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Poemas de Deus

Gregorius Advena



© Gregorius Vatis Advena 2012 – 2019, Records E2 E7, Engl. Passions and Guthlac, Hampshire, epic and sacred poetry, Portuguese.



Poemas de Deus

ÍNDICE



Paixões: Um Sacrifício em Nome da Inocência

Curado de sua cegueira, Bartimeu é quem narra: Após a crucificação, o centurião, José de Arimateia e Madalena unem-se para tirar Jesus da cruz. Sua inaudita e perseverante coragem intercede a Pilatos e enfrenta o cataclismo.




Guthlac: Vida e Morte dum Pai do Deserto

Guthlac chega à ilha de Crowland para viver como eremita. O demônio porém se opõe: O rei, o mercante e o pai o visitam buscando dissuadi-lo. Resistindo a todo assédio e tormenta, Guthlac amadurece na ilha, até que se revela o prenúncio da sua morte.






Folha II




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Paixões

Gregorius Advena



© Gregorius Vatis Advena 2012, Record E2, Engl. Passions, december 2012 to december 2013, Hampshire, dactylic hexameter, 1522 lines, epic poetry, Portuguese.



Paixões

Introdução


Curado de sua cegueira, Bartimeu é quem narra: Após a crucificação, o centurião, José de Arimateia e Madalena unem-se para tirar Jesus da cruz. Sua inaudita coragem intercede a Pilatos e enfrenta a tempestade. Buscam, além do direito de sepultar Jesus, essências para ungir o seu corpo.

Paixões retrata o sofrimento dos homens ao redor da cruz: À paixão de Cristo seguem as paixões dos amigos. Apesar do tema, o foco não é histórico ou teológico. É trágico ao refletir sobre a dor perante a injustiça, e transcendental ao abordar o valor duma coragem quase ilimitada. O milagre da inocência, aqui, é unir os homens em nome dum sacrifício maior do que a vida.


Noturno Op. 27, No. 2, em ré bemol maior, por Frederic Chopin, performance de Frank Levy – Musopen CC PD.


O verso é hexamétrico – seis tônicas separadas por uma ou duas átonas, ou por pausa. Em geral, o verso começa em tônica e termina em diérese bucólica – o ritmo tátata-táta. É datílico ao evocar o antigo dátilo no ritmo tátata. Todo verso possui ao menos um dátilo tonal. O dátilo classico, porém, era quantitativo.

O uso das formas épicas é tratado no ensaio Prosódia e Grafia. Ocorrem neste poema: formas átonas (è, eo, meo, seo etc.) e conjugações épicas. É um poema solene e classicizante.













Antecedentes


Chegarom a Jericó. Dali saindo Jesus e os seus e muitos mais, sentava-se à beira do rumo Bartimeu, mendigo e cego. Este, ao ouvir quem ali passava, exclamou: “Piedade, Jesus! Filho que és de Davi, compaixão de mim!” Quando o repreenderom porque falava, ele alçou maior sua voz: “Piedade, Jesus, compaixão do que sou!” Mas Jesus ouviu, parou e pediu: “Chamai-o.” Pois chamarom o cego: “Coragem, levanta-te, Ele te chama!” Lançando fora o seo trapo, o mendigo ergueu-se e foi-lhe falar. Jesus indaga: “Que desejas de mim?” “Mestre”, implora o cego, “quero apenas ver!” Pois Jesus lhe responde: “Vai, filhinho, a tua fé te salvou.” E no mesmo instante reconheceu sua vista e foi seguindo Jesus pela estrada. (Cenas de Marcos, X)







I





Vinde, filhos, mesclemos nosso pranto agitados
ante o despertar duma dor invasora dos olhos:
Morre condenado na cruz Jesus Nazareno,
morre ensanguentado e coroado de espinhos.
Mas ninguém ampara a mãe duma pura inocência 5
quando plange a sós pedindo aos céus piedade.
Ele chegara a Jerusalém recebido com palmas,
ele passara pela estrada atendendo pequenos.
Vinha de longe a sua fama e serena lembrança
pelos ermos onde passou confortava seo povo. 10
Mas enquanto repartia dos pães que comia
foi traído, caluniado e vendido ao suplício.
Ele orava no horto quando viu de repente
pela sombra um turbilhão de guardas armados.
Foi levado e torturado, e julgado culpado 15
foi condenado a carregar esta cruz e pregado.
É assim porém que chega ao fim uma vida
contra a voz promissora duma esfera celeste.
Foi bonito escutar a narração desses homens
quanto ao anjo aclamador duma doce existência, 20


1




quando de noite, dizem, veio à mãe avisando:
Ave, mulher, está contigo o rei de Israel,
ave, bendito o fruto dum ventre imaculado.
Inda se narra pelos vãos uma noite remota
quando a voz dum canto confortante ecoava: 25
Não temais, pastores, é bondosa a notícia,
pois nasceu este dia um salvador de serenos.
Não temer, buscar na estrela guia dos magos
novo rumo e logo vereis o seo berço singelo.
São histórias que a vida narra longe do tempo 30
como juras dum mundo apagador de promessas.
Mas deixemos ora calada a voz das promessas
pois ninguém acredita nem ouviu minha vida:
Eu nasci sem luz e por onde passava buscava,
eu cresci na beira da estrada à mercê de migalhas. 35
Dia e noite eo erguia as mãos ao céu implorando:
Abre meus olhos, eo quero ver a cor deste mundo!
Quando ouvi que Jesus se aproximava da estrada
não esperei, larguei a vida e me ergui de meu rumo:
«Onde está Jesus? Paixão de mim que não vejo!» 40


2




Quanto mais o mundo me separava da estrela
mais a minha voz se interpunha e mais eo sabia:
«Eu não tenho nada a perder, eo quero a verdade!»
Como tomado talvez dum sentimento inaudito,
ele parou e me viu, eo venci o mundo entre nós! 45
Eu me arrastei sem medo da vida nem da morte
mas Jesus perguntou de mim e de mim respondia:
«Abre meus olhos, eo quero ver a cor deste mundo!»
Ele ordenou por piedade que o mundo parasse,
ele estendeu as suas mãos e meus olhos se abriram! 50
Eu me ergui de meo barro e meditando a verdade
vi que o céu era belo e vi que o sol me abraçava.
Vim seguindo e contemplando a pureza das árvores
quando o vento balança as folhas e a sombra se move.
Ante as águas dum rio a transparência das ondas 55
ora flutuava em meus olhos espelhos do pranto.
Eu avistei de muito longe a viagem das aves
quando as asas navegavam no azul generoso.
Pela noite eo vislumbrava deitado as estrelas
como o porto final da felicidade e do sopro. 60


3




Mas è desengano este mundo tão belo e tão bruto
pois abri meus olhos e vejo a cor da verdade:
Vim seguindo Jesus e aqui chegamos da estrada
mas aqui termina Jesus e termina esta estrada.
Era melhor o rumo quando o rumo era escuro, 65
foi pedido infeliz a redenção das pupilas!
Mas aí se vê, meos filhos, no que se convertem
tanta esperança e tanta indagação duma vida.
Eu vivia feliz mendigo à mercê de migalhas!
Fecha meus olhos, bom Jesus, desfaz o milagre 70
pois o mundo ganhou a cor e perdeu a beleza.
Ora um manto anil recobre as almas plangentes
como o mar que vai colhendo o pranto das gentes.
Derom aquela cruz ao nosso núncio de longe,
prêmio de morte ao doador de pães e de peixe? 75
Como se esvai a voz dos salmos na lira quebrada,
como se perde o canto estelar na poeira da morte!
Mas será que vinhe algum corajoso, um amigo
bom tirar da cruz este corpo? Será que veremos?
Quem se confia ao poderoso escudo e se assenta 80


4




sob a sombra do altíssimo clama: Minha esperança!
Pois è meu pastor o Senhor e nada me falta:
Faz-me deitar em verdes pastos, sacia o sedento.
Deus! Por que nos abandonas perante inimigos?
Manda a tua luz que nos guia à sagrada montanha! 85
Mas por que te agitas, alma, e tanto te inquïetas?
Não temer, Israel, porquanto ainda o veremos,
inda seremos gratos a quem nos salva da espada.
Não me abandones ao fim durante a minha velhice
quando meus inimigos contra mim se congregam! 90
Quero proclamar por mim mesmo a tua justiça,
todos os dias eo contarei o quanto me deste!
Quero narrar melhor a compaixão de meo povo
quando Jesus sofreu e como a Cristo ajudarom!
Quero narrar porquanto vi, porquanto na estrada 95
vinha Jesus pedindo amor e meos olhos se abrirom.
Vi dos homens o quanto agirom, disserom, pensarom,
vi: não morre em vão quem se compadece do aflito.
Inda os céus mirando abaixo este mundo sorriem
como se fosse feliz a cruz no azul que nos cerca! 100


5




Tiras de nuvens sangram pelo horizonte e poente
mancha vai lembrando o fim dum cruor nebuloso.
Canta o coro das aves ao revoar o crepúsculo,
passam ledas enquanto Jesus expira no tronco.
Ora a mão pregada lembra as palavras de outrora: 105
“Pois olhai as aves do céu que nunca laboram,
vão vivendo os dias e Deus provê do que falta.
Pois olhai o lírio do campo e como se veste:
Mas se assim se veste que vestido vos falta?”
Ah, voavam sem medo as alegrias das aves, 110
eram a única voz caridosa perante a verdade.
Dia e noite eo erguia o peito ao céu implorando:
Abre meos olhos, eo quero ver o amor neste mundo!
Ora que as cores naufragarom na sombra do lírio,
ora è vão dizer ao cego que as flores existem! 115
Como confunde a mente a má constância das coisas
quando ao gozo circundam tantas dores insanas.
Deus escondido, por que vestir o lírio de amores?
Aves por que proviste desta ternura sem termo,
dono do céu, e ao homem deste o lauro de espinhos? 120





II




Mas narremos: Soldados lançam dados à tábua
rindo como um louco pela espera da sorte.
Vendo acima o crucificado na extrema agonia
novo lazer se revela: “Eis o rei da Judeia,
homens! Nossos anjos do Olimpo vêm buscá-lo. 125
Ele disse que sai da cruz sozinho e veremos:
Bem lhe cabe a coroa real e troféu de bandidos!”
Falam em gargalhadas retorcendo seos rostos:
“Grande monarca, em suas mãos o cetro pregado
vale menos que o trapo dum vagabundo na estrada!” 130
Mas passava um centurião vislumbrando calado,
rude e montado a cavalo. Vendo chegar da cidade
mais aflitos buscava em vão calar os soldados.
“Este homem,” pensava o cavaleiro de Roma,
“era um pobre inocente e morreu sem amparo.” 135
Ele portanto se amargurou de seo triste serviço
pelo Império. Passava cavalgando em silêncio
mas a imagem falava sempre altior à mente.
Eram porém sem voz os seus monólogos longos:
“É verdade! Em muitas terras passei que lutarom 140


7




contra o lábaro nosso, animalescas e brutas:
Eram pessoas enlouquecidas de toda sorte!
Pois andando em toda parte busquei de coragem
mas em nenhuma eo encontrei a virtude do sábio,
quanto mais pelejava mais perdia a sperança. 145
Vim lutando além com desassossego no peito,
toda sorte de luto eo vi mas nada me assusta,
crime nem deus. Tomei de todas armas, vencendo
águias, dragões e tempestades, forte na estrada.
Eu varai o mar tormentoso na paz e no prélio! 150
Pois mirei o rosto de respeitados guerreiros
mas em parte alguma vi verdade em guerreiros.
Já pensava saber o tamanho de toda injustiça,
já pensava saber o nome de todos os crimes.
Foi engano, mal nenhum è demais neste mundo: 155
Frente à cruz dum Nazareno e morto inocente
quando afora tanto emprego justo e valente,
ai de mim, aguarda ainda as armas e as almas,
cá se arrasta a vida em vão dum homem de guerra.”
Inda alguns soldados surdos replicam, clamando 160


8




alto que o homem da cruz dissera perante Pilatos
ser o rei de Judeia. Tornavam ao jogo de dados
muita vez fitanto as outras cruzes erguidas:
“Vede o séquito são dum morto rei de falidos!”
Mas o amigo retruca: “Que comédia, Quirites, 165
vejo o caso completo de como demanda o Senado
César Hebraico, deus montado ao lombo dum asno!”
Inda um outro tomando os dados da tábua pergunta:
“Como foi isto, meninos? Prefere a morte à modéstia?”
Mas um soldado irrompe em gargalhada e contesta: 170
“Cala a boca, patrício! Seo reino nõ é deste mundo –
fica longe, longe o reino histrião do Esquilino,
fica num mundo gostoso, num lupanar da Suburra.”
Cifras novas e acaso passavam por sobre a tábua
quando um militar enfadado para e completa: 175
“Mas è cada coisa que me aparece no mundo!
É de rir para uma vida inteira e me acabo:
Forom superadas mesmo as comédias de Plauto,
forom superadas em grande estilo, meos caros.”
Quando o corpo atormentado na cruz estremece, 180


9




um dos homens embebece a sponja em vinagre
mas concede pouco: “Bebe com calma, monarca,
mostra à gente o decoro dos reis,” sugere o verdugo
frente à sua mãe que esconde o rosto nos braços.
Não demora no monte o pôr do sol memorável 185
mas o sol verdadeiro já se vai deste mundo.
“Pai!” o brado vem da cruz, “por que me deixaste?”
Grito que repercute ao peito eterno silêncio,
era a morte e quantos ali paravam sabiam.
Foi tamanho o clamor daquele viço expirando 190
grave que o firmamento escureceu de repente.
Ora os olhos converterom-se à cruz entendendo
dentro do peito a voz do derradeiro suspiro.
Ante à cena o centúrio desce e deixa o cavalo:
Ele em tudo lamenta a displicência de estranhos 195
mas reluta contra um coração que se afirma:
“É possível? Os assassinos correm libertos
pelo rumo torto, o seo crime nunca punido.
Nós contudo vivemos eludidos das leis e
dando à cruz o generoso viver de inocentes. 200


10




Pois se ainda fosse vivo e conosco este homem,
certo a minha espada seguiria os seos passos
onde quer que vagasse em desolados espaços.
Eu queria estar distante de tudo que vejo
como cavalgar e deixar atrás este inferno. 205
Mas è isto o que a vida faz duma rota danada:
Vejo uma cruz infame unindo os crimes de todos
contra um Nazareno e contra a vida sem erro.
Quem redime neste mundo tanta desgraça?”
Isto dito, o homem d’armas retira uma lágrima, 210
limpa os olhos e adverte os soldados, dizendo:
“Era de Deus este homem! Era grande, guerreiros!”
Como porém a palavra caísse em solo infértil,
lá se sentau e calau em misturando-se à turba,
moendo a mente ao ver apiedado o defunto. 215
Mas ouviu talvez nas ilusões da tristeza
voz que daquela cruz arrebatava-lhe o peito:
“Certo rei deixara a veiga à conta de servos
mas por trás do seu senhor renderom-se ao crime.
Quando houverom matado os emissários de longe 220


