscara na noite um singelo jardim. | |
| Ele pousara os olhos na sombra duma oliveira | 1030 |
| como quem nela visse a mãe de todas as árvores. | |
| Ele chorou, e rogando a Deus redentora vontade | |
| foi lançado ao tronco que carregou pelas ruas. | |
| Pois morreu, abraçado às árvores filhas da vida, | |
| mães da verdadeira amizade e saudade do éden. | 1035 |
| Mas também os olhos sofrerom no dia da sombra: | |
| Ora José de Arimateia buscava apressado | |
| junto a seus amigos amor dum ser condenado. | |
| Inda exalavam as casas um cheiro de pães | |
| ora mesclado aos sentimentos acres da rua. | 1040 |
52
| Viu-se um centurião que desafiando feridas | |
| junto a soldados acompanhava distinta jornada. | |
| Longe ressoavam prantos, mas quem escutava? | |
| Para o mundo, mundo è mero ocaso e deserto. | |
| Quem lembrau nas mesmas ruas os ramos d’árvore, | 1045 |
| vestes de seda, as palmas estendidas em salvas | |
| quando dias antes Jesus adentrara a cidade? | |
| Nem uma doce fragrância agora ali se encontrava | |
| nem unguento ou mercador de aromas amigo. | |
| Não havia remédio ao curador de doenças? | 1050 |
| Era em vão bater de porta em porta esperando | |
| certo milagre, em vão reter na rua passantes? | |
| É soer de quem quer que passe passar apressado | |
| nem mulheres carregando alabastros paravam. | |
| Não vislumbrarom em parte alguma fonte de aromas | 1055 |
| nem a mão que lhes indicasse o rumo da ajuda. | |
| Longe estava a mulher de Betânia cuja amizade | |
| rara cobrira o Nazareno de cara fragrância. | |
| Dói nas nossas almas a indiferença dos homens | |
| como è duro o tempo a quem mendiga minutos. | 1060 |
53
| Mas José conselheiro pensa e para e suspira: | |
| Bate o cajado rudemente ao chão poeirento | |
| como se fosse quase o cetro dum rei poderoso. | |
| Vai baixando seos olhos e apalpando paredes: | |
| Mãos por sobre a poeira, ele derrama na areia | 1065 |
| lágrimas, lágrimas, lágrimas entregando a vida. | |
| “Não merece nem perfume nem tenda que o venda | |
| meu Jesus que morreu e cuja vida era essência?” | |
| Como um náufrago tateando as ondas em triste | |
| busca de tábua, ora José flutuava em seo pranto. | 1070 |
| Para com isto, José, levanta do chão tua vida | |
| pois è forte a promessa do bom pastor e guarida. | |
| Inda ressoa por entre montes e às margens do lago: | |
| – Eu salverei, filhinhos, eu salvarei as ovelhas! | |
| Bom pastor è quem sacrifica a vida por elas. – | 1075 |
| Ó que distinto o dia em que dois amigos se viram, | |
| servo e senhor, e se amarom como iguais em amor. | |
| Foi alegre o dia e feliz pescador o que ouvindo | |
| «segue-me» abandonou do mundo o chão e seguiu. | |
| Segue então, José, e deixa em paz essas pedras: | 1080 |
54
| Segue e verás que não em vão convenceste Pilatos! | |
| Mas José, que concatenava confuso, repete: | |
| “Quero comprar o perfume maior da boa morte, | |
| quero comprar, eo pago, quero ungir meo amigo!” | |
| Foi o centúrio que se abeirando dum diro naufrágio | 1085 |
| como bandeira de salvação estendeu-lhe seo braço. | |
| Duas almas se olhando se revelarom queridas, | |
| duas mãos se enlaçarom testemunhando vitória. | |
| Deus se apieda sim de quem padece em seo pranto: | |
| Pois, filhinhos, apareceu dos ermos um homem | 1090 |
| como enviado talvez duma existência melhor. | |
| Vinha lento e carregava uma leva de vasos | |
| pelos braços e pelas costas, puxando cansado. | |
| Mas ao ver José que se amparava ao centúrio, | |
| ele larga o que traz e inclui a mão ao socorro. | 1095 |
| Como o seo gesto repentino atraísse olhares, | |
| ele então suspira e fraquejante pergunta: | |
| “Sabe algum de vós, hebreus da santa cidade, | |
| onde encontro a cruz que abateu Jesus Nazareno?” | |
| “Queres mesmo saber?” o centurião dissuade. | 1100 |
55
| “Tanto luto adiante agravará teos suspiros!” | |
| “Dizes bem”, responde, “pois que não imaginas | |
| donde venho e quanto já perdi pela estrada: | |
| Quero ver, Romano, a cruz de Jesus Nazareno!” | |
| “És Nicodemos!” reconhece o coro dos velhos. | 1105 |
| “Era de festa o dia”, vai narrando episódios, | |
| “eu de longe encomendara prenda aos amigos, | |
| pronta estava a mesa, o pão, reunida a família. | |
| Era de festa o dia! De toda parte arribavam | |
| caros convidados, era manhã de alegria. | 1110 |
| Ai anciãos! Em este mundo è breve alegria. | |
| Quando veio a nova da cruz em meio a rumores, | |
| fora melhor se um relampo arrebentasse meo peito, | |
| meu, que deixei de pronto para trás o que havia. | |
| Pois mandei buscar a quadriga! Tomei às pressas | 1115 |
| prenda, prata, pão, tecido, o quanto coubesse | |
| fiz caber. E desdenhando os apelos da esposa | |
| vim varando, trazendo amigos e medo no peito. | |
| Sob as minhas rédeas corriam quatro agitados, | |
| era de dar inveja ao vento a veloz cavalgada. | 1120 |
56
| Mas hebreus, è verdade, a mão dos homens è fraca! | |
| Quando passaumos a ponte, arrebentou-se a quadriga | |
| pois a ponte era podre, enganador de esperança. | |
| Nem me lembro de quanto tempo ruí derribado, | |
| ai, reconhecendo o fim duma triste jornada, | 1125 |
| pelo chão as prendas, cavalos soltos ao vento. | |
| Era tudo perdido e meo corpo mal que se erguia, | |
| eu olhava o céu pedindo força, eo clamava! | |
| Cada um apanhava algum punhado de coisas, | |
| coisa que fosse, resgatando a ruína da areia. | 1130 |
| Era duro apressar o passo e cambaleaumos. | |
| Foi então que entendi de que me valem amigos: | |
| Quando surgiu no horizonte o vilarejo primeiro, | |
| foi embora o primeiro amigo, dando por terra | |
| todo o peso. Era um homem de muitas jornadas | 1135 |
| mas perdoo e não me importo, restava um outro. | |
| Fomos cruzando o calor dum miserável deserto | |
| junto a leões e cobras e tempestades de areia. | |
| Quando surgiu no horizonte o vilarejo segundo, | |
| foi embora de mim o segundo e nenhum me restou. | 1140 |
57
| Foi aí que atinei, hebreus, de que me valessem! | |
| Nem por isto titubeei, que se nada me sobra | |
| trago ao ombro o peso da própria vida e prossigo. | |
| Bem sabia quão distante eo me achava do fim – | |
| mal porém me importava perecer pela areia, | 1145 |
| mal importava tornar ao pó do qual me tornei. | |
| Cada passo testemunhava o dever e a vergonha: | |
| Meu amigo expirava na cruz e de longe eo passava, | |
| mal prosseguia. Como vergava o cor fracassado! | |
| Quantas vezes sozinho quis voltar o caminho, | 1150 |
| quantas vezes reergui minhas mãos ao deserto! | |
| Mas è preciso mesmo na morte certa esperança. | |
| É preciso que a vida seja digna dos passos | |
| para que cada passo seja maior do que a vida. | |
| Foi assim, hebreus, que aqui cheguei, foi assim! | 1155 |
| Onde encontro a cruz que abateu Jesus Nazareno? | |
| Sei que è tarde, sei, mas quero ver meo amigo. | |
| Sei que è pouco, sei, mas è de longe que eo trouxe | |
| minha vida e pão, a prenda, prata e as essências: | |
| Eu lhe trouxe o óleo dos aloés e o perfume. | 1160 |
58
| Onde encontro a cruz que abateu Jesus Nazareno? | |
| Ora que Deus e o deserto me permitirom chegar, | |
| ora eo quero levar ao grande rei renegado | |
| meu pequeno tributo e destituto legado.” | |
| Mas José se apieda, estende a mão, reconforta, | 1165 |
| ergue aos céus um novo rosto inundado de alívio. | |
| Vão então atinando a quantidade de prendas: | |
| Era o milagre interrompendo os olhos e a boca, | |
| era o sacrifício do amor e o fim do destino. | |
| Cada qual entendeu naquele instante a verdade: | 1170 |
| Quando o passo è firme a força vence o deserto. | |
| “És Nicodemos!” o nome inesquecível soou | |
