Lendas
© Gregorius Vatis Advena 2010 – 2019, Records E1 E3 E4, Eng. Song of the Owl, Sleeping Beauty, The Water-Lily, Portuguese.
© Gregorius Vatis Advena 2010 – 2019, Records E1 E3 E4, Eng. Song of the Owl, Sleeping Beauty, The Water-Lily, Portuguese.
A pequena coruja não tem amigos na floresta, pois o seu canto rouco assusta os animais. Quando a lama revela-lhe a cura da roquidão, a coruja busca o remédio num mundo distante, aperfeiçoando seu canto. Mas há uma condição.
Felizes pelo nascimento da filha, os reis organizam um suntuoso festim. Mas a bruxa quer salvar da vaidade a princesa afastando-a do luxo: Na adolescência, a menina cai dormente. Um único príncipe a pode acordar, a voz da verdade.
Mara engravida por intervenção de Jaci (a lua), mas o cacique Puã não lhe crê e Mara é punida. Quando nasce Mani, Puã se arrepende e perdoa a filha. Mani porém perece e deixa atrás de si um divino e doloroso milagre.
Folha II |
© Gregorius Vatis Advena 2013, Record E1, Eng. Song of the Owl, March 2010 to October 2013, Hamburg and Hampshire, dactylic hexameter, 557 lines, epic poetry, Portuguese.
A pequena coruja não tem amigos na floresta, pois o seu canto rouco assusta os animais. Quando a lama revela-lhe a cura da roquidão, a coruja busca o remédio num mundo distante, aperfeiçoando seu canto. Mas há uma condição para que sobreviva e retorne dum mundo atormentado.
O Canto da Coruja é uma reflexão melódica sobre a insuficiência existencial do belo. Ingênua, bucólica e por vezes heroica, a busca pelo sublime transcende a perfeição estética na experiência da dor, da morte e do sacrifício. A dicção elevada e antirealista do verso reforça o caráter fantástico, cândido e essencialmente trágico da busca.
Scherzo No. 1, Op. 20, em si menor, por Frederic Chopin, performance de Alice Hwang – Musopen CC PD.
O verso é hexamétrico – seis tônicas separadas por uma ou duas átonas, ou por pausa. Em geral, o verso começa em tônica e termina em diérese bucólica – o ritmo tátata-táta. É datílico ao evocar o antigo dátilo no ritmo tátata. Todo verso possui ao menos um dátilo tonal. O dátilo classico, porém, era quantitativo.
O uso das formas épicas é tratado no ensaio Prosódia e Grafia. Ocorrem neste poema: formas átonas (è, atè etc.) e conjugações épicas.
(De como e onde a corujinha nascera) | |
| |
Era uma vez a pequena coruja na vasta floresta, | |
longe da claridade urbana. Quando de noite, | |
iam embora recolher-se os bichos às tocas, | |
ela porém ficava. Nasceu do lenho limoso, | |
veio dum velho paul que toda a fauna temia. | 5 |
Contam que não tivera pais e nasceu como nada | |
nem os sábios souberam como viera ao mundo. | |
Mas a terra que abriga animais, o largo berçário | |
viu a pequena e lhe teve bondade. Nada faltava, | |
néctar nem à boca nem ao corpo o regaço. | 10 |
| |
(De como a corujinha descobriu o mundo | |
e de como expressava o seu amor) | |
| |
Tinha belos olhos que cedo gustaram amores | |
pela noite. Passava as horas doces com vivas | |
cores nunca percebidas por olhos humanos. | |
Onde vemos sombra, notava muitos matizes, | |
verdes oníricos: Vislumbrava folhas aladas. | 15 |
Strelas, se ouvia, cantavam como as aves nunca, | |
brilho raro e maior que os postes iluminados. | |
Pelo bosque, beijava os prateados raios e | |
véus lunares: Os olhos reguardavam imagens, | |
nítida fonte. Eram tidos como perfeitos. | 20 |
Eram cílios radiantes que amavam na grande | |
selva o quanto vissem. Enquanto o mundo dormia, | |
ela velava alegre e sonhava no espelho noturno. | |
| |
(De como a corujinha carecia de amigos) | |
| |
Ia embora o tempo e como adorava os momentos! | |
Já sabia da história do vento e ventando caducas | 25 |
folhas revelavam os ninhos de seres menores, | |
trilhas na terra calmas. Eram verdes veredas. | |
Como não dividir coas aves o quanto aprendera? | |
Era tortura o silêncio das madrugadas eterno, | |
era melhor a vida ao narrar alegrias à selva: | 30 |
Muitas histórias eram daquelas pupilas somente. | |
Foi voando, pois, buscando ouvidos e amigos. | |
| |
(De como a corujinha veio a ver os pombos | |
e do que lhe disseram tais aves) | |
| |
Quando a turba pousou, a revoada de pombos, | |
uma das aves lhe disse: “São serenos teus olhos! | |
Quase refletem além o prisma d’ouro do ocaso: | 35 |
Vinde ver, amigos, a luz dessas bolas caladas!” | |
Mas a corujinha, tomada de afeto, responde: | |
“Fica aqui comigo e não te apresses, meu caro | |
pombo, que a noite è longa e passarei sem amigo.” | |
Mal terminou, porém, e viu-se a sós relegada, | 40 |
pois as aves voavam embora, a voz bradejando: | |
“Foge logo do monstro, ouve que voz asquerosa! | |
Deus me livre, coruja, não chegues perto de mim!” | |
Indo-se embora, a corujinha colheu-se num toco, | |
onde a treva se houve severa. Jamais chorava | 45 |
pois os olhos puros não careciam de pranto. | |
Foi fugindo apenas por outros cantos ocultos. | |
| |
(De como a corujinha encontrou a rosa | |
e do que ouviu dos espinhos) | |
| |
Quando a várzea calou e frio se fez a largas, | |
veio ver na rosa o sorriso e carícia da noite: | |
“Deixa-me tigo estar, ò rosa. As noites são longas!” | 50 |
Mas a rosa calou, e a coruja dorida lhe insiste: | |
“Flor, por que me calas? Fala um pouco comigo!” | |
Veio do espinho a voz: “Vai-te embora, coruja! | |
Quem amará jamais uma voz desprovida de brilho?” | |
Mas o pássaro rouco não se contenta e remete: | 55 |