11




veio o rei irado e mandou, chamando os juízes:
Cada servo seja punido segundo os seos atos!
Pois os homens forom condenados à morte
mas o filho do rei intercedeu, explicando:
Muitos desses réus se desviarom sem dolo, 225
muitos arrependidos vão mudando seo rumo.
Há melhor maneira de consertar criminosos,
ama, perdoa quem não sabe o que faz e liberta.
Eu irei, direi a verdade e por fim morrerei!
Pois no sacrifício verão que a vida inocente 230
mesmo castigada è bonita, è melhor, è vitória.”
Mas um triste centúrio no seu diálogo interno
quer saber o valor dum sacrifício tamanho.
Pois decerto beirava a loucura tanta bondade,
ele sacrificar-se por esta grei truculenta! 235
Que verdade nova se esconde trás um mendigo,
corpo que adentra capitais ao lombo dum asno?
Nem bondade apaga o mal dum feito funesto
mas o novo rei mandará perdoar inimigos?
Certo o centurião negava um perdão inumano: 240


12




“Eu de fato não mereço esse tipo de gesto,
já me basta a punição, minha morte me basta!”
Como ouvisse do cavaleiro o sincero lamento
veio a fala qual se falara um sopro no lenho:
“Toma apenas teo rumo e diz a Roma o que viste! 245
Como não podes recuperar da cruz o cordeiro,
tão somente aceita o sangue aqui derramado,
faz este derradeiro favor e dom de respeito!”
Muito tempo um confundido centúrio reflete
vendo o soldado perfurar o cadáver coa lança. 250
Dentro da sua vida recôndita nada se move,
jorra somente pelo silêncio um líquido rubro,
fel revestindo como a chuva a terra sedenta.
Mas o homem d’armas num sobressalto inaudito
brada um repentino brado grave e longuíssimo, 255
brada no meio da gente levantando-se o grito.
Quem contudo acudia àquela estranha figura
frente à cruz ouvia um militar impassível:
“Hércules dê-lhe viço pois delira em fadiga.”
Eram lançados os dados como se nada ocorresse. 260


13




Ele, porém, repudiando uma cena impostora
monta o cavalo contra insuportável verdade,
dando esporas contrito e sobretudo apressado.
Mas o cavalo saltou, selvagem a presa do medo.
Inda que a mente longe tente manter o controle, 265
perde as rédeas soltas para o bicho indomado.
Vai lutando assustado, apalpa o nada co braço,
urge no meio do susto recuparar o equilíbrio.
Mas semelha à sombra a vida barca sem remo
quando vai passando à deriva, o rumo largado 270
contra a ventania feroz no abismo das ondas.
Ele se torce mas resiste em vão e despenca,
bate co rosto em queda contra a terra e poeira.
Mal se rasteja o centurião desdenhando socorro,
sangue borbotando a roupa dos pés à cabeça. 275
Como esquecido de si pensando apenas na gente
tenta erguer-se mais contendo o passo do bicho,
mas o equestre nervoso foge rumo ao deserto:
Não suportara tampouco a cena, morto no tronco
ser querido que os animais protegaram outrora, 280


14




quando na choça a mãe o dera à luz e temera –
fruto do quem o gado usau de mais piedade,
quem diria, que o raciocínio reto dos homens.
Pois tomarom ao braço o cavaleiro, seguindo
rumo à cidade e descendendo a pé pelo monte. 285
Veio porém de encontro, ai, miséria sem nome,
larga marcha morosa de velhos costados em varas.
Vendo o coro dos anciãos que passava curvado,
olhos direcionados à cruz, o ferido antecede:
“Procurais Jesus? Jesus morreu, peregrinos!” 290
Quando vislumbrarom já de perto o cadáver,
um dos idosos batendo fortemente no peito
joga o cajado e despedaça a roupa do corpo.
Cai de joelhos perante a multidão que se cala
vendo o pesar que José de Arimateia atestava. 295
Era um homem de forte paixão. Debalde continha
voz e verbo em vista à verdade, o mar prorrompia:
“Que vislumbro e que vejo nesta cruz renegada?
Vinde rasgar os vestuários que ainda me restam,
venha o verdugo destruir as minhas entranhas! 300


15




Que se passou, Israel, em este monte Calvário?
Eu não sei por onde vou, quem sou e que vejo:
Deus dos céus, foi este o homem que apenas amou?”
Mas desfalecia-lhe o fôlego e mal se expressava
quando arfando e vencendo novamente a vertigem 305
toma força, pergunta calmo e baixa o seo brado:
“Ele morreu? Os homens condenarom de fato
quem pregava amor ao próximo e doce verdade?
É mentira e não confio na cena que assisto:
Quero descobrir quem permitiu este crime! 310
É preciso coragem para crer no meu pranto
pois vivi demais, a desastres pouco resisto.
Custa crer, contudo a cena se impõe à cidade:
Foi crucificado, meo Deus, Jesus Nazareno!”
Mas Maria, a mãe de Tiago que ali se encontrava, 315
vendo o conselheiro alçar a voz transtornada
veio ouvir de perto o desandar das palavras.
Pondo as mãos sobre a sua pele, ia secando
pois suores dum velho que recusava consolo.
Quando o torturado a divisa, olhos nos olhos 320


16




tenta repreender querendo em vão argumento.
Mas Maria passava ainda ao ombro a destra
como lhe consolando a multidão de amarguras.
Foi então apontando o desconforto dos pobres:
“Que te ocorre, José? A sua mãe valerosa 325
sofre calada como a pedra velando sem termo.
Que valor tiveram os brados aqui derramados,
tanta dor, se a sua boca se abrisse gemendo
males da crucificação duma pura existência!
Onde já se viu a mãe dum homem sem erro 330
ver o fruto do próprio ventre morrer sem arrimo,
onde o doador de pães coroado de espinhos?
Onde se viu, pergunto, o curador de doenças
d’alma como do corpo pendido à cruz e cuspido,
núncio generoso de amor premiado com pregos? 335
Chora menos, senhor, o nosso pranto è bastante,
já não carecemos de exagerados lamentos.
Antes nos dá, José, teo generoso conselho,
sai do chão, José, e dá consolo a quem sofre.”
Mas o velho, rompendo a densidade da massa, 340


17




abre as alas da turba e chega à beira do toro
vendo Jesus suspenso, os desvalidos abaixo:
“Ó Israel, divide comigo a dor que te pesa
quando a vida è castigada e ninguém a defende.
Olha o teu passado e reflete: Antes morrêssemos 345
como escravos daquele Egito tumba de justos.
Resta o quê de nós, quebrados pelo deserto?
Basta um dia e já se reduz um povo a ruína.”
Mas perdendo o controle replica à mãe de Tiago:
“Nem consigo pensar num desfortunado destino 350
mas ousaste, mulher, pedir consolo e conselho?
Este velho que sou de nada sabe nem posso!
Era bonita a vida quando a vida era jovem,
quando na voz do salmo ressoava a sperança:
Eram poderosas as preces dum vivo lamento 355
quando redimindo a dor salvavam o mundo.
Tristes bocas forom convertidas em riso
quando o milagre dividiu a margem dos mares,
pois eo sei, o coração sincero consegue.
Mas o vento carregou para trás do deserto 360


18




nossa terra prometida e vitória do justo.
Onde estão os templos duma oração fervorosa
para que o tempo veja quanto amor construímos?
Nossos templos onde a paz consola os caídos,
onde se mata a sede das almas e a mágoa termina – 365
era bonita a vida quando a vida era o salmo.
Quando a lira evocava em Deus a força do escudo,
todo pranto era doce e toda a lida era alegre.
Hoje o canto se perde e vou passando meo rumo
vendo por onde passo o fim do canto e do passo. 370
Mas eo vivo e vivendo vejo o fim da esperança:
Vou-me embora, filhos, vou buscar o deserto,
vou morrer orando a Deus pelo bem de meu povo.”
Não, José, não fales assim porque te equivocas:
Foi bonita uma vida castigada e quebrada 375
quando se ergueu do chão desafiando o destino.
Uma coisa eo entendi no abandono da estrada:
Vem da vida quebrada a verdadeira esperança,
é na vida quebrada que a fé se torna coragem.
Esta foi a vida, ancião, que ergui da poeira 380


19




quando ouvi que Jesus se aproximava da estrada.
Pois contrariando a voz duma turba impostora
não me rendi: Busquei Jesus vencendo o destino
pois se a vida è spada meo Deus è meu escudo.
Não deixei para trás o trapo e tudo que havia 385
para enfraquecer meo passo perante a batalha:
Eu ergui minha voz pedindo a luz de meos olhos!
Mas Jesus não teria aberto meos olhos se o grito
não tivesse força e se a vida ficasse na estrada.
É para a vida castigada que o salmo se canta: 390
Deus se fez escudo, mas é preciso que o braço
tenha a coragem de erguê-lo contra a mão inimiga!
Ergue teo braço, ergue o teu escudo e defende
quem merece a verdade na vida como na morte!
Mas José ponderou, e enquanto ideias vagavam 395
um dos velhos do coro aproximou-se querendo:
“Vais buscar o deserto enquanto o povo padece?
Pensa melhor: Morrer orando a Deus è bonito,
mas melhor è morrer amando quem necessita.
Vais correr à sombra abandonada dos ermos? 400


20




Qual o valor da fuga quando o mal te persegue
toda parte? Irá contigo a cor desta imagem:
Morto na cruz Jesus Nazareno! Será verdade
mesmo que tudo è vão, nenhuma ajuda bemvinda?”
Mas José considera as palavras e vai escutando: 405
“Seja teu o destino. Se queres demérito foge,
vai-te embora ao rumo destruïdor da verdade!
Ó Israel, aurora vence o pranto das noites!
Ó Israel, confia em teu escudo e prossegue!”
Ele balançava a cabeça mirando a poeira, 410
ele reprimia nos olhos o peso das gotas
mas a voz insiste interrompendo o silêncio:
“Não è esta a retidão que se espera dum homem
forte e poderoso e reparador de seo povo,
pois a dor è de todos mas poder è de poucos. 415
Usa o bom império que tens, consola caídos,
não agraves as desesperações desta turba!
Inda negas o braço desdizendo os aflitos?
Age bem primeiro, morre depois como o justo!”
Pois José de Arimateia ergueu-se com força 420


21




quando a voz se calou: O conselheiro suspira,
toma às mãos o cajado lançado à terra e seguro
bate ao chão, impressionando os ouvidos e os olhos.
Quando a massa agitada se volta e cala esperando,
súbito o homem pronuncia perante os ouvintes: 425
“Descam da cruz por piedade o corpo vergado,
descam da cruz o nosso bom Jesus Nazareno!
Quero ter nos braços meu Jesus Nazareno!
Seja entregue o curador de vidas ao túmulo
pois morreu! Descei da cruz a vida sem crime, 430
mãos de Roma: Condenastes o homem errado.”
Mas soldados gargalhando olhavam-se atônitos,
punho à boca cobrindo coalgum pudor o deleite.
Como o velho insistisse, reportarom guerreiros
ordem de Roma e razão por que não fosse possível: 435
Pôncio Pilatos apenas possui poder sobre a pena.
Isto ouvindo, José cismando hesita um momento,
mas reflete inopinado uma empresa arriscada.
Era preciso agir porquanto o tempo passava
mas o pranto dos inocentes consolo aguardava. 440
Pois o velho batendo ao chão co mesmo cajado
jura aos soldados misturando lágrima e fogo:
“Pôncio Pilatos há de baixar da cruz este corpo!”


Paixões Folha III






III





Medo arrebatou os rostos no monte Calvário
quando José, tomando nova força no passo, 445
vara à mão, prossegue rumo a Pôncio Pilatos.
Mas o destino muda repentino os seos planos
quando se avança transtornada a mãe de Tiago:
“Spera!” Ela duvidava da empresa arriscada,
pois ainda que desejasse o socorro das horas 450
era grave o perigo que os peregrinos corriam.
Como deixar passar uma caravana de simples
sem nenhum poder ou proteção de peritos?
Ela entrevia carnificina às portas do paço,
como seria constrangida a língua de audazes, 455
como vexada de açoite e morte quiçá. Impedia:
“Tem piedade, José, da nossa gente e pondera!
Crês que alguém de tal governo como Pilatos,
ora que inesitante lançove à morte inocentes
tenha ainda a paciência de ouvir teo relato? 460


23




É demais a tua audácia, perdeste o juízo?
Pois se até Jesus foi relegado à madeira
quanto mais se fará de nós atordoados?
Nada somos, somos terra e sombra esquecida!
Usa de graça porque temos muito a temer, 465
já nos basta a punição que acabaumos de ver.
Não desafies contra o fraco o gládio do forte!
Não queremos senão a paz que dói nos vencidos.
Cura não sofras tu dum sacrifício cruento,
paga que o poderoso guarda ao gabo do servo. 470
Salva a própria vida pois a nossa è perdida:
Pôncio Pilatos nunca acedeu a falas afoitas.”
Algo de certo certamente havia no apelo,
tanto que alguns titubeavam já pelo rumo.
Mas um vulto conhecido se avança valente, 475
toma voz interrompendo a mãe que falava:
“Isto veremos!” O verbo reverbera no ouvido.
Era aquele centúrio que proferia em rugindo:
Eis o bom emprego que cobiçava das armas!
Era chegado, pensava, ensejo muito esperado, 480


24




hora honrosa. A fala ressaltava a coragem:
“Quero morrer, mulher, se minha mão poderosa
dere José, que defendo, a militares lazeres.
Quero que trogloditas me partam em quatro,
Cérbero venha contra mim se José perecere. 485
Sangue demais foi derramado e sangue inocente!
Pois se mais alguém se crucificare por hoje
quero destruir o mundo inteiro na espada:
Roma e Grécia sentirão a força das armas.
Mas eo sei que Roma escuta conselho correto: 490
Dá-me as mãos, José, porque Pilatos aguarda!”
Mas José, tomado de amor pelo ímpeto heroico,
poupa ao valente mais palavras, dizendo sereno
tanto ao guerreiro quanto àquela mulher abalada:
“Não me importa mais viver, morrer nõ importa. 495
Ora, se até Jesus foi morto na cruz que diviso,
que destino e fortuna esperarei neste mundo?
Muitas vezes morrer è melhor escolha que a vida
nem me incomoda a recompensa das mãos de Pilatos!
Quero cumprir um dever divino a Jesus Nazareno. 500