| pelo coro dos fortes, professor da vitória. | |
| “Donde vieste?” a voz do centurião se confirma. | |
| “Mostra o deserto, a ponte, quero ver a estrada, | 1175 |
| quero saber o rumo em que o vento curva-se à vida! | |
| Mas soldados, ora que o homem mostra o caminho | |
| vamos seguir e ver se achamos mais provimento! | |
| Quanto a ti, guerreiro e verdadeiro que és, | |
| ergue teo rosto como compete ao homem que és! | 1180 |
59
| Ora que o passo atravessou o deserto e venceste, | |
| cumpre vencer a cruz que abateu Jesus Nazareno. | |
| Vem, Nicodemos, mesclemos nosso viço guerreiro: | |
| Vamos descer daquela cruz o corpo de Cristo!” |
| Nuvens que recobris a solidão das estrelas, | 1185 |
| vosso ventre onusto è carregado de morte. | |
| Fúria destruïdora, os condenados da sombra | |
| tremem no raio quando o trom castiga pequenos, | |
| quando o peito firme se torna escravo do medo. | |
| Quando velocidades colidem umas às outras | 1190 |
| ruge o trovão – o inferno para as almas inermes, | |
| pouco auxílio fuga e quadriga no dia do abismo: | |
| Como se fosse fraco na estrada o forte tropeça | |
| frente à caravana escura e tambor da verdade. | |
| Quantos pobres ais, tempestade, forom tragados, | 1195 |
| vida levada ao vento em tenebrosa tormenta. | |
| Vara a morte impune a florescência da terra, | |
| sorve extrema pedras e vida, invicta inimiga. | |
| Quanto amor em fogo e cabais impérios delidos! | |
| Pobre a mão que houvere feito casa sem base, | 1200 |
60
| casa sem fundo – vem do rio incerto a corrente | |
| contra parede e teto que a mão ergueve apressada, | |
| desce a procela e logo aquela casa desaba – | |
| falsa esperança e ruína de quem pedira refúgio. | |
| Mas o mar se esqueceu de naufragados espíritos! | 1205 |
| Céus que amais o fraco! O mundo è tão generoso, | |
| tão formosos os seres: Por que nos traga o dilúvio, | |
| morbo, moções de terra e fogo e medo sem nome? | |
| Lida vagante, por que, se tão falidos estamos, | |
| tanto abalo se abate em toda parte implacável? | 1210 |
| Quando a treva cobriu o céu da santa cidade, | |
| viu-se apenas a bruma rubente sobre a muralha. | |
| Não bastava mais a luz duma vela a si mesma, | |
| não existia lanterna contra o sopro raivoso. | |
| Era perdida a palma da própria mão estendida, | 1215 |
| era abafado pelas brumas o brado da angústia. | |
| Vinham as fúrias misturando os ares e areia | |
| pela porta e janela aberta e pelos buracos. | |
| Quem corria na rua surda e muda e sem rumo | |
| mal visava o fim da constância ferindo edifícios, | 1220 |
61
| gotas martelando golpe às faces e às rochas. | |
| Como um pesado alabastro derramado de súbito | |
| chove a tormenta e faz fugaz o abrigo dum teto. | |
| Deixa cair num lance apenas o fel das estrelas, | |
| onda varrendo além os vasos pelas esquinas. | 1225 |
| Era em vão a mão pregar-se em viga vultosa, | |
| pau que resistisse o fluxo, confusa enxurrada. | |
| Quando os dedos pareciam pegar-se ao socorro, | |
| vento assomava e lançava de ribas corpos e almas. | |
| Quem porém vencia o sopro correndo por portas | 1230 |
| era detido pelos trovões, engolidos os passos. | |
| Medo, fera cravando as garras no peito imperava. | |
| Viu-se guerreiro naquele instante perder o domínio | |
| reto de membros, passo desnorteado e de susto. | |
| Grito agitado mesclava os uivos e as lágrimas | 1235 |
| quando o rio impossível levava embora iludidos. | |
| Quanta vez os pés de Jóse se perderom por ruas. | |
| Ele palpava em delírio pelas pedras submersas | |
| como na dor da visão de imensidões e desertos. | |
| Vendo o conselheiro cons homens, não se sabia | 1240 |
62
| como passavam quase intactos tanto perigo: | |
| Quis o destino os colocar à toa nos longos | |
| ermos vãos, o lamento num sussurrar inaudível. | |
| Quis a sorte que mãos e pés lutassem debalde | |
| contra a violência dos elementos inteiros. | 1245 |
| Era ainda possível pedir a Deus clemência? | |
| Iam andando em desesperações e caminhos, | |
| pernas bambas perante Hierusalém que tremia: | |
| Pelo chão, rolarom pedregulhos do Templo | |
| como se boca abissal sorvesse as vidas e a vila. | 1250 |
| Quanta ruína, nuvens, deixades à vista num dia! | |
| Não bastavam porém constelações derribadas, | |
| pois rumores piores corriam perto das cruzes | |
| onde o triste espera quem não sabe se chega. | |
| Inda aquela mesma gente do monte ansiava, | 1255 |
| medo ao rosto, corpos esparramados no barro: | |
| Era o vislumbro do nada confundido coa spera. | |
| Vez e outra uma voz enlouquecida entoava | |
| pelos ares clamor esperando o eco do céu, | |
| mas apenas o som dos dados soava na tábua, | 1260 |
63
| onde soldados ébrios prosseguiam partida. | |
| Vendo ao longe pairar a vermelhante névoa, | |
| muita intensa voz e mar se afogau na garganta, | |
| muitos agoniados olhares forom trocados | |
| pelo derredor devorador de esperanças. | 1265 |
| Era prudente acreditar que José se salvara | |
| quando a cidade parecia imersa na treva? | |
| Pode o perfume dos aloés vencer o infinito? | |
| Vinha o vento qual se vento lhes fosse resposta, | |
| vinha o trovão e os alicerces e a terra tremiam. | 1270 |
| Não havia mais diferença entre vidas e morte | |
| nem pareceu sensato correr, à beira do abismo, | |
| para salvar além da verdade a casa e pertences | |
| ante o trom, prenúncio do irrevogável juízo. | |
| Mas as procelas pouco impressionavam Maria, | 1275 |
| pois depusera toda a fé no amor de seo filho | |
| como a casa que foi erguida à base da penha: | |
| Quando a tempestade desceu do céu violenta, | |
| quando o rio debordau desbaratando alicerces | |
| teve-se firme aquela casa que não perecesse – | 1280 |
64
| pois a base sobre a qual se afirmaram paredes | |
| era uma cruz maior que a vida cravada no peito. | |
| Tantas vezes, mãe, teo filho previra o martírio, | |
| tantas vozes quiseram demovê-lo da morte! | |
| Ele enfrentou, porém, em nome de Deus a mentira, | 1285 |
| para que mesmo na morte fosse maior a verdade. | |
| Ele cumpriu, mulher, o dever, a promessa do justo. | |
| Já não cabe no chão o tamanho das lágrimas tuas: | |
| Deixa o plano de Deus te guiar e verás o consolo! | |
| Mas os soldados não entendiam o gesto do justo. | 1290 |
| Ante o cataclismo da noite assomavam tremendos | |
| trons e receios, e os militares diziam à massa: | |
| “Ide embora! Quem esperais morreu na cidade, | |
| foi tragado no abismo e soterrado de pedras! | |
| Donde pois virá José vos trazer assitência?” | 1295 |
| Isto dito, intimidavam o ardor de caídos. | |
| Perto daquela cruz, amedrontadas súplicas | |
| forom depostas aos pés de impacientes lanceiros. | |
| Eles, contudo, num misto de pena e de fúria, | |
| inda miravam uns aos outros perante a demora, | 1300 |
65
| pois além de José o centurião se esperava: | |
| “Povo de hebreus: O terremoto os levou embora. | |
| Não consentiremos espera sem fim de quimeras!” | |
| Ira ditava às bocas palavra. Outros lançavam | |
| junto às ameaças mais e maiores assédios: | 1305 |
| “Este aí o reino do réu, a cidade em tormenta?” | |
| Não lhes contentava mais o silêncio da massa: | |
| “Como crer que velhos acostados em varas | |
| inda resisterem tremores no imo do vento | |
| quando fortes se viu cair à beira da sombra? | 1310 |
| Sodes insanos? Levantade-vos ora da terra!” | |
| Nuvens traziam a névoa renovando temores, | |
| dando força bruta às injunções de romanos. | |
| Ora, a silhueta das casas perdeu-se de vista | |
| nem se sabia se ainda estava de pé a cidade: | 1315 |
| “Este homem foi um enviado do inferno, | |
| trouxe ao orbe destruição, revolta dos deuses. | |