“Eu vivi sem maldade e não me desfiz de ninguém! | |
Que pesar vos fiz da minha mão, meus amigos? | |
Veio comigo ao mundo esta voz mas eu sou maior, | |
eu, que vim ao mundo e vim pedindo tão pouco.” | |
“Sei que sou bela”, avisa a boca da flor recendente, | 60 |
“vai-te embora, vai!” A coruja calada partiu. | |
| |
(De como a corujinha buscava consolo) | |
| |
Farta de rumos a corujinha pousou pelas folhas | |
inda guardando a voz amarga da rosa nos olhos. | |
Num momento, quisera defender-se da ofensa, | |
mas como visse o desdém deitava o rosto no ramo. | 65 |
Como uma selva surda e muda, esta era a terra | |
cega àquelas faces que se afogavam na sombra. | |
Pouco penava andar buscando flores em beiras | |
onde os rios murmuram, pouco errar e mirar. | |
Não que faltasse o bom exemplo naquela floresta: | 70 |
Toda parte passavam as formiguinhas levando | |
pelas costas um peso quase mais do que a vida. | |
Eram bonitas! Tal imagem levanta os ânimos, | |
bem alenta muita vez e consola os humores. | |
Quem não via porém no desconsolo indescrito, | 75 |
entre um toco velho e outro a pobre coruja? | |
Ia varando estranhos rumos num voo desairado. | |
Mas saber verdades – vale alguma verdade | |
quando não se divide? Dizer ao céu emoções? | |
Mas palavras são barcas leves entre tormentas, | 80 |
ilhas longe os grandes sentimentos sem porto. | |
Não se sabe e nunca se soube o quanto a coruja | |
viu na selva, voando, imagem tolhendo palavra. | |
| |
(De como a corujinha encontrou a lama) | |
| |
Veio a dar no antro da lama. Lá demandara | |
sem saber a vereda por qual passara a vagar. | 85 |
Ante os olhos, surgiam ramos tortos no pântano. | |
Pelo breu assombrado e sem janelas ao alto | |
quase se transfaziam rios morosos em visco, | |
bolhas borbulhantes no chão de barro salobre. | |
Era um outro mundo. Faltava a flor no confuso | 90 |
mar de emaranhados galhos. Frio. Labirinto. | |
Ora, estranha como raro perceita em paludes, | |
certa calma pairava na escuridão redormente | |
como convidando a pouso. Mas quando a coruja | |
quis deitar, um ruído rouco ecoau de repente. | 95 |
Era a lama. Borbulhava um brado embalante | |
qual pudesse desde sempre falar aos alados, | |
justo aquela, a lamacenta saliva da selva! | |
| |
(De como a lama tratou a corujinha) | |
| |
“Quê?” replica a corujinha, “vai-te embora, | |
lama, a verdadeira poeira sou eu, a coruja | 100 |
donde nada aflora, que nada tenho de amável. | |
Tira os olhos de mim! Eu fui expulsa da selva, | |
quero apenas dormir.” Mas a lama moveu-se | |
rumo à coruja num gesto de andar onduloso, | |
forte e pronunciando: “Mal me julgas, pequena! | 105 |
Neste canto que a cor perdeu a verdade floresce: | |
Não se desdenha a dor e não se ofende o fraco. | |
Conta, coruja, que te passou e donde chegaste? | |
Diz-me logo o teu mal, divide a vida comigo. | |
Dar-te-ei talvez o consolo.” A coruja demite: | 110 |
Não a chamasse a lama fraca ou nem inocente. | |
Qual a razão de tanto amor? Bastava o silêncio, | |
stava acostumada ao abandono dos pássaros. | |
| |
(De como a lama falava e profetizava) | |
| |
Era tanto o desumano pesar que as palavras | |
roucas falhavam. Mas a lama não se abalava. | 115 |
Era enganado aviso, disse a bolha à coruja, | |
pois ali ninguém a vexava. Em calmas cavas | |
era daquela voz que careciam as sombras. | |
“Grande mentira!” aduz a corujinha aturdida. | |
“Como seria possível ser assim recusada | 120 |
minha voz se fosse bela? Por que me abondanam | |
quando busco algum amigo?” A lama suspira: | |
“Tem paciência pois um dia, num mundo distante, | |
homens saberão de ti, viverás na memória. | |
Estes olhos doces teus brilhavem às almas | 125 |
quando lerem a tua história. Muito falavem | |
sobre a tua beleza.” Mas a coruja duvida: | |
“É que não ouvirão a minha voz retorcida. | |
Falam só de flores.” Ora, a lama dissona: | |
“Ouve, corujinha! Da flor cairão as pétalas. | 130 |
Tua voz ficará. Os outros cantos são vagas | |
letras que a flor odeia. Mas se queres a cura, | |
sei de como afinar tua voz.” Dissesse o remédio | |
pois a coruja faria de tudo em busca do belo! | |
| |
(De como a lama ofereceu-lhe a cura) | |
| |
Duas caminhadas havia. Ficasse na calma | 135 |
simples e encontraria a felicidade perfeita: | |
Lá, teria as afeições duma fauna completa | |
nem faltaria abrigo nem abraço entre as ervas. | |
Mas o outro caminho seria um rumo de busca | |
longe e perigosa. Dentre os faróis da beleza | 140 |
era aquele o da voz suave e da música doce. | |
Lá, ninguém ouviria a rouquidão da coruja. | |
Ela, porém, ouvindo aprenderia dos homens | |
como cantar: divino dom! E quando voltasse | |
para a selva teria o carinho de todas as aves. | 145 |
Mas o rumo era incerto, pois chegar requeria | |
duro risco e risco maior retornar a viagem. | |
Nem se podia permancer ali para sempre | |
pois havia um mal naquelas terras distantes | |
inda que fossem belas. Ora, mesmo as cores | 150 |
muita vez fugiam dali, soluçando assustadas. | |
“Eu não temo,” prepondera a contente coruja, | |
“quando chegar lhes dave alento.” Pouco atinava. | |
| |
(Do quanto custaria a cura à corujinha) | |
| |
Mas a lama explicou-lhe a gravidade do preço, | |
antes que decidisse: “Filha, teus olhos são fracos – | 155 |
não poderás chorar senão morrerás pelos olhos!” | |
Pasma, a coruja ponderou, pesando a verdade. | |
Que penoso mal macerava essa terra do canto? | |
“Fica conosco pois o amor è somente dos nossos.” | |
