Poemas de Deus
© Gregorius Vatis Advena 2012 – 2019, Records E2 E7, Engl. Passions and Guthlac, Hampshire, epic and sacred poetry, Portuguese.
© Gregorius Vatis Advena 2012 – 2019, Records E2 E7, Engl. Passions and Guthlac, Hampshire, epic and sacred poetry, Portuguese.
Curado de sua cegueira, Bartimeu é quem narra: Após a crucificação, o centurião, José de Arimateia e Madalena unem-se para tirar Jesus da cruz. Sua inaudita e perseverante coragem intercede a Pilatos e enfrenta o cataclismo.
Guthlac chega à ilha de Crowland para viver como eremita. O demônio porém se opõe: O rei, o mercante e o pai o visitam buscando dissuadi-lo. Resistindo a todo assédio e tormenta, Guthlac amadurece na ilha, até que se revela o prenúncio da sua morte.
Folha II |
© Gregorius Vatis Advena 2012, Record E2, Engl. Passions, december 2012 to december 2013, Hampshire, dactylic hexameter, 1522 lines, epic poetry, Portuguese.
Curado de sua cegueira, Bartimeu é quem narra: Após a crucificação, o centurião, José de Arimateia e Madalena unem-se para tirar Jesus da cruz. Sua inaudita coragem intercede a Pilatos e enfrenta a tempestade. Buscam, além do direito de sepultar Jesus, essências para ungir o seu corpo.
Paixões retrata o sofrimento dos homens ao redor da cruz: À paixão de Cristo seguem as paixões dos amigos. Apesar do tema, o foco não é histórico ou teológico. É trágico ao refletir sobre a dor perante a injustiça, e transcendental ao abordar o valor duma coragem quase ilimitada. O milagre da inocência, aqui, é unir os homens em nome dum sacrifício maior do que a vida.
Noturno Op. 27, No. 2, em ré bemol maior, por Frederic Chopin, performance de Frank Levy – Musopen CC PD.
O verso é hexamétrico – seis tônicas separadas por uma ou duas átonas, ou por pausa. Em geral, o verso começa em tônica e termina em diérese bucólica – o ritmo tátata-táta. É datílico ao evocar o antigo dátilo no ritmo tátata. Todo verso possui ao menos um dátilo tonal. O dátilo classico, porém, era quantitativo.
O uso das formas épicas é tratado no ensaio Prosódia e Grafia. Ocorrem neste poema: formas átonas (è, eo, meo, seo etc.) e conjugações épicas. É um poema solene e classicizante.
Chegarom a Jericó. Dali saindo Jesus e os seus e muitos mais, sentava-se à beira do rumo Bartimeu, mendigo e cego. Este, ao ouvir quem ali passava, exclamou: “Piedade, Jesus! Filho que és de Davi, compaixão de mim!” Quando o repreenderom porque falava, ele alçou maior sua voz: “Piedade, Jesus, compaixão do que sou!” Mas Jesus ouviu, parou e pediu: “Chamai-o.” Pois chamarom o cego: “Coragem, levanta-te, Ele te chama!” Lançando fora o seo trapo, o mendigo ergueu-se e foi-lhe falar. Jesus indaga: “Que desejas de mim?” “Mestre”, implora o cego, “quero apenas ver!” Pois Jesus lhe responde: “Vai, filhinho, a tua fé te salvou.” E no mesmo instante reconheceu sua vista e foi seguindo Jesus pela estrada. (Cenas de Marcos, X)
Vinde, filhos, mesclemos nosso pranto agitados | |
ante o despertar duma dor invasora dos olhos: | |
Morre condenado na cruz Jesus Nazareno, | |
morre ensanguentado e coroado de espinhos. | |
Mas ninguém ampara a mãe duma pura inocência | 5 |
quando plange a sós pedindo aos céus piedade. | |
Ele chegara a Jerusalém recebido com palmas, | |
ele passara pela estrada atendendo pequenos. | |
Vinha de longe a sua fama e serena lembrança | |
pelos ermos onde passou confortava seo povo. | 10 |
Mas enquanto repartia dos pães que comia | |
foi traído, caluniado e vendido ao suplício. | |
Ele orava no horto quando viu de repente | |
pela sombra um turbilhão de guardas armados. | |
Foi levado e torturado, e julgado culpado | 15 |
foi condenado a carregar esta cruz e pregado. | |
É assim porém que chega ao fim uma vida | |
contra a voz promissora duma esfera celeste. | |
Foi bonito escutar a narração desses homens | |
quanto ao anjo aclamador duma doce existência, | 20 |
1
quando de noite, dizem, veio à mãe avisando: | |
Ave, mulher, está contigo o rei de Israel, | |
ave, bendito o fruto dum ventre imaculado. | |
Inda se narra pelos vãos uma noite remota | |
quando a voz dum canto confortante ecoava: | 25 |
Não temais, pastores, é bondosa a notícia, | |
pois nasceu este dia um salvador de serenos. | |
Não temer, buscar na estrela guia dos magos | |
novo rumo e logo vereis o seo berço singelo. | |
São histórias que a vida narra longe do tempo | 30 |
como juras dum mundo apagador de promessas. | |
Mas deixemos ora calada a voz das promessas | |
pois ninguém acredita nem ouviu minha vida: | |
Eu nasci sem luz e por onde passava buscava, | |
eu cresci na beira da estrada à mercê de migalhas. | 35 |
Dia e noite eo erguia as mãos ao céu implorando: | |
Abre meus olhos, eo quero ver a cor deste mundo! | |
Quando ouvi que Jesus se aproximava da estrada | |
não esperei, larguei a vida e me ergui de meu rumo: | |
«Onde está Jesus? Paixão de mim que não vejo!» | 40 |
2
Quanto mais o mundo me separava da estrela | |
mais a minha voz se interpunha e mais eo sabia: | |
«Eu não tenho nada a perder, eo quero a verdade!» | |
Como tomado talvez dum sentimento inaudito, | |
ele parou e me viu, eo venci o mundo entre nós! | 45 |
Eu me arrastei sem medo da vida nem da morte | |
mas Jesus perguntou de mim e de mim respondia: | |
«Abre meus olhos, eo quero ver a cor deste mundo!» | |
Ele ordenou por piedade que o mundo parasse, | |
ele estendeu as suas mãos e meus olhos se abriram! | 50 |
Eu me ergui de meo barro e meditando a verdade | |
vi que o céu era belo e vi que o sol me abraçava. | |
Vim seguindo e contemplando a pureza das árvores | |
quando o vento balança as folhas e a sombra se move. | |
Ante as águas dum rio a transparência das ondas | 55 |
ora flutuava em meus olhos espelhos do pranto. | |
Eu avistei de muito longe a viagem das aves | |
quando as asas navegavam no azul generoso. | |
Pela noite eo vislumbrava deitado as estrelas | |
como o porto final da felicidade e do sopro. | 60 |
3
Mas è desengano este mundo tão belo e tão bruto | |
pois abri meus olhos e vejo a cor da verdade: | |
Vim seguindo Jesus e aqui chegamos da estrada | |
mas aqui termina Jesus e termina esta estrada. | |
Era melhor o rumo quando o rumo era escuro, | 65 |
foi pedido infeliz a redenção das pupilas! | |
Mas aí se vê, meos filhos, no que se convertem | |
tanta esperança e tanta indagação duma vida. | |
Eu vivia feliz mendigo à mercê de migalhas! | |
Fecha meus olhos, bom Jesus, desfaz o milagre | 70 |
pois o mundo ganhou a cor e perdeu a beleza. | |
Ora um manto anil recobre as almas plangentes | |
como o mar que vai colhendo o pranto das gentes. | |
Derom aquela cruz ao nosso núncio de longe, | |
prêmio de morte ao doador de pães e de peixe? | 75 |
Como se esvai a voz dos salmos na lira quebrada, | |
como se perde o canto estelar na poeira da morte! | |
Mas será que vinhe algum corajoso, um amigo | |
bom tirar da cruz este corpo? Será que veremos? | |
Quem se confia ao poderoso escudo e se assenta | 80 |
4
sob a sombra do altíssimo clama: Minha esperança! | |
Pois è meu pastor o Senhor e nada me falta: | |
Faz-me deitar em verdes pastos, sacia o sedento. | |
Deus! Por que nos abandonas perante inimigos? | |
Manda a tua luz que nos guia à sagrada montanha! | 85 |
Mas por que te agitas, alma, e tanto te inquïetas? | |
Não temer, Israel, porquanto ainda o veremos, | |
inda seremos gratos a quem nos salva da espada. | |
Não me abandones ao fim durante a minha velhice | |
quando meus inimigos contra mim se congregam! | 90 |
Quero proclamar por mim mesmo a tua justiça, | |
todos os dias eo contarei o quanto me deste! | |
Quero narrar melhor a compaixão de meo povo | |
quando Jesus sofreu e como a Cristo ajudarom! | |
Quero narrar porquanto vi, porquanto na estrada | 95 |
vinha Jesus pedindo amor e meos olhos se abrirom. | |
Vi dos homens o quanto agirom, disserom, pensarom, | |
vi: não morre em vão quem se compadece do aflito. | |
Inda os céus mirando abaixo este mundo sorriem | |
como se fosse feliz a cruz no azul que nos cerca! | 100 |
5
Tiras de nuvens sangram pelo horizonte e poente | |
mancha vai lembrando o fim dum cruor nebuloso. | |
Canta o coro das aves ao revoar o crepúsculo, | |
passam ledas enquanto Jesus expira no tronco. | |
Ora a mão pregada lembra as palavras de outrora: | 105 |
“Pois olhai as aves do céu que nunca laboram, | |
vão vivendo os dias e Deus provê do que falta. | |
Pois olhai o lírio do campo e como se veste: | |
Mas se assim se veste que vestido vos falta?” | |
Ah, voavam sem medo as alegrias das aves, | 110 |
eram a única voz caridosa perante a verdade. | |
Dia e noite eo erguia o peito ao céu implorando: | |
Abre meos olhos, eo quero ver o amor neste mundo! | |
Ora que as cores naufragarom na sombra do lírio, | |
ora è vão dizer ao cego que as flores existem! | 115 |
Como confunde a mente a má constância das coisas | |
quando ao gozo circundam tantas dores insanas. | |
Deus escondido, por que vestir o lírio de amores? | |
Aves por que proviste desta ternura sem termo, | |
dono do céu, e ao homem deste o lauro de espinhos? | 120 |
Mas narremos: Soldados lançam dados à tábua | |
rindo como um louco pela espera da sorte. | |
Vendo acima o crucificado na extrema agonia | |
novo lazer se revela: “Eis o rei da Judeia, | |
homens! Nossos anjos do Olimpo vêm buscá-lo. | 125 |
Ele disse que sai da cruz sozinho e veremos: | |
Bem lhe cabe a coroa real e troféu de bandidos!” | |
Falam em gargalhadas retorcendo seos rostos: | |
“Grande monarca, em suas mãos o cetro pregado | |
vale menos que o trapo dum vagabundo na estrada!” | 130 |
Mas passava um centurião vislumbrando calado, | |
rude e montado a cavalo. Vendo chegar da cidade | |
mais aflitos buscava em vão calar os soldados. | |
“Este homem,” pensava o cavaleiro de Roma, | |
“era um pobre inocente e morreu sem amparo.” | 135 |
Ele portanto se amargurou de seo triste serviço | |
pelo Império. Passava cavalgando em silêncio | |
mas a imagem falava sempre altior à mente. | |
Eram porém sem voz os seus monólogos longos: | |
“É verdade! Em muitas terras passei que lutarom | 140 |
7
contra o lábaro nosso, animalescas e brutas: | |
Eram pessoas enlouquecidas de toda sorte! | |
Pois andando em toda parte busquei de coragem | |
mas em nenhuma eo encontrei a virtude do sábio, | |
quanto mais pelejava mais perdia a sperança. | 145 |
Vim lutando além com desassossego no peito, | |
toda sorte de luto eo vi mas nada me assusta, | |
crime nem deus. Tomei de todas armas, vencendo | |
águias, dragões e tempestades, forte na estrada. | |
Eu varai o mar tormentoso na paz e no prélio! | 150 |
Pois mirei o rosto de respeitados guerreiros | |
mas em parte alguma vi verdade em guerreiros. | |
Já pensava saber o tamanho de toda injustiça, | |
já pensava saber o nome de todos os crimes. | |
Foi engano, mal nenhum è demais neste mundo: | 155 |
Frente à cruz dum Nazareno e morto inocente | |
quando afora tanto emprego justo e valente, | |
ai de mim, aguarda ainda as armas e as almas, | |
cá se arrasta a vida em vão dum homem de guerra.” | |
Inda alguns soldados surdos replicam, clamando | 160 |
8
alto que o homem da cruz dissera perante Pilatos | |
ser o rei de Judeia. Tornavam ao jogo de dados | |
muita vez fitanto as outras cruzes erguidas: | |
“Vede o séquito são dum morto rei de falidos!” | |
Mas o amigo retruca: “Que comédia, Quirites, | 165 |
vejo o caso completo de como demanda o Senado | |
César Hebraico, deus montado ao lombo dum asno!” | |
Inda um outro tomando os dados da tábua pergunta: | |
“Como foi isto, meninos? Prefere a morte à modéstia?” | |
Mas um soldado irrompe em gargalhada e contesta: | 170 |
“Cala a boca, patrício! Seo reino nõ é deste mundo – | |
fica longe, longe o reino histrião do Esquilino, | |
fica num mundo gostoso, num lupanar da Suburra.” | |
Cifras novas e acaso passavam por sobre a tábua | |
quando um militar enfadado para e completa: | 175 |
“Mas è cada coisa que me aparece no mundo! | |
É de rir para uma vida inteira e me acabo: | |
Forom superadas mesmo as comédias de Plauto, | |
forom superadas em grande estilo, meos caros.” | |
Quando o corpo atormentado na cruz estremece, | 180 |
9
um dos homens embebece a sponja em vinagre | |
mas concede pouco: “Bebe com calma, monarca, | |
mostra à gente o decoro dos reis,” sugere o verdugo | |
frente à sua mãe que esconde o rosto nos braços. | |
Não demora no monte o pôr do sol memorável | 185 |
mas o sol verdadeiro já se vai deste mundo. | |
“Pai!” o brado vem da cruz, “por que me deixaste?” | |
Grito que repercute ao peito eterno silêncio, | |
era a morte e quantos ali paravam sabiam. | |
Foi tamanho o clamor daquele viço expirando | 190 |
grave que o firmamento escureceu de repente. | |
Ora os olhos converterom-se à cruz entendendo | |
dentro do peito a voz do derradeiro suspiro. | |
Ante à cena o centúrio desce e deixa o cavalo: | |
Ele em tudo lamenta a displicência de estranhos | 195 |
mas reluta contra um coração que se afirma: | |
“É possível? Os assassinos correm libertos | |
pelo rumo torto, o seo crime nunca punido. | |
Nós contudo vivemos eludidos das leis e | |
dando à cruz o generoso viver de inocentes. | 200 |
10
Pois se ainda fosse vivo e conosco este homem, | |
certo a minha espada seguiria os seos passos | |
onde quer que vagasse em desolados espaços. | |
Eu queria estar distante de tudo que vejo | |
como cavalgar e deixar atrás este inferno. | 205 |
Mas è isto o que a vida faz duma rota danada: | |
Vejo uma cruz infame unindo os crimes de todos | |
contra um Nazareno e contra a vida sem erro. | |
Quem redime neste mundo tanta desgraça?” | |
Isto dito, o homem d’armas retira uma lágrima, | 210 |
limpa os olhos e adverte os soldados, dizendo: | |
“Era de Deus este homem! Era grande, guerreiros!” | |
Como porém a palavra caísse em solo infértil, | |
lá se sentau e calau em misturando-se à turba, | |
moendo a mente ao ver apiedado o defunto. | 215 |
Mas ouviu talvez nas ilusões da tristeza | |
voz que daquela cruz arrebatava-lhe o peito: | |
“Certo rei deixara a veiga à conta de servos | |
mas por trás do seu senhor renderom-se ao crime. | |
Quando houverom matado os emissários de longe | 220 |