| Já se vê que a morte foi punição merecida!” | |
| Iam flutuando juntos num mar de impropérios, | |
| homens mostrando a desarmados a fome da lança, | 1320 |
66
| viva ameaça. Tomavam pelo braço e bradavam | |
| quando Madalena, criando coragem, orau-lhes: | |
| “Homens de luta, usai melhor a força das armas! | |
| Tende amor de quem somente espera em silêncio | |
| pelo pior. Por dó de nós esperade um momento | 1325 |
| antes que a noite nos dê melhor motivo de morte. | |
| Como largar à cruz um homem cuja vivência | |
| foi em tudo bonita e mais bonita que a nossa? | |
| É favor pequeno, Romanos, o dom que pedimos!” | |
| Inda se ajoelhava enquanto os homens partiam | 1330 |
| rumo às muralhas, irados e procurando reforço. | |
| Veio porém de encontro, ai, misérias sem nome, | |
| larga marcha morosa de velhos costados em varas. | |
| Vinham tateando a sombra e cobertos de gotas, | |
| mãos vazias de abandonadas ruínas andantes. | 1335 |
| Súbito a turba divisando aspectos cercou-os | |
| quando algum dos velhos avançou-se falando, | |
| sopro ofegante. A massa ouviu a primeira palavra: | |
| “Filhos, ainda estamos vivos? Corre a jornada | |
| mas o terremoto interrompe a fraqueza dos pés.” | 1340 |
67
| Neste instante, a voz se perdeu no pranto da turba | |
| como os olhos não divisassem José socorrido, | |
| ele que pôs ao ombro a salvação de Jesus! | |
| Quando porém multiplicarom vozes e súplicas | |
| entre soluços desgostosos da vida e do mundo, | 1345 |
| forom ouvindo o destino dum conselheiro sereno: | |
| “Mas o perdeumos de vista na tempestade, romeiros, | |
| quando no escuro, vindo os outros velhos na rua, | |
| veio abaixo uma casa cobri-lo, ruína de vidas. | |
| Eram pedras e corpos arremessados a esmo! | 1350 |
| Quantos amigos ali notando a José derribado, | |
| presa de escombros, não lançarom mão de resgate? | |
| Antes porém que separassem o peso das pedras, | |
| sólido mar, a moribunda voz ordenava-nos: | |
| – Ide embora ao Calvário resgatar meo amigo! | 1355 |
| Ide salvar a vida vossa que a minha è perdida! | |
| Não exponhais a vida por piedade aos caídos | |
| pois se ficardes morreremos todos por nada! – | |
| Nós correumos atordoados buscando caminho, | |
| olhos e vãos alagados de todo líquido visto. | 1360 |
68
| Não prosseguirei por amor de vós o relato: | |
| Mal deixaumos José e caiu abaixo a muralha | |
| como a cavar na rua a tumba indevida do justo. | |
| Fomos embora a sós passando cegos o inferno, | |
| fomos nos esgueirando por esperanças e beiras. | 1365 |
| Era tarde, e no entanto uma flama amiga ansiava | |
| ver um milagre: José socorrido e no meio de vós. | |
| Mas José, se bem percebo, aqui não se encontra! | |
| Vamos então, filhinhos, desinventar as palavras | |
| ante a voz da verdade: Falimos, meninos, falimos.” | 1370 |
| Era a noite a reverberar no fundo das almas. |
| Passa de nós, tormenta, deixa ao homem verdade | |
| quando a ira do cataclismo cansar-se das pedras. | |
| Alto e de braços abertos o corpo pende no lenho, | |
| mas no dia da cruz a coragem de amigos se perde | 1375 |
| frente ao medo da morte e da lei, tirana de vidas. | |
| Ó José, por onde cambalearom teos passos? | |
| Tira dos ombros por piedade o peso da sorte, | |
| vem salvar os de quem somente ès tu esperança, | |
| vida e coragem, pois a vida è breve e coragem | 1380 |
69
| vive em poucos: Poucos ousavem ver a Pilatos | |
| como ousaste desdenhando a mão de impostores. | |
| Vem, porquanto anuiu-se a ti somente o serviço | |
| bom ao salvador do mundo que o mundo perdeu. | |
| Salva, José, Jesus, e apaga da dor de pequenos | 1385 |
| este crime de toda gente e de todos os tempos! | |
| Prova a quem se desespera o poder da bravura | |
| como se assenta no coração fiel de teo povo: | |
| Onde um homem amigo fore hebreu de verdade | |
| certo terá paixão de quem morreu sem maldade. | 1390 |
| Ó José, que mar de ruína e que abismo te abrigam! | |
| Deus dos céus, Jesus foi condenado ao suplício! | |
| Que serviço infeliz e destino derom às árvores | |
| quando entrarom pela mata caçando madeira, | |
| quando pregarom ao tronco generoso que alçava | 1395 |
| livre a sua vida a carne dum pobre inocente. | |
| Lá pairavam unidos no prego dois condenados: | |
| Como se não bastasse a dor à triste das árvores | |
| inda lhe fora imposto morrer abraçada a Jesus, | |
| inda beber o sangue e suor dum santo consorte. | 1400 |
70
| Tem paixão, meo Deus, do sacrifício das folhas! | |
| São coitados e verdejantes frascos de fresca, | |
| pura presença e perfume: Madalena esperava | |
| pelo aroma do alívio junto à gente prostrada. | |
| Tinham sede d’água da vida à sombra das árvores, | 1405 |
| tinham medo. Ah, se a vida fosse uma nuvem | |
| plena de pó desaperecendo pelas distâncias, | |
| como um sonho vivido e findo à luz da aurora: | |
| Fosse a noite o termo da desvairada esperança! | |
| Ora soubésseis, nuvens, como os homens invejam | 1410 |
| vosso peso que tudo desfaz num único lance. | |
| Sonhos ermos, vireis tomar da vida a vigília, | |
| dar alento ao sacrifício vergado dos dias? | |
| Ó ilusões implacáveis! Entre as cenas fantasmas | |
| fora como se o cole exalasse uma fina fragrância, | 1415 |
| óleo purificando entranhas do sopro e das almas. | |
| Mas o olor da verdade desperta sonhos e os olhos | |
| ora abertos virom a vinda invisível da glória! | |
| Tortas costas, ajoujadas por carga indescrita, | |
| vinham carregando acima abundância de vasos. | 1420 |
71
| Pois se alevantarom da terra perplexos romeiros | |
| quando a turba afligida ouviu, da voz de soldados, | |
| eia, que se avançava certo da sombra um centúrio, | |
| ombro curvado de alabastros, cercado de braços! | |
| Antes porém que a voz se faça, irrompe da massa | 1425 |
| brado ao ver, aliados, Nicodemos e os velhos, | |
| bocas tolhendo e doando clamores umas às outras, | |
| mesclas de narrações agitadas na dor e no alívio. | |
| Mas agora que Madalena vislumbra as misturas, | |
| ora lhe falta José que descendesse do extremo | 1430 |
| lenho o corpo. Era em vão que arribavam essências? | |
| Não, milagre arribava também! Surgia da sombra | |
| vulto em farpas, arfando cansado e firme contudo. | |
| Era mendigo de qual deserto que ali demandava? | |
| Era José de Arimateia, filhos, que entrava! | 1435 |
| Vinha chegando calmo e sem desejo de alarde, | |
| passo lento e caminhando livre e sem medo. | |
| Era José de Arimateia que enfim demandava | |
| mais uma vez o Calvário falando a si cabisbaixo: | |
| “Deus dos céus, foi este o homem que apenas amou?” | 1440 |
72
| Não, Israel, a truculência do tempo e das pedras | |
| não destrói a promessa do probo! Houve descrença | |
| quando a tempestade assoláve uma brava jornada, | |
| mas José não traiu a sua verdade e palavra. | |
| Viu-se bem o trapo que ali restava dum velho | 1445 |
| mas o velho mal pensava no susto da gente: | |
| Ia pondo penoso à beira da cruz uma escada! | |
| Antes porém que suba, sobe a voz do centúrio, | |
| como dissesse pela massa o seo caso distinto: | |
| “Houve sim tremor e tormenta na minha jornada | 1450 |
| quando José foi soterrado no meio de escombros, | |
| quando o vi fechando os olhos presa da morte. | |
| Mas no mesmo instante declarei minha guerra | |
| contra o destino e socorri do chão quem merece. | |
| Pois ainda que a morte fosse o preço da empresa | 1455 |
| foi melhor morrer por dever que viver em desonra. | |
| Eu não quis que ali findasse a grandeza dum justo | |
| mas usei do ensejo que tanto tempo eo buscava: | |
| Vem, José, mostrar ao povo a beleza da vida!” | |
| Pois assim explicou, cravando firme na terra | 1460 |
73