25




Tenho confiança na fé vencedora dos mares:
Pôncio Pilatos, repito, há de ouvir o conselho!”
Um e outro soldado impressionando-se agora
vem ofertar a mão ao centurião corajoso,
medo e confiança mesclados em cada rosto. 505
Antes porém que descendessem rumo ao governo,
outra mulher aparecendo interrompe a jornada.
Vinha arfando em longa andança quase correndo,
pouco a pouco tomando forma incrível aos olhos.
Mal se sabia como ainda em pé se mantinha: 510
Magra, mostrava claro que padecia de fome,
certo chorara quïeta ao chão por horas inteiras.
Mas a faminta não vem pedir em causa própria,
antes sussurra desesperantes apelos aos velhos:
“Como vos expeçais a tão perigosa jornada 515
quero apenas depor a vossos pés que se agitam
minha requesta, dom decente a meo caro defunto:
Quero embalsamar este corpo e preciso de aromas.
Não volteis por favor de mãos vazias, guerreiros,
mas trazei unguento, flores, óleo, fragrância: 520


26




Hei de ungir o corpo do nosso rei generoso!”
Mas uma voz da massa interrompendo pondera:
Onde buscar espécias frente a tanto perigo?
Mal consegue conter na boca efusão de palavras:
“Ó Madalena! Como pedes ora fragrâncias? 525
Vão de rumo incerto e pouco sabem se voltam.
Inda cogitas tenham tempo a dar a perfumos,
ver unguentos quando a morte certa ameaça?
São vahidades da tua mente e menções levianas!
Onde comprarão compostos caros de aromas, 530
perda de tanta prata por pouco, nulho proveito?
Pois olores passam e resta somente a tristeza.
Ousas pedir? O defunto carece mesmo de leito,
nem a cova temos e queres cobri-lo de aromas?
Não te basta arriscarem a própria vida na rota? 535
Cala a tua boca e seca os olhos dos outros:
Não perturbes quem se sacrifica de graça.”
Poucos sabiam donde aquela mulher proviera,
mas as palavras reverberavam fundo na turba
como nos velhos, cientes da retidão que apelava. 540


27




Ora, Madalena insistindo ganhava os afetos:
Novo debate tomau lugar dividindo os espíritos,
pois alguns sorriam de espanto, outros revolta
quase ante aquela inusitada demanda de olores.
Quem julgara ser, rogando favor semelhante? 545
Ela, contudo, acostumada a lidar com agreste
gente sempre pronta a desaprovar as vidas,
não se abalou. Pedindo novamente desculpas
como se ali falasse a juízes, olhava baixo
mas a voz elevava o seu apelo aos senhores, 550
simples, no entanto firme no coração que retinha:
“Grandes de Hierusalém, por piedade escutade!
Quero saber de quem impede uma coisa somente:
É correto alguém tomar dum empréstimo farto,
força, auxílio, compaixão que não se merece 555
sem um gesto de gratidão conquanto modesto?
Eu seria a mais infeliz existência das eras –
Deus me concedendo um reino mas eu renegando.
É preciso alguém erguer do chão vossas vidas:
Deste modo soubéreis quem eo sejo e veríeis 560


28




como Deus alevanta quem o mundo derruba.
Disse Jesus uma feita à mesa quando escutava:
Dous devedores havia, um duma grande quantia,
doutro pequena. Mas o credor dos dous devedores
ambos quitou de toda dívida. Pois indaguemos: 565
Quem dos dous lhe teve mais amor e respeito?”
Ora Madalena apontava a Jesus pendurado.
Quem de fato è mais perdoado mais agradece:
Era afeto patente que tal mulher alentava.
Homens indiferentes miravam o rosto rugoso 570
como duvidando talvez que um justo profeta
fosse capaz de apiedar-se dum tal indivíduo.
Não mentiam de fato traços dum rosto rasgado,
faces fortemente alçadas no impulso da fala.
Mas a mulher continuava explicando seo caso: 575
“Muito me deu e muito perdoáve este homem,
é chegada a vez de retribuir, peregrinos!
Mas de vós apenas pouco se pode esperar e
nem atendo, sei que desprezais meo pedido.
Corpos impuros como a derrocada do inferno, 580


29




ímpios de toda sorte vós ungis de perfumos.
Este porém deixais aqui, entregue à vergonha:
Ó Isreal! Eo não entendo o que vejo nem sinto!
Cada um oferece aos bons a prenda que pode
nem vos condeno e contudo condenais Madalena. 585
Vai o centurião defendendo José de Pilatos,
vai José rogando-lhe o corpo e dom duma cova
mas não posso pedir, eo não, a minha fragrância!
É demais entrar numa tenda buscando uma essência!
Ó lastimosos atos que a vida assiste e pranteia, 590
homens de grande nome e tão pequeno respeito.
Mas sereis ingratos a sós, irei de meo rumo!
Vou comprar o óleo que cabe a Jesus Nazareno,
vou buscar a sós nos ermos o aroma do eterno.”
Ela, alevantando-se bamba, escora-se a braços, 595
vaga atônita, vai procurando a cruz em silêncio.
Limpa então dos olhos vermelhantes o pranto
para tocar o tronco, para ungir o inocente
como se aquelas gotas emanassem fragrância.
Vai por fim descendo embora rumo à cidade 600


30




mas um vulto conhecido intervém: O centúrio
qual se reconhecesse a dor deteve-lhe a marcha:
“Spera, Madalena! Fica e socorre estes outros,
dá consolo à mãe que chora o crime infinito.
Não te desesperes porque traremos essências!” 605
Lá se forom repentinos, seguidos de poucos
velhos andando logo e como a força deixava,
quase tentando correr por ansiedade e coragem.
Forom-se, desaparecendo ligeiro e deixando
muitos outros desconfortados, a mente abalada. 610
Quem sabia se ainda ali voltavam coa nova?
Ante o temor a turba busca em vão o verdugo,
homem ao qual increpar a vida crucificada.
Judas Iscariotes! Por quantas vezes o nome
foi maldito na massa e novas buscas lançadas! 615
Onde, pois, estranhos indagavam de estranhos,
foi esconder de nós uma vergonhosa presença?
Como ousou trair e vender Jesus Nazareno?
Venha dizer ao condenado a razão deste crime!
Mas a turba nada escutara do fado de Judas. 620


31




Quando o núncio se aproxima de longe apressado,
súbito a mãe de Tiago pressentindo a notícia
toma pelo braço o novo estranho, implorando:
“Que desgracioso mal te traz ao Calvário?”
Vendo aglomeradas tantas presas da espera 625
quase hostil no desespero, o núncio de longe
prestes a dar a sua mensagem pediu a palavra.
Quando houverom visto naqueles olhos a gota,
houve silêncio grave enquanto a boca entoava:
“Justos, è nesta cima que pende Jesus Nazareno? 630
Venho pois a mando dum homem ora abismado,
trago novas que a boca preferiria impossíveis.
Poupa vigor nessas mãos furiosas, turba tremenda,
foi-se já deste mundo a causa do vosso desgaste!
Judas lançau-se duma altíssima forca na estrada. 635
Roga apenas dizer que ainda hoje na aurora
foi falar com aqueles a quem vendera seo mestre.
Trinta moedas jogou de si pedindo e bradando:
– Dai de volta o bom Jesus e tomai vossa prata.
Grave erro ocorreu, juízes, eo quero levá-lo! – 640


32




Era tarde demais, o seu remorso era tarde.
Indo pois às ribanceiras dum monte elevado
disse-me quando me viu enquanto ali trabalhava:
– Vai àquele monte dos retos, pastor, o Calvário,
diz o quanto viste e quantos puderes consola. 645
Chega ao fim meo erro e minha vida se acaba
pela forca e pela ofensa maior do que a forca.
Pois aprende comigo como termina a vergonha
nem relates as gotas dum pranto vão que derramo:
Quem se perdeu como eu merece apenas o ódio 650
frente a triste memória dum vergonhoso momento!
Era um homem correto e redentor de perdidos,
foi um homem de Deus que condenei ao suplício!
Foi num gesto confuso e transtornado que Judas
destruiu seo mestre, a sua vida e seo povo. 655
É pequeno, bom pastor, o abismo a que salto:
É que não avistai por perto um maior precipício
nem me permito tempo, ca nem na busca da morte
fora-me lícito andar um dia a mais neste mundo. –
Ele calou, romeiros, e assim calado lançou-se. 660


33




Vi cair das suas mãos o resto dalgumas moedas,
vi rolar e desaparecer pelo chão poeirento.”
Pois assim narrou o pastor da sombra que cega
pelo caminho quem procurava apenas a estrela.
Mas será que a veremos iluminar os abismos 665
onde o passo desavisado perde o seu rumo?
Pois assim narrou o pastor, calando ouvintes
almas dum caso triste e contritor de juízes.
É bonito o perdão aos arrependidos dum crime
pois maior que o crime infinito è perdão infinito. 670
Ó, filhinhos, o coração è pequeno mas grande
foi a vida de quem bradau à beira da morte:
“Pai, perdoa! Eles não sabem o mal que fazem.”
Ele chorou da cruz por essas mãos criminosas
pois è fácil planger a vida santa e sem erro. 675
Mas o pastor que silenciara o monte Calvário
foi baixando e balançando lento a cabeça,
foi notando os rostos e completando a verdade:
“Era esta a novidade que tinha a dizer-vos.
Ora que tudo ouvistes, irei embora se posso 680


34




rumo ao campo que atende. Já me pesam os olhos
vendo pregada naquela cruz a causa da mágoa,
dor que a minha boca aumenta e perturba somente.”
Vai saindo confuso e sem ninguém que o despeça:
Era apenas a mãe de Jesus que chorava serena, 685
era a mãe de Jesus que agradecia a coragem.
Judas morrera! Mas uma gente ainda esperava
pela noite a grande notícia, José, o centúrio:
Iam passando amargamente as vidas e as horas.





IV




Mas Pilatos passa apressado quando vislumbra 690
juntos José de Arimateia, o centúrio, soldados.
Para um momento e percebendo a dor do semblante
cede ao peregrino, responde irritado entretanto:
“Quem me procura? Tu, andante? Diz o que queres,
anda, o tempo è curto: Expõe teo caso e veremos.” 695
Já com isto um centurião se abateu no seo canto,
já sabia a dificuldade da causa e dos homens.
Viu que José ponderava procurando as palavras
pelo silêncio enquanto Pilatos olhava inquïeto.
Era preciso tomar o ensejo, usar hombridade, 700


35




era importante agir porque José se calava.
Pois o bom amigo acorreu quebrando o receio,
ele que afeito à guerra nada mais receava.
Inda soava na sombra o temor da voz de Pilatos
quando o centurião abriu a boca explicando: 705
“Este homem aqui, senhor, è José do sinédrio!
Vem do Calvário testemunhar um crime hediondo
pelo que foi lançado à lama o nome de Roma:
Foi de fato punido um homem de bem e divino
quando lavaste as mãos àquela morte inocente! 710
Quem enxergasse longe a cruz ao ombro sangrando
certo veria Jesus, calado enquanto apanhava
tantos golpes dum povo desordenado nas ruas!
Quem deixou cair sem mão nenhuma de amparo,
quem, uma vida quebrada a carregar uma cruz? 715
Era mais pesada que a vida o pedaço de tronco!
Certo se apiedou quem viu cair nas vielas
este inocente, o trapo despedaçado, o sangrento
lauro de espinhos cravado no crânio. Era Jesus!
Quem de fato assistiu uma injustiça inaudita 720


36




certo caiu por terra, certo orou por clemência.
Quase saltei a tomar daquelas mãos a madeira
quando a voz ofegante disse aos desesperados:
Filhas de Hierusalém, chorade vossos rebentos!
Era de Deus este homem! Inda deitado no tronco, 725
ele pediu ao céu que perdoasse o verdugo!
Ele chorou, porque ninguém sabia o que agia.
Hoje estarás no céu, promete ao ladrão renovado:
Foi distinto o valor de quem perdoau condenados,
era um deus este homem, era um homem sem erro. 730
Quem passava longe e não entendia a verdade
vinha perto ouvir que triste evento assomava:
Era então Barrabás que fugia causando tumulto?
Não, senhor, não era a rebelião dos imundos.
Era Jesus que carregava uma cruz criminosa, 735
era o grito dos odiosos e o pranto de amigos.
Não, senhor, Jesus não merecia esta morte
pois Jesus era amado e proclamava a bondade.
Ele morreu, mas era nosso o dever da verdade
como a resposta a quem indigava: Ele foi morto, 740


37




sim, cravarom à cruz o punho que apenas curava!
Eu não quero falar porque palavra è poeira
mas poeira passa e fica o que è dor de verdade.
Ouve José que vem pedir um favor diminuto:
Vem pedir por quem morreu e não pode falar!” 745
Mas Pilatos por um momento baixa a cabeça:
Vai ouvindo calado aquele mar de palavras.
Inda lembra quando no meio da noite sonhava
sua esposa: Pôncio, deixa em paz este homem!
Era então o presságio da verdadeira inocência? 750
É difícil demais amar as pessoas singelas,
é demais para o mundo a sua vida sincera.
Passa pela estrada o destruïdor de pequenos,
passa sem medo o malfeitor e dono do mundo.
Mas a vida que fala duma esperança serena 755
vive esquecida e castigada no meio do povo.
Vem o ladrão carregar o fruto de quem trabalha,
foge e ganha o mundo usurpador de tesouros.
Mas o doador de alegria que ampara caídos
tem de morrer na cruz, sem crime e sem alegria. 760


38




Sim, decerto foi correto o clamor dum distante
sonho pedindo: Pôncio, deixa em paz este homem!
Era um homem que ensinava uma vida bonita.
Era um homem pregando amor, perdão, piedade.
Foi um crime nascer um consolador de abatidos? 765
É direito e tesouro dos criminosos somente
ver o lírio do campo e ver o céu estrelado?
Quando da estrela revelou-se uma triste verdade,
ela acordou, e sentindo o gosto do sonho chorou.
Pois o fim se aproximava dum homem sem crime, 770
vinha pelas mãos do próprio esposo a certeza!
Não, Pilatos: Poupa um homem bom dessa morte!
Pensa na mãe que além da dor dum filho perdido
tem de saber que chora por um filho inocente.
Mas na noite a palavra certa è sonho somente, 775
pois a noite sim esconde o desassossego das mães.
Era sua a razão! Uma voz piedosa intervinha
pelo amor: Por que deixar de ouvir o seo sonho?
Era um sonho bonito! Era melhor do que o mundo!
Mas qualquer que seja sonho è melhor e Pilatos 780


39




vendo por sua vez o rosto do mundo suspira:
“Homens de Hierusalém, percebo a vossa perfídia
como repetis a mentira instigando guerreiros
contra a minha vida e desdizendo o governo.
Mas ouvi-me atentos pois vos devo a verdade, 785
devo mostrar o erro que corrompeu vossa mente,
eu, que apenas quis salvar uma vida inocente.
Quantas vezes o povo insistiu, num único dia,
quantas vezes enfurecido pediu que morresse?
Pondes um bom na cruz e agora chorais o crime? 790
Cedo esquecestes quanto ódio ocupau este paço,
como durante horas a turba ordenava o suplício!
Certo olvidais a minha relutância dizendo:
Este homem è bom, condenais uma vida sem erro.
Mas por que me torturais torturando um carente? 795
Sede justos comigo, vós que tapastes o ouvido
quando a minha tristeza desafiava assassinos:
Que pecado este homem calado fez que mereça
morte na cruz, por que punir uma vida serena?
Vejo que cedo vos esqueceis da romana clemência 800