11
veio o rei irado e mandou, chamando os juízes: | |
Cada servo seja punido segundo os seos atos! | |
Pois os homens forom condenados à morte | |
mas o filho do rei intercedeu, explicando: | |
Muitos desses réus se desviarom sem dolo, | 225 |
muitos arrependidos vão mudando seo rumo. | |
Há melhor maneira de consertar criminosos, | |
ama, perdoa quem não sabe o que faz e liberta. | |
Eu irei, direi a verdade e por fim morrerei! | |
Pois no sacrifício verão que a vida inocente | 230 |
mesmo castigada è bonita, è melhor, è vitória.” | |
Mas um triste centúrio no seu diálogo interno | |
quer saber o valor dum sacrifício tamanho. | |
Pois decerto beirava a loucura tanta bondade, | |
ele sacrificar-se por esta grei truculenta! | 235 |
Que verdade nova se esconde trás um mendigo, | |
corpo que adentra capitais ao lombo dum asno? | |
Nem bondade apaga o mal dum feito funesto | |
mas o novo rei mandará perdoar inimigos? | |
Certo o centurião negava um perdão inumano: | 240 |
12
“Eu de fato não mereço esse tipo de gesto, | |
já me basta a punição, minha morte me basta!” | |
Como ouvisse do cavaleiro o sincero lamento | |
veio a fala qual se falara um sopro no lenho: | |
“Toma apenas teo rumo e diz a Roma o que viste! | 245 |
Como não podes recuperar da cruz o cordeiro, | |
tão somente aceita o sangue aqui derramado, | |
faz este derradeiro favor e dom de respeito!” | |
Muito tempo um confundido centúrio reflete | |
vendo o soldado perfurar o cadáver coa lança. | 250 |
Dentro da sua vida recôndita nada se move, | |
jorra somente pelo silêncio um líquido rubro, | |
fel revestindo como a chuva a terra sedenta. | |
Mas o homem d’armas num sobressalto inaudito | |
brada um repentino brado grave e longuíssimo, | 255 |
brada no meio da gente levantando-se o grito. | |
Quem contudo acudia àquela estranha figura | |
frente à cruz ouvia um militar impassível: | |
“Hércules dê-lhe viço pois delira em fadiga.” | |
Eram lançados os dados como se nada ocorresse. | 260 |
13
Ele, porém, repudiando uma cena impostora | |
monta o cavalo contra insuportável verdade, | |
dando esporas contrito e sobretudo apressado. | |
Mas o cavalo saltou, selvagem a presa do medo. | |
Inda que a mente longe tente manter o controle, | 265 |
perde as rédeas soltas para o bicho indomado. | |
Vai lutando assustado, apalpa o nada co braço, | |
urge no meio do susto recuparar o equilíbrio. | |
Mas semelha à sombra a vida barca sem remo | |
quando vai passando à deriva, o rumo largado | 270 |
contra a ventania feroz no abismo das ondas. | |
Ele se torce mas resiste em vão e despenca, | |
bate co rosto em queda contra a terra e poeira. | |
Mal se rasteja o centurião desdenhando socorro, | |
sangue borbotando a roupa dos pés à cabeça. | 275 |
Como esquecido de si pensando apenas na gente | |
tenta erguer-se mais contendo o passo do bicho, | |
mas o equestre nervoso foge rumo ao deserto: | |
Não suportara tampouco a cena, morto no tronco | |
ser querido que os animais protegaram outrora, | 280 |
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quando na choça a mãe o dera à luz e temera – | |
fruto do quem o gado usau de mais piedade, | |
quem diria, que o raciocínio reto dos homens. | |
Pois tomarom ao braço o cavaleiro, seguindo | |
rumo à cidade e descendendo a pé pelo monte. | 285 |
Veio porém de encontro, ai, miséria sem nome, | |
larga marcha morosa de velhos costados em varas. | |
Vendo o coro dos anciãos que passava curvado, | |
olhos direcionados à cruz, o ferido antecede: | |
“Procurais Jesus? Jesus morreu, peregrinos!” | 290 |
Quando vislumbrarom já de perto o cadáver, | |
um dos idosos batendo fortemente no peito | |
joga o cajado e despedaça a roupa do corpo. | |
Cai de joelhos perante a multidão que se cala | |
vendo o pesar que José de Arimateia atestava. | 295 |
Era um homem de forte paixão. Debalde continha | |
voz e verbo em vista à verdade, o mar prorrompia: | |
“Que vislumbro e que vejo nesta cruz renegada? | |
Vinde rasgar os vestuários que ainda me restam, | |
venha o verdugo destruir as minhas entranhas! | 300 |
15
Que se passou, Israel, em este monte Calvário? | |
Eu não sei por onde vou, quem sou e que vejo: | |
Deus dos céus, foi este o homem que apenas amou?” | |
Mas desfalecia-lhe o fôlego e mal se expressava | |
quando arfando e vencendo novamente a vertigem | 305 |
toma força, pergunta calmo e baixa o seo brado: | |
“Ele morreu? Os homens condenarom de fato | |
quem pregava amor ao próximo e doce verdade? | |
É mentira e não confio na cena que assisto: | |
Quero descobrir quem permitiu este crime! | 310 |
É preciso coragem para crer no meu pranto | |
pois vivi demais, a desastres pouco resisto. | |
Custa crer, contudo a cena se impõe à cidade: | |
Foi crucificado, meo Deus, Jesus Nazareno!” | |
Mas Maria, a mãe de Tiago que ali se encontrava, | 315 |
vendo o conselheiro alçar a voz transtornada | |
veio ouvir de perto o desandar das palavras. | |
Pondo as mãos sobre a sua pele, ia secando | |
pois suores dum velho que recusava consolo. | |
Quando o torturado a divisa, olhos nos olhos | 320 |
16
tenta repreender querendo em vão argumento. | |
Mas Maria passava ainda ao ombro a destra | |
como lhe consolando a multidão de amarguras. | |
Foi então apontando o desconforto dos pobres: | |
“Que te ocorre, José? A sua mãe valerosa | 325 |
sofre calada como a pedra velando sem termo. | |
Que valor tiveram os brados aqui derramados, | |
tanta dor, se a sua boca se abrisse gemendo | |
males da crucificação duma pura existência! | |
Onde já se viu a mãe dum homem sem erro | 330 |
ver o fruto do próprio ventre morrer sem arrimo, | |
onde o doador de pães coroado de espinhos? | |
Onde se viu, pergunto, o curador de doenças | |
d’alma como do corpo pendido à cruz e cuspido, | |
núncio generoso de amor premiado com pregos? | 335 |
Chora menos, senhor, o nosso pranto è bastante, | |
já não carecemos de exagerados lamentos. | |
Antes nos dá, José, teo generoso conselho, | |
sai do chão, José, e dá consolo a quem sofre.” | |
Mas o velho, rompendo a densidade da massa, | 340 |
17
abre as alas da turba e chega à beira do toro | |
vendo Jesus suspenso, os desvalidos abaixo: | |
“Ó Israel, divide comigo a dor que te pesa | |
quando a vida è castigada e ninguém a defende. | |
Olha o teu passado e reflete: Antes morrêssemos | 345 |
como escravos daquele Egito tumba de justos. | |
Resta o quê de nós, quebrados pelo deserto? | |
Basta um dia e já se reduz um povo a ruína.” | |
Mas perdendo o controle replica à mãe de Tiago: | |
“Nem consigo pensar num desfortunado destino | 350 |
mas ousaste, mulher, pedir consolo e conselho? | |
Este velho que sou de nada sabe nem posso! | |
Era bonita a vida quando a vida era jovem, | |
quando na voz do salmo ressoava a sperança: | |
Eram poderosas as preces dum vivo lamento | 355 |
quando redimindo a dor salvavam o mundo. | |
Tristes bocas forom convertidas em riso | |
quando o milagre dividiu a margem dos mares, | |
pois eo sei, o coração sincero consegue. | |
Mas o vento carregou para trás do deserto | 360 |
18
nossa terra prometida e vitória do justo. | |
Onde estão os templos duma oração fervorosa | |
para que o tempo veja quanto amor construímos? | |
Nossos templos onde a paz consola os caídos, | |
onde se mata a sede das almas e a mágoa termina – | 365 |
era bonita a vida quando a vida era o salmo. | |
Quando a lira evocava em Deus a força do escudo, | |
todo pranto era doce e toda a lida era alegre. | |
Hoje o canto se perde e vou passando meo rumo | |
vendo por onde passo o fim do canto e do passo. | 370 |
Mas eo vivo e vivendo vejo o fim da esperança: | |
Vou-me embora, filhos, vou buscar o deserto, | |
vou morrer orando a Deus pelo bem de meu povo.” | |
Não, José, não fales assim porque te equivocas: | |
Foi bonita uma vida castigada e quebrada | 375 |
quando se ergueu do chão desafiando o destino. | |
Uma coisa eo entendi no abandono da estrada: | |
Vem da vida quebrada a verdadeira esperança, | |
é na vida quebrada que a fé se torna coragem. | |
Esta foi a vida, ancião, que ergui da poeira | 380 |
19
quando ouvi que Jesus se aproximava da estrada. | |
Pois contrariando a voz duma turba impostora | |
não me rendi: Busquei Jesus vencendo o destino | |
pois se a vida è spada meo Deus è meu escudo. | |
Não deixei para trás o trapo e tudo que havia | 385 |
para enfraquecer meo passo perante a batalha: | |
Eu ergui minha voz pedindo a luz de meos olhos! | |
Mas Jesus não teria aberto meos olhos se o grito | |
não tivesse força e se a vida ficasse na estrada. | |
É para a vida castigada que o salmo se canta: | 390 |
Deus se fez escudo, mas é preciso que o braço | |
tenha a coragem de erguê-lo contra a mão inimiga! | |
Ergue teo braço, ergue o teu escudo e defende | |
quem merece a verdade na vida como na morte! | |
Mas José ponderou, e enquanto ideias vagavam | 395 |
um dos velhos do coro aproximou-se querendo: | |
“Vais buscar o deserto enquanto o povo padece? | |
Pensa melhor: Morrer orando a Deus è bonito, | |
mas melhor è morrer amando quem necessita. | |
Vais correr à sombra abandonada dos ermos? | 400 |
20
Qual o valor da fuga quando o mal te persegue | |
toda parte? Irá contigo a cor desta imagem: | |
Morto na cruz Jesus Nazareno! Será verdade | |
mesmo que tudo è vão, nenhuma ajuda bemvinda?” | |
Mas José considera as palavras e vai escutando: | 405 |
“Seja teu o destino. Se queres demérito foge, | |
vai-te embora ao rumo destruïdor da verdade! | |
Ó Israel, aurora vence o pranto das noites! | |
Ó Israel, confia em teu escudo e prossegue!” | |
Ele balançava a cabeça mirando a poeira, | 410 |
ele reprimia nos olhos o peso das gotas | |
mas a voz insiste interrompendo o silêncio: | |
“Não è esta a retidão que se espera dum homem | |
forte e poderoso e reparador de seo povo, | |
pois a dor è de todos mas poder è de poucos. | 415 |
Usa o bom império que tens, consola caídos, | |
não agraves as desesperações desta turba! | |
Inda negas o braço desdizendo os aflitos? | |
Age bem primeiro, morre depois como o justo!” | |
Pois José de Arimateia ergueu-se com força | 420 |
21
quando a voz se calou: O conselheiro suspira, | |
toma às mãos o cajado lançado à terra e seguro | |
bate ao chão, impressionando os ouvidos e os olhos. | |
Quando a massa agitada se volta e cala esperando, | |
súbito o homem pronuncia perante os ouvintes: | 425 |
“Descam da cruz por piedade o corpo vergado, | |
descam da cruz o nosso bom Jesus Nazareno! | |
Quero ter nos braços meu Jesus Nazareno! | |
Seja entregue o curador de vidas ao túmulo | |
pois morreu! Descei da cruz a vida sem crime, | 430 |
mãos de Roma: Condenastes o homem errado.” | |
Mas soldados gargalhando olhavam-se atônitos, | |
punho à boca cobrindo coalgum pudor o deleite. | |
Como o velho insistisse, reportarom guerreiros | |
ordem de Roma e razão por que não fosse possível: | 435 |
Pôncio Pilatos apenas possui poder sobre a pena. | |
Isto ouvindo, José cismando hesita um momento, | |
mas reflete inopinado uma empresa arriscada. | |
Era preciso agir porquanto o tempo passava | |
mas o pranto dos inocentes consolo aguardava. | 440 |
Pois o velho batendo ao chão co mesmo cajado | |
jura aos soldados misturando lágrima e fogo: | |
“Pôncio Pilatos há de baixar da cruz este corpo!” |
Paixões | Folha III |
Medo arrebatou os rostos no monte Calvário | |
quando José, tomando nova força no passo, | 445 |
vara à mão, prossegue rumo a Pôncio Pilatos. | |
Mas o destino muda repentino os seos planos | |
quando se avança transtornada a mãe de Tiago: | |
“Spera!” Ela duvidava da empresa arriscada, | |
pois ainda que desejasse o socorro das horas | 450 |
era grave o perigo que os peregrinos corriam. | |
Como deixar passar uma caravana de simples | |
sem nenhum poder ou proteção de peritos? | |
Ela entrevia carnificina às portas do paço, | |
como seria constrangida a língua de audazes, | 455 |
como vexada de açoite e morte quiçá. Impedia: | |
“Tem piedade, José, da nossa gente e pondera! | |
Crês que alguém de tal governo como Pilatos, | |
ora que inesitante lançove à morte inocentes | |
tenha ainda a paciência de ouvir teo relato? | 460 |
23
É demais a tua audácia, perdeste o juízo? | |
Pois se até Jesus foi relegado à madeira | |
quanto mais se fará de nós atordoados? | |
Nada somos, somos terra e sombra esquecida! | |
Usa de graça porque temos muito a temer, | 465 |
já nos basta a punição que acabaumos de ver. | |
Não desafies contra o fraco o gládio do forte! | |
Não queremos senão a paz que dói nos vencidos. | |
Cura não sofras tu dum sacrifício cruento, | |
paga que o poderoso guarda ao gabo do servo. | 470 |
Salva a própria vida pois a nossa è perdida: | |
Pôncio Pilatos nunca acedeu a falas afoitas.” | |
Algo de certo certamente havia no apelo, | |
tanto que alguns titubeavam já pelo rumo. | |
Mas um vulto conhecido se avança valente, | 475 |
toma voz interrompendo a mãe que falava: | |
“Isto veremos!” O verbo reverbera no ouvido. | |
Era aquele centúrio que proferia em rugindo: | |
Eis o bom emprego que cobiçava das armas! | |
Era chegado, pensava, ensejo muito esperado, | 480 |
24
hora honrosa. A fala ressaltava a coragem: | |
“Quero morrer, mulher, se minha mão poderosa | |
dere José, que defendo, a militares lazeres. | |
Quero que trogloditas me partam em quatro, | |
Cérbero venha contra mim se José perecere. | 485 |
Sangue demais foi derramado e sangue inocente! | |
Pois se mais alguém se crucificare por hoje | |
quero destruir o mundo inteiro na espada: | |
Roma e Grécia sentirão a força das armas. | |
Mas eo sei que Roma escuta conselho correto: | 490 |
Dá-me as mãos, José, porque Pilatos aguarda!” | |
Mas José, tomado de amor pelo ímpeto heroico, | |
poupa ao valente mais palavras, dizendo sereno | |
tanto ao guerreiro quanto àquela mulher abalada: | |
“Não me importa mais viver, morrer nõ importa. | 495 |
Ora, se até Jesus foi morto na cruz que diviso, | |
que destino e fortuna esperarei neste mundo? | |
Muitas vezes morrer è melhor escolha que a vida | |
nem me incomoda a recompensa das mãos de Pilatos! | |
Quero cumprir um dever divino a Jesus Nazareno. | 500 |