| sua espada e desdenhando as garras da morte. | |
| Ele estendera as mãos a José na beira da treva | |
| pois merece morte melhor um tutor de caídos. | |
| Nada disto ocupava José: Subindo as escadas | |
| tira da cruz um lastimoso prego e nos ombros | 1465 |
| ora abraça um braço morto e pesado de mundo. | |
| Mãos em sangue, desprende o braço segundo, | |
| desce pela escada cuidadoso e se escora: | |
| Ele tirou os pregos abraçando o cadáver! | |
| Mas em baixo mãos de mais amigos aguardam | 1470 |
| vendo e tocando enfim Jesus separado da cruz. | |
| Era consolo à carne como à pobre das árvores: | |
| Ela manteve-se firme e digna dum triste dever. | |
| Foi somente então que José, lembrando das horas | |
| antes e como fora salvo e levado nos ombros | 1475 |
| pelo centúrio, depôs o corpo de Cristo e plangeu: | |
| “Leva contigo, justo, o meu pedaço de pano, | |
| lembra de nós acima perante o trono de Deus.” | |
| Ele então estende ao chão delicado tecido | |
| sobre o qual se deita enfim o resto dum homem. | 1480 |
74
| Mas as mãos singelas e calejadas preparam | |
| ante a vida esfacelada um aroma bondoso, | |
| dedos produzindo a transcendência do bálsamo. | |
| Pois cobrirom de líquido alívio muitas feridas | |
| quando os olores do campo ultrapassarom a morte. | 1485 |
| Eu, que contemplava perto o que ali se passava, | |
| eu me ajoelhei perante a coragem dos homens. | |
| Eu baixei meo rosto e derramei o meo pranto | |
| pelo chão que sustenta o lírio do campo. | |
| Foi bonito o dia consolador de meos olhos | 1490 |
| quando Jesus passou pelo rumo e pedi piedade. | |
| Muitas dores e lágrimas invadirom meos olhos | |
| desde a primeira vez que vi a cor deste mundo. | |
| Mas agora que me ajoelho perante a verdade, | |
| vejo como foi generoso Jesus Nazareno: | 1495 |
| Ele devolveu meos olhos no meio da estrada | |
| para que eo visse o gesto do amor verdadeiro. | |
| Pois agora eo sei, eo vi, entendi no meo peito | |
| como è bela a coragem da redentora amizade. | |
| Ora eo vi nas mãos que preparavam aromas | 1500 |
75
| como è grande a profusão do amor neste mundo, | |
| ah, e como redime a dor invasora das vidas. | |
| Pois me alevantando mais uma vez desta terra, | |
| vejo o céu estrelado nas alegrias dum pranto | |
| novo, singelo e grato e recoberto de olores: | 1505 |
| Entre alabastros subia como a brisa o perfumo | |
| doce do sacrifício final, da vida que vence. | |
| Pois se fora abusada a florescência das árvores | |
| quando pendurarom no tronco Jesus Nazareno, | |
| ora as vidas de vegetais suaves vingavam | 1510 |
| seu ultraje ao recobrir Jesus de perfumos: | |
| Foi subindo o frescor dos alecrins e do timo | |
| junto à lavanda, as alegrias junto à semente. | |
| É necessário colher o sacrifício das flores | |
| para recenderem olores maiores que a morte! | 1515 |
| É preciso muita coragem perante a colheita | |
| quando o trabalho parecer maior do que a vida. | |
| Sobe, Jesus Nazareno, às invisíveis alturas | |
| como o sopro das flores cuja vida è verdade: | |
| Lembra nossa sede no dia do amor derradeiro! | 1520 |
| Vinde, filhos, sequemos nosso pranto e cantemos | |
| frente ao redentor que fez da morte vitória. |
| Folha V |
© Gregorius Vatis Advena 2018, Record E 7, engl. Guthlac, Hampshire, alliterative pentameters, 737 lines, epic poetry, hagiography, Portuguese.

Guthlac chega à ilha de Crowland para viver como eremita. O demônio porém se opõe: O rei, o mercante e o pai o visitam buscando dissuadi-lo. Resistindo a todo assédio e tormenta, Guthlac amadurece na ilha, até que se revela o prenúncio da sua morte. Leia a introdução detalhada no Carolíngio.
Guthlac retrata, em sua busca por Deus, pelo sublime e pela transcendência, a desilusão da insuficiência existencial. Neste intenso drama espiritual, a batalha da prece incorpora a batalha por sentido à existência humana. O contexto medieval se expressa numa dicção elevada e solene. São Guthlac de Crowland (674-715) foi um eremita anglo-saxão na tradição dos Pais do Deserto.
Da Peça Karneval, Op. 9, Chopin, por Robert Schumann, performance de Paul Pitman – Musopen CC PD.
O verso é pentamétrico – cinco tônicas separadas por uma ou duas átonas, ou por pausa. Em geral, termina em diérese bucólica – o ritmo tátata-táta. É datílico ao evocar o antigo dátilo no ritmo tátata. É aliterativo: Há aliterações entre tônicas e tônicas, entre tônicas e átonas (eco), e entre átonas (eco falso) – tanto entre sílabas adjacentes quanto entre separadas.
O uso das formas épicas é tratado no ensaio Prosódia e Grafia. Neste poema, ocorre a forma átona do verbo ser: [é] em contexto tônico, [è] em contexto átono.
| Por muito tempo errou sem rumo o demônio | |
| buscando casa, e desde muito disputam | |
| os sábios a causa como essência dum ser | |
| sem paz devoto ao mal. Escritos relatam | |
| a queda dum anjo outrora, excelso companha | 5 |
| dos céus perdido, inconformado co trono | |
| de Deus e coa vida. Assim saiu pelo mundo | |
| deixando atrás beleza e descendo ao abismo | |
| por onde pragas entoam. Outros disseram | |
| que desde sempre o mal desdisse do bem: | 10 |
| Persegue a boa fé, desbarata os eleitos, | |
| desfaz a alegria. Mas outros argumentaram | |
| que nasce no coração a maldade dos atos. | |
| Não precisa do auxílio de seres alheios | |
| a mão decidida ao crime, o leme incorreto | 15 |
| guiando infirme nau, agravando a tristeza | |
| d’alma e solidão nesta borda abalada. | |
| Numa coisa contudo os sábios concordam: | |
| Inveja e covardia, por onde ocorreram, | |
| testemunharam por onde andou o demônio. | 20 |
1
| Ora, o prisco inimigo, cansado do fogo | |
| ao qual arremessara os espíritos vários, | |
| caçou o gabo do rei, o mercante avarento, | |
| incendiou nos jovens um brio fugaz, | |
| um amor de vanidade. De pouco bastou | 25 |
| a voz dos condenados e tantos incautos | |
| que vida adentro, renunciando virtude, | |
| jogaram fora o ser num prazer corriqueiro | |
| querendo fama fácil, prata e vantagens | |
| que Deus desabonou. Vestiram sem medo | 30 |
| tecidos suntuosos, gozando as delícias | |
| e menosprezando a dor de destitutos. | |
| Errou, portanto, colecionando falanges | |
| de vis e desviados, a essência covarde | |
| disseminando inveja por todas as eras, | 35 |
| tentando homens. Passava o dono do povo | |
| pesando na mente a salvação duma gente, | |
| e vinha de longe arrebatando a coragem | |
| a voz do inimigo: Semeava no peito | |
| cobiça de império. O mercador elevava | 40 |
2
| a Deus a prece, agradecendo o trabalho, | |
| e vinha o verdugo estimular ganância | |
| de mais dinheiro. A juventude buscava | |
| a felicidade do amor, mas inveja maior | |
| soprava adentro excitações incessantes: | 45 |
| Vidas pervertidas largaram por terra | |
| dever e constância. Em toda casa erigida | |
| a sombra maldosa quis tirar do caminho | |
| o bom intento. Tomou-se nota, porém, | |
| dum caso raro e perturbador de serenos: | 50 |
| É que depois de muitas presas levadas | |
| o triste algoz avistou, de todos mortais, | |
| uma vida coitada e desprovida de escudo. | |
| Ouviu dizer que, retirando-se às pressas | |
| dum mundo angustiado, Guthlac migrara | 55 |
| sozinho pelos prados e pela floresta | |
| até chegar numa ilha, distante recanto | |
| que pés nenhuns pisaram. Ali demandando, | |
| ergueu num cole a cruz, bandeira de Cristo, | |
| e construiu no esmero um abrigo de barro | 60 |
3

Guthlac abandona as armas: cena de Vita Sancti Guthlaci (Guthlac Roll), representação do século XII, pergamento, acervo da British Library. Legenda: Guthlac recedit ab exercitu suo. Foto: British Library, Londres.