40




como da intervenção que usei pedindo prudência.
Mesmo a minha esposa se apiedou dum bendito,
ela que nunca o viu mas conheceu sua pena.
Ela sonhou dizendo: Poupa da cruz este homem!
Só precisei de ver a vida que tanto acusavam 805
para entender uma crassa verdade: Nada fizeste!
Tu que o mundo inteiro condena: Nada fizeste!
Eu, contudo, cujo nome era um nome correto,
eu lançai à lama num só momento o meu nome.
Ora eo sei que a vida quando despreza um sonho 810
perde pelo arrependimento o resto das noites.
Ora eo sei que o coração que falava dos olhos
era maior que o sonho e que esta vida no mundo.
Ele me olhou nos olhos recusando as palavras
pois, centúrio, disseste bem: Palavra è poeira. 815
Que bonita a vida de quem não viu e acredita!
Que vergonha è ver um homem daquela verdade
como vi de perto e deixar morrer a verdade!
Esta vida è tão somente ambição de tesouros!
Foi errado, foi desperdício nascer este homem: 820


41




Foi errado destino passar pelo meu caminho
quando vendo a luz perguntei: Por que te calaste?
Ele não foi, coitado, capaz de erguer sua voz,
era sem palavra a tristeza maior do que o sonho.
Não havia expressão de denunciar a injustiça 825
nem precisava: Bastava ver, a verdade falava.
Pois eo vi, e como um cego que a luz generosa
duma aurora divina cura, entendi num momento:
És o sacrifício do sol num mundo de cegos!
Pois è esta perante nós a balança das coisas: 830
Ele abriu meos olhos, mas eu fechai os seus.
Ele estendeu as mãos mas eu lavai minhas mãos.
Antes da hora eo fiz o sol se pôr, anoitece:
Tarde lamenta o mal quem cedo mal se lamenta!
Mas a vida segue, è esta, anciãos, a verdade: 835
Que quereis de mim que despedacei uma estrela?
Não è justo erguerdes esta voz que me acaba
quando esperei por vós perante a massa agitada.
Como è triste e desastrosa esta vossa jornada:
Pôs-se o sol, a verdade, o sonho desvaneceu-se. 840


42




Ide embora! No tempo o que se fez està feito.”
Houve surpresa e pesar no centurião que falara
como nos outros pela espera dum longo silêncio.
Era a coragem que parecia faltar a quem teme,
mas José de Arimateia pondera e responde: 845
“Homem de Roma, concede ao ancião derribado
pela sombra um derradeiro favor que te peço.
Quero descer da cruz Jesus que morreu inocente!
Quero carregar e subir uma escada bondosa:
Eu tirarei dum rosto amado a coroa de espinhos, 850
eu tomarei nas minhas mãos os pregos e o corpo.
Quando Jesus repousar no meu abraço tardio,
quero deitar a carne castigada entre as flores.
Trago comigo o tecido apagador da vergonha,
sei de muitas mãos que já preparam perfumes. 855
Nunca nestas terras se viu tamanha clemência
nem o homem rude ouviu sem desassossego:
Não duvido da tua angústia, tremendo remorso.
Sei que muito fizeres para salvar meo amigo:
Mas ainda podes, Pilatos, salvar meo amigo, 860


43




dar amor senão aos vivos ao menos aos mortos.
Antes de lamentares a negligência dos sonhos,
deixa-me remover da cruz o crime que choras.
Pois Jesus se tinha culpa, a culpa està paga,
mas se foi inocente o crime è ficar onde está.” 865
Pôncio Pilatos interrompe, confuso, agitado:
“Para, audaz, a lei de Roma proíbe o que pedes,
antes, quem morreu na cruz na cruz apodreça!
Olha bem onde estás e vê melhor a quem falas!
Sou juiz duma lei que paira acima de todos, 870
cumpro não o que quero mas somente o que devo.
Pois eo dei a escolha, avisei: Estais enganados!
Mas o povo escolheu, cumpri, lavei minhas mãos!
Não me arroguei o nome de salvador deste mundo,
posso sim punir-vos por desacato ao mandado. 875
Eu, se pudesse, buscava a derrocada do tempo
como lançava à cruz um povo inteiro de estultos.
Eu, se soubesse que è isto a vida em nome de Roma,
certo seria meu o cadáver que pende no tronco.
Como a vida engana, como a vida è desgosto! 880


44




Não aguardeis porém que minhas mãos vos assolem
como em dira sevícia nunca vista no inferno!
Nada me custa de fato crucificar os milhares:
Já que morreu Jesus, de que me vale esse resto?
Morra consigo a raça desgraçada dos homens! 885
Quem morreu na cruz, ancião, na cruz apodreça!”
Mas José se confirma perante Pôncio Pilatos:
“Lei è lei, senhor, mas uma coisa è verdade:
Esta minha gente de hebreus merece respeito.
Não confundas este povo com turba agitada, 890
pois o povo hebreu também sou eu que te pede:
Quero descer meo amigo daquela cruz indevida
pois morreu amando Israel, Israel não se esquece.
Não esqueço também que sou José do sinédrio,
vida que vivo pelo amor de Israel e que insisto: 895
Quero prestar a Jesus um derradeiro seviço,
eu, que ouvi demais ultrajes contra meo povo,
eu, que represento o sinédrio pai desta terra.
Lei meo povo tem também, escuta o meo povo:
Não apodreça na cruz um criminoso sem crime! 900


45




Lei de Israel è a lei da consciência que sabes
pois falou por um sonho portador da verdade –
quando uma voz tamanha ordena ao juiz piedade
como abafar o peito em nome dum mero tumulto?
Como ouvir da voz dos atordoados «condena!» 905
quando a voz do coração implorava «liberta!»?
Pois, Romano, agiste mal, condenaste uma gente
quando chamaste «povo hebreu» a voz da injustiça.
Não te defendas! Tu permitiste, tu condenaste!
Mas será pela lei de Roma que deste essa ordem? 910
Quando a turba de paus e pedra e palavras de ódio
pede a morte dum desarmado, calado e ferido,
eles passam impunes e o outro morre na cruz?
Mas se a lei de Roma è isto e isto è justiça,
nem meo povo nem Roma pede lei nem justiça. 915
Já bastava o sonho que não se escreve direito.
Ele calou, porquanto a vida que odeia não ouve,
era em vão falar se o próprio olhar atestava:
Ele baixou a cabeça ensanguentada e cravado
pelos espinhos um piedoso pediu piedade. 920


46




Não tiveste, Pilatos, mas eu terei que te peço:
Quero mostrar à cruz o coração de meo povo!”
Ó Israel, confia em quem te ajuda e te abriga!
Lá se afirmava frente ao sólio de Roma coragem
pela boca dum homem defensor de ofendidos, 925
pois Jesus Nazareno apiedou-se de todos
mas ninguém se apiedou de Jesus Nazareno.
Contra uma sina ingrata alevantou seo escudo
forte José de Arimateia e Pilatos calou-se.
Não permitiu, fiel de Davi, a cruz do inocente, 930
não cedeu, Israel venceu a dor de seo povo.
Mas Pilatos concatenando no escuro se aflige:
Eu busquei, pensou, quem defendesse essa vida,
pela turba passava os olhos buscando meo sonho
mas o sonho era meu e não passava na turba. 935
Era por mim que aquele sonho esperava nascer,
como o sol que não nasce por vontade da turba
mas è filho da noite encubadora dos sonhos.
Era eu esta noite, em mim a verdade encubava
pelas estrelas o sonho redentor desta turba. 940


47




Pois percebo tarde o sacrifício da excelsa
strela neste mundo sem lei que è lei de verdade. –
Ele assim pensou, e como assim meditasse
disse: “Podem tirar da cruz aquele inocente,
podem tirar se quiserem.” E balançando a cabeça 945
como um navio distante flutuando nas ondas,
Pôncio Pilatos fita a sombra em busca incerta:
“Podem descer daquela cruz Jesus Nazareno!”
Fala reticente, acena e mostra o Calvário
pelo meneio cansado e desgostoso dos dedos. 950
Nada resta a dizer e nem por isto o silêncio
cura angústia nem o amor da inocência perdida.
Mas Pilatos intenta um derradeiro discurso:
Abre a boca, vai buscando alguma palavra,
vai tentando transcender um sopro vazio. 955
É em vão, desiste quando a destra que treme
toca o peito como se fundo uma gruta doesse.
Põe a cabeça entre as mãos e desaparece do adro,
entra embora calado pela sombra que esquece!
Mas escurece e José de Arimateia se apressa. 960


Paixões Folha IV






V





Era quase de noite e como as pedras rolava
pelas vielas ensanguentadas ora a lembrança.
Mas José de Arimateia recorda um pedido:
Inda cumpria buscar na vila mistura de óleos.
Indo pela sombra parava estranhos querendo: 965
“Quem de vós me vende o perfume da boa morte?
Meu amigo morreu, matarom Jesus meo amigo!”
Quantos ouviam porém passavam reto e calados.
Era de festa o dia e contudo a porta das tendas
não se abria quando de fora uma voz conclamava: 970
“Quero comprar o perfume maior da boa morte,
quero comprar, eo pago, quero ungir meo amigo!”
Nem palavras do hebreu, do centurião e soldados,
nem os lamentos comoverom o peito dos surdos.
“Meu Jesus que morreu e cuja vida era essência 975
não merece nem perfume nem tenda que o venda?”
Pois no silêncio forom-se dando conta das coisas
como se um raio lhes revelasse a verdade do escuro:
Desde que o éden viu correr a primeira das lágrimas
foi lançada a nossa nudez ao caos do abandono. 980


49




Desde que a mão bateu por vez primeira o confrade
fez-se dona então do prisco império das coisas.
Foi além queimar as casas e a lida dos mansos,
foi tomando de várias armas e agitos ferozes.
Desde então um desassossego assoma existências 985
como um mal que domina o mundo, querela incurável.
Muitos forom buscando a causa dum longo infortúnio
crendo que a tanta dor insana seguissem ensinos.
Mas a vida acusa em nós uma triste verdade:
Ódio, guerra e morte, inimizade e desprezo 990
são as maiores artes que nossa história criou.
Inda ressoa a voz magistral: “Caim, que fizeste?”
Inda verbera o suplício de Abel desumana memória
como entristece aos anjos a derrocada de Adão.
Era tão belo o sereno jardim que outrora abrigava 995
nossas vidas, era formosa a flor da esperança.
Quanto pranto, em qual desgracioso suspiro
vemos, Deus, que paraíso e fortuna deixaumos.
Ora o perdimento de nossos passos se arrasta
pelo mundo testemunhado uma raça danada. 1000


50




Ora a felicidade cabe somente nos sonhos
onde a sombra das árvores foi serena certeza.
Voz que nos fez deitar em verdes pastos outroras,
ai, por qual desventurosa ilusão te trocaumos.
Era nosso o caminho, a verdade, a vida e perdemos 1005
nossa alegria pelos vãos duma triste ambição.
Somos contrita gente e nosso pranto è tardio:
Abre-te, inferno, devora o mal de nós condenados!
Mas espera! Antes que venhas ouve o pequeno
canto do amor buscando essência pelas estradas. 1010
Passa na sombra deixando a cor duma imagem bondosa,
luz que consola um pouco o peso de nossos olhos:
É verdade que amigos do bom Jesus prosseguiam
pela noite como o brilho na estrela d’aurora?
É verdade que impunham àquela sombra da morte 1015
pelos vãos a felicidade d’árvore da vida?
Há de fato um campo longe e sagrado recanto
cujos pomos son puros e já maiores que a fome.
Quando ali se reencontram as almas e os anjos
finda a dor e a flor exala um eterno esplendor. 1020


51




Passa pelo prado um sopro santo e preenche
como olor da verdade as vidas, perene união.
Nem por ali se ouviu clamor saudoso de mundo!
Mas è mundo o que somos e caminhamos no mundo
longe da trilha cujo fim è maior do que o mundo. 1025
É caminho estreito e por entre veigas estreitas
ora andavam amigos dum homem atado à madeira.
Somos mundo e Jesus, sentindo o gosto do mundo,
ele também buscara na noite um singelo jardim.
Ele pousara os olhos na sombra duma oliveira 1030
como quem nela visse a mãe de todas as árvores.
Ele chorou, e rogando a Deus redentora vontade
foi lançado ao tronco que carregou pelas ruas.
Pois morreu, abraçado às árvores filhas da vida,
mães da verdadeira amizade e saudade do éden. 1035
Mas também os olhos sofrerom no dia da sombra:
Ora José de Arimateia buscava apressado
junto a seus amigos amor dum ser condenado.
Inda exalavam as casas um cheiro de pães
ora mesclado aos sentimentos acres da rua. 1040


52




Viu-se um centurião que desafiando feridas
junto a soldados acompanhava distinta jornada.
Longe ressoavam prantos, mas quem escutava?
Para o mundo, mundo è mero ocaso e deserto.
Quem lembrau nas mesmas ruas os ramos d’árvore, 1045
vestes de seda, as palmas estendidas em salvas
quando dias antes Jesus adentrara a cidade?
Nem uma doce fragrância agora ali se encontrava
nem unguento ou mercador de aromas amigo.
Não havia remédio ao curador de doenças? 1050
Era em vão bater de porta em porta esperando
certo milagre, em vão reter na rua passantes?
É soer de quem quer que passe passar apressado
nem mulheres carregando alabastros paravam.
Não vislumbrarom em parte alguma fonte de aromas 1055
nem a mão que lhes indicasse o rumo da ajuda.
Longe estava a mulher de Betânia cuja amizade
rara cobrira o Nazareno de cara fragrância.
Dói nas nossas almas a indiferença dos homens
como è duro o tempo a quem mendiga minutos. 1060


53




Mas José conselheiro pensa e para e suspira:
Bate o cajado rudemente ao chão poeirento
como se fosse quase o cetro dum rei poderoso.
Vai baixando seos olhos e apalpando paredes:
Mãos por sobre a poeira, ele derrama na areia 1065
lágrimas, lágrimas, lágrimas entregando a vida.
“Não merece nem perfume nem tenda que o venda
meu Jesus que morreu e cuja vida era essência?”
Como um náufrago tateando as ondas em triste
busca de tábua, ora José flutuava em seo pranto. 1070
Para com isto, José, levanta do chão tua vida
pois è forte a promessa do bom pastor e guarida.
Inda ressoa por entre montes e às margens do lago:
– Eu salverei, filhinhos, eu salvarei as ovelhas!
Bom pastor è quem sacrifica a vida por elas. – 1075
Ó que distinto o dia em que dois amigos se viram,
servo e senhor, e se amarom como iguais em amor.
Foi alegre o dia e feliz pescador o que ouvindo
«segue-me» abandonou do mundo o chão e seguiu.
Segue então, José, e deixa em paz essas pedras: 1080