25
Tenho confiança na fé vencedora dos mares: | |
Pôncio Pilatos, repito, há de ouvir o conselho!” | |
Um e outro soldado impressionando-se agora | |
vem ofertar a mão ao centurião corajoso, | |
medo e confiança mesclados em cada rosto. | 505 |
Antes porém que descendessem rumo ao governo, | |
outra mulher aparecendo interrompe a jornada. | |
Vinha arfando em longa andança quase correndo, | |
pouco a pouco tomando forma incrível aos olhos. | |
Mal se sabia como ainda em pé se mantinha: | 510 |
Magra, mostrava claro que padecia de fome, | |
certo chorara quïeta ao chão por horas inteiras. | |
Mas a faminta não vem pedir em causa própria, | |
antes sussurra desesperantes apelos aos velhos: | |
“Como vos expeçais a tão perigosa jornada | 515 |
quero apenas depor a vossos pés que se agitam | |
minha requesta, dom decente a meo caro defunto: | |
Quero embalsamar este corpo e preciso de aromas. | |
Não volteis por favor de mãos vazias, guerreiros, | |
mas trazei unguento, flores, óleo, fragrância: | 520 |
26
Hei de ungir o corpo do nosso rei generoso!” | |
Mas uma voz da massa interrompendo pondera: | |
Onde buscar espécias frente a tanto perigo? | |
Mal consegue conter na boca efusão de palavras: | |
“Ó Madalena! Como pedes ora fragrâncias? | 525 |
Vão de rumo incerto e pouco sabem se voltam. | |
Inda cogitas tenham tempo a dar a perfumos, | |
ver unguentos quando a morte certa ameaça? | |
São vahidades da tua mente e menções levianas! | |
Onde comprarão compostos caros de aromas, | 530 |
perda de tanta prata por pouco, nulho proveito? | |
Pois olores passam e resta somente a tristeza. | |
Ousas pedir? O defunto carece mesmo de leito, | |
nem a cova temos e queres cobri-lo de aromas? | |
Não te basta arriscarem a própria vida na rota? | 535 |
Cala a tua boca e seca os olhos dos outros: | |
Não perturbes quem se sacrifica de graça.” | |
Poucos sabiam donde aquela mulher proviera, | |
mas as palavras reverberavam fundo na turba | |
como nos velhos, cientes da retidão que apelava. | 540 |
27
Ora, Madalena insistindo ganhava os afetos: | |
Novo debate tomau lugar dividindo os espíritos, | |
pois alguns sorriam de espanto, outros revolta | |
quase ante aquela inusitada demanda de olores. | |
Quem julgara ser, rogando favor semelhante? | 545 |
Ela, contudo, acostumada a lidar com agreste | |
gente sempre pronta a desaprovar as vidas, | |
não se abalou. Pedindo novamente desculpas | |
como se ali falasse a juízes, olhava baixo | |
mas a voz elevava o seu apelo aos senhores, | 550 |
simples, no entanto firme no coração que retinha: | |
“Grandes de Hierusalém, por piedade escutade! | |
Quero saber de quem impede uma coisa somente: | |
É correto alguém tomar dum empréstimo farto, | |
força, auxílio, compaixão que não se merece | 555 |
sem um gesto de gratidão conquanto modesto? | |
Eu seria a mais infeliz existência das eras – | |
Deus me concedendo um reino mas eu renegando. | |
É preciso alguém erguer do chão vossas vidas: | |
Deste modo soubéreis quem eo sejo e veríeis | 560 |
28
como Deus alevanta quem o mundo derruba. | |
Disse Jesus uma feita à mesa quando escutava: | |
Dous devedores havia, um duma grande quantia, | |
doutro pequena. Mas o credor dos dous devedores | |
ambos quitou de toda dívida. Pois indaguemos: | 565 |
Quem dos dous lhe teve mais amor e respeito?” | |
Ora Madalena apontava a Jesus pendurado. | |
Quem de fato è mais perdoado mais agradece: | |
Era afeto patente que tal mulher alentava. | |
Homens indiferentes miravam o rosto rugoso | 570 |
como duvidando talvez que um justo profeta | |
fosse capaz de apiedar-se dum tal indivíduo. | |
Não mentiam de fato traços dum rosto rasgado, | |
faces fortemente alçadas no impulso da fala. | |
Mas a mulher continuava explicando seo caso: | 575 |
“Muito me deu e muito perdoáve este homem, | |
é chegada a vez de retribuir, peregrinos! | |
Mas de vós apenas pouco se pode esperar e | |
nem atendo, sei que desprezais meo pedido. | |
Corpos impuros como a derrocada do inferno, | 580 |
29
ímpios de toda sorte vós ungis de perfumos. | |
Este porém deixais aqui, entregue à vergonha: | |
Ó Isreal! Eo não entendo o que vejo nem sinto! | |
Cada um oferece aos bons a prenda que pode | |
nem vos condeno e contudo condenais Madalena. | 585 |
Vai o centurião defendendo José de Pilatos, | |
vai José rogando-lhe o corpo e dom duma cova | |
mas não posso pedir, eo não, a minha fragrância! | |
É demais entrar numa tenda buscando uma essência! | |
Ó lastimosos atos que a vida assiste e pranteia, | 590 |
homens de grande nome e tão pequeno respeito. | |
Mas sereis ingratos a sós, irei de meo rumo! | |
Vou comprar o óleo que cabe a Jesus Nazareno, | |
vou buscar a sós nos ermos o aroma do eterno.” | |
Ela, alevantando-se bamba, escora-se a braços, | 595 |
vaga atônita, vai procurando a cruz em silêncio. | |
Limpa então dos olhos vermelhantes o pranto | |
para tocar o tronco, para ungir o inocente | |
como se aquelas gotas emanassem fragrância. | |
Vai por fim descendo embora rumo à cidade | 600 |
30
mas um vulto conhecido intervém: O centúrio | |
qual se reconhecesse a dor deteve-lhe a marcha: | |
“Spera, Madalena! Fica e socorre estes outros, | |
dá consolo à mãe que chora o crime infinito. | |
Não te desesperes porque traremos essências!” | 605 |
Lá se forom repentinos, seguidos de poucos | |
velhos andando logo e como a força deixava, | |
quase tentando correr por ansiedade e coragem. | |
Forom-se, desaparecendo ligeiro e deixando | |
muitos outros desconfortados, a mente abalada. | 610 |
Quem sabia se ainda ali voltavam coa nova? | |
Ante o temor a turba busca em vão o verdugo, | |
homem ao qual increpar a vida crucificada. | |
Judas Iscariotes! Por quantas vezes o nome | |
foi maldito na massa e novas buscas lançadas! | 615 |
Onde, pois, estranhos indagavam de estranhos, | |
foi esconder de nós uma vergonhosa presença? | |
Como ousou trair e vender Jesus Nazareno? | |
Venha dizer ao condenado a razão deste crime! | |
Mas a turba nada escutara do fado de Judas. | 620 |
31
Quando o núncio se aproxima de longe apressado, | |
súbito a mãe de Tiago pressentindo a notícia | |
toma pelo braço o novo estranho, implorando: | |
“Que desgracioso mal te traz ao Calvário?” | |
Vendo aglomeradas tantas presas da espera | 625 |
quase hostil no desespero, o núncio de longe | |
prestes a dar a sua mensagem pediu a palavra. | |
Quando houverom visto naqueles olhos a gota, | |
houve silêncio grave enquanto a boca entoava: | |
“Justos, è nesta cima que pende Jesus Nazareno? | 630 |
Venho pois a mando dum homem ora abismado, | |
trago novas que a boca preferiria impossíveis. | |
Poupa vigor nessas mãos furiosas, turba tremenda, | |
foi-se já deste mundo a causa do vosso desgaste! | |
Judas lançau-se duma altíssima forca na estrada. | 635 |
Roga apenas dizer que ainda hoje na aurora | |
foi falar com aqueles a quem vendera seo mestre. | |
Trinta moedas jogou de si pedindo e bradando: | |
– Dai de volta o bom Jesus e tomai vossa prata. | |
Grave erro ocorreu, juízes, eo quero levá-lo! – | 640 |
32
Era tarde demais, o seu remorso era tarde. | |
Indo pois às ribanceiras dum monte elevado | |
disse-me quando me viu enquanto ali trabalhava: | |
– Vai àquele monte dos retos, pastor, o Calvário, | |
diz o quanto viste e quantos puderes consola. | 645 |
Chega ao fim meo erro e minha vida se acaba | |
pela forca e pela ofensa maior do que a forca. | |
Pois aprende comigo como termina a vergonha | |
nem relates as gotas dum pranto vão que derramo: | |
Quem se perdeu como eu merece apenas o ódio | 650 |
frente a triste memória dum vergonhoso momento! | |
Era um homem correto e redentor de perdidos, | |
foi um homem de Deus que condenei ao suplício! | |
Foi num gesto confuso e transtornado que Judas | |
destruiu seo mestre, a sua vida e seo povo. | 655 |
É pequeno, bom pastor, o abismo a que salto: | |
É que não avistai por perto um maior precipício | |
nem me permito tempo, ca nem na busca da morte | |
fora-me lícito andar um dia a mais neste mundo. – | |
Ele calou, romeiros, e assim calado lançou-se. | 660 |
33
Vi cair das suas mãos o resto dalgumas moedas, | |
vi rolar e desaparecer pelo chão poeirento.” | |
Pois assim narrou o pastor da sombra que cega | |
pelo caminho quem procurava apenas a estrela. | |
Mas será que a veremos iluminar os abismos | 665 |
onde o passo desavisado perde o seu rumo? | |
Pois assim narrou o pastor, calando ouvintes | |
almas dum caso triste e contritor de juízes. | |
É bonito o perdão aos arrependidos dum crime | |
pois maior que o crime infinito è perdão infinito. | 670 |
Ó, filhinhos, o coração è pequeno mas grande | |
foi a vida de quem bradau à beira da morte: | |
“Pai, perdoa! Eles não sabem o mal que fazem.” | |
Ele chorou da cruz por essas mãos criminosas | |
pois è fácil planger a vida santa e sem erro. | 675 |
Mas o pastor que silenciara o monte Calvário | |
foi baixando e balançando lento a cabeça, | |
foi notando os rostos e completando a verdade: | |
“Era esta a novidade que tinha a dizer-vos. | |
Ora que tudo ouvistes, irei embora se posso | 680 |
34
rumo ao campo que atende. Já me pesam os olhos | |
vendo pregada naquela cruz a causa da mágoa, | |
dor que a minha boca aumenta e perturba somente.” | |
Vai saindo confuso e sem ninguém que o despeça: | |
Era apenas a mãe de Jesus que chorava serena, | 685 |
era a mãe de Jesus que agradecia a coragem. | |
Judas morrera! Mas uma gente ainda esperava | |
pela noite a grande notícia, José, o centúrio: | |
Iam passando amargamente as vidas e as horas. |
Mas Pilatos passa apressado quando vislumbra | 690 |
juntos José de Arimateia, o centúrio, soldados. | |
Para um momento e percebendo a dor do semblante | |
cede ao peregrino, responde irritado entretanto: | |
“Quem me procura? Tu, andante? Diz o que queres, | |
anda, o tempo è curto: Expõe teo caso e veremos.” | 695 |
Já com isto um centurião se abateu no seo canto, | |
já sabia a dificuldade da causa e dos homens. | |
Viu que José ponderava procurando as palavras | |
pelo silêncio enquanto Pilatos olhava inquïeto. | |
Era preciso tomar o ensejo, usar hombridade, | 700 |
35
era importante agir porque José se calava. | |
Pois o bom amigo acorreu quebrando o receio, | |
ele que afeito à guerra nada mais receava. | |
Inda soava na sombra o temor da voz de Pilatos | |
quando o centurião abriu a boca explicando: | 705 |
“Este homem aqui, senhor, è José do sinédrio! | |
Vem do Calvário testemunhar um crime hediondo | |
pelo que foi lançado à lama o nome de Roma: | |
Foi de fato punido um homem de bem e divino | |
quando lavaste as mãos àquela morte inocente! | 710 |
Quem enxergasse longe a cruz ao ombro sangrando | |
certo veria Jesus, calado enquanto apanhava | |
tantos golpes dum povo desordenado nas ruas! | |
Quem deixou cair sem mão nenhuma de amparo, | |
quem, uma vida quebrada a carregar uma cruz? | 715 |
Era mais pesada que a vida o pedaço de tronco! | |
Certo se apiedou quem viu cair nas vielas | |
este inocente, o trapo despedaçado, o sangrento | |
lauro de espinhos cravado no crânio. Era Jesus! | |
Quem de fato assistiu uma injustiça inaudita | 720 |
36
certo caiu por terra, certo orou por clemência. | |
Quase saltei a tomar daquelas mãos a madeira | |
quando a voz ofegante disse aos desesperados: | |
Filhas de Hierusalém, chorade vossos rebentos! | |
Era de Deus este homem! Inda deitado no tronco, | 725 |
ele pediu ao céu que perdoasse o verdugo! | |
Ele chorou, porque ninguém sabia o que agia. | |
Hoje estarás no céu, promete ao ladrão renovado: | |
Foi distinto o valor de quem perdoau condenados, | |
era um deus este homem, era um homem sem erro. | 730 |
Quem passava longe e não entendia a verdade | |
vinha perto ouvir que triste evento assomava: | |
Era então Barrabás que fugia causando tumulto? | |
Não, senhor, não era a rebelião dos imundos. | |
Era Jesus que carregava uma cruz criminosa, | 735 |
era o grito dos odiosos e o pranto de amigos. | |
Não, senhor, Jesus não merecia esta morte | |
pois Jesus era amado e proclamava a bondade. | |
Ele morreu, mas era nosso o dever da verdade | |
como a resposta a quem indigava: Ele foi morto, | 740 |
37
sim, cravarom à cruz o punho que apenas curava! | |
Eu não quero falar porque palavra è poeira | |
mas poeira passa e fica o que è dor de verdade. | |
Ouve José que vem pedir um favor diminuto: | |
Vem pedir por quem morreu e não pode falar!” | 745 |
Mas Pilatos por um momento baixa a cabeça: | |
Vai ouvindo calado aquele mar de palavras. | |
Inda lembra quando no meio da noite sonhava | |
sua esposa: Pôncio, deixa em paz este homem! | |
Era então o presságio da verdadeira inocência? | 750 |
É difícil demais amar as pessoas singelas, | |
é demais para o mundo a sua vida sincera. | |
Passa pela estrada o destruïdor de pequenos, | |
passa sem medo o malfeitor e dono do mundo. | |
Mas a vida que fala duma esperança serena | 755 |
vive esquecida e castigada no meio do povo. | |
Vem o ladrão carregar o fruto de quem trabalha, | |
foge e ganha o mundo usurpador de tesouros. | |
Mas o doador de alegria que ampara caídos | |
tem de morrer na cruz, sem crime e sem alegria. | 760 |
38
Sim, decerto foi correto o clamor dum distante | |
sonho pedindo: Pôncio, deixa em paz este homem! | |
Era um homem que ensinava uma vida bonita. | |
Era um homem pregando amor, perdão, piedade. | |
Foi um crime nascer um consolador de abatidos? | 765 |
É direito e tesouro dos criminosos somente | |
ver o lírio do campo e ver o céu estrelado? | |
Quando da estrela revelou-se uma triste verdade, | |
ela acordou, e sentindo o gosto do sonho chorou. | |
Pois o fim se aproximava dum homem sem crime, | 770 |
vinha pelas mãos do próprio esposo a certeza! | |
Não, Pilatos: Poupa um homem bom dessa morte! | |
Pensa na mãe que além da dor dum filho perdido | |
tem de saber que chora por um filho inocente. | |
Mas na noite a palavra certa è sonho somente, | 775 |
pois a noite sim esconde o desassossego das mães. | |
Era sua a razão! Uma voz piedosa intervinha | |
pelo amor: Por que deixar de ouvir o seo sonho? | |
Era um sonho bonito! Era melhor do que o mundo! | |