| e transitória morada. Disto sabendo | |
| porém o covarde inconformado na inveja, | |
| correu ao monte com tormentosa falange | |
| rumo a Guthlac, abandonado do mundo | |
| que percorrendo a trilha assim lamentava: | 65 |
| – Perdoa, Senhor, um homem transtornado | |
| que apenas quer orar e que mal se concentra. | |
| Percebo desde já que è penosa a batalha | |
| da vida em busca da prece. Pelo silêncio | |
| e pela paz que me cerca vou caminhando | 70 |
| e querendo e vou perdendo de mim o destino. | |
| Vem, Espírito Santo, inspira a meu peito | |
| a palavra que anelo e verdadeiro caminho | |
| revela ao perdido que sou. Os dias me deixam | |
| e quanto mais elevo o meu sopro sem força | 75 |
| entendo quão distante me encontro da prece | |
| e carente de graça. Ensina ao destituto, | |
| meu Pai, a vida sem erro. – Mas o demônio | |
| no mesmo instante incendiou-se de fúria | |
| e declarou-lhe uma guerra desgraciosa. | 80 |
4
| Desembarcava já, de visita apressada, | |
| pomposo rei por quem outrora lutara | |
| a fiel espada de Guthlac, amigo avisando: | |
| – Em qual desdita e desgostoso destino, | |
| guerreiro, cá termina a vida dum homem | 85 |
| da tua estirpe brava e digno de glória! | |
| Foi devida à tua espada a vitória | |
| que tantas vezes abençoou meu reino. | |
| Informa apenas, ingrato, a graça, o favor | |
| que a minha corte negou, para que triste | 90 |
| e desdizendo o passado buscasses um ermo | |
| donde ofendes, mesmo em pleno silêncio, | |
| teu rei e teu povo! O bom governo carece | |
| dum reto conselho e conselheiro serás: | |
| A corte, o povo, o partido assim proclamaram | 95 |
| e venho eu, o rei em pessoa buscar-te. | |
| Se ainda amas teu povo, retorna comigo, | |
| levanta-te agora! Importa agir como homem. – | |
| Contudo Guthlac, erguendo os olhos além, | |
| balança a cabeça inconsolado e responde: | 100 |
5
| – Também careço, rei, de conselho correto | |
| e como Deus te trouxe, aqui te pergunto: | |
| Será feliz uma terra por onde governa | |
| o governante que não governa a si mesmo? | |
| Desde cedo, amigo, entendi no meu peito | 105 |
| a quanta impostura a minha vida te expunha | |
| como expunha a corte, o partido e teu povo. | |
| Atormentado portanto, migrei de teu reino | |
| trazendo migo este meu intento de vida, | |
| vergonha que aqui somente às plantas ofende: | 110 |
| E por amor de meu povo sirvo-lhe aqui, | |
| pedindo a Deus por compaixão de pequenos | |
| e amor dos justos: merecedores de corte, | |
| partido e governo. A vida orando labora, | |
| no império contudo nem trabalha nem ora. | 115 |
| Se não me queres crer, examina comigo | |
| a perdição duma vida e verás o que sou: | |
| O peito chamando, nesta terra arribei | |
| querendo de Deus o dom da prece apenas. | |
| Ó desesepero, desenganadas andanças, | 120 |
6
| em tanto orar tampouco ainda aprendi | |
| nem vida nem prece e me desolo insistindo! | |
| Mas senhor, se apenas governo de prece | |
| o meu intento rogava e governo me falta, | |
| inda esperas de mim governar o teu povo? | 125 |
| Demônio desengana a constância de fortes: | |
| Melhor convém ao mau aprender a rezar | |
| e vou pedindo a Deus o governo de mim. – | |
| O monarca, ouvindo e recuando confuso, | |
| foi-se embora remando o barco e pesando | 130 |
| na mente o destino. Ficou porém o demônio | |
| na caça de brechas e já na próxima luz, | |
| enquanto Guthlac colhia o grão da cevada | |
| a preparo do pão, abordava aqueles ermos | |
| mercante abastado, dissuadindo na oferta | 135 |
| e profusão de palavras e ricas espécias | |
| a empresa do amigo. Suplicava e bradava: | |
| – Sai deste chão de inadequada existência, | |
| retorna comigo, Guthlac! Não impressionas | |
| Deus nem mundo no quietismo que abraças. | 140 |
7
| A todo custo intentas chamar atenção? | |
| Permite um momento por piedade do amigo | |
| que aqui registre, eu, a ira dum reto, | |
| escuta: Em minha vida o meu tempo erigi | |
| no labor constante, desdenhando a preguiça | 145 |
| e lucro devasso como a Jesus desagrada. | |
| Eu em tudo cumpri meu divino dever | |
| e dever de todo homem: Erguer sua lida | |
| no próprio suor, suando ganhar o sustento | |
| que Deus aduz ao justo! Assim laborando, | 150 |
| assim cumulei nos anos a minha riqueza. | |
| Ganhei mas fui doando, cônscio dos fracos | |
| que ergui da estrada como o céu testemunha | |
| e como sabes também. Mas tu renegas, | |
| gestor incauto, os bens que Deus te confia | 155 |
| e jogas fora? Tu corres além à floresta | |
| a fim de ocultar, da humanidade e dos anjos, | |
| um ócio que chamas prece? O justo carece, | |
| em todas eras, dum bem que chamamos labor, | |
| do bem que tu, ao rei dos céus ofendendo, | 160 |
8
| lançaste ao chão! Voltarás portanto comigo | |
| à cidade nossa: Ali te aguarda o caminho | |
| da boa indústria, suor redentor è correto. | |
| Eu saberei te aduzir pela senda do bem | |
| ganhando a salvação! – Assim conclamando, | 165 |
| notava as mãos do eremita, tomando da pedra | |
| e contra a pedra amassando cópia de grãos, | |
| a testa suada. Guthlac mirando o mercante | |
| largou num triz a rocha, arfando cansado: | |
| – A minha vida corrupta, em tanta incerteza | 170 |
| e rumo errado, errando uma coisa aprendeu | |
| no meio do mundo: Dos bens que a lida acumula | |
| o homem perde aparentes, conserva apenas | |
| a indústria de Deus. A prata que a mão amontoa | |
| de que me vale, amigo, se o vento que passa | 175 |
| carrega embora num dia a cobiça dos anos? | |
| Trabalho rogando a Deus por todos os homens | |
| e preparando o pão de que o corpo carece. | |
| Chamaste verdade a propriedade dum lucro | |
| voando de dono em dono, iludindo o suor? | 180 |
9
| No engenho de Deus os bens imorredouros | |
| o homem guarda no peito. A mão enaltece | |
| a vida em suor, e no entanto o tesouro maior | |
| do trabalho a mão non toca e jamais tocará. – | |
| O mercador contudo insistindo no apelo | 185 |
| retorna a Guthlac: – Pois a quem favorece | |
| um labor isolado? O generoso trabalho | |
| rende a bênção do fruto no meio do povo | |
| e prosperidade se afirma. O homem sozinho | |
| fugindo o mundo foge Deus igualmente! | 190 |
| Mas esta vida amarga que encenas, amigo, | |
| de nada contribui à riqueza do mundo | |
| enquanto os miseráveis esperam auxílio, | |
| a boca bramindo: Guthlac, onde te escondes? | |
| Guthlac se esconde? – Mas o homem da prece | 195 |
| considerando ilusões responde ao mercante: | |
| – Deixei o mundo para que o mundo prospere | |
| e não demais se ofenda coa vida dum ímpio. | |
| Amando pois os pequenos aqui me escondi | |
| cedendo lugar, e espero sim que progrida | 200 |
10
| quem melhor merece o concurso do mundo. | |
| Assim trabalho por todos, e mesmo isolado | |
| laboro mais do que a mera lida das mãos: | |
| Resiste ao vento e perante Deus se conserva | |
| o trabalho d’alma. Constrói contudo ruína | 205 |
| quem explora da mão e se esquece do peito. | |
| Amigo, a palma sem peito corre sem rumo: | |
| Ignora o que faz, acumula apenas ao sopro | |
| e morrendo a mão a lida morre co vento, | |
| a Deus entristece. – No amor do bom suor | 210 |
| e renegando a mentira dum bem inconstante | |
| ali se achava Guthlac, passando das horas | |
| coa pedra amassando grão, do pó da farinha | |
| fazendo seu pão, buscando d’água de longe | |
| e misturando ao fermento: – E nada cobiço | 215 |
| além deste grão por insistência dum ventre | |
| desavisado de Deus. Trabalho pois nas mãos | |
| e o peito lembra no pão o corpo de Cristo | |
| em cujo nome existo. Caçando fortunas | |
| notei que a minha vida era vida incorreta: | 220 |
11
| Acumulando riqueza, para mim acumulo | |
| mais que ao pobre. Dando embora meus bens | |