Mas a coruja olhando os ramos feios em volta | 160 |
não confiava no amor salobro e não se arredava: | |
Antes morrer que viver abandonada na selva! | |
Stava pois decidida a venturar o seu rumo. | |
Pois a lama pelas ondas mostrou-lhe o caminho. | |
Quando a coruja livre abrive as asas na estrada | 165 |
já não mais ouvia os avisos, voava empolgada. | |
| |
(De como a corujinha voou e aonde chegou) | |
| |
Foi ligeira a sequência: A coruja varar pela noite, | |
sombras, passar por emaranhados novos de estrelas, | |
ares, sorver esperança. Pensar também no retorno | |
nem caberem no peito alegrias da voz redimida. | 170 |
Ver na viagem lugares impossíveis, ignotos | |
entre surpresas. Quando enfim o céu alvorou-se, | |
vindo o sol amar, na manhã, os amores primeiros, | |
veio a dar num campo crescente a fiel corujinha. | |
Duas árvores gigantescas em mares dourados | 175 |
pelo trigo soavam notas amenas ao vento. | |
| |
(De quem a corujinha encontrou no novo mundo) | |
| |
Quis de pronto aprender das mães das avezinhas | |
nova e nativa língua. Ela imitava os cantares, | |
arte custosa que era. Repetia exercícios | |
como se fosse escola: Duro alcançar a meta | 180 |
quando sublime. Porém seguia firme a pequena | |
pois sabia e reconhecia um divino desfecho. | |
Mas saiu correndo pelo campo um menino! | |
Tinha às mãos uma vara e remexia as espigas, | |
vinha brincando pela terra e na sombra da folha. | 185 |
Era tão bonito assistir uma rara inocência, | |
tanto que a corujinha sentou-se junto à criança | |
como se fosse amiga de longa data invisível. | |
Ela desfrutava do mundo e seguia o pequeno | |
cada passo rumo à casa – mas algo a magoa. | 190 |
| |
(Do primeiro mal que a corujinha viu) | |
| |
Conta, coruja, a cena que vês! A mãe do menino | |
cobre o rosto coas mãos. O pai demora por quê? | |
Mas morreu? E quem o levou? O pequeno pergunta, | |
vai ouvindo e não entende. Começa uma luta | |
pelo campo, onde as armas dos homens trovejam, | 195 |
vão levando os pais e mal-tratando a colheita. | |
Muito ódio corria por entre um vale formoso. | |
Mas a mãe tomando o filho ao braço se esconde, | |
foge deixando a casa em fogo e nada se explica. | |
Vai correr no desespero da noite em ruína, | 200 |
vida abandonada e jornada sem mão de socorro. | |
Quando pela aurora a coruja viu os caídos | |
foi menor a sua alegria ao vislumbro do sol. | |
Sangue coloria o mundo novo e formoso: | |
Era um rubro mar, veneno afogando a semente | 205 |
como os corpos estirados, os olhos abertos. | |
Mortos dividiam campo coas folhas cortadas | |
pela espada, no fogo as margaridas amargas. | |
Sombras eram devoradas pelos calores, | |
flama carcomendo o vale. A causa da luta? | 210 |
Cada um se aclamava dono da terra sem dono. | |
| |
(De como a corujinha entristeceu-se no mundo) | |
| |
Onde agora a corujinha veria os fugidos | |
pelo mundo, por onde procurar os perdidos? | |
Como se não bastasse não saber o caminho | |
mal pensava em si mesma e no aviso da lama. | 215 |
Bom coração, esperava ainda virem os anjos, | |
céus colhendo os olhos dum pequenino caído. | |
Olhos, frascos de grave fluido gris e tristeza! | |
São brilhantes pedras mas são pedras espessas | |
como quimera pesada e nunca forte nas faces. | 220 |
Duas pequenas se pesam tão amargas ao homem, | |
quão pesadas na cavidade estelar da coruja? | |
| |
(De como a musa das aves inspirou a coruja | |
e de como a coruja aprendeu a cantar) | |
| |
Mas a musa e generosa das aves infunde | |
força ao peito e logo a corujinha se eleva. | |
Quase decidira-se a retornar para a lama | 225 |
mas a voz suave consola. Voando por plagas | |
veio pousar aos pés duma riba sonosa e riacho | |
para escutar calada: o canto do coro das aves, | |
ondas odorosas, murmúrios, brinco de bichos | |
pelos ramos endourecidos. O vento macio | 230 |
dava dança aos arvoredos, voz da floresta: | |
São surpresas as alegrias suspensas nos ares. | |
Pois a coruja, atenta ouvinte, aprendeu a cantar! | |
Quando ouviu a própria voz afinada na várzea, | |
quase alçau as asas como as almas o peito | 235 |
para engolfar a selva, o mundo inteiro no abraço. | |
Todo o ser da coruja transformara-se em flauta, | |
eco sorridente dum canto impossível e doce. | |
Era como se o coração renascesse num raio. | |
| |
(De como as alegrias cantaram coa corujinha) | |
| |
Canta pois um membro novo no coro supremo. | 240 |
Quando alguma nota se perde perante alegria, | |
quando o ritmo, o metro correto se vai, recomeça. | |
Doa mais atenção à causa, esmero da indústria, | |
pois o preço do canto perfeito è perfeito trabalho. | |
Ora, passava os dias na imitação das cadências, | 245 |
cada das horas dava às auras proezas precisas. | |
Nesses momentos intensos, as outras aves ouviam | |
como dum anjo invisível o canto maior da coruja. | |
Pulsa, amor, e passa das veias às vozes do vale, | |
deixa as aves saberem o quanto cabe num peito! | 250 |
Música, canto estelar que calas armas dos homens, | |
fala às cavas das almas, leva além os lamentos! | |
Tanta natura e puras notas apagam as mágoas. | |
Como se esquecem pássaros que as horas exaurem, | |
sol que descendo e dormindo dourifica as margens! | 255 |
Como se esconde o dia atrás das árvores velhas. | |
Quem será na terra mais feliz do que os pássaros? | |
Cerram ocelos e dormem docemente dos galhos. |
Canto da Coruja | Folha III |
(De como a corujinha chegou à cidade) | |