Mas qualquer que seja sonho è melhor e Pilatos | 780 |
39
vendo por sua vez o rosto do mundo suspira: | |
“Homens de Hierusalém, percebo a vossa perfídia | |
como repetis a mentira instigando guerreiros | |
contra a minha vida e desdizendo o governo. | |
Mas ouvi-me atentos pois vos devo a verdade, | 785 |
devo mostrar o erro que corrompeu vossa mente, | |
eu, que apenas quis salvar uma vida inocente. | |
Quantas vezes o povo insistiu, num único dia, | |
quantas vezes enfurecido pediu que morresse? | |
Pondes um bom na cruz e agora chorais o crime? | 790 |
Cedo esquecestes quanto ódio ocupau este paço, | |
como durante horas a turba ordenava o suplício! | |
Certo olvidais a minha relutância dizendo: | |
Este homem è bom, condenais uma vida sem erro. | |
Mas por que me torturais torturando um carente? | 795 |
Sede justos comigo, vós que tapastes o ouvido | |
quando a minha tristeza desafiava assassinos: | |
Que pecado este homem calado fez que mereça | |
morte na cruz, por que punir uma vida serena? | |
Vejo que cedo vos esqueceis da romana clemência | 800 |
40
como da intervenção que usei pedindo prudência. | |
Mesmo a minha esposa se apiedou dum bendito, | |
ela que nunca o viu mas conheceu sua pena. | |
Ela sonhou dizendo: Poupa da cruz este homem! | |
Só precisei de ver a vida que tanto acusavam | 805 |
para entender uma crassa verdade: Nada fizeste! | |
Tu que o mundo inteiro condena: Nada fizeste! | |
Eu, contudo, cujo nome era um nome correto, | |
eu lançai à lama num só momento o meu nome. | |
Ora eo sei que a vida quando despreza um sonho | 810 |
perde pelo arrependimento o resto das noites. | |
Ora eo sei que o coração que falava dos olhos | |
era maior que o sonho e que esta vida no mundo. | |
Ele me olhou nos olhos recusando as palavras | |
pois, centúrio, disseste bem: Palavra è poeira. | 815 |
Que bonita a vida de quem não viu e acredita! | |
Que vergonha è ver um homem daquela verdade | |
como vi de perto e deixar morrer a verdade! | |
Esta vida è tão somente ambição de tesouros! | |
Foi errado, foi desperdício nascer este homem: | 820 |
41
Foi errado destino passar pelo meu caminho | |
quando vendo a luz perguntei: Por que te calaste? | |
Ele não foi, coitado, capaz de erguer sua voz, | |
era sem palavra a tristeza maior do que o sonho. | |
Não havia expressão de denunciar a injustiça | 825 |
nem precisava: Bastava ver, a verdade falava. | |
Pois eo vi, e como um cego que a luz generosa | |
duma aurora divina cura, entendi num momento: | |
És o sacrifício do sol num mundo de cegos! | |
Pois è esta perante nós a balança das coisas: | 830 |
Ele abriu meos olhos, mas eu fechai os seus. | |
Ele estendeu as mãos mas eu lavai minhas mãos. | |
Antes da hora eo fiz o sol se pôr, anoitece: | |
Tarde lamenta o mal quem cedo mal se lamenta! | |
Mas a vida segue, è esta, anciãos, a verdade: | 835 |
Que quereis de mim que despedacei uma estrela? | |
Não è justo erguerdes esta voz que me acaba | |
quando esperei por vós perante a massa agitada. | |
Como è triste e desastrosa esta vossa jornada: | |
Pôs-se o sol, a verdade, o sonho desvaneceu-se. | 840 |
42
Ide embora! No tempo o que se fez està feito.” | |
Houve surpresa e pesar no centurião que falara | |
como nos outros pela espera dum longo silêncio. | |
Era a coragem que parecia faltar a quem teme, | |
mas José de Arimateia pondera e responde: | 845 |
“Homem de Roma, concede ao ancião derribado | |
pela sombra um derradeiro favor que te peço. | |
Quero descer da cruz Jesus que morreu inocente! | |
Quero carregar e subir uma escada bondosa: | |
Eu tirarei dum rosto amado a coroa de espinhos, | 850 |
eu tomarei nas minhas mãos os pregos e o corpo. | |
Quando Jesus repousar no meu abraço tardio, | |
quero deitar a carne castigada entre as flores. | |
Trago comigo o tecido apagador da vergonha, | |
sei de muitas mãos que já preparam perfumes. | 855 |
Nunca nestas terras se viu tamanha clemência | |
nem o homem rude ouviu sem desassossego: | |
Não duvido da tua angústia, tremendo remorso. | |
Sei que muito fizeres para salvar meo amigo: | |
Mas ainda podes, Pilatos, salvar meo amigo, | 860 |
43
dar amor senão aos vivos ao menos aos mortos. | |
Antes de lamentares a negligência dos sonhos, | |
deixa-me remover da cruz o crime que choras. | |
Pois Jesus se tinha culpa, a culpa està paga, | |
mas se foi inocente o crime è ficar onde está.” | 865 |
Pôncio Pilatos interrompe, confuso, agitado: | |
“Para, audaz, a lei de Roma proíbe o que pedes, | |
antes, quem morreu na cruz na cruz apodreça! | |
Olha bem onde estás e vê melhor a quem falas! | |
Sou juiz duma lei que paira acima de todos, | 870 |
cumpro não o que quero mas somente o que devo. | |
Pois eo dei a escolha, avisei: Estais enganados! | |
Mas o povo escolheu, cumpri, lavei minhas mãos! | |
Não me arroguei o nome de salvador deste mundo, | |
posso sim punir-vos por desacato ao mandado. | 875 |
Eu, se pudesse, buscava a derrocada do tempo | |
como lançava à cruz um povo inteiro de estultos. | |
Eu, se soubesse que è isto a vida em nome de Roma, | |
certo seria meu o cadáver que pende no tronco. | |
Como a vida engana, como a vida è desgosto! | 880 |
44
Não aguardeis porém que minhas mãos vos assolem | |
como em dira sevícia nunca vista no inferno! | |
Nada me custa de fato crucificar os milhares: | |
Já que morreu Jesus, de que me vale esse resto? | |
Morra consigo a raça desgraçada dos homens! | 885 |
Quem morreu na cruz, ancião, na cruz apodreça!” | |
Mas José se confirma perante Pôncio Pilatos: | |
“Lei è lei, senhor, mas uma coisa è verdade: | |
Esta minha gente de hebreus merece respeito. | |
Não confundas este povo com turba agitada, | 890 |
pois o povo hebreu também sou eu que te pede: | |
Quero descer meo amigo daquela cruz indevida | |
pois morreu amando Israel, Israel não se esquece. | |
Não esqueço também que sou José do sinédrio, | |
vida que vivo pelo amor de Israel e que insisto: | 895 |
Quero prestar a Jesus um derradeiro seviço, | |
eu, que ouvi demais ultrajes contra meo povo, | |
eu, que represento o sinédrio pai desta terra. | |
Lei meo povo tem também, escuta o meo povo: | |
Não apodreça na cruz um criminoso sem crime! | 900 |
45
Lei de Israel è a lei da consciência que sabes | |
pois falou por um sonho portador da verdade – | |
quando uma voz tamanha ordena ao juiz piedade | |
como abafar o peito em nome dum mero tumulto? | |
Como ouvir da voz dos atordoados «condena!» | 905 |
quando a voz do coração implorava «liberta!»? | |
Pois, Romano, agiste mal, condenaste uma gente | |
quando chamaste «povo hebreu» a voz da injustiça. | |
Não te defendas! Tu permitiste, tu condenaste! | |
Mas será pela lei de Roma que deste essa ordem? | 910 |
Quando a turba de paus e pedra e palavras de ódio | |
pede a morte dum desarmado, calado e ferido, | |
eles passam impunes e o outro morre na cruz? | |
Mas se a lei de Roma è isto e isto è justiça, | |
nem meo povo nem Roma pede lei nem justiça. | 915 |
Já bastava o sonho que não se escreve direito. | |
Ele calou, porquanto a vida que odeia não ouve, | |
era em vão falar se o próprio olhar atestava: | |
Ele baixou a cabeça ensanguentada e cravado | |
pelos espinhos um piedoso pediu piedade. | 920 |
46
Não tiveste, Pilatos, mas eu terei que te peço: | |
Quero mostrar à cruz o coração de meo povo!” | |
Ó Israel, confia em quem te ajuda e te abriga! | |
Lá se afirmava frente ao sólio de Roma coragem | |
pela boca dum homem defensor de ofendidos, | 925 |
pois Jesus Nazareno apiedou-se de todos | |
mas ninguém se apiedou de Jesus Nazareno. | |
Contra uma sina ingrata alevantou seo escudo | |
forte José de Arimateia e Pilatos calou-se. | |
Não permitiu, fiel de Davi, a cruz do inocente, | 930 |
não cedeu, Israel venceu a dor de seo povo. | |
Mas Pilatos concatenando no escuro se aflige: | |
Eu busquei, pensou, quem defendesse essa vida, | |
pela turba passava os olhos buscando meo sonho | |
mas o sonho era meu e não passava na turba. | 935 |
Era por mim que aquele sonho esperava nascer, | |
como o sol que não nasce por vontade da turba | |
mas è filho da noite encubadora dos sonhos. | |
Era eu esta noite, em mim a verdade encubava | |
pelas estrelas o sonho redentor desta turba. | 940 |
47
Pois percebo tarde o sacrifício da excelsa | |
strela neste mundo sem lei que è lei de verdade. – | |
Ele assim pensou, e como assim meditasse | |
disse: “Podem tirar da cruz aquele inocente, | |
podem tirar se quiserem.” E balançando a cabeça | 945 |
como um navio distante flutuando nas ondas, | |
Pôncio Pilatos fita a sombra em busca incerta: | |
“Podem descer daquela cruz Jesus Nazareno!” | |
Fala reticente, acena e mostra o Calvário | |
pelo meneio cansado e desgostoso dos dedos. | 950 |
Nada resta a dizer e nem por isto o silêncio | |
cura angústia nem o amor da inocência perdida. | |
Mas Pilatos intenta um derradeiro discurso: | |
Abre a boca, vai buscando alguma palavra, | |
vai tentando transcender um sopro vazio. | 955 |
É em vão, desiste quando a destra que treme | |
toca o peito como se fundo uma gruta doesse. | |
Põe a cabeça entre as mãos e desaparece do adro, | |
entra embora calado pela sombra que esquece! | |
Mas escurece e José de Arimateia se apressa. | 960 |
Paixões | Folha IV |
Era quase de noite e como as pedras rolava | |
pelas vielas ensanguentadas ora a lembrança. | |
Mas José de Arimateia recorda um pedido: | |
Inda cumpria buscar na vila mistura de óleos. | |
Indo pela sombra parava estranhos querendo: | 965 |
“Quem de vós me vende o perfume da boa morte? | |
Meu amigo morreu, matarom Jesus meo amigo!” | |
Quantos ouviam porém passavam reto e calados. | |
Era de festa o dia e contudo a porta das tendas | |
não se abria quando de fora uma voz conclamava: | 970 |
“Quero comprar o perfume maior da boa morte, | |
quero comprar, eo pago, quero ungir meo amigo!” | |
Nem palavras do hebreu, do centurião e soldados, | |
nem os lamentos comoverom o peito dos surdos. | |
“Meu Jesus que morreu e cuja vida era essência | 975 |
não merece nem perfume nem tenda que o venda?” | |
Pois no silêncio forom-se dando conta das coisas | |
como se um raio lhes revelasse a verdade do escuro: | |
Desde que o éden viu correr a primeira das lágrimas | |
foi lançada a nossa nudez ao caos do abandono. | 980 |
49
Desde que a mão bateu por vez primeira o confrade | |
fez-se dona então do prisco império das coisas. | |
Foi além queimar as casas e a lida dos mansos, | |
foi tomando de várias armas e agitos ferozes. | |
Desde então um desassossego assoma existências | 985 |
como um mal que domina o mundo, querela incurável. | |
Muitos forom buscando a causa dum longo infortúnio | |
crendo que a tanta dor insana seguissem ensinos. | |
Mas a vida acusa em nós uma triste verdade: | |
Ódio, guerra e morte, inimizade e desprezo | 990 |
são as maiores artes que nossa história criou. | |
Inda ressoa a voz magistral: “Caim, que fizeste?” | |
Inda verbera o suplício de Abel desumana memória | |
como entristece aos anjos a derrocada de Adão. | |
Era tão belo o sereno jardim que outrora abrigava | 995 |
nossas vidas, era formosa a flor da esperança. | |
Quanto pranto, em qual desgracioso suspiro | |
vemos, Deus, que paraíso e fortuna deixaumos. | |
Ora o perdimento de nossos passos se arrasta | |
pelo mundo testemunhado uma raça danada. | 1000 |
50
Ora a felicidade cabe somente nos sonhos | |
onde a sombra das árvores foi serena certeza. | |
Voz que nos fez deitar em verdes pastos outroras, | |
ai, por qual desventurosa ilusão te trocaumos. | |
Era nosso o caminho, a verdade, a vida e perdemos | 1005 |
nossa alegria pelos vãos duma triste ambição. | |
Somos contrita gente e nosso pranto è tardio: | |
Abre-te, inferno, devora o mal de nós condenados! | |
Mas espera! Antes que venhas ouve o pequeno | |
canto do amor buscando essência pelas estradas. | 1010 |
Passa na sombra deixando a cor duma imagem bondosa, | |
luz que consola um pouco o peso de nossos olhos: | |
É verdade que amigos do bom Jesus prosseguiam | |
pela noite como o brilho na estrela d’aurora? | |
É verdade que impunham àquela sombra da morte | 1015 |
pelos vãos a felicidade d’árvore da vida? | |
Há de fato um campo longe e sagrado recanto | |
cujos pomos son puros e já maiores que a fome. | |
Quando ali se reencontram as almas e os anjos | |
finda a dor e a flor exala um eterno esplendor. | 1020 |
51
Passa pelo prado um sopro santo e preenche | |
como olor da verdade as vidas, perene união. | |
Nem por ali se ouviu clamor saudoso de mundo! | |
Mas è mundo o que somos e caminhamos no mundo | |
longe da trilha cujo fim è maior do que o mundo. | 1025 |
É caminho estreito e por entre veigas estreitas | |
ora andavam amigos dum homem atado à madeira. | |
Somos mundo e Jesus, sentindo o gosto do mundo, | |
ele também buscara na noite um singelo jardim. | |
Ele pousara os olhos na sombra duma oliveira | 1030 |
como quem nela visse a mãe de todas as árvores. | |
Ele chorou, e rogando a Deus redentora vontade | |
foi lançado ao tronco que carregou pelas ruas. | |
Pois morreu, abraçado às árvores filhas da vida, | |
mães da verdadeira amizade e saudade do éden. | 1035 |
Mas também os olhos sofrerom no dia da sombra: | |
Ora José de Arimateia buscava apressado | |
junto a seus amigos amor dum ser condenado. | |
Inda exalavam as casas um cheiro de pães | |
ora mesclado aos sentimentos acres da rua. | 1040 |
52
Viu-se um centurião que desafiando feridas | |
junto a soldados acompanhava distinta jornada. | |
Longe ressoavam prantos, mas quem escutava? | |
Para o mundo, mundo è mero ocaso e deserto. | |
Quem lembrau nas mesmas ruas os ramos d’árvore, | 1045 |
vestes de seda, as palmas estendidas em salvas | |
quando dias antes Jesus adentrara a cidade? | |
Nem uma doce fragrância agora ali se encontrava | |
nem unguento ou mercador de aromas amigo. | |
Não havia remédio ao curador de doenças? | 1050 |
Era em vão bater de porta em porta esperando | |
certo milagre, em vão reter na rua passantes? | |
É soer de quem quer que passe passar apressado | |
nem mulheres carregando alabastros paravam. | |
Não vislumbrarom em parte alguma fonte de aromas | 1055 |