54




Segue e verás que não em vão convenceste Pilatos!
Mas José, que concatenava confuso, repete:
“Quero comprar o perfume maior da boa morte,
quero comprar, eo pago, quero ungir meo amigo!”
Foi o centúrio que se abeirando dum diro naufrágio 1085
como bandeira de salvação estendeu-lhe seo braço.
Duas almas se olhando se revelarom queridas,
duas mãos se enlaçarom testemunhando vitória.
Deus se apieda sim de quem padece em seo pranto:
Pois, filhinhos, apareceu dos ermos um homem 1090
como enviado talvez duma existência melhor.
Vinha lento e carregava uma leva de vasos
pelos braços e pelas costas, puxando cansado.
Mas ao ver José que se amparava ao centúrio,
ele larga o que traz e inclui a mão ao socorro. 1095
Como o seo gesto repentino atraísse olhares,
ele então suspira e fraquejante pergunta:
“Sabe algum de vós, hebreus da santa cidade,
onde encontro a cruz que abateu Jesus Nazareno?”
“Queres mesmo saber?” o centurião dissuade. 1100


55




“Tanto luto adiante agravará teos suspiros!”
“Dizes bem”, responde, “pois que não imaginas
donde venho e quanto já perdi pela estrada:
Quero ver, Romano, a cruz de Jesus Nazareno!”
“És Nicodemos!” reconhece o coro dos velhos. 1105
“Era de festa o dia”, vai narrando episódios,
“eu de longe encomendara prenda aos amigos,
pronta estava a mesa, o pão, reunida a família.
Era de festa o dia! De toda parte arribavam
caros convidados, era manhã de alegria. 1110
Ai anciãos! Em este mundo è breve alegria.
Quando veio a nova da cruz em meio a rumores,
fora melhor se um relampo arrebentasse meo peito,
meu, que deixei de pronto para trás o que havia.
Pois mandei buscar a quadriga! Tomei às pressas 1115
prenda, prata, pão, tecido, o quanto coubesse
fiz caber. E desdenhando os apelos da esposa
vim varando, trazendo amigos e medo no peito.
Sob as minhas rédeas corriam quatro agitados,
era de dar inveja ao vento a veloz cavalgada. 1120


56




Mas hebreus, è verdade, a mão dos homens è fraca!
Quando passaumos a ponte, arrebentou-se a quadriga
pois a ponte era podre, enganador de esperança.
Nem me lembro de quanto tempo ruí derribado,
ai, reconhecendo o fim duma triste jornada, 1125
pelo chão as prendas, cavalos soltos ao vento.
Era tudo perdido e meo corpo mal que se erguia,
eu olhava o céu pedindo força, eo clamava!
Cada um apanhava algum punhado de coisas,
coisa que fosse, resgatando a ruína da areia. 1130
Era duro apressar o passo e cambaleaumos.
Foi então que entendi de que me valem amigos:
Quando surgiu no horizonte o vilarejo primeiro,
foi embora o primeiro amigo, dando por terra
todo o peso. Era um homem de muitas jornadas 1135
mas perdoo e não me importo, restava um outro.
Fomos cruzando o calor dum miserável deserto
junto a leões e cobras e tempestades de areia.
Quando surgiu no horizonte o vilarejo segundo,
foi embora de mim o segundo e nenhum me restou. 1140


57




Foi aí que atinei, hebreus, de que me valessem!
Nem por isto titubeei, que se nada me sobra
trago ao ombro o peso da própria vida e prossigo.
Bem sabia quão distante eo me achava do fim –
mal porém me importava perecer pela areia, 1145
mal importava tornar ao pó do qual me tornei.
Cada passo testemunhava o dever e a vergonha:
Meu amigo expirava na cruz e de longe eo passava,
mal prosseguia. Como vergava o cor fracassado!
Quantas vezes sozinho quis voltar o caminho, 1150
quantas vezes reergui minhas mãos ao deserto!
Mas è preciso mesmo na morte certa esperança.
É preciso que a vida seja digna dos passos
para que cada passo seja maior do que a vida.
Foi assim, hebreus, que aqui cheguei, foi assim! 1155
Onde encontro a cruz que abateu Jesus Nazareno?
Sei que è tarde, sei, mas quero ver meo amigo.
Sei que è pouco, sei, mas è de longe que eo trouxe
minha vida e pão, a prenda, prata e as essências:
Eu lhe trouxe o óleo dos aloés e o perfume. 1160


58




Onde encontro a cruz que abateu Jesus Nazareno?
Ora que Deus e o deserto me permitirom chegar,
ora eo quero levar ao grande rei renegado
meu pequeno tributo e destituto legado.”
Mas José se apieda, estende a mão, reconforta, 1165
ergue aos céus um novo rosto inundado de alívio.
Vão então atinando a quantidade de prendas:
Era o milagre interrompendo os olhos e a boca,
era o sacrifício do amor e o fim do destino.
Cada qual entendeu naquele instante a verdade: 1170
Quando o passo è firme a força vence o deserto.
“És Nicodemos!” o nome inesquecível soou
pelo coro dos fortes, professor da vitória.
“Donde vieste?” a voz do centurião se confirma.
“Mostra o deserto, a ponte, quero ver a estrada, 1175
quero saber o rumo em que o vento curva-se à vida!
Mas soldados, ora que o homem mostra o caminho
vamos seguir e ver se achamos mais provimento!
Quanto a ti, guerreiro e verdadeiro que és,
ergue teo rosto como compete ao homem que és! 1180


59




Ora que o passo atravessou o deserto e venceste,
cumpre vencer a cruz que abateu Jesus Nazareno.
Vem, Nicodemos, mesclemos nosso viço guerreiro:
Vamos descer daquela cruz o corpo de Cristo!”





VI




Nuvens que recobris a solidão das estrelas, 1185
vosso ventre onusto è carregado de morte.
Fúria destruïdora, os condenados da sombra
tremem no raio quando o trom castiga pequenos,
quando o peito firme se torna escravo do medo.
Quando velocidades colidem umas às outras 1190
ruge o trovão – o inferno para as almas inermes,
pouco auxílio fuga e quadriga no dia do abismo:
Como se fosse fraco na estrada o forte tropeça
frente à caravana escura e tambor da verdade.
Quantos pobres ais, tempestade, forom tragados, 1195
vida levada ao vento em tenebrosa tormenta.
Vara a morte impune a florescência da terra,
sorve extrema pedras e vida, invicta inimiga.
Quanto amor em fogo e cabais impérios delidos!
Pobre a mão que houvere feito casa sem base, 1200


60




casa sem fundo – vem do rio incerto a corrente
contra parede e teto que a mão ergueve apressada,
desce a procela e logo aquela casa desaba –
falsa esperança e ruína de quem pedira refúgio.
Mas o mar se esqueceu de naufragados espíritos! 1205
Céus que amais o fraco! O mundo è tão generoso,
tão formosos os seres: Por que nos traga o dilúvio,
morbo, moções de terra e fogo e medo sem nome?
Lida vagante, por que, se tão falidos estamos,
tanto abalo se abate em toda parte implacável? 1210
Quando a treva cobriu o céu da santa cidade,
viu-se apenas a bruma rubente sobre a muralha.
Não bastava mais a luz duma vela a si mesma,
não existia lanterna contra o sopro raivoso.
Era perdida a palma da própria mão estendida, 1215
era abafado pelas brumas o brado da angústia.
Vinham as fúrias misturando os ares e areia
pela porta e janela aberta e pelos buracos.
Quem corria na rua surda e muda e sem rumo
mal visava o fim da constância ferindo edifícios, 1220


61




gotas martelando golpe às faces e às rochas.
Como um pesado alabastro derramado de súbito
chove a tormenta e faz fugaz o abrigo dum teto.
Deixa cair num lance apenas o fel das estrelas,
onda varrendo além os vasos pelas esquinas. 1225
Era em vão a mão pregar-se em viga vultosa,
pau que resistisse o fluxo, confusa enxurrada.
Quando os dedos pareciam pegar-se ao socorro,
vento assomava e lançava de ribas corpos e almas.
Quem porém vencia o sopro correndo por portas 1230
era detido pelos trovões, engolidos os passos.
Medo, fera cravando as garras no peito imperava.
Viu-se guerreiro naquele instante perder o domínio
reto de membros, passo desnorteado e de susto.
Grito agitado mesclava os uivos e as lágrimas 1235
quando o rio impossível levava embora iludidos.
Quanta vez os pés de Jóse se perderom por ruas.
Ele palpava em delírio pelas pedras submersas
como na dor da visão de imensidões e desertos.
Vendo o conselheiro cons homens, não se sabia 1240


62




como passavam quase intactos tanto perigo:
Quis o destino os colocar à toa nos longos
ermos vãos, o lamento num sussurrar inaudível.
Quis a sorte que mãos e pés lutassem debalde
contra a violência dos elementos inteiros. 1245
Era ainda possível pedir a Deus clemência?
Iam andando em desesperações e caminhos,
pernas bambas perante Hierusalém que tremia:
Pelo chão, rolarom pedregulhos do Templo
como se boca abissal sorvesse as vidas e a vila. 1250
Quanta ruína, nuvens, deixades à vista num dia!
Não bastavam porém constelações derribadas,
pois rumores piores corriam perto das cruzes
onde o triste espera quem não sabe se chega.
Inda aquela mesma gente do monte ansiava, 1255
medo ao rosto, corpos esparramados no barro:
Era o vislumbro do nada confundido coa spera.
Vez e outra uma voz enlouquecida entoava
pelos ares clamor esperando o eco do céu,
mas apenas o som dos dados soava na tábua, 1260


63




onde soldados ébrios prosseguiam partida.
Vendo ao longe pairar a vermelhante névoa,
muita intensa voz e mar se afogau na garganta,
muitos agoniados olhares forom trocados
pelo derredor devorador de esperanças. 1265
Era prudente acreditar que José se salvara
quando a cidade parecia imersa na treva?
Pode o perfume dos aloés vencer o infinito?
Vinha o vento qual se vento lhes fosse resposta,
vinha o trovão e os alicerces e a terra tremiam. 1270
Não havia mais diferença entre vidas e morte
nem pareceu sensato correr, à beira do abismo,
para salvar além da verdade a casa e pertences
ante o trom, prenúncio do irrevogável juízo.
Mas as procelas pouco impressionavam Maria, 1275
pois depusera toda a fé no amor de seo filho
como a casa que foi erguida à base da penha:
Quando a tempestade desceu do céu violenta,
quando o rio debordau desbaratando alicerces
teve-se firme aquela casa que não perecesse – 1280


64




pois a base sobre a qual se afirmaram paredes
era uma cruz maior que a vida cravada no peito.
Tantas vezes, mãe, teo filho previra o martírio,
tantas vozes quiseram demovê-lo da morte!
Ele enfrentou, porém, em nome de Deus a mentira, 1285
para que mesmo na morte fosse maior a verdade.
Ele cumpriu, mulher, o dever, a promessa do justo.
Já não cabe no chão o tamanho das lágrimas tuas:
Deixa o plano de Deus te guiar e verás o consolo!
Mas os soldados não entendiam o gesto do justo. 1290
Ante o cataclismo da noite assomavam tremendos
trons e receios, e os militares diziam à massa:
“Ide embora! Quem esperais morreu na cidade,
foi tragado no abismo e soterrado de pedras!
Donde pois virá José vos trazer assitência?” 1295
Isto dito, intimidavam o ardor de caídos.
Perto daquela cruz, amedrontadas súplicas
forom depostas aos pés de impacientes lanceiros.
Eles, contudo, num misto de pena e de fúria,
inda miravam uns aos outros perante a demora, 1300


65




pois além de José o centurião se esperava:
“Povo de hebreus: O terremoto os levou embora.
Não consentiremos espera sem fim de quimeras!”
Ira ditava às bocas palavra. Outros lançavam
junto às ameaças mais e maiores assédios: 1305
“Este aí o reino do réu, a cidade em tormenta?”
Não lhes contentava mais o silêncio da massa:
“Como crer que velhos acostados em varas
inda resisterem tremores no imo do vento
quando fortes se viu cair à beira da sombra? 1310
Sodes insanos? Levantade-vos ora da terra!”
Nuvens traziam a névoa renovando temores,
dando força bruta às injunções de romanos.
Ora, a silhueta das casas perdeu-se de vista
nem se sabia se ainda estava de pé a cidade: 1315
“Este homem foi um enviado do inferno,
trouxe ao orbe destruição, revolta dos deuses.
Já se vê que a morte foi punição merecida!”
Iam flutuando juntos num mar de impropérios,
homens mostrando a desarmados a fome da lança, 1320


66




viva ameaça. Tomavam pelo braço e bradavam
quando Madalena, criando coragem, orau-lhes:
“Homens de luta, usai melhor a força das armas!
Tende amor de quem somente espera em silêncio
pelo pior. Por dó de nós esperade um momento 1325
antes que a noite nos dê melhor motivo de morte.
Como largar à cruz um homem cuja vivência
foi em tudo bonita e mais bonita que a nossa?
É favor pequeno, Romanos, o dom que pedimos!”
Inda se ajoelhava enquanto os homens partiam 1330
rumo às muralhas, irados e procurando reforço.
Veio porém de encontro, ai, misérias sem nome,
larga marcha morosa de velhos costados em varas.
Vinham tateando a sombra e cobertos de gotas,
mãos vazias de abandonadas ruínas andantes. 1335
Súbito a turba divisando aspectos cercou-os
quando algum dos velhos avançou-se falando,
sopro ofegante. A massa ouviu a primeira palavra:
“Filhos, ainda estamos vivos? Corre a jornada
mas o terremoto interrompe a fraqueza dos pés.” 1340


67




Neste instante, a voz se perdeu no pranto da turba
como os olhos não divisassem José socorrido,
ele que pôs ao ombro a salvação de Jesus!
Quando porém multiplicarom vozes e súplicas
entre soluços desgostosos da vida e do mundo, 1345
forom ouvindo o destino dum conselheiro sereno:
“Mas o perdeumos de vista na tempestade, romeiros,
quando no escuro, vindo os outros velhos na rua,
veio abaixo uma casa cobri-lo, ruína de vidas.
Eram pedras e corpos arremessados a esmo! 1350
Quantos amigos ali notando a José derribado,
presa de escombros, não lançarom mão de resgate?
Antes porém que separassem o peso das pedras,
sólido mar, a moribunda voz ordenava-nos:
– Ide embora ao Calvário resgatar meo amigo! 1355
Ide salvar a vida vossa que a minha è perdida!
Não exponhais a vida por piedade aos caídos
pois se ficardes morreremos todos por nada! –
Nós correumos atordoados buscando caminho,
olhos e vãos alagados de todo líquido visto. 1360


68




Não prosseguirei por amor de vós o relato:
Mal deixaumos José e caiu abaixo a muralha
como a cavar na rua a tumba indevida do justo.
Fomos embora a sós passando cegos o inferno,
fomos nos esgueirando por esperanças e beiras. 1365
Era tarde, e no entanto uma flama amiga ansiava
ver um milagre: José socorrido e no meio de vós.
Mas José, se bem percebo, aqui não se encontra!
Vamos então, filhinhos, desinventar as palavras
ante a voz da verdade: Falimos, meninos, falimos.” 1370
Era a noite a reverberar no fundo das almas.