| |
Já podia voltar de viagem e toda a floresta, | |
mesmo a rosa amaria agora a voz da coruja. | 260 |
Mas um grandioso intento aflorou-lhe na mente, | |
pois ouviu que a melodia na voz das crianças | |
era quase mais formosa do canto das aves. | |
Era preciso saber de qual mistério se alegram | |
esses coros jovens, ouvir e aprender a verdade. | 265 |
Nesta busca, a corujinha voau por veredas, | |
vias desconhecidas, até chegar à cidade. | |
Para trás ficaram os montes ermos e vales: | |
Era uma nuvem turva a primeira luz avistada, | |
ruas amareladas por artifício de postes, | 270 |
fumo das casas pelas chaminés abafantes. | |
Eram muitas pedras, estranhos entre calçadas, | |
mais além o asfalto calçando o sapato de carros. | |
Prédios velhos surgiam, prédios da cor da fuligem: | |
Quando os olhos procuravam o céu, encontravam | 275 |
cinzas paredes que nunca chovem, véu de vazios. | |
Não havia flores. Os pés passavam por praças, | |
turbas carregando maletas. Ninguém escutava | |
nem enxergava a corujinha no breu, no barulho: | |
Era o desassossego da rua adentrando a pequena. | 280 |
| |
(Do segundo mal que a corujinha viu) | |
| |
Quão desassistidas as horas! Numas esquinas | |
caem da mão calada moedas que párias apanham. | |
Que te importa o pedinte, coruja? Segue na senda, | |
busca o coro jovem que queres, nota-lhe as vozes, | |
vai-te embora. Mas imagens malsãs te dominam | 285 |
pelas ruas. Conta o novo pesar que te abate, | |
deixa prenhes de pranto os olhos teus inocentes! | |
Era aquela mãe caída, o rebento nos braços, | |
fome na espera do pão impossível. Onde buscar? | |
Vai cantando um ninar ao filho seu que definha. | 290 |
Onde quis a coruja colher o canto dos jovens! | |
Era melhor fechar os olhos na morte dos astros | |
ora ofuscados por luzes falsas, farol de automóveis. | |
Era melhor deixar a cidade e fugir pela sombra. | |
Mas a pequena ficou. Enquanto rodas corriam | 295 |
rápidas, passos passavam refranzindo a testa: | |
Nem atinavam coa febre do abandonado menino. | |
Veio por fim no frio da madrugada o gemido. | |
Quando porém a coruja ouviu a voz pequenina | |
deu-se a surpresa: Apareceu, na imagem fatal, | 300 |
ele, o menino perdido por entre a luta no campo, | |
olhos doentes ali, na calçada. Geme no colo | |
magro da mãe que o morbo nada menos poupava, | |
morte iminente. Era verdade a palavra da lama. | |
| |
(De como a corujinha apiedou-se dos fracos) | |
| |
Mas agora cumpria agir e pensar num auxílio: | 305 |
Certo um bom amigo tinha o pão preparado, | |
logo viria o leite alentar a dor do pequeno. | |
Eram diferentes, porém, os planos de tempo: | |
Só, a mãe beijava e recobria em vão o faminto. | |
Não se contentou a coruja e saiu à procura, | 310 |
pobre alado ser invisível. Mas quem escutava? | |
Nem o desespero daquela mãe lacrimosa | |
pôde mover à piedade as turbas passantes: | |
Nada se dá de graça e pressa agita passantes. | |
Era mundo de ensurdecidos. Podiam as asas | 315 |
inda salvar da morte aquele corpo minado? | |
| |
(De como a coruja inspirou a bondade de estranhos) | |
| |
Sem demais pensar, a coruja voau resoluta | |
rumo à praça e fez a promessa: Não retornava, | |
não de mãos vazias! O seu apelo inaudível | |
certo inspiraria o peito aberto dum homem. | 320 |
Teve sorte! Como sentindo desejo imprevisto, | |
um dos pedestres, mera sombra, muda o caminho. | |
Vai dirigindo os passos à rua escura dos fracos, | |
vai seguindo, sem o saber, o cantar da coruja. | |
Inda que não se pudesse ouvir a flauta perfeita, | 325 |
ela tocava a corda das almas. Aquele pedestre, | |
pois, chegou à rua da mãe, do menino e da morte. | |
Que te abate os olhos, valente? Toma coragem | |
ora que cá vieste, levanta do chão os caídos! | |
Passa o tempo num sopro qualquer. Usa o ensejo, | 330 |
salva uma vida! O homem ouviu. A mãe explicou-lhe | |
tanto o céu que perdera como o que estava a perder. | |
| |
(De como a corujinha conheceu a morte) | |
| |
Mas o pedestre corajoso lançou-se na busca | |
como nave em tormenta rumo ao porto: ao pão. | |
Quantos remos forom perdidos! O tempo passava, | 335 |
mar amargo. A corujinha perdia esperança | |
pois o pequeno gemia e não chegava alimento. | |
Quando o desconhecido retornou da jornada | |
cheia de angústia, tendo às mãos o pão e consolo, | |
dons de doadores sem nome, a noite era tarde. | 340 |
Quanto aos abandonados pela calçada, dormiam | |
ambos, a mãe o sono da vida, o filho o da morte. | |
Que vacilas, herói? Do destino os autos tremendos | |
nunca esperam por nautas nem toleram descrentes. | |
Toma as prendas ora inúteis que portas e parte! | 345 |
Tu, pequena coruja estranha no mundo sem sonho, | |
só agora recordas a escolha que a lama te dera? | |
| |
(De como a corujinha desgostou-se do mundo) | |
| |
Ai, corujinha! O teu pesar na floresta virente, | |
onde vieste do lenho ao mundo e foste enjeitada | |
pelos bichos, era um sonho apenas contente, | 350 |
sonho apenas se agora bem comparas os casos. | |
Ora que transformeres a voz em flauta formosa, | |
ora indagas o coração e a resposta se cala: | |
Onde è bela a beleza perante a dor da verdade? | |
São de invejar os cegos e surdos: Falam apenas, | 355 |
cantam sem ouvir o desprezo às flautas felizes. | |
Que farás, corujinha, que rumo novo tomaves? | |
Não te atristes que a profecia da lama se cumpre: | |
Tua lágrima è tua morte! Deixa os perdidos, | |
canta a canção de iludir o pranto gris iminente! | 360 |