nem a mão que lhes indicasse o rumo da ajuda. | |
Longe estava a mulher de Betânia cuja amizade | |
rara cobrira o Nazareno de cara fragrância. | |
Dói nas nossas almas a indiferença dos homens | |
como è duro o tempo a quem mendiga minutos. | 1060 |
53
Mas José conselheiro pensa e para e suspira: | |
Bate o cajado rudemente ao chão poeirento | |
como se fosse quase o cetro dum rei poderoso. | |
Vai baixando seos olhos e apalpando paredes: | |
Mãos por sobre a poeira, ele derrama na areia | 1065 |
lágrimas, lágrimas, lágrimas entregando a vida. | |
“Não merece nem perfume nem tenda que o venda | |
meu Jesus que morreu e cuja vida era essência?” | |
Como um náufrago tateando as ondas em triste | |
busca de tábua, ora José flutuava em seo pranto. | 1070 |
Para com isto, José, levanta do chão tua vida | |
pois è forte a promessa do bom pastor e guarida. | |
Inda ressoa por entre montes e às margens do lago: | |
– Eu salverei, filhinhos, eu salvarei as ovelhas! | |
Bom pastor è quem sacrifica a vida por elas. – | 1075 |
Ó que distinto o dia em que dois amigos se viram, | |
servo e senhor, e se amarom como iguais em amor. | |
Foi alegre o dia e feliz pescador o que ouvindo | |
«segue-me» abandonou do mundo o chão e seguiu. | |
Segue então, José, e deixa em paz essas pedras: | 1080 |
54
Segue e verás que não em vão convenceste Pilatos! | |
Mas José, que concatenava confuso, repete: | |
“Quero comprar o perfume maior da boa morte, | |
quero comprar, eo pago, quero ungir meo amigo!” | |
Foi o centúrio que se abeirando dum diro naufrágio | 1085 |
como bandeira de salvação estendeu-lhe seo braço. | |
Duas almas se olhando se revelarom queridas, | |
duas mãos se enlaçarom testemunhando vitória. | |
Deus se apieda sim de quem padece em seo pranto: | |
Pois, filhinhos, apareceu dos ermos um homem | 1090 |
como enviado talvez duma existência melhor. | |
Vinha lento e carregava uma leva de vasos | |
pelos braços e pelas costas, puxando cansado. | |
Mas ao ver José que se amparava ao centúrio, | |
ele larga o que traz e inclui a mão ao socorro. | 1095 |
Como o seo gesto repentino atraísse olhares, | |
ele então suspira e fraquejante pergunta: | |
“Sabe algum de vós, hebreus da santa cidade, | |
onde encontro a cruz que abateu Jesus Nazareno?” | |
“Queres mesmo saber?” o centurião dissuade. | 1100 |
55
“Tanto luto adiante agravará teos suspiros!” | |
“Dizes bem”, responde, “pois que não imaginas | |
donde venho e quanto já perdi pela estrada: | |
Quero ver, Romano, a cruz de Jesus Nazareno!” | |
“És Nicodemos!” reconhece o coro dos velhos. | 1105 |
“Era de festa o dia”, vai narrando episódios, | |
“eu de longe encomendara prenda aos amigos, | |
pronta estava a mesa, o pão, reunida a família. | |
Era de festa o dia! De toda parte arribavam | |
caros convidados, era manhã de alegria. | 1110 |
Ai anciãos! Em este mundo è breve alegria. | |
Quando veio a nova da cruz em meio a rumores, | |
fora melhor se um relampo arrebentasse meo peito, | |
meu, que deixei de pronto para trás o que havia. | |
Pois mandei buscar a quadriga! Tomei às pressas | 1115 |
prenda, prata, pão, tecido, o quanto coubesse | |
fiz caber. E desdenhando os apelos da esposa | |
vim varando, trazendo amigos e medo no peito. | |
Sob as minhas rédeas corriam quatro agitados, | |
era de dar inveja ao vento a veloz cavalgada. | 1120 |
56
Mas hebreus, è verdade, a mão dos homens è fraca! | |
Quando passaumos a ponte, arrebentou-se a quadriga | |
pois a ponte era podre, enganador de esperança. | |
Nem me lembro de quanto tempo ruí derribado, | |
ai, reconhecendo o fim duma triste jornada, | 1125 |
pelo chão as prendas, cavalos soltos ao vento. | |
Era tudo perdido e meo corpo mal que se erguia, | |
eu olhava o céu pedindo força, eo clamava! | |
Cada um apanhava algum punhado de coisas, | |
coisa que fosse, resgatando a ruína da areia. | 1130 |
Era duro apressar o passo e cambaleaumos. | |
Foi então que entendi de que me valem amigos: | |
Quando surgiu no horizonte o vilarejo primeiro, | |
foi embora o primeiro amigo, dando por terra | |
todo o peso. Era um homem de muitas jornadas | 1135 |
mas perdoo e não me importo, restava um outro. | |
Fomos cruzando o calor dum miserável deserto | |
junto a leões e cobras e tempestades de areia. | |
Quando surgiu no horizonte o vilarejo segundo, | |
foi embora de mim o segundo e nenhum me restou. | 1140 |
57
Foi aí que atinei, hebreus, de que me valessem! | |
Nem por isto titubeei, que se nada me sobra | |
trago ao ombro o peso da própria vida e prossigo. | |
Bem sabia quão distante eo me achava do fim – | |
mal porém me importava perecer pela areia, | 1145 |
mal importava tornar ao pó do qual me tornei. | |
Cada passo testemunhava o dever e a vergonha: | |
Meu amigo expirava na cruz e de longe eo passava, | |
mal prosseguia. Como vergava o cor fracassado! | |
Quantas vezes sozinho quis voltar o caminho, | 1150 |
quantas vezes reergui minhas mãos ao deserto! | |
Mas è preciso mesmo na morte certa esperança. | |
É preciso que a vida seja digna dos passos | |
para que cada passo seja maior do que a vida. | |
Foi assim, hebreus, que aqui cheguei, foi assim! | 1155 |
Onde encontro a cruz que abateu Jesus Nazareno? | |
Sei que è tarde, sei, mas quero ver meo amigo. | |
Sei que è pouco, sei, mas è de longe que eo trouxe | |
minha vida e pão, a prenda, prata e as essências: | |
Eu lhe trouxe o óleo dos aloés e o perfume. | 1160 |
58
Onde encontro a cruz que abateu Jesus Nazareno? | |
Ora que Deus e o deserto me permitirom chegar, | |
ora eo quero levar ao grande rei renegado | |
meu pequeno tributo e destituto legado.” | |
Mas José se apieda, estende a mão, reconforta, | 1165 |
ergue aos céus um novo rosto inundado de alívio. | |
Vão então atinando a quantidade de prendas: | |
Era o milagre interrompendo os olhos e a boca, | |
era o sacrifício do amor e o fim do destino. | |
Cada qual entendeu naquele instante a verdade: | 1170 |
Quando o passo è firme a força vence o deserto. | |
“És Nicodemos!” o nome inesquecível soou | |
pelo coro dos fortes, professor da vitória. | |
“Donde vieste?” a voz do centurião se confirma. | |
“Mostra o deserto, a ponte, quero ver a estrada, | 1175 |
quero saber o rumo em que o vento curva-se à vida! | |
Mas soldados, ora que o homem mostra o caminho | |
vamos seguir e ver se achamos mais provimento! | |
Quanto a ti, guerreiro e verdadeiro que és, | |
ergue teo rosto como compete ao homem que és! | 1180 |
59
Ora que o passo atravessou o deserto e venceste, | |
cumpre vencer a cruz que abateu Jesus Nazareno. | |
Vem, Nicodemos, mesclemos nosso viço guerreiro: | |
Vamos descer daquela cruz o corpo de Cristo!” |
Nuvens que recobris a solidão das estrelas, | 1185 |
vosso ventre onusto è carregado de morte. | |
Fúria destruïdora, os condenados da sombra | |
tremem no raio quando o trom castiga pequenos, | |
quando o peito firme se torna escravo do medo. | |
Quando velocidades colidem umas às outras | 1190 |
ruge o trovão – o inferno para as almas inermes, | |
pouco auxílio fuga e quadriga no dia do abismo: | |
Como se fosse fraco na estrada o forte tropeça | |
frente à caravana escura e tambor da verdade. | |
Quantos pobres ais, tempestade, forom tragados, | 1195 |
vida levada ao vento em tenebrosa tormenta. | |
Vara a morte impune a florescência da terra, | |
sorve extrema pedras e vida, invicta inimiga. | |
Quanto amor em fogo e cabais impérios delidos! | |
Pobre a mão que houvere feito casa sem base, | 1200 |
60
casa sem fundo – vem do rio incerto a corrente | |
contra parede e teto que a mão ergueve apressada, | |
desce a procela e logo aquela casa desaba – | |
falsa esperança e ruína de quem pedira refúgio. | |
Mas o mar se esqueceu de naufragados espíritos! | 1205 |
Céus que amais o fraco! O mundo è tão generoso, | |
tão formosos os seres: Por que nos traga o dilúvio, | |
morbo, moções de terra e fogo e medo sem nome? | |
Lida vagante, por que, se tão falidos estamos, | |
tanto abalo se abate em toda parte implacável? | 1210 |
Quando a treva cobriu o céu da santa cidade, | |
viu-se apenas a bruma rubente sobre a muralha. | |
Não bastava mais a luz duma vela a si mesma, | |
não existia lanterna contra o sopro raivoso. | |
Era perdida a palma da própria mão estendida, | 1215 |
era abafado pelas brumas o brado da angústia. | |
Vinham as fúrias misturando os ares e areia | |
pela porta e janela aberta e pelos buracos. | |
Quem corria na rua surda e muda e sem rumo | |
mal visava o fim da constância ferindo edifícios, | 1220 |
61
gotas martelando golpe às faces e às rochas. | |
Como um pesado alabastro derramado de súbito | |
chove a tormenta e faz fugaz o abrigo dum teto. | |
Deixa cair num lance apenas o fel das estrelas, | |
onda varrendo além os vasos pelas esquinas. | 1225 |
Era em vão a mão pregar-se em viga vultosa, | |
pau que resistisse o fluxo, confusa enxurrada. | |
Quando os dedos pareciam pegar-se ao socorro, | |
vento assomava e lançava de ribas corpos e almas. | |
Quem porém vencia o sopro correndo por portas | 1230 |
era detido pelos trovões, engolidos os passos. | |
Medo, fera cravando as garras no peito imperava. | |
Viu-se guerreiro naquele instante perder o domínio | |
reto de membros, passo desnorteado e de susto. | |
Grito agitado mesclava os uivos e as lágrimas | 1235 |
quando o rio impossível levava embora iludidos. | |
Quanta vez os pés de Jóse se perderom por ruas. | |
Ele palpava em delírio pelas pedras submersas | |
como na dor da visão de imensidões e desertos. | |
Vendo o conselheiro cons homens, não se sabia | 1240 |
62
como passavam quase intactos tanto perigo: | |
Quis o destino os colocar à toa nos longos | |
ermos vãos, o lamento num sussurrar inaudível. | |
Quis a sorte que mãos e pés lutassem debalde | |
contra a violência dos elementos inteiros. | 1245 |
Era ainda possível pedir a Deus clemência? | |
Iam andando em desesperações e caminhos, | |
pernas bambas perante Hierusalém que tremia: | |
Pelo chão, rolarom pedregulhos do Templo | |
como se boca abissal sorvesse as vidas e a vila. | 1250 |
Quanta ruína, nuvens, deixades à vista num dia! | |
Não bastavam porém constelações derribadas, | |
pois rumores piores corriam perto das cruzes | |
onde o triste espera quem não sabe se chega. | |
Inda aquela mesma gente do monte ansiava, | 1255 |
medo ao rosto, corpos esparramados no barro: | |
Era o vislumbro do nada confundido coa spera. | |
Vez e outra uma voz enlouquecida entoava | |
pelos ares clamor esperando o eco do céu, | |
mas apenas o som dos dados soava na tábua, | 1260 |
63
onde soldados ébrios prosseguiam partida. | |
Vendo ao longe pairar a vermelhante névoa, | |
muita intensa voz e mar se afogau na garganta, | |
muitos agoniados olhares forom trocados | |
pelo derredor devorador de esperanças. | 1265 |
Era prudente acreditar que José se salvara | |
quando a cidade parecia imersa na treva? | |
Pode o perfume dos aloés vencer o infinito? | |
Vinha o vento qual se vento lhes fosse resposta, | |
vinha o trovão e os alicerces e a terra tremiam. | 1270 |
Não havia mais diferença entre vidas e morte | |
nem pareceu sensato correr, à beira do abismo, | |
para salvar além da verdade a casa e pertences | |
ante o trom, prenúncio do irrevogável juízo. | |
Mas as procelas pouco impressionavam Maria, | 1275 |
pois depusera toda a fé no amor de seo filho | |
como a casa que foi erguida à base da penha: | |
Quando a tempestade desceu do céu violenta, | |
quando o rio debordau desbaratando alicerces | |
teve-se firme aquela casa que não perecesse – | 1280 |
64
pois a base sobre a qual se afirmaram paredes | |
era uma cruz maior que a vida cravada no peito. | |
Tantas vezes, mãe, teo filho previra o martírio, | |
tantas vozes quiseram demovê-lo da morte! | |
Ele enfrentou, porém, em nome de Deus a mentira, | 1285 |
para que mesmo na morte fosse maior a verdade. | |
Ele cumpriu, mulher, o dever, a promessa do justo. | |
Já não cabe no chão o tamanho das lágrimas tuas: | |
Deixa o plano de Deus te guiar e verás o consolo! | |
Mas os soldados não entendiam o gesto do justo. | 1290 |
Ante o cataclismo da noite assomavam tremendos | |
trons e receios, e os militares diziam à massa: | |
“Ide embora! Quem esperais morreu na cidade, | |
foi tragado no abismo e soterrado de pedras! | |
Donde pois virá José vos trazer assitência?” | 1295 |
Isto dito, intimidavam o ardor de caídos. | |
Perto daquela cruz, amedrontadas súplicas | |
forom depostas aos pés de impacientes lanceiros. | |
Eles, contudo, num misto de pena e de fúria, | |
inda miravam uns aos outros perante a demora, | 1300 |
65
pois além de José o centurião se esperava: | |
“Povo de hebreus: O terremoto os levou embora. | |
Não consentiremos espera sem fim de quimeras!” | |
Ira ditava às bocas palavra. Outros lançavam | |
junto às ameaças mais e maiores assédios: | 1305 |
“Este aí o reino do réu, a cidade em tormenta?” | |
Não lhes contentava mais o silêncio da massa: | |
“Como crer que velhos acostados em varas | |
inda resisterem tremores no imo do vento | |
quando fortes se viu cair à beira da sombra? | 1310 |
Sodes insanos? Levantade-vos ora da terra!” | |
Nuvens traziam a névoa renovando temores, | |
dando força bruta às injunções de romanos. | |
Ora, a silhueta das casas perdeu-se de vista | |
nem se sabia se ainda estava de pé a cidade: | 1315 |
“Este homem foi um enviado do inferno, | |
trouxe ao orbe destruição, revolta dos deuses. | |
Já se vê que a morte foi punição merecida!” | |
Iam flutuando juntos num mar de impropérios, | |
homens mostrando a desarmados a fome da lança, | 1320 |
66
viva ameaça. Tomavam pelo braço e bradavam | |
quando Madalena, criando coragem, orau-lhes: | |
“Homens de luta, usai melhor a força das armas! | |
Tende amor de quem somente espera em silêncio | |
pelo pior. Por dó de nós esperade um momento | 1325 |
antes que a noite nos dê melhor motivo de morte. | |
Como largar à cruz um homem cuja vivência | |
foi em tudo bonita e mais bonita que a nossa? | |
É favor pequeno, Romanos, o dom que pedimos!” | |
Inda se ajoelhava enquanto os homens partiam | 1330 |
rumo às muralhas, irados e procurando reforço. | |