VII




Passa de nós, tormenta, deixa ao homem verdade
quando a ira do cataclismo cansar-se das pedras.
Alto e de braços abertos o corpo pende no lenho,
mas no dia da cruz a coragem de amigos se perde 1375
frente ao medo da morte e da lei, tirana de vidas.
Ó José, por onde cambalearom teos passos?
Tira dos ombros por piedade o peso da sorte,
vem salvar os de quem somente ès tu esperança,
vida e coragem, pois a vida è breve e coragem 1380


69




vive em poucos: Poucos ousavem ver a Pilatos
como ousaste desdenhando a mão de impostores.
Vem, porquanto anuiu-se a ti somente o serviço
bom ao salvador do mundo que o mundo perdeu.
Salva, José, Jesus, e apaga da dor de pequenos 1385
este crime de toda gente e de todos os tempos!
Prova a quem se desespera o poder da bravura
como se assenta no coração fiel de teo povo:
Onde um homem amigo fore hebreu de verdade
certo terá paixão de quem morreu sem maldade. 1390
Ó José, que mar de ruína e que abismo te abrigam!
Deus dos céus, Jesus foi condenado ao suplício!
Que serviço infeliz e destino derom às árvores
quando entrarom pela mata caçando madeira,
quando pregarom ao tronco generoso que alçava 1395
livre a sua vida a carne dum pobre inocente.
Lá pairavam unidos no prego dois condenados:
Como se não bastasse a dor à triste das árvores
inda lhe fora imposto morrer abraçada a Jesus,
inda beber o sangue e suor dum santo consorte. 1400


70




Tem paixão, meo Deus, do sacrifício das folhas!
São coitados e verdejantes frascos de fresca,
pura presença e perfume: Madalena esperava
pelo aroma do alívio junto à gente prostrada.
Tinham sede d’água da vida à sombra das árvores, 1405
tinham medo. Ah, se a vida fosse uma nuvem
plena de pó desaperecendo pelas distâncias,
como um sonho vivido e findo à luz da aurora:
Fosse a noite o termo da desvairada esperança!
Ora soubésseis, nuvens, como os homens invejam 1410
vosso peso que tudo desfaz num único lance.
Sonhos ermos, vireis tomar da vida a vigília,
dar alento ao sacrifício vergado dos dias?
Ó ilusões implacáveis! Entre as cenas fantasmas
fora como se o cole exalasse uma fina fragrância, 1415
óleo purificando entranhas do sopro e das almas.
Mas o olor da verdade desperta sonhos e os olhos
ora abertos virom a vinda invisível da glória!
Tortas costas, ajoujadas por carga indescrita,
vinham carregando acima abundância de vasos. 1420


71




Pois se alevantarom da terra perplexos romeiros
quando a turba afligida ouviu, da voz de soldados,
eia, que se avançava certo da sombra um centúrio,
ombro curvado de alabastros, cercado de braços!
Antes porém que a voz se faça, irrompe da massa 1425
brado ao ver, aliados, Nicodemos e os velhos,
bocas tolhendo e doando clamores umas às outras,
mesclas de narrações agitadas na dor e no alívio.
Mas agora que Madalena vislumbra as misturas,
ora lhe falta José que descendesse do extremo 1430
lenho o corpo. Era em vão que arribavam essências?
Não, milagre arribava também! Surgia da sombra
vulto em farpas, arfando cansado e firme contudo.
Era mendigo de qual deserto que ali demandava?
Era José de Arimateia, filhos, que entrava! 1435
Vinha chegando calmo e sem desejo de alarde,
passo lento e caminhando livre e sem medo.
Era José de Arimateia que enfim demandava
mais uma vez o Calvário falando a si cabisbaixo:
“Deus dos céus, foi este o homem que apenas amou?” 1440


72




Não, Israel, a truculência do tempo e das pedras
não destrói a promessa do probo! Houve descrença
quando a tempestade assoláve uma brava jornada,
mas José não traiu a sua verdade e palavra.
Viu-se bem o trapo que ali restava dum velho 1445
mas o velho mal pensava no susto da gente:
Ia pondo penoso à beira da cruz uma escada!
Antes porém que suba, sobe a voz do centúrio,
como dissesse pela massa o seo caso distinto:
“Houve sim tremor e tormenta na minha jornada 1450
quando José foi soterrado no meio de escombros,
quando o vi fechando os olhos presa da morte.
Mas no mesmo instante declarei minha guerra
contra o destino e socorri do chão quem merece.
Pois ainda que a morte fosse o preço da empresa 1455
foi melhor morrer por dever que viver em desonra.
Eu não quis que ali findasse a grandeza dum justo
mas usei do ensejo que tanto tempo eo buscava:
Vem, José, mostrar ao povo a beleza da vida!”
Pois assim explicou, cravando firme na terra 1460


73




sua espada e desdenhando as garras da morte.
Ele estendera as mãos a José na beira da treva
pois merece morte melhor um tutor de caídos.
Nada disto ocupava José: Subindo as escadas
tira da cruz um lastimoso prego e nos ombros 1465
ora abraça um braço morto e pesado de mundo.
Mãos em sangue, desprende o braço segundo,
desce pela escada cuidadoso e se escora:
Ele tirou os pregos abraçando o cadáver!
Mas em baixo mãos de mais amigos aguardam 1470
vendo e tocando enfim Jesus separado da cruz.
Era consolo à carne como à pobre das árvores:
Ela manteve-se firme e digna dum triste dever.
Foi somente então que José, lembrando das horas
antes e como fora salvo e levado nos ombros 1475
pelo centúrio, depôs o corpo de Cristo e plangeu:
“Leva contigo, justo, o meu pedaço de pano,
lembra de nós acima perante o trono de Deus.”
Ele então estende ao chão delicado tecido
sobre o qual se deita enfim o resto dum homem. 1480


74




Mas as mãos singelas e calejadas preparam
ante a vida esfacelada um aroma bondoso,
dedos produzindo a transcendência do bálsamo.
Pois cobrirom de líquido alívio muitas feridas
quando os olores do campo ultrapassarom a morte. 1485
Eu, que contemplava perto o que ali se passava,
eu me ajoelhei perante a coragem dos homens.
Eu baixei meo rosto e derramei o meo pranto
pelo chão que sustenta o lírio do campo.
Foi bonito o dia consolador de meos olhos 1490
quando Jesus passou pelo rumo e pedi piedade.
Muitas dores e lágrimas invadirom meos olhos
desde a primeira vez que vi a cor deste mundo.
Mas agora que me ajoelho perante a verdade,
vejo como foi generoso Jesus Nazareno: 1495
Ele devolveu meos olhos no meio da estrada
para que eo visse o gesto do amor verdadeiro.
Pois agora eo sei, eo vi, entendi no meo peito
como è bela a coragem da redentora amizade.
Ora eo vi nas mãos que preparavam aromas 1500


75




como è grande a profusão do amor neste mundo,
ah, e como redime a dor invasora das vidas.
Pois me alevantando mais uma vez desta terra,
vejo o céu estrelado nas alegrias dum pranto
novo, singelo e grato e recoberto de olores: 1505
Entre alabastros subia como a brisa o perfumo
doce do sacrifício final, da vida que vence.
Pois se fora abusada a florescência das árvores
quando pendurarom no tronco Jesus Nazareno,
ora as vidas de vegetais suaves vingavam 1510
seu ultraje ao recobrir Jesus de perfumos:
Foi subindo o frescor dos alecrins e do timo
junto à lavanda, as alegrias junto à semente.
É necessário colher o sacrifício das flores
para recenderem olores maiores que a morte! 1515
É preciso muita coragem perante a colheita
quando o trabalho parecer maior do que a vida.
Sobe, Jesus Nazareno, às invisíveis alturas
como o sopro das flores cuja vida è verdade:
Lembra nossa sede no dia do amor derradeiro! 1520
Vinde, filhos, sequemos nosso pranto e cantemos
frente ao redentor que fez da morte vitória.




FIM






Folha V




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Guthlac

Gregorius Advena



© Gregorius Vatis Advena 2018, Record E 7, engl. Guthlac, Hampshire, alliterative pentameters, 737 lines, epic poetry, hagiography, Portuguese.



Guthlac

Introdução


Guthlac chega à ilha de Crowland para viver como eremita. O demônio porém se opõe: O rei, o mercante e o pai o visitam buscando dissuadi-lo. Resistindo a todo assédio e tormenta, Guthlac amadurece na ilha, até que se revela o prenúncio da sua morte. Leia a introdução detalhada no Carolíngio.

Guthlac retrata, em sua busca por Deus, pelo sublime e pela transcendência, a desilusão da insuficiência existencial. Neste intenso drama espiritual, a batalha da prece incorpora a batalha por sentido à existência humana. O contexto medieval se expressa numa dicção elevada e solene. São Guthlac de Crowland (674-715) foi um eremita anglo-saxão na tradição dos Pais do Deserto.


Da Peça Karneval, Op. 9, Chopin, por Robert Schumann, performance de Paul Pitman – Musopen CC PD.


O verso é pentamétrico – cinco tônicas separadas por uma ou duas átonas, ou por pausa. Em geral, termina em diérese bucólica – o ritmo tátata-táta. É datílico ao evocar o antigo dátilo no ritmo tátata. É aliterativo: Há aliterações entre tônicas e tônicas, entre tônicas e átonas (eco), e entre átonas (eco falso) – tanto entre sílabas adjacentes quanto entre separadas.

O uso das formas épicas é tratado no ensaio Prosódia e Grafia. Neste poema, ocorre a forma átona do verbo ser: [é] em contexto tônico, [è] em contexto átono.













A





Por muito tempo errou sem rumo o demônio
buscando casa, e desde muito disputam
os sábios a causa como essência dum ser
sem paz devoto ao mal. Escritos relatam
a queda dum anjo outrora, excelso companha 5
dos céus perdido, inconformado co trono
de Deus e coa vida. Assim saiu pelo mundo
deixando atrás beleza e descendo ao abismo
por onde pragas entoam. Outros disseram
que desde sempre o mal desdisse do bem: 10
Persegue a boa fé, desbarata os eleitos,
desfaz a alegria. Mas outros argumentaram
que nasce no coração a maldade dos atos.
Não precisa do auxílio de seres alheios
a mão decidida ao crime, o leme incorreto 15
guiando infirme nau, agravando a tristeza
d’alma e solidão nesta borda abalada.
Numa coisa contudo os sábios concordam:
Inveja e covardia, por onde ocorreram,
testemunharam por onde andou o demônio. 20


1




Ora, o prisco inimigo, cansado do fogo
ao qual arremessara os espíritos vários,
caçou o gabo do rei, o mercante avarento,
incendiou nos jovens um brio fugaz,
um amor de vanidade. De pouco bastou 25
a voz dos condenados e tantos incautos
que vida adentro, renunciando virtude,
jogaram fora o ser num prazer corriqueiro
querendo fama fácil, prata e vantagens
que Deus desabonou. Vestiram sem medo 30
tecidos suntuosos, gozando as delícias
e menosprezando a dor de destitutos.
Errou, portanto, colecionando falanges
de vis e desviados, a essência covarde
disseminando inveja por todas as eras, 35
tentando homens. Passava o dono do povo
pesando na mente a salvação duma gente,
e vinha de longe arrebatando a coragem
a voz do inimigo: Semeava no peito
cobiça de império. O mercador elevava 40


2




a Deus a prece, agradecendo o trabalho,
e vinha o verdugo estimular ganância
de mais dinheiro. A juventude buscava
a felicidade do amor, mas inveja maior
soprava adentro excitações incessantes: 45
Vidas pervertidas largaram por terra
dever e constância. Em toda casa erigida
a sombra maldosa quis tirar do caminho
o bom intento. Tomou-se nota, porém,
dum caso raro e perturbador de serenos: 50
É que depois de muitas presas levadas
o triste algoz avistou, de todos mortais,
uma vida coitada e desprovida de escudo.
Ouviu dizer que, retirando-se às pressas
dum mundo angustiado, Guthlac migrara 55
sozinho pelos prados e pela floresta
até chegar numa ilha, distante recanto
que pés nenhuns pisaram. Ali demandando,
ergueu num cole a cruz, bandeira de Cristo,
e construiu no esmero um abrigo de barro 60


3


Guthlac abandona as armas.