Falta alegria? Ora, não cantes, decide-te apenas! | |
Vai-te embora, contente da voz, e confia na lama. | |
Quem sorver na selva a perfeição do teu canto, | |
filha, será feliz, e terás um amor do universo. | |
| |
(De como a corujinha chegou à capela | |
e do canto que ali aprendeu) | |
| |
Mas não veio de longe o som das vozes maiores, | 365 |
quando na noite seguinte a coruja chegou à capela. | |
Eram crianças! E como perder o ensejo esperado? | |
Ora, a coruja decide ouvir, aprender e partir. | |
Senta-se àquela janela envelhecida e contempla, | |
junto à cor dos vitrais, os sereníssimos cantos. | 370 |
Ouve tanto e quase se esquece de si, redimida | |
pelas suaves cantatas, longe do altar e divinas. | |
Como não se esquecer de si no instante sublime? | |
Ser è sempre pequeno: ouvir è maior do que ser. | |
Certos acordes são eternidades, recorda-se. | 375 |
Mesmo o instante, o fugitivo extremo dos olhos | |
rende-se à flauta mas a flauta nem sabe que existe. | |
| |
(De como as alegrias redescobriram a corujinha) | |
| |
Como são grandiosos os pequeninos cantores, | |
como a coruja adora as melodias amenas: | |
Tangem do infinito as cordas, soam acima. | 380 |
Vai cantando junto aos puros e vai aprendendo, | |
vai mesclando os próprios tons à ternura do sopro | |
como se até o templo, parede e pedra escutassem. | |
Alma atenta, não perderia uma única nota, | |
antes transformaria o corpo inteiro em ouvidos. | 385 |
Lá chegavam pois alegrias, voando coas vozes | |
pela capela como se fosse o fim do universo. | |
Mas a vida è pequena e não se cabe na lira. | |
Voa, corujinha, dança e repete as cadências, | |
mostra a vida aos seres cuja vida è sem musa. | 390 |
Quando as alegrias redescobrem essências, | |
deixam no dia jamais matiz, murmúrios apenas. | |
Quando a coruja atinava coas alegrias e as notas, | |
via cumprida a promessa de aprender a cantar. | |
Ante os vitrais coloridos, cantava e nada retinha, | 395 |
nada mais a liberdade, o seu voo, o seu canto. | |
Já podia deixar a cidade e passar pelos campos, | |
já podia alçar-se rumo às noites e aos sonhos: | |
ir ouvir estes colecionadores de estrelas | |
pela floresta, pois agora a floresta floria. | 400 |
Era maior que as alegrias do mundo a floresta. | |
| |
(De como a corujinha conheceu o coro | |
e do que atormentava os coristas) | |
| |
Mas a coruja foi medindo a forma das faces, | |
foi notando a tez entristecida e cismando. | |
Ora, deixavam cabisbaixos a porta, a capela. | |
Que lhes passou, corujinha, vai ouvir o que dizem! | 405 |
Era a voz que faltava, o bom amigo impedido: | |
Era o canto maior, abandonado à miséria, | |
guerra e morbo. E quem sabia se ainda vivia? | |
Cuida dos olhos, coruja, não te apiedes demais, | |
deixa a cada ser as próprias dores e parte. | 410 |
Ela não ouve! Reflete tanto que não se contenta, | |
voa angustiada e questiona: Quem o doente? | |
Era de império saber a causa, locais e pessoas, | |
ir encontrá-lo, pois talvez lhe desse um auxílio. | |
Ela descobriu pelo coro o distante endereço: | 415 |
Pois voau apressada. Andou seu andar derradeiro. | |
| |
(De como a corujinha buscou o abandonado) | |
| |
Já deixara o fumo urbano e passava por vales | |
onde o tal enfermo morava, a voz da capela. | |
Ia por casas perdidas, pastos, batia nas portas, | |
ia ouvindo atenta os ruídos, buscava os caídos. | 420 |
Mal chegove ao campo ensanguentado na luta, | |
foi estudando os tratos mal-tratados de terra. | |
Pois a coruja recordava o singelo casebre! | |
Não correram ambos dali, a mãe, o menino, | |
quando o fogo infame fustigava a madeira? | 425 |
Não fugiram transtornados rumo ao incerto, | |
rumo àquela triste esquina? Viagem perdida, | |
alça as tuas asas, coruja, e volta à cidade! | |
| |
(Dos descaminhos que a corujinha encontrou) | |
| |
Inda que seja ingrata a rota, máximo esmero | |
fartas vence de velhos quiçá vergados fadigas. | 430 |
Vem a procela insana e profliga universas as vias, | |
vagas jamais de boca narradas afogam as ribas. | |
Ventos vencem margens, árvores vastas devoram. | |
Morte pravos semeiam ares larga nos prados, | |
fracas do homem armas ante as terras convulsas: | 435 |
trons e tremores, monstros e raios e pélagos raros. | |
Mas a coruja não se abala. Demanda a cidade, | |
pousa após impossível viagem, na busca da esquina. | |
Certo perdera o rumo como perderam o rumo | |
face à morte a mãe, o menino, a vida largada. | 440 |
| |
(De como a coruja encontrou um vestígio) | |
| |
Era como a busca da morte uma busca na noite. | |
Mas passadas horas, os olhos agora pesados, | |
surge à vista tremulante a tétrica esquina. | |
Era o vazio: A morte ali passara primeiro. | |
Mas aonde foram levados e onde enterrados, | 445 |
quais estrelas recolheram os cantos perdidos? | |
Não sabia. Porém os olhos amigos de cores, | |
cavas de amor às imagens, iam notando matizes. | |
Como um traço os pontos coloriam as ruas, | |
bem pequenos entre as sombras mas engravados | 450 |
fundo junto às pedras. Eram vestígios de vida | |
lá deixados, cores dum canto simples e fraco. | |
Mesmo mudo, deixava rastos o canto cansado | |
toda parte por onde passava o menino das ruas. | |
Eram cores que apenas olhos sutis recolhiam | 455 |
como os da corujinha que carregavam estrelas. | |
| |
(De como os pombos reencontraram a corujinha | |
e do apelo que o seu remorso lhe fez) | |
| |
Mas uma revoada de pombos, que a lama enviara, | |