Veio porém de encontro, ai, misérias sem nome, | |
larga marcha morosa de velhos costados em varas. | |
Vinham tateando a sombra e cobertos de gotas, | |
mãos vazias de abandonadas ruínas andantes. | 1335 |
Súbito a turba divisando aspectos cercou-os | |
quando algum dos velhos avançou-se falando, | |
sopro ofegante. A massa ouviu a primeira palavra: | |
“Filhos, ainda estamos vivos? Corre a jornada | |
mas o terremoto interrompe a fraqueza dos pés.” | 1340 |
67
Neste instante, a voz se perdeu no pranto da turba | |
como os olhos não divisassem José socorrido, | |
ele que pôs ao ombro a salvação de Jesus! | |
Quando porém multiplicarom vozes e súplicas | |
entre soluços desgostosos da vida e do mundo, | 1345 |
forom ouvindo o destino dum conselheiro sereno: | |
“Mas o perdeumos de vista na tempestade, romeiros, | |
quando no escuro, vindo os outros velhos na rua, | |
veio abaixo uma casa cobri-lo, ruína de vidas. | |
Eram pedras e corpos arremessados a esmo! | 1350 |
Quantos amigos ali notando a José derribado, | |
presa de escombros, não lançarom mão de resgate? | |
Antes porém que separassem o peso das pedras, | |
sólido mar, a moribunda voz ordenava-nos: | |
– Ide embora ao Calvário resgatar meo amigo! | 1355 |
Ide salvar a vida vossa que a minha è perdida! | |
Não exponhais a vida por piedade aos caídos | |
pois se ficardes morreremos todos por nada! – | |
Nós correumos atordoados buscando caminho, | |
olhos e vãos alagados de todo líquido visto. | 1360 |
68
Não prosseguirei por amor de vós o relato: | |
Mal deixaumos José e caiu abaixo a muralha | |
como a cavar na rua a tumba indevida do justo. | |
Fomos embora a sós passando cegos o inferno, | |
fomos nos esgueirando por esperanças e beiras. | 1365 |
Era tarde, e no entanto uma flama amiga ansiava | |
ver um milagre: José socorrido e no meio de vós. | |
Mas José, se bem percebo, aqui não se encontra! | |
Vamos então, filhinhos, desinventar as palavras | |
ante a voz da verdade: Falimos, meninos, falimos.” | 1370 |
Era a noite a reverberar no fundo das almas. |
Passa de nós, tormenta, deixa ao homem verdade | |
quando a ira do cataclismo cansar-se das pedras. | |
Alto e de braços abertos o corpo pende no lenho, | |
mas no dia da cruz a coragem de amigos se perde | 1375 |
frente ao medo da morte e da lei, tirana de vidas. | |
Ó José, por onde cambalearom teos passos? | |
Tira dos ombros por piedade o peso da sorte, | |
vem salvar os de quem somente ès tu esperança, | |
vida e coragem, pois a vida è breve e coragem | 1380 |
69
vive em poucos: Poucos ousavem ver a Pilatos | |
como ousaste desdenhando a mão de impostores. | |
Vem, porquanto anuiu-se a ti somente o serviço | |
bom ao salvador do mundo que o mundo perdeu. | |
Salva, José, Jesus, e apaga da dor de pequenos | 1385 |
este crime de toda gente e de todos os tempos! | |
Prova a quem se desespera o poder da bravura | |
como se assenta no coração fiel de teo povo: | |
Onde um homem amigo fore hebreu de verdade | |
certo terá paixão de quem morreu sem maldade. | 1390 |
Ó José, que mar de ruína e que abismo te abrigam! | |
Deus dos céus, Jesus foi condenado ao suplício! | |
Que serviço infeliz e destino derom às árvores | |
quando entrarom pela mata caçando madeira, | |
quando pregarom ao tronco generoso que alçava | 1395 |
livre a sua vida a carne dum pobre inocente. | |
Lá pairavam unidos no prego dois condenados: | |
Como se não bastasse a dor à triste das árvores | |
inda lhe fora imposto morrer abraçada a Jesus, | |
inda beber o sangue e suor dum santo consorte. | 1400 |
70
Tem paixão, meo Deus, do sacrifício das folhas! | |
São coitados e verdejantes frascos de fresca, | |
pura presença e perfume: Madalena esperava | |
pelo aroma do alívio junto à gente prostrada. | |
Tinham sede d’água da vida à sombra das árvores, | 1405 |
tinham medo. Ah, se a vida fosse uma nuvem | |
plena de pó desaperecendo pelas distâncias, | |
como um sonho vivido e findo à luz da aurora: | |
Fosse a noite o termo da desvairada esperança! | |
Ora soubésseis, nuvens, como os homens invejam | 1410 |
vosso peso que tudo desfaz num único lance. | |
Sonhos ermos, vireis tomar da vida a vigília, | |
dar alento ao sacrifício vergado dos dias? | |
Ó ilusões implacáveis! Entre as cenas fantasmas | |
fora como se o cole exalasse uma fina fragrância, | 1415 |
óleo purificando entranhas do sopro e das almas. | |
Mas o olor da verdade desperta sonhos e os olhos | |
ora abertos virom a vinda invisível da glória! | |
Tortas costas, ajoujadas por carga indescrita, | |
vinham carregando acima abundância de vasos. | 1420 |
71
Pois se alevantarom da terra perplexos romeiros | |
quando a turba afligida ouviu, da voz de soldados, | |
eia, que se avançava certo da sombra um centúrio, | |
ombro curvado de alabastros, cercado de braços! | |
Antes porém que a voz se faça, irrompe da massa | 1425 |
brado ao ver, aliados, Nicodemos e os velhos, | |
bocas tolhendo e doando clamores umas às outras, | |
mesclas de narrações agitadas na dor e no alívio. | |
Mas agora que Madalena vislumbra as misturas, | |
ora lhe falta José que descendesse do extremo | 1430 |
lenho o corpo. Era em vão que arribavam essências? | |
Não, milagre arribava também! Surgia da sombra | |
vulto em farpas, arfando cansado e firme contudo. | |
Era mendigo de qual deserto que ali demandava? | |
Era José de Arimateia, filhos, que entrava! | 1435 |
Vinha chegando calmo e sem desejo de alarde, | |
passo lento e caminhando livre e sem medo. | |
Era José de Arimateia que enfim demandava | |
mais uma vez o Calvário falando a si cabisbaixo: | |
“Deus dos céus, foi este o homem que apenas amou?” | 1440 |
72
Não, Israel, a truculência do tempo e das pedras | |
não destrói a promessa do probo! Houve descrença | |
quando a tempestade assoláve uma brava jornada, | |
mas José não traiu a sua verdade e palavra. | |
Viu-se bem o trapo que ali restava dum velho | 1445 |
mas o velho mal pensava no susto da gente: | |
Ia pondo penoso à beira da cruz uma escada! | |
Antes porém que suba, sobe a voz do centúrio, | |
como dissesse pela massa o seo caso distinto: | |
“Houve sim tremor e tormenta na minha jornada | 1450 |
quando José foi soterrado no meio de escombros, | |
quando o vi fechando os olhos presa da morte. | |
Mas no mesmo instante declarei minha guerra | |
contra o destino e socorri do chão quem merece. | |
Pois ainda que a morte fosse o preço da empresa | 1455 |
foi melhor morrer por dever que viver em desonra. | |
Eu não quis que ali findasse a grandeza dum justo | |
mas usei do ensejo que tanto tempo eo buscava: | |
Vem, José, mostrar ao povo a beleza da vida!” | |
Pois assim explicou, cravando firme na terra | 1460 |
73
sua espada e desdenhando as garras da morte. | |
Ele estendera as mãos a José na beira da treva | |
pois merece morte melhor um tutor de caídos. | |
Nada disto ocupava José: Subindo as escadas | |
tira da cruz um lastimoso prego e nos ombros | 1465 |
ora abraça um braço morto e pesado de mundo. | |
Mãos em sangue, desprende o braço segundo, | |
desce pela escada cuidadoso e se escora: | |
Ele tirou os pregos abraçando o cadáver! | |
Mas em baixo mãos de mais amigos aguardam | 1470 |
vendo e tocando enfim Jesus separado da cruz. | |
Era consolo à carne como à pobre das árvores: | |
Ela manteve-se firme e digna dum triste dever. | |
Foi somente então que José, lembrando das horas | |
antes e como fora salvo e levado nos ombros | 1475 |
pelo centúrio, depôs o corpo de Cristo e plangeu: | |
“Leva contigo, justo, o meu pedaço de pano, | |
lembra de nós acima perante o trono de Deus.” | |
Ele então estende ao chão delicado tecido | |
sobre o qual se deita enfim o resto dum homem. | 1480 |
74
Mas as mãos singelas e calejadas preparam | |
ante a vida esfacelada um aroma bondoso, | |
dedos produzindo a transcendência do bálsamo. | |
Pois cobrirom de líquido alívio muitas feridas | |
quando os olores do campo ultrapassarom a morte. | 1485 |
Eu, que contemplava perto o que ali se passava, | |
eu me ajoelhei perante a coragem dos homens. | |
Eu baixei meo rosto e derramei o meo pranto | |
pelo chão que sustenta o lírio do campo. | |
Foi bonito o dia consolador de meos olhos | 1490 |
quando Jesus passou pelo rumo e pedi piedade. | |
Muitas dores e lágrimas invadirom meos olhos | |
desde a primeira vez que vi a cor deste mundo. | |
Mas agora que me ajoelho perante a verdade, | |
vejo como foi generoso Jesus Nazareno: | 1495 |
Ele devolveu meos olhos no meio da estrada | |
para que eo visse o gesto do amor verdadeiro. | |
Pois agora eo sei, eo vi, entendi no meo peito | |
como è bela a coragem da redentora amizade. | |
Ora eo vi nas mãos que preparavam aromas | 1500 |
75
como è grande a profusão do amor neste mundo, | |
ah, e como redime a dor invasora das vidas. | |
Pois me alevantando mais uma vez desta terra, | |
vejo o céu estrelado nas alegrias dum pranto | |
novo, singelo e grato e recoberto de olores: | 1505 |
Entre alabastros subia como a brisa o perfumo | |
doce do sacrifício final, da vida que vence. | |
Pois se fora abusada a florescência das árvores | |
quando pendurarom no tronco Jesus Nazareno, | |
ora as vidas de vegetais suaves vingavam | 1510 |
seu ultraje ao recobrir Jesus de perfumos: | |
Foi subindo o frescor dos alecrins e do timo | |
junto à lavanda, as alegrias junto à semente. | |
É necessário colher o sacrifício das flores | |
para recenderem olores maiores que a morte! | 1515 |
É preciso muita coragem perante a colheita | |
quando o trabalho parecer maior do que a vida. | |
Sobe, Jesus Nazareno, às invisíveis alturas | |
como o sopro das flores cuja vida è verdade: | |
Lembra nossa sede no dia do amor derradeiro! | 1520 |
Vinde, filhos, sequemos nosso pranto e cantemos | |
frente ao redentor que fez da morte vitória. |
Folha V |
© Gregorius Vatis Advena 2018, Record E 7, engl. Guthlac, Hampshire, alliterative pentameters, 737 lines, epic poetry, hagiography, Portuguese.
Guthlac chega à ilha de Crowland para viver como eremita. O demônio porém se opõe: O rei, o mercante e o pai o visitam buscando dissuadi-lo. Resistindo a todo assédio e tormenta, Guthlac amadurece na ilha, até que se revela o prenúncio da sua morte. Leia a introdução detalhada no Carolíngio.
Guthlac retrata, em sua busca por Deus, pelo sublime e pela transcendência, a desilusão da insuficiência existencial. Neste intenso drama espiritual, a batalha da prece incorpora a batalha por sentido à existência humana. O contexto medieval se expressa numa dicção elevada e solene. São Guthlac de Crowland (674-715) foi um eremita anglo-saxão na tradição dos Pais do Deserto.
Da Peça Karneval, Op. 9, Chopin, por Robert Schumann, performance de Paul Pitman – Musopen CC PD.
O verso é pentamétrico – cinco tônicas separadas por uma ou duas átonas, ou por pausa. Em geral, termina em diérese bucólica – o ritmo tátata-táta. É datílico ao evocar o antigo dátilo no ritmo tátata. É aliterativo: Há aliterações entre tônicas e tônicas, entre tônicas e átonas (eco), e entre átonas (eco falso) – tanto entre sílabas adjacentes quanto entre separadas.
O uso das formas épicas é tratado no ensaio Prosódia e Grafia. Neste poema, ocorre a forma átona do verbo ser: [é] em contexto tônico, [è] em contexto átono.
Por muito tempo errou sem rumo o demônio | |
buscando casa, e desde muito disputam | |
os sábios a causa como essência dum ser | |
sem paz devoto ao mal. Escritos relatam | |
a queda dum anjo outrora, excelso companha | 5 |
dos céus perdido, inconformado co trono | |
de Deus e coa vida. Assim saiu pelo mundo | |
deixando atrás beleza e descendo ao abismo | |
por onde pragas entoam. Outros disseram | |
que desde sempre o mal desdisse do bem: | 10 |
Persegue a boa fé, desbarata os eleitos, | |
desfaz a alegria. Mas outros argumentaram | |
que nasce no coração a maldade dos atos. | |
Não precisa do auxílio de seres alheios | |
a mão decidida ao crime, o leme incorreto | 15 |
guiando infirme nau, agravando a tristeza | |
d’alma e solidão nesta borda abalada. | |
Numa coisa contudo os sábios concordam: | |
Inveja e covardia, por onde ocorreram, | |
testemunharam por onde andou o demônio. | 20 |
1
Ora, o prisco inimigo, cansado do fogo | |
ao qual arremessara os espíritos vários, | |
caçou o gabo do rei, o mercante avarento, | |
incendiou nos jovens um brio fugaz, | |
um amor de vanidade. De pouco bastou | 25 |
a voz dos condenados e tantos incautos | |
que vida adentro, renunciando virtude, | |
jogaram fora o ser num prazer corriqueiro | |
querendo fama fácil, prata e vantagens | |
que Deus desabonou. Vestiram sem medo | 30 |
tecidos suntuosos, gozando as delícias | |
e menosprezando a dor de destitutos. | |
Errou, portanto, colecionando falanges | |
de vis e desviados, a essência covarde | |
disseminando inveja por todas as eras, | 35 |
tentando homens. Passava o dono do povo | |
pesando na mente a salvação duma gente, | |
e vinha de longe arrebatando a coragem | |
a voz do inimigo: Semeava no peito | |
cobiça de império. O mercador elevava | 40 |
2
a Deus a prece, agradecendo o trabalho, | |
e vinha o verdugo estimular ganância | |
de mais dinheiro. A juventude buscava | |
a felicidade do amor, mas inveja maior | |
soprava adentro excitações incessantes: | 45 |
Vidas pervertidas largaram por terra | |
dever e constância. Em toda casa erigida | |
a sombra maldosa quis tirar do caminho | |
o bom intento. Tomou-se nota, porém, | |
dum caso raro e perturbador de serenos: | 50 |
É que depois de muitas presas levadas | |
o triste algoz avistou, de todos mortais, | |
uma vida coitada e desprovida de escudo. | |
Ouviu dizer que, retirando-se às pressas | |
dum mundo angustiado, Guthlac migrara | 55 |
sozinho pelos prados e pela floresta | |
até chegar numa ilha, distante recanto | |
que pés nenhuns pisaram. Ali demandando, | |
ergueu num cole a cruz, bandeira de Cristo, | |
e construiu no esmero um abrigo de barro | 60 |
3
Guthlac abandona as armas: cena de Vita Sancti Guthlaci (Guthlac Roll), representação do século XII, pergamento, acervo da British Library. Legenda: Guthlac recedit ab exercitu suo. Foto: British Library, Londres.