Guthlac abandona as armas: cena de Vita Sancti Guthlaci (Guthlac Roll), representação do século XII, pergamento, acervo da British Library. Legenda: Guthlac recedit ab exercitu suo. Foto: British Library, Londres.




e transitória morada. Disto sabendo
porém o covarde inconformado na inveja,
correu ao monte com tormentosa falange
rumo a Guthlac, abandonado do mundo
que percorrendo a trilha assim lamentava: 65
– Perdoa, Senhor, um homem transtornado
que apenas quer orar e que mal se concentra.
Percebo desde já que è penosa a batalha
da vida em busca da prece. Pelo silêncio
e pela paz que me cerca vou caminhando 70
e querendo e vou perdendo de mim o destino.
Vem, Espírito Santo, inspira a meu peito
a palavra que anelo e verdadeiro caminho
revela ao perdido que sou. Os dias me deixam
e quanto mais elevo o meu sopro sem força 75
entendo quão distante me encontro da prece
e carente de graça. Ensina ao destituto,
meu Pai, a vida sem erro. – Mas o demônio
no mesmo instante incendiou-se de fúria
e declarou-lhe uma guerra desgraciosa. 80


4




Desembarcava já, de visita apressada,
pomposo rei por quem outrora lutara
a fiel espada de Guthlac, amigo avisando:
– Em qual desdita e desgostoso destino,
guerreiro, cá termina a vida dum homem 85
da tua estirpe brava e digno de glória!
Foi devida à tua espada a vitória
que tantas vezes abençoou meu reino.
Informa apenas, ingrato, a graça, o favor
que a minha corte negou, para que triste 90
e desdizendo o passado buscasses um ermo
donde ofendes, mesmo em pleno silêncio,
teu rei e teu povo! O bom governo carece
dum reto conselho e conselheiro serás:
A corte, o povo, o partido assim proclamaram 95
e venho eu, o rei em pessoa buscar-te.
Se ainda amas teu povo, retorna comigo,
levanta-te agora! Importa agir como homem. –
Contudo Guthlac, erguendo os olhos além,
balança a cabeça inconsolado e responde: 100


5




– Também careço, rei, de conselho correto
e como Deus te trouxe, aqui te pergunto:
Será feliz uma terra por onde governa
o governante que não governa a si mesmo?
Desde cedo, amigo, entendi no meu peito 105
a quanta impostura a minha vida te expunha
como expunha a corte, o partido e teu povo.
Atormentado portanto, migrei de teu reino
trazendo migo este meu intento de vida,
vergonha que aqui somente às plantas ofende: 110
E por amor de meu povo sirvo-lhe aqui,
pedindo a Deus por compaixão de pequenos
e amor dos justos: merecedores de corte,
partido e governo. A vida orando labora,
no império contudo nem trabalha nem ora. 115
Se não me queres crer, examina comigo
a perdição duma vida e verás o que sou:
O peito chamando, nesta terra arribei
querendo de Deus o dom da prece apenas.
Ó desesepero, desenganadas andanças, 120


6




em tanto orar tampouco ainda aprendi
nem vida nem prece e me desolo insistindo!
Mas senhor, se apenas governo de prece
o meu intento rogava e governo me falta,
inda esperas de mim governar o teu povo? 125
Demônio desengana a constância de fortes:
Melhor convém ao mau aprender a rezar
e vou pedindo a Deus o governo de mim. –
O monarca, ouvindo e recuando confuso,
foi-se embora remando o barco e pesando 130
na mente o destino. Ficou porém o demônio
na caça de brechas e já na próxima luz,
enquanto Guthlac colhia o grão da cevada
a preparo do pão, abordava aqueles ermos
mercante abastado, dissuadindo na oferta 135
e profusão de palavras e ricas espécias
a empresa do amigo. Suplicava e bradava:
– Sai deste chão de inadequada existência,
retorna comigo, Guthlac! Não impressionas
Deus nem mundo no quietismo que abraças. 140


7




A todo custo intentas chamar atenção?
Permite um momento por piedade do amigo
que aqui registre, eu, a ira dum reto,
escuta: Em minha vida o meu tempo erigi
no labor constante, desdenhando a preguiça 145
e lucro devasso como a Jesus desagrada.
Eu em tudo cumpri meu divino dever
e dever de todo homem: Erguer sua lida
no próprio suor, suando ganhar o sustento
que Deus aduz ao justo! Assim laborando, 150
assim cumulei nos anos a minha riqueza.
Ganhei mas fui doando, cônscio dos fracos
que ergui da estrada como o céu testemunha
e como sabes também. Mas tu renegas,
gestor incauto, os bens que Deus te confia 155
e jogas fora? Tu corres além à floresta
a fim de ocultar, da humanidade e dos anjos,
um ócio que chamas prece? O justo carece,
em todas eras, dum bem que chamamos labor,
do bem que tu, ao rei dos céus ofendendo, 160


8




lançaste ao chão! Voltarás portanto comigo
à cidade nossa: Ali te aguarda o caminho
da boa indústria, suor redentor è correto.
Eu saberei te aduzir pela senda do bem
ganhando a salvação! – Assim conclamando, 165
notava as mãos do eremita, tomando da pedra
e contra a pedra amassando cópia de grãos,
a testa suada. Guthlac mirando o mercante
largou num triz a rocha, arfando cansado:
– A minha vida corrupta, em tanta incerteza 170
e rumo errado, errando uma coisa aprendeu
no meio do mundo: Dos bens que a lida acumula
o homem perde aparentes, conserva apenas
a indústria de Deus. A prata que a mão amontoa
de que me vale, amigo, se o vento que passa 175
carrega embora num dia a cobiça dos anos?
Trabalho rogando a Deus por todos os homens
e preparando o pão de que o corpo carece.
Chamaste verdade a propriedade dum lucro
voando de dono em dono, iludindo o suor? 180


9




No engenho de Deus os bens imorredouros
o homem guarda no peito. A mão enaltece
a vida em suor, e no entanto o tesouro maior
do trabalho a mão non toca e jamais tocará. –
O mercador contudo insistindo no apelo 185
retorna a Guthlac: – Pois a quem favorece
um labor isolado? O generoso trabalho
rende a bênção do fruto no meio do povo
e prosperidade se afirma. O homem sozinho
fugindo o mundo foge Deus igualmente! 190
Mas esta vida amarga que encenas, amigo,
de nada contribui à riqueza do mundo
enquanto os miseráveis esperam auxílio,
a boca bramindo: Guthlac, onde te escondes?
Guthlac se esconde? – Mas o homem da prece 195
considerando ilusões responde ao mercante:
– Deixei o mundo para que o mundo prospere
e não demais se ofenda coa vida dum ímpio.
Amando pois os pequenos aqui me escondi
cedendo lugar, e espero sim que progrida 200


10




quem melhor merece o concurso do mundo.
Assim trabalho por todos, e mesmo isolado
laboro mais do que a mera lida das mãos:
Resiste ao vento e perante Deus se conserva
o trabalho d’alma. Constrói contudo ruína 205
quem explora da mão e se esquece do peito.
Amigo, a palma sem peito corre sem rumo:
Ignora o que faz, acumula apenas ao sopro
e morrendo a mão a lida morre co vento,
a Deus entristece. – No amor do bom suor 210
e renegando a mentira dum bem inconstante
ali se achava Guthlac, passando das horas
coa pedra amassando grão, do pó da farinha
fazendo seu pão, buscando d’água de longe
e misturando ao fermento: – E nada cobiço 215
além deste grão por insistência dum ventre
desavisado de Deus. Trabalho pois nas mãos
e o peito lembra no pão o corpo de Cristo
em cujo nome existo. Caçando fortunas
notei que a minha vida era vida incorreta: 220


11




Acumulando riqueza, para mim acumulo
mais que ao pobre. Dando embora meus bens
doei do resto, verdade em Cristo contudo
è sacrifício de vida mais que de resto. –
Ouvido o relato, o comerciante abatido 225
balança os braços e procurando a palavra
a verdade se cala. Retorna pois abalado,
remando seu barco e repensando nas ondas
vitória pouca de mundo, concurso acirrado
e triste palco de ganas. Recobre coas mãos 230
a sombra do rosto, reconhece inconstância
e vento na indústria, soluçando na bruma.
Aporta noutra margem saudoso de Guthlac
e roga a Deus coragem. Adentra contudo
a treva e lá se perde, uma presa danada 235
do grande algoz destruïdor do trabalho.
Inconformado o covarde co viço de Guthlac,
encheu de bolores a massa em fermento.
O servo de Cristo preparando seu forno,
o barro aquecido, vendo entanto perdido 240


12




o labor de muitos dias, o pão destruído,
baixou calado os olhos, minado de fome
erguendo as mãos: – Leva embora, demônio,
o pão de meu corpo, pois o pão de minh’alma
a Deus pertence e de Deus apenas proveio. 245
Vem, Espírito Santo, ensina a teu filho
que o mal da privação em Deus è proveito! –
E caminhando por entre as árvores calmo
e calado evocando, derramava o seu pranto
enquanto a noite caía. O homem dos ermos 250
sem pão padecia e desdenhando abraçava
em prece o vento como o corpo dum árvor,
silenciosa amizade. Contudo um covarde
mirava na espreita, cavaleiro da inveja,
algoz de mansos, e já na próxima aurora 255
o barco arribava e revelava das brumas
o pai de Guthlac. Desembarcava e corria
em turvos urros rumo ao filho isolado,
trazendo prata e pão e perdendo a palavra:
– Responde, filho, que mal terrível te fiz 260


13




que assim me pagas o amor? Desde que ouvi
da tua vida e de como abandonas o mundo
jogando fora, desde então me abalei
de vila em vila, perguntando por rastos
dum passo ingrato a Deus, infeliz peregrino 265
em viagem perdida. Aqui portanto erigiste,
neste pântano impuro, a morada futura
e final de teus dias? Eu ouvi pela estrada
que aqui trabalhas, como outrora ensinei,
o pão do próprio sustento! O mundo trocaste 270
apenas por pão e nisto encontras verdade,
vida em nome de Deus? Que triste episódio,
meu filho amado, cá me obrigas a ver!
O homem carece de amor e contudo renegas
de inopinada mente o futuro dum lar, 275
esposa e filhos? Sei duma certa mulher
que por ti se deplora, amando sem sorte
um homem desonroso, que à bênção do afago
o frio, a fome, o morbo, a morte prefere!
Ofendes, Guthlac, a Deus, gestor dos amores 280


14




unindo as almas no galardão da família.
Por que te renegas? Inda è tempo contudo
e basta um gesto de ti que abordaremos
noutra margem do mundo, unidos volvendo
à boa sorte. Vem que teu pai te suplica! – 285
O filho porém, sentado à sombra dum árvor
coas mãos amassando o grão, aponta ao redor
floridas plantas longe e perto e responde:
– Amado pai, eu já me encontro no seio
da minha família, pois cercada de folhas 290
de nada carece a vida. A verdade que entendo
ensina ao modesto: Neste mundo sangrento,
por onde houver um árvor consolo haverá,
na verde calma inquebrantável constância,
espelho dos sábios e professor dos santos 295
orando calado. Por que me pedes família,
meu pai amado, se frente a mim se congrega
em toda aurora um lar de fiéis passarinhos
a quem doando grãos alimento e conduzo
à verdadeira família? Permite, senhor, 300


15




no amor dum filho que apenas busca verdade,
a minha paz e morada e batalha da prece:
escudo sereno que porventura defenda
o ímpio perante o Juiz. O pão entretanto
que aqui me trazes leva embora contigo 305
e leva a pecúnia, porquanto não me isolei
dum mundo enganador a fim de enganar-me
vivendo do pão alheio, de alheio trabalho.
Amor, meu pai, caminha longe dos jovens
vivendo em busca dum corriqueiro prazer 310
que quanto mais se goza menos sacia.
Querendo pois de além um gozoso mistério
gozo meu gozo em contemplando a verdade
amiga das árvores. – Isto assim proferido,
um pai desdito, avermelhado nos olhos 315
tomou embora o pão, a prata, o tesouro
e cabisbaixo remava o que amava seu filho,
passando à velha margem por onde aguardavam,
na treva, correntes dalgum prazer passageiro
ao qual rendera a vida, tributo ao demônio. 320


16




Porém o gestor de calúnias, o ser invejoso
apenas se enfada com quantos já lhe pertencem:
Anela as almas zelosas. E assim cobiçando
a vida em prece, aproximou-se de Guthlac
de noite enquanto bebia, e n’água cuspindo 325
envenenou a Guthlac. Enfraquecido na febre,
andava pelo bosque o homem das súplicas.
Inda vagando na escuridão dos demônios,
a sós buscava longe o tecido das folhas,
erguendo as mãos clamando: – Quando da vida, 330
meu Deus, serei e viverei como as árvores?
Quando enfim estenderei os meus galhos
dia e noite ao céu, calado e constante?
Virão de longe a chuva, os ventos, a névoa,
passando a caravana do mundo e dos mortos: 335
E seguirão alçados meus braços em prece,
e não se abalam as orações de meus galhos. –
Angustiado de andar, o amigo dos pássaros
ora apertava ao peito troncos no escuro,
abraço firme, casório de corpo e de caule. 340


17




Inopinado contudo, o demônio se agita
em turbilhão tenebroso, clamando da treva:
– Aos réus escravos meus ofereço império,
prata e prazeres. Tu porém me recusas
e desconheces, Guthlac, o dono do mundo? – 345
Do vórtice em fúria revelam-se os rostos
e a legião dos monstros, os olhos de fogo
cercando o homem fraco, rugia impropérios
coa língua bifurcada. Mas Guthlac responde:
– O dono do mundo o meu saber desconhece, 350
conhece o dono dos céus e das almas em prece,
casa a que sirvo! – Dum turbilhão perigoso
batendo ao chão, fazendo a terra tremer
ergueram contra Guthlac espadas de fogo
lançando ameaça: – Vai-te embora, maldito, 355
lutamos contra ti na batalha da morte! –
O homem a sós retorna: – Lutei no passado
a boa guerra e gustei da vitória do justo.
A espada entretanto já de nada me serve,
porquanto abandono e não pisei nesta terra 360


Guthlac Folha VI






para por Cristo lutar com derrama de sangue:
por Deus apenas morro e jamais matarei!
Em vão aqui tentais à batalha das armas
um homem que luta por paz. – Isto dizendo
o genuflexo em rezas, rogava sem medo 365
a piedade dos céus. A falange contudo
retruca ousada: – Sabes mesmo, insolente,
se o território que ocupas já te pertence,
ou vives como o ladrão tomando posse
de bens alheios? – Mas um homem humilde 370
pensa e responde: – Por toda terra inquiri
se tinha dono o monte por onde me encontro.
Como ninguém o reclama, eu nele transito
e dele me irei se aqui chegar o seu dono
e não me quiser. Conheço já que no mundo 375
ninguém de nada è dono e nada cobiço
porquanto a terra è generosa matrona:
Encontra a todo andante morada e deserto
sem dono de mundo. – Não porém lhe cedeu
a cohorte da morte, e carregando seu corpo 380


19


Guthlac e os demônios

Os demônios levam Guthlac às portas do inferno e São Bartolomeu intercede a seu favor: cena de Vita Sancti Guthlaci.




no turbilhão, a falange ao inferno baixou
levando além consigo o homem das árvores.
Mas o manso defende-se: – Todos os dias
em toda parte a minha vida è de prece
e mesmo do inferno conseguirei erigir 385
bandeira de Cristo. Vem, Espírito Santo,
por compaixão de abandonados espíritos,
luz o meu rumo incerto e seca meus olhos! –
Mas Deus apiedado, tutor de constantes
ouvindo daquele abismo um clamor inaudito, 390
conclama d’alto o anjo e do trono proclama
um retumbante decreto: – Defende esse homem! –
Felicidade quando os ambos se encontram,
o homem bom e o anjo, o guia do anúncio:
– Passa por esta senda, servo de Deus, 395
levar-te-ei ao galardão da verdade! –
O servo pois orando, o fogo do inferno
abriu caminho e recuando inclinava-se
em coloridos focos perante o pedinte
que pelos arcos passou, santíssima flama 400


20




em defesa de Guthlac. O inferno mirando,
os sofredores lançavam-se ao homem correto
rogando-lhe bom socorro e cura das almas,
aflitos em pranto. Mas legiões revoltadas
súbito agiram antes que Guthlac erguesse 405
do chão condenados, e maldizendo a virtude
devolveram à terra o guerreiro da prece
que o fogo non queima. Despertando febrio
dum sonho entristecido, Guthlac lembrou
por todo o dia o desespero de abismos, 410
andando no bosque em orações abundantes
no amor dos mortos: – Entregarás, Criador,
as multidões ao sofrimento sem termo?
Estende misericórdia, Cristo, a perdidos!
Depois de tudo o que vi, de que me vale 415
vencer o demônio se todo o mundo padece? –
Assim rogando assim caminhava aturdido,
tristeza deformando a paz de seu rosto.
Mas muito errando durante todo o seu dia
cansou-se no rogo. O passo caiu derrotado 420


21




aos pés dum árvor, donde amassava cevada
ao pão do corpo: – Diz, Espírito Santo,
confortarás de fato arruinados do abismo? –
Um sopro leve soprou, chamando inaudível
o nome de Guthlac, e levantando a cabeça 425
o homem simples viu, radiante dos céus,
um arco-íris. Era maior do que os olhos
nas cores do fogo, rediviva a promessa
incandescendo passos, doando esperança.
E Guthlac, divisando um gozoso mistério, 430
orando e calando, andou no meio do arco.