| doei do resto, verdade em Cristo contudo | |
| è sacrifício de vida mais que de resto. – | |
| Ouvido o relato, o comerciante abatido | 225 |
| balança os braços e procurando a palavra | |
| a verdade se cala. Retorna pois abalado, | |
| remando seu barco e repensando nas ondas | |
| vitória pouca de mundo, concurso acirrado | |
| e triste palco de ganas. Recobre coas mãos | 230 |
| a sombra do rosto, reconhece inconstância | |
| e vento na indústria, soluçando na bruma. | |
| Aporta noutra margem saudoso de Guthlac | |
| e roga a Deus coragem. Adentra contudo | |
| a treva e lá se perde, uma presa danada | 235 |
| do grande algoz destruïdor do trabalho. | |
| Inconformado o covarde co viço de Guthlac, | |
| encheu de bolores a massa em fermento. | |
| O servo de Cristo preparando seu forno, | |
| o barro aquecido, vendo entanto perdido | 240 |
12
| o labor de muitos dias, o pão destruído, | |
| baixou calado os olhos, minado de fome | |
| erguendo as mãos: – Leva embora, demônio, | |
| o pão de meu corpo, pois o pão de minh’alma | |
| a Deus pertence e de Deus apenas proveio. | 245 |
| Vem, Espírito Santo, ensina a teu filho | |
| que o mal da privação em Deus è proveito! – | |
| E caminhando por entre as árvores calmo | |
| e calado evocando, derramava o seu pranto | |
| enquanto a noite caía. O homem dos ermos | 250 |
| sem pão padecia e desdenhando abraçava | |
| em prece o vento como o corpo dum árvor, | |
| silenciosa amizade. Contudo um covarde | |
| mirava na espreita, cavaleiro da inveja, | |
| algoz de mansos, e já na próxima aurora | 255 |
| o barco arribava e revelava das brumas | |
| o pai de Guthlac. Desembarcava e corria | |
| em turvos urros rumo ao filho isolado, | |
| trazendo prata e pão e perdendo a palavra: | |
| – Responde, filho, que mal terrível te fiz | 260 |
13
| que assim me pagas o amor? Desde que ouvi | |
| da tua vida e de como abandonas o mundo | |
| jogando fora, desde então me abalei | |
| de vila em vila, perguntando por rastos | |
| dum passo ingrato a Deus, infeliz peregrino | 265 |
| em viagem perdida. Aqui portanto erigiste, | |
| neste pântano impuro, a morada futura | |
| e final de teus dias? Eu ouvi pela estrada | |
| que aqui trabalhas, como outrora ensinei, | |
| o pão do próprio sustento! O mundo trocaste | 270 |
| apenas por pão e nisto encontras verdade, | |
| vida em nome de Deus? Que triste episódio, | |
| meu filho amado, cá me obrigas a ver! | |
| O homem carece de amor e contudo renegas | |
| de inopinada mente o futuro dum lar, | 275 |
| esposa e filhos? Sei duma certa mulher | |
| que por ti se deplora, amando sem sorte | |
| um homem desonroso, que à bênção do afago | |
| o frio, a fome, o morbo, a morte prefere! | |
| Ofendes, Guthlac, a Deus, gestor dos amores | 280 |
14
| unindo as almas no galardão da família. | |
| Por que te renegas? Inda è tempo contudo | |
| e basta um gesto de ti que abordaremos | |
| noutra margem do mundo, unidos volvendo | |
| à boa sorte. Vem que teu pai te suplica! – | 285 |
| O filho porém, sentado à sombra dum árvor | |
| coas mãos amassando o grão, aponta ao redor | |
| floridas plantas longe e perto e responde: | |
| – Amado pai, eu já me encontro no seio | |
| da minha família, pois cercada de folhas | 290 |
| de nada carece a vida. A verdade que entendo | |
| ensina ao modesto: Neste mundo sangrento, | |
| por onde houver um árvor consolo haverá, | |
| na verde calma inquebrantável constância, | |
| espelho dos sábios e professor dos santos | 295 |
| orando calado. Por que me pedes família, | |
| meu pai amado, se frente a mim se congrega | |
| em toda aurora um lar de fiéis passarinhos | |
| a quem doando grãos alimento e conduzo | |
| à verdadeira família? Permite, senhor, | 300 |
15
| no amor dum filho que apenas busca verdade, | |
| a minha paz e morada e batalha da prece: | |
| escudo sereno que porventura defenda | |
| o ímpio perante o Juiz. O pão entretanto | |
| que aqui me trazes leva embora contigo | 305 |
| e leva a pecúnia, porquanto não me isolei | |
| dum mundo enganador a fim de enganar-me | |
| vivendo do pão alheio, de alheio trabalho. | |
| Amor, meu pai, caminha longe dos jovens | |
| vivendo em busca dum corriqueiro prazer | 310 |
| que quanto mais se goza menos sacia. | |
| Querendo pois de além um gozoso mistério | |
| gozo meu gozo em contemplando a verdade | |
| amiga das árvores. – Isto assim proferido, | |
| um pai desdito, avermelhado nos olhos | 315 |
| tomou embora o pão, a prata, o tesouro | |
| e cabisbaixo remava o que amava seu filho, | |
| passando à velha margem por onde aguardavam, | |
| na treva, correntes dalgum prazer passageiro | |
| ao qual rendera a vida, tributo ao demônio. | 320 |
16
| Porém o gestor de calúnias, o ser invejoso | |
| apenas se enfada com quantos já lhe pertencem: | |
| Anela as almas zelosas. E assim cobiçando | |
| a vida em prece, aproximou-se de Guthlac | |
| de noite enquanto bebia, e n’água cuspindo | 325 |
| envenenou a Guthlac. Enfraquecido na febre, | |
| andava pelo bosque o homem das súplicas. | |
| Inda vagando na escuridão dos demônios, | |
| a sós buscava longe o tecido das folhas, | |
| erguendo as mãos clamando: – Quando da vida, | 330 |
| meu Deus, serei e viverei como as árvores? | |
| Quando enfim estenderei os meus galhos | |
| dia e noite ao céu, calado e constante? | |
| Virão de longe a chuva, os ventos, a névoa, | |
| passando a caravana do mundo e dos mortos: | 335 |
| E seguirão alçados meus braços em prece, | |
| e não se abalam as orações de meus galhos. – | |
| Angustiado de andar, o amigo dos pássaros | |
| ora apertava ao peito troncos no escuro, | |
| abraço firme, casório de corpo e de caule. | 340 |
17
| Inopinado contudo, o demônio se agita | |
| em turbilhão tenebroso, clamando da treva: | |
| – Aos réus escravos meus ofereço império, | |
| prata e prazeres. Tu porém me recusas | |
| e desconheces, Guthlac, o dono do mundo? – | 345 |
| Do vórtice em fúria revelam-se os rostos | |
| e a legião dos monstros, os olhos de fogo | |
| cercando o homem fraco, rugia impropérios | |
| coa língua bifurcada. Mas Guthlac responde: | |
| – O dono do mundo o meu saber desconhece, | 350 |
| conhece o dono dos céus e das almas em prece, | |
| casa a que sirvo! – Dum turbilhão perigoso | |
| batendo ao chão, fazendo a terra tremer | |
| ergueram contra Guthlac espadas de fogo | |
| lançando ameaça: – Vai-te embora, maldito, | 355 |
| lutamos contra ti na batalha da morte! – | |
| O homem a sós retorna: – Lutei no passado | |
| a boa guerra e gustei da vitória do justo. | |
| A espada entretanto já de nada me serve, | |
| porquanto abandono e não pisei nesta terra | 360 |
| Guthlac | Folha VI |
| para por Cristo lutar com derrama de sangue: | |
| por Deus apenas morro e jamais matarei! | |
| Em vão aqui tentais à batalha das armas | |
| um homem que luta por paz. – Isto dizendo | |
| o genuflexo em rezas, rogava sem medo | 365 |
| a piedade dos céus. A falange contudo | |
| retruca ousada: – Sabes mesmo, insolente, | |
| se o território que ocupas já te pertence, | |
| ou vives como o ladrão tomando posse | |
| de bens alheios? – Mas um homem humilde | 370 |
| pensa e responde: – Por toda terra inquiri | |
| se tinha dono o monte por onde me encontro. | |
| Como ninguém o reclama, eu nele transito | |
| e dele me irei se aqui chegar o seu dono | |
| e não me quiser. Conheço já que no mundo | 375 |
| ninguém de nada è dono e nada cobiço | |
| porquanto a terra è generosa matrona: | |
| Encontra a todo andante morada e deserto | |
| sem dono de mundo. – Não porém lhe cedeu | |
| a cohorte da morte, e carregando seu corpo | 380 |
19

Os demônios levam Guthlac às portas do inferno e São Bartolomeu intercede a seu favor: cena de Vita Sancti Guthlaci.