e transitória morada. Disto sabendo | |
porém o covarde inconformado na inveja, | |
correu ao monte com tormentosa falange | |
rumo a Guthlac, abandonado do mundo | |
que percorrendo a trilha assim lamentava: | 65 |
– Perdoa, Senhor, um homem transtornado | |
que apenas quer orar e que mal se concentra. | |
Percebo desde já que è penosa a batalha | |
da vida em busca da prece. Pelo silêncio | |
e pela paz que me cerca vou caminhando | 70 |
e querendo e vou perdendo de mim o destino. | |
Vem, Espírito Santo, inspira a meu peito | |
a palavra que anelo e verdadeiro caminho | |
revela ao perdido que sou. Os dias me deixam | |
e quanto mais elevo o meu sopro sem força | 75 |
entendo quão distante me encontro da prece | |
e carente de graça. Ensina ao destituto, | |
meu Pai, a vida sem erro. – Mas o demônio | |
no mesmo instante incendiou-se de fúria | |
e declarou-lhe uma guerra desgraciosa. | 80 |
4
Desembarcava já, de visita apressada, | |
pomposo rei por quem outrora lutara | |
a fiel espada de Guthlac, amigo avisando: | |
– Em qual desdita e desgostoso destino, | |
guerreiro, cá termina a vida dum homem | 85 |
da tua estirpe brava e digno de glória! | |
Foi devida à tua espada a vitória | |
que tantas vezes abençoou meu reino. | |
Informa apenas, ingrato, a graça, o favor | |
que a minha corte negou, para que triste | 90 |
e desdizendo o passado buscasses um ermo | |
donde ofendes, mesmo em pleno silêncio, | |
teu rei e teu povo! O bom governo carece | |
dum reto conselho e conselheiro serás: | |
A corte, o povo, o partido assim proclamaram | 95 |
e venho eu, o rei em pessoa buscar-te. | |
Se ainda amas teu povo, retorna comigo, | |
levanta-te agora! Importa agir como homem. – | |
Contudo Guthlac, erguendo os olhos além, | |
balança a cabeça inconsolado e responde: | 100 |
5
– Também careço, rei, de conselho correto | |
e como Deus te trouxe, aqui te pergunto: | |
Será feliz uma terra por onde governa | |
o governante que não governa a si mesmo? | |
Desde cedo, amigo, entendi no meu peito | 105 |
a quanta impostura a minha vida te expunha | |
como expunha a corte, o partido e teu povo. | |
Atormentado portanto, migrei de teu reino | |
trazendo migo este meu intento de vida, | |
vergonha que aqui somente às plantas ofende: | 110 |
E por amor de meu povo sirvo-lhe aqui, | |
pedindo a Deus por compaixão de pequenos | |
e amor dos justos: merecedores de corte, | |
partido e governo. A vida orando labora, | |
no império contudo nem trabalha nem ora. | 115 |
Se não me queres crer, examina comigo | |
a perdição duma vida e verás o que sou: | |
O peito chamando, nesta terra arribei | |
querendo de Deus o dom da prece apenas. | |
Ó desesepero, desenganadas andanças, | 120 |
6
em tanto orar tampouco ainda aprendi | |
nem vida nem prece e me desolo insistindo! | |
Mas senhor, se apenas governo de prece | |
o meu intento rogava e governo me falta, | |
inda esperas de mim governar o teu povo? | 125 |
Demônio desengana a constância de fortes: | |
Melhor convém ao mau aprender a rezar | |
e vou pedindo a Deus o governo de mim. – | |
O monarca, ouvindo e recuando confuso, | |
foi-se embora remando o barco e pesando | 130 |
na mente o destino. Ficou porém o demônio | |
na caça de brechas e já na próxima luz, | |
enquanto Guthlac colhia o grão da cevada | |
a preparo do pão, abordava aqueles ermos | |
mercante abastado, dissuadindo na oferta | 135 |
e profusão de palavras e ricas espécias | |
a empresa do amigo. Suplicava e bradava: | |
– Sai deste chão de inadequada existência, | |
retorna comigo, Guthlac! Não impressionas | |
Deus nem mundo no quietismo que abraças. | 140 |
7
A todo custo intentas chamar atenção? | |
Permite um momento por piedade do amigo | |
que aqui registre, eu, a ira dum reto, | |
escuta: Em minha vida o meu tempo erigi | |
no labor constante, desdenhando a preguiça | 145 |
e lucro devasso como a Jesus desagrada. | |
Eu em tudo cumpri meu divino dever | |
e dever de todo homem: Erguer sua lida | |
no próprio suor, suando ganhar o sustento | |
que Deus aduz ao justo! Assim laborando, | 150 |
assim cumulei nos anos a minha riqueza. | |
Ganhei mas fui doando, cônscio dos fracos | |
que ergui da estrada como o céu testemunha | |
e como sabes também. Mas tu renegas, | |
gestor incauto, os bens que Deus te confia | 155 |
e jogas fora? Tu corres além à floresta | |
a fim de ocultar, da humanidade e dos anjos, | |
um ócio que chamas prece? O justo carece, | |
em todas eras, dum bem que chamamos labor, | |
do bem que tu, ao rei dos céus ofendendo, | 160 |
8
lançaste ao chão! Voltarás portanto comigo | |
à cidade nossa: Ali te aguarda o caminho | |
da boa indústria, suor redentor è correto. | |
Eu saberei te aduzir pela senda do bem | |
ganhando a salvação! – Assim conclamando, | 165 |
notava as mãos do eremita, tomando da pedra | |
e contra a pedra amassando cópia de grãos, | |
a testa suada. Guthlac mirando o mercante | |
largou num triz a rocha, arfando cansado: | |
– A minha vida corrupta, em tanta incerteza | 170 |
e rumo errado, errando uma coisa aprendeu | |
no meio do mundo: Dos bens que a lida acumula | |
o homem perde aparentes, conserva apenas | |
a indústria de Deus. A prata que a mão amontoa | |
de que me vale, amigo, se o vento que passa | 175 |
carrega embora num dia a cobiça dos anos? | |
Trabalho rogando a Deus por todos os homens | |
e preparando o pão de que o corpo carece. | |
Chamaste verdade a propriedade dum lucro | |
voando de dono em dono, iludindo o suor? | 180 |
9
No engenho de Deus os bens imorredouros | |
o homem guarda no peito. A mão enaltece | |
a vida em suor, e no entanto o tesouro maior | |
do trabalho a mão non toca e jamais tocará. – | |
O mercador contudo insistindo no apelo | 185 |
retorna a Guthlac: – Pois a quem favorece | |
um labor isolado? O generoso trabalho | |
rende a bênção do fruto no meio do povo | |
e prosperidade se afirma. O homem sozinho | |
fugindo o mundo foge Deus igualmente! | 190 |
Mas esta vida amarga que encenas, amigo, | |
de nada contribui à riqueza do mundo | |
enquanto os miseráveis esperam auxílio, | |
a boca bramindo: Guthlac, onde te escondes? | |
Guthlac se esconde? – Mas o homem da prece | 195 |
considerando ilusões responde ao mercante: | |
– Deixei o mundo para que o mundo prospere | |
e não demais se ofenda coa vida dum ímpio. | |
Amando pois os pequenos aqui me escondi | |
cedendo lugar, e espero sim que progrida | 200 |
10
quem melhor merece o concurso do mundo. | |
Assim trabalho por todos, e mesmo isolado | |
laboro mais do que a mera lida das mãos: | |
Resiste ao vento e perante Deus se conserva | |
o trabalho d’alma. Constrói contudo ruína | 205 |
quem explora da mão e se esquece do peito. | |
Amigo, a palma sem peito corre sem rumo: | |
Ignora o que faz, acumula apenas ao sopro | |
e morrendo a mão a lida morre co vento, | |
a Deus entristece. – No amor do bom suor | 210 |
e renegando a mentira dum bem inconstante | |
ali se achava Guthlac, passando das horas | |
coa pedra amassando grão, do pó da farinha | |
fazendo seu pão, buscando d’água de longe | |
e misturando ao fermento: – E nada cobiço | 215 |
além deste grão por insistência dum ventre | |
desavisado de Deus. Trabalho pois nas mãos | |
e o peito lembra no pão o corpo de Cristo | |
em cujo nome existo. Caçando fortunas | |
notei que a minha vida era vida incorreta: | 220 |
11
Acumulando riqueza, para mim acumulo | |
mais que ao pobre. Dando embora meus bens | |
doei do resto, verdade em Cristo contudo | |
è sacrifício de vida mais que de resto. – | |
Ouvido o relato, o comerciante abatido | 225 |
balança os braços e procurando a palavra | |
a verdade se cala. Retorna pois abalado, | |
remando seu barco e repensando nas ondas | |
vitória pouca de mundo, concurso acirrado | |
e triste palco de ganas. Recobre coas mãos | 230 |
a sombra do rosto, reconhece inconstância | |
e vento na indústria, soluçando na bruma. | |
Aporta noutra margem saudoso de Guthlac | |
e roga a Deus coragem. Adentra contudo | |
a treva e lá se perde, uma presa danada | 235 |
do grande algoz destruïdor do trabalho. | |
Inconformado o covarde co viço de Guthlac, | |
encheu de bolores a massa em fermento. | |
O servo de Cristo preparando seu forno, | |
o barro aquecido, vendo entanto perdido | 240 |
12
o labor de muitos dias, o pão destruído, | |
baixou calado os olhos, minado de fome | |
erguendo as mãos: – Leva embora, demônio, | |
o pão de meu corpo, pois o pão de minh’alma | |
a Deus pertence e de Deus apenas proveio. | 245 |
Vem, Espírito Santo, ensina a teu filho | |
que o mal da privação em Deus è proveito! – | |
E caminhando por entre as árvores calmo | |
e calado evocando, derramava o seu pranto | |
enquanto a noite caía. O homem dos ermos | 250 |
sem pão padecia e desdenhando abraçava | |
em prece o vento como o corpo dum árvor, | |
silenciosa amizade. Contudo um covarde | |
mirava na espreita, cavaleiro da inveja, | |
algoz de mansos, e já na próxima aurora | 255 |
o barco arribava e revelava das brumas | |
o pai de Guthlac. Desembarcava e corria | |
em turvos urros rumo ao filho isolado, | |
trazendo prata e pão e perdendo a palavra: | |
– Responde, filho, que mal terrível te fiz | 260 |
13
que assim me pagas o amor? Desde que ouvi | |
da tua vida e de como abandonas o mundo | |
jogando fora, desde então me abalei | |
de vila em vila, perguntando por rastos | |
dum passo ingrato a Deus, infeliz peregrino | 265 |
em viagem perdida. Aqui portanto erigiste, | |
neste pântano impuro, a morada futura | |
e final de teus dias? Eu ouvi pela estrada | |
que aqui trabalhas, como outrora ensinei, | |
o pão do próprio sustento! O mundo trocaste | 270 |
apenas por pão e nisto encontras verdade, | |
vida em nome de Deus? Que triste episódio, | |
meu filho amado, cá me obrigas a ver! | |
O homem carece de amor e contudo renegas | |
de inopinada mente o futuro dum lar, | 275 |
esposa e filhos? Sei duma certa mulher | |
que por ti se deplora, amando sem sorte | |
um homem desonroso, que à bênção do afago | |
o frio, a fome, o morbo, a morte prefere! | |
Ofendes, Guthlac, a Deus, gestor dos amores | 280 |
14
unindo as almas no galardão da família. | |
Por que te renegas? Inda è tempo contudo | |
e basta um gesto de ti que abordaremos | |
noutra margem do mundo, unidos volvendo | |
à boa sorte. Vem que teu pai te suplica! – | 285 |
O filho porém, sentado à sombra dum árvor | |
coas mãos amassando o grão, aponta ao redor | |
floridas plantas longe e perto e responde: | |
– Amado pai, eu já me encontro no seio | |
da minha família, pois cercada de folhas | 290 |
de nada carece a vida. A verdade que entendo | |
ensina ao modesto: Neste mundo sangrento, | |
por onde houver um árvor consolo haverá, | |
na verde calma inquebrantável constância, | |
espelho dos sábios e professor dos santos | 295 |
orando calado. Por que me pedes família, | |
meu pai amado, se frente a mim se congrega | |
em toda aurora um lar de fiéis passarinhos | |
a quem doando grãos alimento e conduzo | |
à verdadeira família? Permite, senhor, | 300 |
15
no amor dum filho que apenas busca verdade, | |
a minha paz e morada e batalha da prece: | |
escudo sereno que porventura defenda | |
o ímpio perante o Juiz. O pão entretanto | |
que aqui me trazes leva embora contigo | 305 |
e leva a pecúnia, porquanto não me isolei | |
dum mundo enganador a fim de enganar-me | |
vivendo do pão alheio, de alheio trabalho. | |
Amor, meu pai, caminha longe dos jovens | |
vivendo em busca dum corriqueiro prazer | 310 |
que quanto mais se goza menos sacia. | |
Querendo pois de além um gozoso mistério | |
gozo meu gozo em contemplando a verdade | |
amiga das árvores. – Isto assim proferido, | |
um pai desdito, avermelhado nos olhos | 315 |
tomou embora o pão, a prata, o tesouro | |
e cabisbaixo remava o que amava seu filho, | |
passando à velha margem por onde aguardavam, | |
na treva, correntes dalgum prazer passageiro | |
ao qual rendera a vida, tributo ao demônio. | 320 |
16
Porém o gestor de calúnias, o ser invejoso | |
apenas se enfada com quantos já lhe pertencem: | |
Anela as almas zelosas. E assim cobiçando | |
a vida em prece, aproximou-se de Guthlac | |
de noite enquanto bebia, e n’água cuspindo | 325 |
envenenou a Guthlac. Enfraquecido na febre, | |
andava pelo bosque o homem das súplicas. | |
Inda vagando na escuridão dos demônios, | |
a sós buscava longe o tecido das folhas, | |
erguendo as mãos clamando: – Quando da vida, | 330 |
meu Deus, serei e viverei como as árvores? | |
Quando enfim estenderei os meus galhos | |
dia e noite ao céu, calado e constante? | |
Virão de longe a chuva, os ventos, a névoa, | |
passando a caravana do mundo e dos mortos: | 335 |
E seguirão alçados meus braços em prece, | |
e não se abalam as orações de meus galhos. – | |
Angustiado de andar, o amigo dos pássaros | |
ora apertava ao peito troncos no escuro, | |
abraço firme, casório de corpo e de caule. | 340 |
17
Inopinado contudo, o demônio se agita | |
em turbilhão tenebroso, clamando da treva: | |
– Aos réus escravos meus ofereço império, | |
prata e prazeres. Tu porém me recusas | |
e desconheces, Guthlac, o dono do mundo? – | 345 |
Do vórtice em fúria revelam-se os rostos | |
e a legião dos monstros, os olhos de fogo | |
cercando o homem fraco, rugia impropérios | |
coa língua bifurcada. Mas Guthlac responde: | |
– O dono do mundo o meu saber desconhece, | 350 |
conhece o dono dos céus e das almas em prece, | |
casa a que sirvo! – Dum turbilhão perigoso | |
batendo ao chão, fazendo a terra tremer | |
ergueram contra Guthlac espadas de fogo | |
lançando ameaça: – Vai-te embora, maldito, | 355 |
lutamos contra ti na batalha da morte! – | |
O homem a sós retorna: – Lutei no passado | |
a boa guerra e gustei da vitória do justo. | |
A espada entretanto já de nada me serve, | |
porquanto abandono e não pisei nesta terra | 360 |
Guthlac | Folha VI |
para por Cristo lutar com derrama de sangue: | |
por Deus apenas morro e jamais matarei! | |
Em vão aqui tentais à batalha das armas | |
um homem que luta por paz. – Isto dizendo | |
o genuflexo em rezas, rogava sem medo | 365 |
a piedade dos céus. A falange contudo | |
retruca ousada: – Sabes mesmo, insolente, | |
se o território que ocupas já te pertence, | |
ou vives como o ladrão tomando posse | |
de bens alheios? – Mas um homem humilde | 370 |
pensa e responde: – Por toda terra inquiri | |
se tinha dono o monte por onde me encontro. | |
Como ninguém o reclama, eu nele transito | |
e dele me irei se aqui chegar o seu dono | |
e não me quiser. Conheço já que no mundo | 375 |
ninguém de nada è dono e nada cobiço | |
porquanto a terra è generosa matrona: | |
Encontra a todo andante morada e deserto | |
sem dono de mundo. – Não porém lhe cedeu | |
a cohorte da morte, e carregando seu corpo | 380 |
19
Os demônios levam Guthlac às portas do inferno e São Bartolomeu intercede a seu favor: cena de Vita Sancti Guthlaci.