Ω





Por quinze anos suspirou pelos ermos
o homem dos pássaros. Retirou-se do mundo
desembarcando, pouco longe das margens
que atrás deixou, em transitória paragem: 435
perdida ilhota que as antiquíssimas eras
dum mar violento dissociaram da terra,
emaranhadas lagunas por onde bosques
e priscos prados dividiam paisagens –
e bancos de areia quando o baixa-mar 440


22




mostrava ao viajeiro o passado submerso
em desastroso dilúvio. O homem de longe
ali portou, e vislumbrando um outeiro
beirando o verde, erguendo cruz e morada
ali quedou. Viveu dos grãos de cevada 445
fazendo pão, e caminhando entre as árvores
Guthlac alçava além, na batalha da prece,
o peito, a palavra. Por muito tempo o rancor
dum poderoso inimigo e covarde invejoso
atormentou a constância – de noite varava 450
o demônio a buscar. O ser iroso adentrava
escuridões na floresta mas nada encontrava:
A família de amigos silenciosa e serena
escondia o seu irmão na sombra dos troncos.
O inferno lançava em vão seu ataque contra 455
um distinto escudo. Mas o verdugo contava
co mundo inteiro: Unira o rei, o mercante
e seguidores de império, prata e prazer
que em multidões aduzia. Ao homem singelo
ninguém no mundo seguiu, e quantos beiravam 460


23




o abrigo de Guthac querendo cura e conselho,
tornando embora além o demônio buscava
na margem oposta, recobrindo de angústia
a passageira esperança da vida quebrada,
enferma constância. Das perdições arribou 465
contudo um romeiro, apenas um aportou
àquela margem difícil buscando verdade
e vida em prece. Andando pelos ermos
ouvira dum bom, e abandonando ilusões
viera segui-lo um servidor corajoso. 470
Maré permitindo, remava todos os dias
da margem vizinha donde erguera morada,
saudoso de conhecer a vida dum simples
e ver a virtude. Assim correram os anos
e o servo desembarcava em breves visitas, 475
ouvindo a palavra e preparando fermento
e fogo ateando. Remava embora e pesava
na mente a batalha, balançando a cabeça
e rogando a Deus coragem. Lembrava imagens
ainda de Guthlac sentado à sombra dum árvor, 480


24




a pedra amassando o pão enquanto indagava:
– Mas è qual o mistério da estranha oração
que obrando entoas? Se for verdade a palavra,
se ao coração apenas se gesta uma prece,
como elevas o sopro ao céu, se as mãos 485
atribuladas laboram? – Mas Guthlac arfava:
– Amigo de Deus, a prece nasce no peito
mas pelo corpo inteiro vive-se o canto.
Obrando o pão, recordo a fome dos homens
e o sacrifício de Cristo, em minhas mãos 490
suor e divina presença. – Mirando estrelas
o seguidor recordava e remava inquirindo
no dia seguinte: – Quando vais à floresta
pela trilha, Guthlac, pregas às folhas
a santa palavra? – O solitário retorque: 495
– Pobre de mim que tanto aprendo nos bosques
e aos bosques nada ensino. Rogo às plantas
quase que intercedam por mim, ocioso na vida
e carente de rumo. – Caminhando no verde
certa feita, passavam do seio das trilhas 500


25




à beira dum lago, por onde o servo abordou:
– Por que te vejo, mestre, lento e mancando?
Por que te encontro abafando tantos gemidos,
o rosto pálido? Diz-me logo a verdade
porquanto já percebo na pele e no aspecto: 505
Um grande mal te assoma! Nunca te vi
por esses anos como agora te enxergo,
debilitado e mudo. Por amor duma angústia
maior do que mar, explica o mal que te passa
e se posso ajudar! – E suspirando tranquilo, 510
o amigo do verde, andando e vendo amplidões,
responde ao servo: – Desde sempre se soube,
fiel seguidor, que o vitupério de Adão
entristeceu a Deus, e que desde o pecado
um desgostoso legado persegue o passar 515
em este mundo mendaz do forte e do fraco,
do mau e do bom. A dois ilustres consortes,
que a mão divina uniu, um gesto impensado
impôs eterno divórcio, fortuna infeliz
que desde então separa a semente da casca, 520


26




jogando fora do corpo o cultivo das almas
num desperdício sem par. Assim se repete
em todas as vidas um veredito severo.
Assim se apodera da florescência do ser
um ladrão de existências, colecionando carcaças 525
em triste gana que nada e ninguém dissuade.
Comeram sem medo do astroso pomo da cobra
e cá pagamos, filhinho, o preço da audácia. –
Dos olhos, porém, dum seguidor abalado
e transbordantes de dor, seguiu a palavra: 530
– Entendo bem, senhor, a verdade que escondes?
Jesus me castiga atormentando o teu corpo?
Pela margem incerta da vida e do tempo
a morte desembarca, invejosa dum santo
a sorte implacável? – Mas o homem da prece, 535
mirando longe os raios por entre a folhagem
e pelas ondas, caminhava explanando:
– Sonhei um sonho na madrugada passada,
perene imagem. Resplandescendo das árvores
verde escada assomava. Perdidos em folhas 540


27




os olhos meus miravam buscando o limite:
Não enxergava donde a escada descia
dentre altíssimos ramos. Eu, assustado,
ouvi de além do canto uma voz invisível
falando e ressoando, de cima, de baixo 545
e dentro do peito: “Não temer, guerreiro
da boa guerra da prece, e não te assustes
quando o Sopro Santo se acerca de ti
co galardão da vitória. Tu que trocaste,
ermita, a gana enganadora por árvores, 550
que procuras ainda num mundo inconstante
por onde o mar violento arrasa moradas
e leva embora barcas? Sobe esta escada,
filhinho caro, por onde um singelo jardim
aguarda um homem bom e por onde te aguarda 555
um veredito sereno.” Andando nas folhas
desconheciam cansaço os pés de minh’alma.
Como tomado enfim duma certa tristeza
e também de alegria, abraçando-me ao árvor,
pedi dos céus piedade do engano dos sonhos, 560


28




bondosa ilusão. Porém de longe enxergava
um luminoso fruto ofuscando meus olhos
enquanto a voz entoava: “Amigo dos bosques,
o pomo prohibido que outrora ultrajaram
desperdiçou no mundo a nudez do saber, 565
um frágil tesouro. Mas um pomo te espera
maior que o prohibido que o mundo perdeu
rendido à morte. Come, pois, peregrino,
e senta-te sob a sombra d’árvore da vida,
mãe de teus passos.” Assim ouvi, seguidor, 570
uma voz invencível, e refletindo e seguindo
a voz e meu peito, subi degraus duma escada
que quanto mais me alçava mais alegrava
os pés de meu sonho e porém jamais terminava,
nem meus olhos sabiam da aurora do fim. 575
Contudo ouvi, de cambaleado que estou,
que apenas em sete auroras ali voltarei. –
O seguidor, todavia, ouvindo o relato
e retardando seus passos, deixou ecoar
fortíssimo pranto e transtornados soluços 580


29




calaram os pássaros. Era um rosto inundado
de todas as gotas escorrendo das fontes
d’alma e do corpo. Assim regou desolado
a boca das árvores, procurando governo:
– Percebo já, senhor, que triste destino 585
Deus me prepara. Quem agora me ensina,
aonde irei de rumo aprender a batalha
que à vida reta compete? Ó generosas,
chorai comigo o bom intento arruinado! –
Ajoelhando-se frente ao tronco dum árvor 590
e derramando a vida, ouviu porém do eremita:
– A diferença, filho, de nós e das árvores,
ouve e reflete: Os inconstantes corremos
passando a norte e sul, e viajando agitados
passamos por toda parte e correndo sem rumo 595
em parte alguma estamos. As árvores ficam
por onde Deus plantar: O vento ameaça,
o mar se agita, e não se move uma vida
que ali se pôs por inteiro para ser,
estar e ficar. E desprezando os enganos 600


30




do mundo e seus tumultos, ela se eleva
aos céus calada enquanto Deus permitir.
Assim te ensina a paciência das plantas
e assim te peço: Não perturbes a mente
buscando a quem seguir nem sigas a mim 605
que nada sei, mas antes segue esse exemplo
da vida verde. Onde estiveres perdido
o verdadeiro sentido è somente ficares
onde estás, alçando a Deus a constante
batalha da prece. O resto da vida è poeira 610
que o vento varre a toda parte e nenhuma. –
O seguidor, entretanto, ouvindo aturdido
e contendo a dor retorna: – Mas o augúrio
invade meu peito, o presságio: Nunca ouvirei
de novo a boa prece que livre entoavas! 615
Tu, se nada sabes, quanto menos conheço
dos sacrifícios eu, que aqui demandando
apenas começava a saber o que sabes
e a ser o que és? – O solitário minado,
tornando para trás, tossindo e com febre 620


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responde apenas: – Filho, pouco me resta
de raciocínio correto. Incêndio no peito
dilacera a carne, o governo da mente
confunde as palavras. Mas desejo pedir,
se aqui permites, um derradeiro serviço: 625
Quando se for a carcaça e da vida restar
poeira apenas, prepara o remo do barco
e desbravando o lago, o mar e o palude
avisa à minha irmã, na margem que habita
a sós e sóror, que um novo alívio conforta 630
o sofrimento dos homens: O sopro de Guthlac
já non mais atormenta o pesar deste mundo.
O desgostoso silêncio que impus entre nós,
impus por amor daquele amor verdadeiro
que não no mundo, e sim no excelso jardim, 635
um dia unirá nossas vidas. Roga-lhe apenas
que venha, por piedade, enterrar o meu corpo. –
Tornaram pois os dois à morada de Guthlac,
andando calados, o pensamento distante.
Ali chegando o doente pôs-se a dormir 640


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no caixão de pedra que pelos anos inteiros
serviu-lhe de cama, recordando constante
a verdade do fim e prenúncio da eternidade.
O seguidor diligente, contendo gemidos,
batendo ferro contra a pedra do fogo 645
e mecha de palha, preparou-lhe do sílex
a flama consoladora do forno e do frio,
remando embora na noite. Transtorno porém,
angústia nova assomou-o quando na aurora
desembarcou e viu, estirado e convulso, 650
um corpo acabado e recoberto de sangue:
– Por caridade, senhor, se ainda tiveres
poder de verbo, diz o mal que te passa
e como posso ajudar! – Dizendo isto,
erguendo da terra a moribunda ruína, 655
prepara-lhe o fogo e pão e trata feridas.
Mas Guthlac, tomando às custas fôlego novo,
profere calmo: – Casório feliz se aproxima
após o aflito divórcio do sopro e da carne,
mas não te aflijas de mim, guerreiro da prece: 660


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Felicidade quando os ambos se encontram. –
O servo, contudo, servindo o pão suplica:
– Recorda de mim, senhor, e donde estiveres
intercede aos céus pela vida dum fraco. –
O homem simples avisa: – Contigo estarei 665
no peito, filhinho, confia em Deus e verás
que não te abandonarei na batalha da vida.
Perpétuo laço nos une e não se arrebenta
na mão da morte, porém prossegue conosco
acima da escada. Aqui plangeremos em breve 670
a dolorosa passagem de Cristo às alturas,
sabendo porém que a dor se vence na prece. –
E assim dizendo, preparava as palavras
porquanto aproximava-se aurora de Páscoa.
Remando de longe em madrugada avançada, 675
o seguidor vislumbrou, na data preclara,
um tenuíssimo azul que descendo de estrelas
banhava a morada de Guthlac, serena visão
vencendo o mar violento. Depois aportando,


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andou na trilha ansiado em busca do amigo 680
e prevendo surpresa entrou. Um divino perfume
a casa tosca exalava e da carne de Guthlac
balsâmico olor expirava. O altar preparado,
partiram-se dois amigos dum pão redentor,
varão que o mundo enjeitara com seu seguidor. 685
O verso dos homens nem a fala traduzem
a voz de Deus pronunciada dos ermos.
Pois o amigo dos ermos alçou sua voz
e quantas almas, meu Deus, a prece curou,
a beleza ubíqua dum coração e dum corpo 690
na foz da boca. Passada a tormenta final,
soprou-lhe o Sopro Santo d’árvore da vida
no sétimo dia. E Guthlac subiu as escadas.
O peso do peito, porém, derribou de tristeza
um fiel seguidor, que atribulado por dentro 695
buscava o seu barco, a voz dum penoso dever
indagando severa. Tomando pois de impossível
força e coragem, o atormentado embarcou
e pelo mar remou. As águas, sabendo talvez
duma sina infeliz, passavam ora caladas 700


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em luto brumoso. Quantas vezes contudo
as mãos navagantes fraquejavam no remo,
a mente debalde procurando o controle
e perdendo o manejo, transitória madeira
no meio do mar. O transtornado remante 705
remou porém de seu remo e remando arribou.
A barca deslizava tranquila nas pedras,
serenas de atrito. Desembarcando abalado
perante uma vida singela, dilúvio de lágrimas
ferve nas faces, buscando ao mar estuário. 710
O servo, por fim, falando baixo e custoso
e sem que ousasse olhar o rosto da virgem,
revela a verdade: – Requer uma certa coragem,
distinta senhora, trazer a notícia que trago.
Roguei de Deus nas tribulações desta vida 715
jornada reta e fervor na batalha da prece,
sabendo que ao sofredor que serve e confia
o coração pulsando è conforto o bastante.
Aprouve a Deus, porém, confiar a meus pés
um tristíssimo emprego e desgostoso serviço 720


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presto a Guthlac: Teu irmão e meu mestre,
o servo inseparável dos céus e da prece
como nunca se soube e jamais se verá,
morreu, encontrou morada mais adequada
acima de nós, por onde um juiz compassivo 725
chamou su’alma ao jardim. O longo silêncio
que impôs entre vós, assim mo confessou,
terá seu termo no dia do amor verdadeiro.
Guthlac pede um favor: pediu que enterres
o resto dum ser que agora jaz estirado, 730
um tesouro largado, um despojo exposto ao céu
que recebeu a semente. A missão merencória,
senhora, que Deus me impôs está cumprida.
Agora o que me resta è meu barco no mar,
meu peito que rema e se entristece co peso 735
do remo e do mar. Flutua, meu barco, flutua,
carrega embora a vida rumo à verdade. –




FIM