veio interromper de repente a coruja ansiosa: | |
“Para, coruja!” falavam em ofegantes apelos, | |
“não prossigas. Ai de nós que te enjeitamos outrora, | 460 |
que divina amizade enjeitamos. Perdão, corujinha! | |
Tarde a lama nos disse a verdade, pobre corrente | |
cuja espera por ti desespera e que chora por ti. | |
Que diremos de nós, arrependidos, sem sonhos? | |
Desde que ouvimos da tua aventura voaumos aflitos | 465 |
rumo à dor deste mundo maldito. Volta conosco, | |
vamos embora contentes, a velha casa te aguarda! | |
Sobe a todos os mundos a perfeição do teu canto. | |
Não descubras em vão a dor duma raça perdida, | |
vem conosco e deixa a cada mundo o seu mal! | 470 |
Ouve, corujinha! Se prosseguires, morreies. | |
Não te apiedas mais de todos nós que te amamos? | |
Queres mesmo delir tua vida e nossa alegria? | |
Mesmo a rosa anseia por ti, remoída de angústia. | |
Não sacrifiques ao mal do mundo a lágrima e vive!” | 475 |
“Pombo,” diz a coruja, “por que te apressas de longe | |
para transformar o meu coração numa pedra? | |
Como deixar derribado ao leito ingrato da morte | |
quem carece de mãos e pão? Respeita-me, pombo! | |
Quero cantar aos pés de quem padece calado! | 480 |
Ora que este mundo deu-me o dom do seu canto, | |
como fugir, mentir, abraçar uma vida covarde? | |
Ide embora pois eu quero seguir a jornada!” | |
Mas as avas partiram cobrindo o rosto, chorando | |
pelo intento perdido como evitando a verdade. | 485 |
Ela porém contrita seguiu procurando a verdade. | |
| |
(De como a corujinha seguiu na jornada | |
e da casa aonde chegou) | |
| |
Quando os coloridos vestígios vieram ao fim, | |
veio a dar num jardim que a madrugada encobria. | |
Era pois no horto que encontraria os perdidos? | |
Inda soava pelos galhos o apelo da lama! | 490 |
Longe e mal iluminadas surgiam janelas | |
entreabertas, pequena casa e casa singela. | |
Vinha dalguma vela o lume sombrio que velava | |
pelo quarto calado, onde jazia o pequeno. | |
Ele vivia? Vivia, mas a morte esperava | 495 |
contra quem a coruja foi lutando e cantando. | |
Mas o menino já não ouve o cantar da tutora | |
cujas asas vão abraçando uma vida sem viço. | |
Pelo jardim circula o pedestre da noite passada, | |
ele que em vão trouxera pão e leite ao pequeno, | 500 |
ele que em vão trouxera àquele abrigo o pequeno. | |
Não morrera então! Seria possível salvá-lo? | |
Sem pensar, a corujinha se acalma e se alegra | |
como se o céu a tivesse arrabatada em surpresa. | |
Ora amava decerto como um filho o menino, | 505 |
filho sem nome e professor maior do seu canto. | |
| |
(Do mal maior que a corujinha viu) | |
| |
Mas o caso è grave e não permite alegrias | |
pois o corpo se debatia, a flama na vela | |
prestes à treva, a vida em renitente agonia. | |
Pobre mãe saíra triste em busca dum médico | 510 |
mas a voz na cama esperava em vão o remédio: | |
Nem abraço e nem um colo lhe foi concedido. | |
Anjo incapaz, a coruja corre e geme e suspira. | |
Não havia ninguém naquele abrigo insensível? | |
Certo havia! Havia de fato os donos do abrigo: | 515 |
Iam afora cobrando quantias à mãe do pequeno | |
como ao generoso pedestre: “Onde o dinheiro? | |
Paga agora, paga ou leva embora a criança!” | |
Mas os apelos e as esperanças pouco adiantam | |
contra impiedade dos cegos, espinho da rosa. | 520 |
Como se ouvisse ameaça a voz implora na cama: | |
“Volta, mamãe!” Voltava só a coruja, coitada, | |
olhos pesando mais do mar, a flauta quebrada. | |
Tanto buscara a cura da sua vida sem canto | |
mas o canto de agora mal salvava uma vida? | 525 |
Foi em vão que a corujinha aprendeu a cantar? | |
Só restava ouvir daquele amigo um gemido | |
mas a coruja esperava cantarolando um ninar. | |
Quando as asas o envolveram, a morte abeirou-se. | |
Inda entoando a canção de redimir o infinito, | 530 |
lá se rendeu às estrelas a vida calma e caída. | |
| |
(De como a corujinha padeceu no jardim | |
e do que então lhe ocorreu) | |
| |
Ó quem visse no amanhecer os olhos da pena! | |
Quando o primeiro raio corau o silêncio do alto, | |
já desciam ao mundo três estrelinhas do céu. | |
Vinham de longe, vinham vivas, vinham ao quarto | 535 |
frio levar um sopro infantil ao jardim encantado. | |
Mas as flores restavam indiferentes à morte, | |
inda lembrando a severidade amarga da lama: | |
Todo amor às flores paga o preço do espinho. | |
Tanto esforço a coruja fizera, tanto aprendera | 540 |
pela beleza dum mundo que não se apieda? | |
Não se conteve e repentinamente entendeu: | |
Era o dilúvio, eram as lágrimas, era a morte! | |
Ela chorava e seu corpo se desfazia nas gotas: | |
Era um vaso feito de gotas e vaso quebrado. | 545 |
Ela soube cantar, amar e morrer pelos olhos. | |
Mas da piedade deu-se um milagre bonito | |
quando um raio transluziu além de seu corpo! | |
Foi dispersa ao mundo uma intraduzível gama, | |
luz sem fim prenunciando ao véu a verdade. | 550 |
Ela derramou-se em matizes pelo universo! | |
Ela deixou por toda parte um traço distinto | |
donde emana a derradeira visão da alegria. | |
Toda manhã, os pequeninos tocam nas flores | |
gotas luminosas que um gesto raro espalhou. | 555 |
Ó bondoso e triste sacrifício dos olhos, | |
ela que te verteu à terra chamava-se orvalho. | |
|
Folha IV |
© Gregorius Vatis Advena 2014, Record E 3, Engl. Sleeping Beauty, December 2013 to January 2014, Hampshire, dactylic hexameter, 570 lines, epic poetry, Portuguese.