no turbilhão, a falange ao inferno baixou | |
levando além consigo o homem das árvores. | |
Mas o manso defende-se: – Todos os dias | |
em toda parte a minha vida è de prece | |
e mesmo do inferno conseguirei erigir | 385 |
bandeira de Cristo. Vem, Espírito Santo, | |
por compaixão de abandonados espíritos, | |
luz o meu rumo incerto e seca meus olhos! – | |
Mas Deus apiedado, tutor de constantes | |
ouvindo daquele abismo um clamor inaudito, | 390 |
conclama d’alto o anjo e do trono proclama | |
um retumbante decreto: – Defende esse homem! – | |
Felicidade quando os ambos se encontram, | |
o homem bom e o anjo, o guia do anúncio: | |
– Passa por esta senda, servo de Deus, | 395 |
levar-te-ei ao galardão da verdade! – | |
O servo pois orando, o fogo do inferno | |
abriu caminho e recuando inclinava-se | |
em coloridos focos perante o pedinte | |
que pelos arcos passou, santíssima flama | 400 |
20
em defesa de Guthlac. O inferno mirando, | |
os sofredores lançavam-se ao homem correto | |
rogando-lhe bom socorro e cura das almas, | |
aflitos em pranto. Mas legiões revoltadas | |
súbito agiram antes que Guthlac erguesse | 405 |
do chão condenados, e maldizendo a virtude | |
devolveram à terra o guerreiro da prece | |
que o fogo non queima. Despertando febrio | |
dum sonho entristecido, Guthlac lembrou | |
por todo o dia o desespero de abismos, | 410 |
andando no bosque em orações abundantes | |
no amor dos mortos: – Entregarás, Criador, | |
as multidões ao sofrimento sem termo? | |
Estende misericórdia, Cristo, a perdidos! | |
Depois de tudo o que vi, de que me vale | 415 |
vencer o demônio se todo o mundo padece? – | |
Assim rogando assim caminhava aturdido, | |
tristeza deformando a paz de seu rosto. | |
Mas muito errando durante todo o seu dia | |
cansou-se no rogo. O passo caiu derrotado | 420 |
21
aos pés dum árvor, donde amassava cevada | |
ao pão do corpo: – Diz, Espírito Santo, | |
confortarás de fato arruinados do abismo? – | |
Um sopro leve soprou, chamando inaudível | |
o nome de Guthlac, e levantando a cabeça | 425 |
o homem simples viu, radiante dos céus, | |
um arco-íris. Era maior do que os olhos | |
nas cores do fogo, rediviva a promessa | |
incandescendo passos, doando esperança. | |
E Guthlac, divisando um gozoso mistério, | 430 |
orando e calando, andou no meio do arco. |
Por quinze anos suspirou pelos ermos | |
o homem dos pássaros. Retirou-se do mundo | |
desembarcando, pouco longe das margens | |
que atrás deixou, em transitória paragem: | 435 |
perdida ilhota que as antiquíssimas eras | |
dum mar violento dissociaram da terra, | |
emaranhadas lagunas por onde bosques | |
e priscos prados dividiam paisagens – | |
e bancos de areia quando o baixa-mar | 440 |
22
mostrava ao viajeiro o passado submerso | |
em desastroso dilúvio. O homem de longe | |
ali portou, e vislumbrando um outeiro | |
beirando o verde, erguendo cruz e morada | |
ali quedou. Viveu dos grãos de cevada | 445 |
fazendo pão, e caminhando entre as árvores | |
Guthlac alçava além, na batalha da prece, | |
o peito, a palavra. Por muito tempo o rancor | |
dum poderoso inimigo e covarde invejoso | |
atormentou a constância – de noite varava | 450 |
o demônio a buscar. O ser iroso adentrava | |
escuridões na floresta mas nada encontrava: | |
A família de amigos silenciosa e serena | |
escondia o seu irmão na sombra dos troncos. | |
O inferno lançava em vão seu ataque contra | 455 |
um distinto escudo. Mas o verdugo contava | |
co mundo inteiro: Unira o rei, o mercante | |
e seguidores de império, prata e prazer | |
que em multidões aduzia. Ao homem singelo | |
ninguém no mundo seguiu, e quantos beiravam | 460 |
23
o abrigo de Guthac querendo cura e conselho, | |
tornando embora além o demônio buscava | |
na margem oposta, recobrindo de angústia | |
a passageira esperança da vida quebrada, | |
enferma constância. Das perdições arribou | 465 |
contudo um romeiro, apenas um aportou | |
àquela margem difícil buscando verdade | |
e vida em prece. Andando pelos ermos | |
ouvira dum bom, e abandonando ilusões | |
viera segui-lo um servidor corajoso. | 470 |
Maré permitindo, remava todos os dias | |
da margem vizinha donde erguera morada, | |
saudoso de conhecer a vida dum simples | |
e ver a virtude. Assim correram os anos | |
e o servo desembarcava em breves visitas, | 475 |
ouvindo a palavra e preparando fermento | |
e fogo ateando. Remava embora e pesava | |
na mente a batalha, balançando a cabeça | |
e rogando a Deus coragem. Lembrava imagens | |
ainda de Guthlac sentado à sombra dum árvor, | 480 |
24
a pedra amassando o pão enquanto indagava: | |
– Mas è qual o mistério da estranha oração | |
que obrando entoas? Se for verdade a palavra, | |
se ao coração apenas se gesta uma prece, | |
como elevas o sopro ao céu, se as mãos | 485 |
atribuladas laboram? – Mas Guthlac arfava: | |
– Amigo de Deus, a prece nasce no peito | |
mas pelo corpo inteiro vive-se o canto. | |
Obrando o pão, recordo a fome dos homens | |
e o sacrifício de Cristo, em minhas mãos | 490 |
suor e divina presença. – Mirando estrelas | |
o seguidor recordava e remava inquirindo | |
no dia seguinte: – Quando vais à floresta | |
pela trilha, Guthlac, pregas às folhas | |
a santa palavra? – O solitário retorque: | 495 |
– Pobre de mim que tanto aprendo nos bosques | |
e aos bosques nada ensino. Rogo às plantas | |
quase que intercedam por mim, ocioso na vida | |
e carente de rumo. – Caminhando no verde | |
certa feita, passavam do seio das trilhas | 500 |
25
à beira dum lago, por onde o servo abordou: | |
– Por que te vejo, mestre, lento e mancando? | |
Por que te encontro abafando tantos gemidos, | |
o rosto pálido? Diz-me logo a verdade | |
porquanto já percebo na pele e no aspecto: | 505 |
Um grande mal te assoma! Nunca te vi | |
por esses anos como agora te enxergo, | |
debilitado e mudo. Por amor duma angústia | |
maior do que mar, explica o mal que te passa | |
e se posso ajudar! – E suspirando tranquilo, | 510 |
o amigo do verde, andando e vendo amplidões, | |
responde ao servo: – Desde sempre se soube, | |
fiel seguidor, que o vitupério de Adão | |
entristeceu a Deus, e que desde o pecado | |
um desgostoso legado persegue o passar | 515 |
em este mundo mendaz do forte e do fraco, | |
do mau e do bom. A dois ilustres consortes, | |
que a mão divina uniu, um gesto impensado | |
impôs eterno divórcio, fortuna infeliz | |
que desde então separa a semente da casca, | 520 |
26
jogando fora do corpo o cultivo das almas | |
num desperdício sem par. Assim se repete | |
em todas as vidas um veredito severo. | |
Assim se apodera da florescência do ser | |
um ladrão de existências, colecionando carcaças | 525 |
em triste gana que nada e ninguém dissuade. | |
Comeram sem medo do astroso pomo da cobra | |
e cá pagamos, filhinho, o preço da audácia. – | |
Dos olhos, porém, dum seguidor abalado | |
e transbordantes de dor, seguiu a palavra: | 530 |
– Entendo bem, senhor, a verdade que escondes? | |
Jesus me castiga atormentando o teu corpo? | |
Pela margem incerta da vida e do tempo | |
a morte desembarca, invejosa dum santo | |
a sorte implacável? – Mas o homem da prece, | 535 |
mirando longe os raios por entre a folhagem | |
e pelas ondas, caminhava explanando: | |
– Sonhei um sonho na madrugada passada, | |
perene imagem. Resplandescendo das árvores | |
verde escada assomava. Perdidos em folhas | 540 |
27
os olhos meus miravam buscando o limite: | |
Não enxergava donde a escada descia | |
dentre altíssimos ramos. Eu, assustado, | |
ouvi de além do canto uma voz invisível | |
falando e ressoando, de cima, de baixo | 545 |
e dentro do peito: “Não temer, guerreiro | |
da boa guerra da prece, e não te assustes | |
quando o Sopro Santo se acerca de ti | |
co galardão da vitória. Tu que trocaste, | |
ermita, a gana enganadora por árvores, | 550 |
que procuras ainda num mundo inconstante | |
por onde o mar violento arrasa moradas | |
e leva embora barcas? Sobe esta escada, | |
filhinho caro, por onde um singelo jardim | |
aguarda um homem bom e por onde te aguarda | 555 |
um veredito sereno.” Andando nas folhas | |
desconheciam cansaço os pés de minh’alma. | |
Como tomado enfim duma certa tristeza | |
e também de alegria, abraçando-me ao árvor, | |
pedi dos céus piedade do engano dos sonhos, | 560 |
28
bondosa ilusão. Porém de longe enxergava | |
um luminoso fruto ofuscando meus olhos | |
enquanto a voz entoava: “Amigo dos bosques, | |
o pomo prohibido que outrora ultrajaram | |
desperdiçou no mundo a nudez do saber, | 565 |
um frágil tesouro. Mas um pomo te espera | |
maior que o prohibido que o mundo perdeu | |
rendido à morte. Come, pois, peregrino, | |
e senta-te sob a sombra d’árvore da vida, | |
mãe de teus passos.” Assim ouvi, seguidor, | 570 |
uma voz invencível, e refletindo e seguindo | |
a voz e meu peito, subi degraus duma escada | |
que quanto mais me alçava mais alegrava | |
os pés de meu sonho e porém jamais terminava, | |
nem meus olhos sabiam da aurora do fim. | 575 |
Contudo ouvi, de cambaleado que estou, | |
que apenas em sete auroras ali voltarei. – | |
O seguidor, todavia, ouvindo o relato | |
e retardando seus passos, deixou ecoar | |
fortíssimo pranto e transtornados soluços | 580 |
29
calaram os pássaros. Era um rosto inundado | |
de todas as gotas escorrendo das fontes | |
d’alma e do corpo. Assim regou desolado | |
a boca das árvores, procurando governo: | |
– Percebo já, senhor, que triste destino | 585 |
Deus me prepara. Quem agora me ensina, | |
aonde irei de rumo aprender a batalha | |
que à vida reta compete? Ó generosas, | |
chorai comigo o bom intento arruinado! – | |
Ajoelhando-se frente ao tronco dum árvor | 590 |
e derramando a vida, ouviu porém do eremita: | |
– A diferença, filho, de nós e das árvores, | |
ouve e reflete: Os inconstantes corremos | |
passando a norte e sul, e viajando agitados | |
passamos por toda parte e correndo sem rumo | 595 |
em parte alguma estamos. As árvores ficam | |
por onde Deus plantar: O vento ameaça, | |
o mar se agita, e não se move uma vida | |
que ali se pôs por inteiro para ser, | |
estar e ficar. E desprezando os enganos | 600 |
30
do mundo e seus tumultos, ela se eleva | |
aos céus calada enquanto Deus permitir. | |
Assim te ensina a paciência das plantas | |
e assim te peço: Não perturbes a mente | |
buscando a quem seguir nem sigas a mim | 605 |
que nada sei, mas antes segue esse exemplo | |
da vida verde. Onde estiveres perdido | |
o verdadeiro sentido è somente ficares | |
onde estás, alçando a Deus a constante | |
batalha da prece. O resto da vida è poeira | 610 |
que o vento varre a toda parte e nenhuma. – | |
O seguidor, entretanto, ouvindo aturdido | |
e contendo a dor retorna: – Mas o augúrio | |
invade meu peito, o presságio: Nunca ouvirei | |
de novo a boa prece que livre entoavas! | 615 |
Tu, se nada sabes, quanto menos conheço | |
dos sacrifícios eu, que aqui demandando | |
apenas começava a saber o que sabes | |
e a ser o que és? – O solitário minado, | |
tornando para trás, tossindo e com febre | 620 |
31
responde apenas: – Filho, pouco me resta | |
de raciocínio correto. Incêndio no peito | |
dilacera a carne, o governo da mente | |
confunde as palavras. Mas desejo pedir, | |
se aqui permites, um derradeiro serviço: | 625 |
Quando se for a carcaça e da vida restar | |
poeira apenas, prepara o remo do barco | |
e desbravando o lago, o mar e o palude | |
avisa à minha irmã, na margem que habita | |
a sós e sóror, que um novo alívio conforta | 630 |
o sofrimento dos homens: O sopro de Guthlac | |
já non mais atormenta o pesar deste mundo. | |
O desgostoso silêncio que impus entre nós, | |
impus por amor daquele amor verdadeiro | |
que não no mundo, e sim no excelso jardim, | 635 |
um dia unirá nossas vidas. Roga-lhe apenas | |
que venha, por piedade, enterrar o meu corpo. – | |
Tornaram pois os dois à morada de Guthlac, | |
andando calados, o pensamento distante. | |
Ali chegando o doente pôs-se a dormir | 640 |
32
no caixão de pedra que pelos anos inteiros | |
serviu-lhe de cama, recordando constante | |
a verdade do fim e prenúncio da eternidade. | |
O seguidor diligente, contendo gemidos, | |
batendo ferro contra a pedra do fogo | 645 |
e mecha de palha, preparou-lhe do sílex | |
a flama consoladora do forno e do frio, | |
remando embora na noite. Transtorno porém, | |
angústia nova assomou-o quando na aurora | |
desembarcou e viu, estirado e convulso, | 650 |
um corpo acabado e recoberto de sangue: | |
– Por caridade, senhor, se ainda tiveres | |
poder de verbo, diz o mal que te passa | |
e como posso ajudar! – Dizendo isto, | |
erguendo da terra a moribunda ruína, | 655 |
prepara-lhe o fogo e pão e trata feridas. | |
Mas Guthlac, tomando às custas fôlego novo, | |
profere calmo: – Casório feliz se aproxima | |
após o aflito divórcio do sopro e da carne, | |
mas não te aflijas de mim, guerreiro da prece: | 660 |
33
Felicidade quando os ambos se encontram. – | |
O servo, contudo, servindo o pão suplica: | |
– Recorda de mim, senhor, e donde estiveres | |
intercede aos céus pela vida dum fraco. – | |
O homem simples avisa: – Contigo estarei | 665 |
no peito, filhinho, confia em Deus e verás | |
que não te abandonarei na batalha da vida. | |
Perpétuo laço nos une e não se arrebenta | |
na mão da morte, porém prossegue conosco | |
acima da escada. Aqui plangeremos em breve | 670 |
a dolorosa passagem de Cristo às alturas, | |
sabendo porém que a dor se vence na prece. – | |
E assim dizendo, preparava as palavras | |
porquanto aproximava-se aurora de Páscoa. | |
Remando de longe em madrugada avançada, | 675 |
o seguidor vislumbrou, na data preclara, | |
um tenuíssimo azul que descendo de estrelas | |
banhava a morada de Guthlac, serena visão | |
vencendo o mar violento. Depois aportando, |
34
andou na trilha ansiado em busca do amigo | 680 |
e prevendo surpresa entrou. Um divino perfume | |
a casa tosca exalava e da carne de Guthlac | |
balsâmico olor expirava. O altar preparado, | |
partiram-se dois amigos dum pão redentor, | |
varão que o mundo enjeitara com seu seguidor. | 685 |
O verso dos homens nem a fala traduzem | |
a voz de Deus pronunciada dos ermos. | |
Pois o amigo dos ermos alçou sua voz | |
e quantas almas, meu Deus, a prece curou, | |
a beleza ubíqua dum coração e dum corpo | 690 |
na foz da boca. Passada a tormenta final, | |
soprou-lhe o Sopro Santo d’árvore da vida | |
no sétimo dia. E Guthlac subiu as escadas. | |
O peso do peito, porém, derribou de tristeza | |
um fiel seguidor, que atribulado por dentro | 695 |
buscava o seu barco, a voz dum penoso dever | |
indagando severa. Tomando pois de impossível | |
força e coragem, o atormentado embarcou | |
e pelo mar remou. As águas, sabendo talvez | |
duma sina infeliz, passavam ora caladas | 700 |
35
em luto brumoso. Quantas vezes contudo | |
as mãos navagantes fraquejavam no remo, | |
a mente debalde procurando o controle | |
e perdendo o manejo, transitória madeira | |
no meio do mar. O transtornado remante | 705 |
remou porém de seu remo e remando arribou. | |
A barca deslizava tranquila nas pedras, | |
serenas de atrito. Desembarcando abalado | |
perante uma vida singela, dilúvio de lágrimas | |
ferve nas faces, buscando ao mar estuário. | 710 |
O servo, por fim, falando baixo e custoso | |
e sem que ousasse olhar o rosto da virgem, | |
revela a verdade: – Requer uma certa coragem, | |
distinta senhora, trazer a notícia que trago. | |
Roguei de Deus nas tribulações desta vida | 715 |
jornada reta e fervor na batalha da prece, | |
sabendo que ao sofredor que serve e confia | |
o coração pulsando è conforto o bastante. | |
Aprouve a Deus, porém, confiar a meus pés | |
um tristíssimo emprego e desgostoso serviço | 720 |
36
presto a Guthlac: Teu irmão e meu mestre, | |
o servo inseparável dos céus e da prece | |
como nunca se soube e jamais se verá, | |
morreu, encontrou morada mais adequada | |
acima de nós, por onde um juiz compassivo | 725 |
chamou su’alma ao jardim. O longo silêncio | |
que impôs entre vós, assim mo confessou, | |
terá seu termo no dia do amor verdadeiro. | |
Guthlac pede um favor: pediu que enterres | |
o resto dum ser que agora jaz estirado, | 730 |
um tesouro largado, um despojo exposto ao céu | |
que recebeu a semente. A missão merencória, | |
senhora, que Deus me impôs está cumprida. | |
Agora o que me resta è meu barco no mar, | |
meu peito que rema e se entristece co peso | 735 |
do remo e do mar. Flutua, meu barco, flutua, | |
carrega embora a vida rumo à verdade. – |