| no turbilhão, a falange ao inferno baixou | |
| levando além consigo o homem das árvores. | |
| Mas o manso defende-se: – Todos os dias | |
| em toda parte a minha vida è de prece | |
| e mesmo do inferno conseguirei erigir | 385 |
| bandeira de Cristo. Vem, Espírito Santo, | |
| por compaixão de abandonados espíritos, | |
| luz o meu rumo incerto e seca meus olhos! – | |
| Mas Deus apiedado, tutor de constantes | |
| ouvindo daquele abismo um clamor inaudito, | 390 |
| conclama d’alto o anjo e do trono proclama | |
| um retumbante decreto: – Defende esse homem! – | |
| Felicidade quando os ambos se encontram, | |
| o homem bom e o anjo, o guia do anúncio: | |
| – Passa por esta senda, servo de Deus, | 395 |
| levar-te-ei ao galardão da verdade! – | |
| O servo pois orando, o fogo do inferno | |
| abriu caminho e recuando inclinava-se | |
| em coloridos focos perante o pedinte | |
| que pelos arcos passou, santíssima flama | 400 |
20
| em defesa de Guthlac. O inferno mirando, | |
| os sofredores lançavam-se ao homem correto | |
| rogando-lhe bom socorro e cura das almas, | |
| aflitos em pranto. Mas legiões revoltadas | |
| súbito agiram antes que Guthlac erguesse | 405 |
| do chão condenados, e maldizendo a virtude | |
| devolveram à terra o guerreiro da prece | |
| que o fogo non queima. Despertando febrio | |
| dum sonho entristecido, Guthlac lembrou | |
| por todo o dia o desespero de abismos, | 410 |
| andando no bosque em orações abundantes | |
| no amor dos mortos: – Entregarás, Criador, | |
| as multidões ao sofrimento sem termo? | |
| Estende misericórdia, Cristo, a perdidos! | |
| Depois de tudo o que vi, de que me vale | 415 |
| vencer o demônio se todo o mundo padece? – | |
| Assim rogando assim caminhava aturdido, | |
| tristeza deformando a paz de seu rosto. | |
| Mas muito errando durante todo o seu dia | |
| cansou-se no rogo. O passo caiu derrotado | 420 |
21
| aos pés dum árvor, donde amassava cevada | |
| ao pão do corpo: – Diz, Espírito Santo, | |
| confortarás de fato arruinados do abismo? – | |
| Um sopro leve soprou, chamando inaudível | |
| o nome de Guthlac, e levantando a cabeça | 425 |
| o homem simples viu, radiante dos céus, | |
| um arco-íris. Era maior do que os olhos | |
| nas cores do fogo, rediviva a promessa | |
| incandescendo passos, doando esperança. | |
| E Guthlac, divisando um gozoso mistério, | 430 |
| orando e calando, andou no meio do arco. |
| Por quinze anos suspirou pelos ermos | |
| o homem dos pássaros. Retirou-se do mundo | |
| desembarcando, pouco longe das margens | |
| que atrás deixou, em transitória paragem: | 435 |
| perdida ilhota que as antiquíssimas eras | |
| dum mar violento dissociaram da terra, | |
| emaranhadas lagunas por onde bosques | |
| e priscos prados dividiam paisagens – | |
| e bancos de areia quando o baixa-mar | 440 |
22
| mostrava ao viajeiro o passado submerso | |
| em desastroso dilúvio. O homem de longe | |
| ali portou, e vislumbrando um outeiro | |
| beirando o verde, erguendo cruz e morada | |
| ali quedou. Viveu dos grãos de cevada | 445 |
| fazendo pão, e caminhando entre as árvores | |
| Guthlac alçava além, na batalha da prece, | |
| o peito, a palavra. Por muito tempo o rancor | |
| dum poderoso inimigo e covarde invejoso | |
| atormentou a constância – de noite varava | 450 |
| o demônio a buscar. O ser iroso adentrava | |
| escuridões na floresta mas nada encontrava: | |
| A família de amigos silenciosa e serena | |
| escondia o seu irmão na sombra dos troncos. | |
| O inferno lançava em vão seu ataque contra | 455 |
| um distinto escudo. Mas o verdugo contava | |
| co mundo inteiro: Unira o rei, o mercante | |
| e seguidores de império, prata e prazer | |
| que em multidões aduzia. Ao homem singelo | |
| ninguém no mundo seguiu, e quantos beiravam | 460 |
23
| o abrigo de Guthac querendo cura e conselho, | |
| tornando embora além o demônio buscava | |
| na margem oposta, recobrindo de angústia | |
| a passageira esperança da vida quebrada, | |
| enferma constância. Das perdições arribou | 465 |
| contudo um romeiro, apenas um aportou | |
| àquela margem difícil buscando verdade | |
| e vida em prece. Andando pelos ermos | |
| ouvira dum bom, e abandonando ilusões | |
| viera segui-lo um servidor corajoso. | 470 |
| Maré permitindo, remava todos os dias | |
| da margem vizinha donde erguera morada, | |
| saudoso de conhecer a vida dum simples | |
| e ver a virtude. Assim correram os anos | |
| e o servo desembarcava em breves visitas, | 475 |
| ouvindo a palavra e preparando fermento | |
| e fogo ateando. Remava embora e pesava | |
| na mente a batalha, balançando a cabeça | |
| e rogando a Deus coragem. Lembrava imagens | |
| ainda de Guthlac sentado à sombra dum árvor, | 480 |
24
| a pedra amassando o pão enquanto indagava: | |
| – Mas è qual o mistério da estranha oração | |
| que obrando entoas? Se for verdade a palavra, | |
| se ao coração apenas se gesta uma prece, | |
| como elevas o sopro ao céu, se as mãos | 485 |
| atribuladas laboram? – Mas Guthlac arfava: | |
| – Amigo de Deus, a prece nasce no peito | |
| mas pelo corpo inteiro vive-se o canto. | |
| Obrando o pão, recordo a fome dos homens | |
| e o sacrifício de Cristo, em minhas mãos | 490 |
| suor e divina presença. – Mirando estrelas | |
| o seguidor recordava e remava inquirindo | |
| no dia seguinte: – Quando vais à floresta | |
| pela trilha, Guthlac, pregas às folhas | |
| a santa palavra? – O solitário retorque: | 495 |
| – Pobre de mim que tanto aprendo nos bosques | |
| e aos bosques nada ensino. Rogo às plantas | |
| quase que intercedam por mim, ocioso na vida | |
| e carente de rumo. – Caminhando no verde | |
| certa feita, passavam do seio das trilhas | 500 |
25
| à beira dum lago, por onde o servo abordou: | |
| – Por que te vejo, mestre, lento e mancando? | |
| Por que te encontro abafando tantos gemidos, | |
| o rosto pálido? Diz-me logo a verdade | |
| porquanto já percebo na pele e no aspecto: | 505 |
| Um grande mal te assoma! Nunca te vi | |
| por esses anos como agora te enxergo, | |
| debilitado e mudo. Por amor duma angústia | |
| maior do que mar, explica o mal que te passa | |
| e se posso ajudar! – E suspirando tranquilo, | 510 |
| o amigo do verde, andando e vendo amplidões, | |
| responde ao servo: – Desde sempre se soube, | |
| fiel seguidor, que o vitupério de Adão | |
| entristeceu a Deus, e que desde o pecado | |
| um desgostoso legado persegue o passar | 515 |
| em este mundo mendaz do forte e do fraco, | |
| do mau e do bom. A dois ilustres consortes, | |
| que a mão divina uniu, um gesto impensado | |
| impôs eterno divórcio, fortuna infeliz | |
| que desde então separa a semente da casca, | 520 |
26
| jogando fora do corpo o cultivo das almas | |
| num desperdício sem par. Assim se repete | |
| em todas as vidas um veredito severo. | |
| Assim se apodera da florescência do ser | |
| um ladrão de existências, colecionando carcaças | 525 |
| em triste gana que nada e ninguém dissuade. | |
| Comeram sem medo do astroso pomo da cobra | |
| e cá pagamos, filhinho, o preço da audácia. – | |
| Dos olhos, porém, dum seguidor abalado | |
| e transbordantes de dor, seguiu a palavra: | 530 |
| – Entendo bem, senhor, a verdade que escondes? | |
| Jesus me castiga atormentando o teu corpo? | |
| Pela margem incerta da vida e do tempo | |
| a morte desembarca, invejosa dum santo | |
| a sorte implacável? – Mas o homem da prece, | 535 |
| mirando longe os raios por entre a folhagem | |
| e pelas ondas, caminhava explanando: | |
| – Sonhei um sonho na madrugada passada, | |
| perene imagem. Resplandescendo das árvores | |
| verde escada assomava. Perdidos em folhas | 540 |
27
| os olhos meus miravam buscando o limite: | |
| Não enxergava donde a escada descia | |
| dentre altíssimos ramos. Eu, assustado, | |
| ouvi de além do canto uma voz invisível | |
| falando e ressoando, de cima, de baixo | 545 |
| e dentro do peito: “Não temer, guerreiro | |
| da boa guerra da prece, e não te assustes | |
| quando o Sopro Santo se acerca de ti | |
| co galardão da vitória. Tu que trocaste, | |
| ermita, a gana enganadora por árvores, | 550 |
| que procuras ainda num mundo inconstante | |
| por onde o mar violento arrasa moradas | |
| e leva embora barcas? Sobe esta escada, | |
| filhinho caro, por onde um singelo jardim | |
| aguarda um homem bom e por onde te aguarda | 555 |
| um veredito sereno.” Andando nas folhas | |
| desconheciam cansaço os pés de minh’alma. | |
| Como tomado enfim duma certa tristeza | |
| e também de alegria, abraçando-me ao árvor, | |
| pedi dos céus piedade do engano dos sonhos, | 560 |