Felizes pelo nascimento da filha, os reis organizam um suntuoso festim. Mas a bruxa quer salvar da vaidade a princesa afastando-a do luxo: Na adolescência, a menina cai dormente. Um único príncipe a pode acordar, a voz da verdade. O despertar final, porém, não atende o desejo transcendental da bruxa.
A Bela Adormecida é uma releitura tortuosa do famoso conto de fadas. A distorção narrativa se dá num conflito entre a dança da morte (do topos medieval à descrição forênsica) e a vaidade, o consumismo, a frivolidade existencial. Neste cenário de contrastes e extremos antilíricos, o prospecto do amor verdadeiro parece duvidoso.
Da peça Kreisleriana. Sehr Langsam, por Robert Schumann, performance de Aurelia Vișovan – Musopen CC BY 3.0.
O verso é hexamétrico – seis tônicas separadas por uma ou duas átonas, ou por pausa. Em geral, o verso começa em tônica e termina em diérese bucólica – o ritmo tátata-táta. É datílico ao evocar o antigo dátilo no ritmo tátata. Todo verso possui ao menos um dátilo tonal. O dátilo classico, porém, era quantitativo. Verso anti-heroico, o grosso da obra deve ser entendido como prosa métrica.
O uso das formas épicas é tratado no ensaio Prosódia e Grafia. Ocorrem neste poema: formas átonas (è, atè etc.), sinais de diérese (mácron, trema etc.) e artigos líquidos (lo, la).
Quem enxerga por entre espinhos aquele castelo | |
nem imagina quanto sangue escorre escondido. | |
Mas o moribundo grito dos príncipes uiva | |
pela cerca e pelas poças o pus se revela. | |
Entram no paraíso as almas e vermes vorazes | 5 |
gozam a decomposição dos édens na carne. | |
Quando o coração se acaba, a pele se veste | |
toda em palor, primeiro ato da vida encerrada. | |
Segue em poucas horas o algor: A temperatura | |
cai daqueles trinta e sete graus que sustentam | 10 |
vivo o corpo a vinte graus, apenas. A vida | |
prega as suas peças, sim, e pouco seguros | |
são sinais do palor, frigor, do sopro, do peito, | |
pois se viu palor em cadáveres inda viventes. | |
Muita vez, defuntos abrem os olhos, surpresos, | 15 |
frígidos mais que pedra, como ressuscitados. | |
Noutras feitas, o peito retornou a pulsar, | |
como se o corpo só dormisse. A vida se esconde | |
como pode: Foge e revive. As horas, contudo, | |
speram certas: É severo o rigor da morte. | 20 |
1
Quando o músculo se enrijece durante palores | |
tens à vista a prova certeira do termo. Começa | |
pelos olhos, pelo queixo, descendo por membros, | |
tronco, pés. Na rigidez cadavérica perde-se | |
toda a matéria fléxil do texto, presa da hidrólise, | 25 |
quebra-se adenosina-trifosfato que outrora | |
dava à carne energia, relaxe. E marcha o êxodo, | |
passa quase ao mesmo tempo, do sangue deixado. | |
Ora que o peito já não mais o pulsa nas veias, | |
cede às opressoras leis da causa do mundo e | 30 |
vai descendo negro perto do chão do repouso. | |
Deixa enfim o palor aos abandonados tecidos | |
como lhe reza a gravidade, juiz implacável. | |
Desce às pernas e pés nos enforcados cadáveres, | |
cai às costas no corpo deitado. Surgem livores, | 35 |
manchas roxo-azuis e lagos por onde a fluência | |
morta se cristaliza e seca, antes da aurora | |
podre. Temes o verme comedor, o fungo fedido? | |
É porque não sabes quão bonita homenagem | |
rende aquela fauna difamada ao defunto e | 40 |
2
bichos salvando o ser da rigidez final, o | |
fungo transfazendo em gás o gasto tecido. | |
Pois aí se vê, piedade existe de fato, | |
basta procurar de verdade. Ficam os ossos, | |
vão resistindo pelos anos: No clima sereno | 45 |
tudo ali se conserva, até ā pele por vezes. | |
Quando o fluido renega a decadente roupagem | |
sobra a múmiā contra os animais do sepulcro. | |
É, no mundo o que não falta è causa de morte, | |
tem de tudo: natural, por ação violenta, | 50 |
forca, fogo, afogamento, facada nas costas. | |
Entre as de longa data está ō golpe afiado | |
como desde a pré-história perfura e penetra: | |
Faca, lança, espada, tiro de flecha e revólver. | |
Inda apodrece a carne dilacerada entre espinhos | 55 |
perto daquele castelo, a coleção de carcaças: | |
uns esqueletizados no tempō, uns decompostos, | |
outros ainda frescos onde o rigor è visível. | |
Ficam presos, perfurados e asfixïados | |
pela cerca impenetrável, o corpo em livores. | 60 |
3
Mas um céu estrelado circunvolve o castelo: | |
Vai mostrando ao mundo as suas duas verdades | |
como preenchem o hemisfério: o amor, a morte. | |
Ora viaja pela vida o que foge da morte | |
mas a fuga da morte è fuga rumo ao āmor. | 65 |
Mal viveu se mal amou, porquanto è procura | |
nesta vida o mundo, amor o fim da verdade. | |
Tarde porém se lança à busca quando livores | |
vão mudando a cor da pele. O amor è de agora | |
quando o sangue corre livremente nas veigas: | 70 |
Vai dançando enquanto a brevidade tolera. | |
Com razão as aflições se apressam na estrada: | |
Só ō amor faz jus à dança leve do sangue. |
Trás a cerca de vidas desperdiçadas e espinho | |
stava o castelo. Jazia na sua altíssima torre a | 75 |
bela princesa, imóvel sobre a cama arrumada. | |
Iam crescendo janela adentro os ramos do bosque, | |
iam transformando aquele recinto em floresta. | |