28
| bondosa ilusão. Porém de longe enxergava | |
| um luminoso fruto ofuscando meus olhos | |
| enquanto a voz entoava: “Amigo dos bosques, | |
| o pomo prohibido que outrora ultrajaram | |
| desperdiçou no mundo a nudez do saber, | 565 |
| um frágil tesouro. Mas um pomo te espera | |
| maior que o prohibido que o mundo perdeu | |
| rendido à morte. Come, pois, peregrino, | |
| e senta-te sob a sombra d’árvore da vida, | |
| mãe de teus passos.” Assim ouvi, seguidor, | 570 |
| uma voz invencível, e refletindo e seguindo | |
| a voz e meu peito, subi degraus duma escada | |
| que quanto mais me alçava mais alegrava | |
| os pés de meu sonho e porém jamais terminava, | |
| nem meus olhos sabiam da aurora do fim. | 575 |
| Contudo ouvi, de cambaleado que estou, | |
| que apenas em sete auroras ali voltarei. – | |
| O seguidor, todavia, ouvindo o relato | |
| e retardando seus passos, deixou ecoar | |
| fortíssimo pranto e transtornados soluços | 580 |
29
| calaram os pássaros. Era um rosto inundado | |
| de todas as gotas escorrendo das fontes | |
| d’alma e do corpo. Assim regou desolado | |
| a boca das árvores, procurando governo: | |
| – Percebo já, senhor, que triste destino | 585 |
| Deus me prepara. Quem agora me ensina, | |
| aonde irei de rumo aprender a batalha | |
| que à vida reta compete? Ó generosas, | |
| chorai comigo o bom intento arruinado! – | |
| Ajoelhando-se frente ao tronco dum árvor | 590 |
| e derramando a vida, ouviu porém do eremita: | |
| – A diferença, filho, de nós e das árvores, | |
| ouve e reflete: Os inconstantes corremos | |
| passando a norte e sul, e viajando agitados | |
| passamos por toda parte e correndo sem rumo | 595 |
| em parte alguma estamos. As árvores ficam | |
| por onde Deus plantar: O vento ameaça, | |
| o mar se agita, e não se move uma vida | |
| que ali se pôs por inteiro para ser, | |
| estar e ficar. E desprezando os enganos | 600 |
30
| do mundo e seus tumultos, ela se eleva | |
| aos céus calada enquanto Deus permitir. | |
| Assim te ensina a paciência das plantas | |
| e assim te peço: Não perturbes a mente | |
| buscando a quem seguir nem sigas a mim | 605 |
| que nada sei, mas antes segue esse exemplo | |
| da vida verde. Onde estiveres perdido | |
| o verdadeiro sentido è somente ficares | |
| onde estás, alçando a Deus a constante | |
| batalha da prece. O resto da vida è poeira | 610 |
| que o vento varre a toda parte e nenhuma. – | |
| O seguidor, entretanto, ouvindo aturdido | |
| e contendo a dor retorna: – Mas o augúrio | |
| invade meu peito, o presságio: Nunca ouvirei | |
| de novo a boa prece que livre entoavas! | 615 |
| Tu, se nada sabes, quanto menos conheço | |
| dos sacrifícios eu, que aqui demandando | |
| apenas começava a saber o que sabes | |
| e a ser o que és? – O solitário minado, | |
| tornando para trás, tossindo e com febre | 620 |
31
| responde apenas: – Filho, pouco me resta | |
| de raciocínio correto. Incêndio no peito | |
| dilacera a carne, o governo da mente | |
| confunde as palavras. Mas desejo pedir, | |
| se aqui permites, um derradeiro serviço: | 625 |
| Quando se for a carcaça e da vida restar | |
| poeira apenas, prepara o remo do barco | |
| e desbravando o lago, o mar e o palude | |
| avisa à minha irmã, na margem que habita | |
| a sós e sóror, que um novo alívio conforta | 630 |
| o sofrimento dos homens: O sopro de Guthlac | |
| já non mais atormenta o pesar deste mundo. | |
| O desgostoso silêncio que impus entre nós, | |
| impus por amor daquele amor verdadeiro | |
| que não no mundo, e sim no excelso jardim, | 635 |
| um dia unirá nossas vidas. Roga-lhe apenas | |
| que venha, por piedade, enterrar o meu corpo. – | |
| Tornaram pois os dois à morada de Guthlac, | |
| andando calados, o pensamento distante. | |
| Ali chegando o doente pôs-se a dormir | 640 |
32
| no caixão de pedra que pelos anos inteiros | |
| serviu-lhe de cama, recordando constante | |
| a verdade do fim e prenúncio da eternidade. | |
| O seguidor diligente, contendo gemidos, | |
| batendo ferro contra a pedra do fogo | 645 |
| e mecha de palha, preparou-lhe do sílex | |
| a flama consoladora do forno e do frio, | |
| remando embora na noite. Transtorno porém, | |
| angústia nova assomou-o quando na aurora | |
| desembarcou e viu, estirado e convulso, | 650 |
| um corpo acabado e recoberto de sangue: | |
| – Por caridade, senhor, se ainda tiveres | |
| poder de verbo, diz o mal que te passa | |
| e como posso ajudar! – Dizendo isto, | |
| erguendo da terra a moribunda ruína, | 655 |
| prepara-lhe o fogo e pão e trata feridas. | |
| Mas Guthlac, tomando às custas fôlego novo, | |
| profere calmo: – Casório feliz se aproxima | |
| após o aflito divórcio do sopro e da carne, | |
| mas não te aflijas de mim, guerreiro da prece: | 660 |
33
| Felicidade quando os ambos se encontram. – | |
| O servo, contudo, servindo o pão suplica: | |
| – Recorda de mim, senhor, e donde estiveres | |
| intercede aos céus pela vida dum fraco. – | |
| O homem simples avisa: – Contigo estarei | 665 |
| no peito, filhinho, confia em Deus e verás | |
| que não te abandonarei na batalha da vida. | |
| Perpétuo laço nos une e não se arrebenta | |
| na mão da morte, porém prossegue conosco | |
| acima da escada. Aqui plangeremos em breve | 670 |
| a dolorosa passagem de Cristo às alturas, | |
| sabendo porém que a dor se vence na prece. – | |
| E assim dizendo, preparava as palavras | |
| porquanto aproximava-se aurora de Páscoa. | |
| Remando de longe em madrugada avançada, | 675 |
| o seguidor vislumbrou, na data preclara, | |
| um tenuíssimo azul que descendo de estrelas | |
| banhava a morada de Guthlac, serena visão | |
| vencendo o mar violento. Depois aportando, |
34
| andou na trilha ansiado em busca do amigo | 680 |
| e prevendo surpresa entrou. Um divino perfume | |
| a casa tosca exalava e da carne de Guthlac | |
| balsâmico olor expirava. O altar preparado, | |
| partiram-se dois amigos dum pão redentor, | |
| varão que o mundo enjeitara com seu seguidor. | 685 |
| O verso dos homens nem a fala traduzem | |
| a voz de Deus pronunciada dos ermos. | |
| Pois o amigo dos ermos alçou sua voz | |
| e quantas almas, meu Deus, a prece curou, | |
| a beleza ubíqua dum coração e dum corpo | 690 |
| na foz da boca. Passada a tormenta final, | |
| soprou-lhe o Sopro Santo d’árvore da vida | |
| no sétimo dia. E Guthlac subiu as escadas. | |
| O peso do peito, porém, derribou de tristeza | |
| um fiel seguidor, que atribulado por dentro | 695 |
| buscava o seu barco, a voz dum penoso dever | |
| indagando severa. Tomando pois de impossível | |
| força e coragem, o atormentado embarcou | |
| e pelo mar remou. As águas, sabendo talvez | |
| duma sina infeliz, passavam ora caladas | 700 |
35
| em luto brumoso. Quantas vezes contudo | |
| as mãos navagantes fraquejavam no remo, | |
| a mente debalde procurando o controle | |
| e perdendo o manejo, transitória madeira | |
| no meio do mar. O transtornado remante | 705 |
| remou porém de seu remo e remando arribou. | |
| A barca deslizava tranquila nas pedras, | |
| serenas de atrito. Desembarcando abalado | |
| perante uma vida singela, dilúvio de lágrimas | |
| ferve nas faces, buscando ao mar estuário. | 710 |
| O servo, por fim, falando baixo e custoso | |
| e sem que ousasse olhar o rosto da virgem, | |
| revela a verdade: – Requer uma certa coragem, | |
| distinta senhora, trazer a notícia que trago. | |
| Roguei de Deus nas tribulações desta vida | 715 |
| jornada reta e fervor na batalha da prece, | |
| sabendo que ao sofredor que serve e confia | |
| o coração pulsando è conforto o bastante. | |
| Aprouve a Deus, porém, confiar a meus pés | |
| um tristíssimo emprego e desgostoso serviço | 720 |
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| presto a Guthlac: Teu irmão e meu mestre, | |
| o servo inseparável dos céus e da prece | |
| como nunca se soube e jamais se verá, | |
| morreu, encontrou morada mais adequada | |
| acima de nós, por onde um juiz compassivo | 725 |
| chamou su’alma ao jardim. O longo silêncio | |
| que impôs entre vós, assim mo confessou, | |
| terá seu termo no dia do amor verdadeiro. | |
| Guthlac pede um favor: pediu que enterres | |
| o resto dum ser que agora jaz estirado, | 730 |
| um tesouro largado, um despojo exposto ao céu | |
| que recebeu a semente. A missão merencória, | |
| senhora, que Deus me impôs está cumprida. | |
| Agora o que me resta è meu barco no mar, | |
| meu peito que rema e se entristece co peso | 735 |
| do remo e do mar. Flutua, meu barco, flutua, | |
| carrega embora a vida rumo à verdade. – |