Toda parte exalava o perfume fresco da rosa | |
quando em noite estrelada um vento novo soprava. | 80 |
4
Ela, que dorme encantada em delicado tecido, | |
vai mostrando pelo rosto a modéstia da morte | |
como a pétala desbotada e no entanto macia: | |
Como um manto invisível, o frio vestia seu corpo. | |
Quem contudo ouvisse melhor a verdade do peito | 85 |
logo entendia: Estava viva, porque respirava! | |
Contam que lá dormiu durante um século quase | |
como em África os moribundos do mal do sono | |
(tétrica triponossomíase) passam sem cura. | |
Posso até fazer, aqui, um parêntese estranho, | 90 |
pois a diferença dos casos merece um remarque: | |
Quando o mal è de pobre africano, doença não conta | |
não, bonito mesmo è curar princezinha – mas ela | |
forma um caso à parte, inusitado episódio: | |
Já passara tempo demais nessa cama arrumada! | 95 |
Como foi essa história? Vale a pena ilustrarmos | |
bem o quanto ali ōcorreu, a verdade ilumina: | |
Era uma vez um rei velhão que tentou e tentou e | |
enfim engravidou a rainha – teve um chilique: | |
Mal pariu e organizava já pormenores dum | 100 |
5
rendez-vous arrojado, festim de socialites. | |
Foi uma agonia que só – mandavam convite | |
mundo afora e cartas, intimações e despachos, | |
já chegando as respostas apressadas por email: | |
Justin Bieber chamado e confirmada presença em | 105 |
vídeo de marketeiro rondando pelo YouTube, | |
detalhes da novidade compartilhados no facebook, | |
todo um frisson, comoção sem igual. Era conversa | |
pelo twitter, Google + e notícia de imprensa. | |
É, meu filho, a lista ali passava os milhares, | 110 |
dava inveja e deixava toda xuxa chocha. | |
Era como a legendária festa na velha Ve- | |
Neza em 1950, atè hoje aclamada | |
como o baile maior do século XX, imaginem: | |
três ou quatro noites de luxo, convites rondando | 115 |
pela Europa com mais de um ano de antecedência. | |
Não diferiu lo festim da princezinha mimada: | |
Foi ūm carnaval bacanálico, um ato de gozo | |
quase maior que em Salvador, o nível perfeito. | |
Quanto a requinte, ah, as maquiadas madrinhas | 120 |
6
foram mais zelosas que a bulimia das magras. | |
Era um concurso aberto o tapetão vermelhante e | |
saltos na passarela, as agitadas mocinhas | |
carregando os presentinhos. Doze madrinhas | |
punham roupinhas rente ao lindo berço dourado. | 125 |
Foi uma bolsa da Louis Vuitton o primeiro presente, | |
larga, imensa, maior que o bebê. A segunda fada, | |
mais discreta, trouxe três colares de pérolas | |
inda frescas made by Tiffany & Co. de New York. | |
É melhor evitar os detelhes de Christian Dior e | 130 |
outros dons da terceira fada, os óculos épicos. | |
Gente, haute couture podia faltar ao congresso? | |
Era cada tecido que tinha passado, diziam | |
muitos, pelas mãos da própria Coco Channel, e | |
Gucci e Prada, Giorgio Armani e Gianne Versace | 135 |
lá deixavam as veneráveis marcas da moda. | |
É verdade que alguns se chateavam com isto, | |
óbvio, pois ficar comprando acessório pronto, | |
isto è palhaçada de novo rico e vexame. | |
Uma pessoa de classe, princesa não se rebaixa, | 140 |
7
não, jamais. Questão de decência: Gente de estilo | |
manda tecer que-nem os machos da inglesa coroa. | |
Buscam na Savile Row alguma loja caríssima | |
onde encomendam bespoke tailoring, justa medida. | |
Houve certas almas erradas comprando à francesa, | 145 |
grifes de muita fama e muito pouca fineza, | |
mas por cortesia os parvenus de Paris e | |
doutros cantos eram todos bem recebidos. | |
Tantos mimos, dons e tantas prendas fantásticas | |
quase ofuscavam uns aos outros, e a décima fada | 150 |
vinha coaquele pó de maquilagem compacto | |
quando uma velha doida começou a berrar, e | |
do nada. Devia ser a empregada perdida na festa, | |
feia demais para ser verdade em conto de fadas. | |
Era decerto alguma presepeira adoidada e | 155 |
malmorada. Era um Exu, o nome è este, ou | |
sombra meretriz de Medeia, migrante ilegal e | |
filha de operário romeno em Londres, o pária | |
longe da glória e construindo estádios olímpicos. | |
Não percamos tempo em vagações infrutíferas. | 160 |
8
Claro e manifesto estava o caso, perfeito | |
spelho de torturante verdade. A vida da velha | |
pouco importava. Não cabia naquele banquete. | |
Era um elemento perturbador de delícias. | |
Tinha uma cara estranha, meio arrombada e sem jeito, | 165 |
tinha todo um je-ne-sais-quoi de inquiëtante. | |
Ela falou! Abriu la boca e sem dó nem bondade: | |
»Tudo mentira!« Mas soava com ar abatido e | |
quase confusa vendo a bolsarada de couro. | |
»Cock off with you«, algum embriagado replica | 170 |
perto, nariz e prato repletos de cocaína, | |
pó que nem as mesas ilustres do Rio de Janeiro | |
possuíram: Era possante a química e fina. | |
Claro, o body-guard da festinha foi notificado e | |
vinha já retirar a bruxoxona encardida: | 175 |
»Essas prendas«, pois assim a mulher continua, | |
»nada valem. Pois que bem vejais o meu rosto! | |
Dorme quase num véu de vaïdade a menina e | |
como entorpecida de vago anseio e de morte. | |
Como não baste a vida vossa, vária, largada, | 180 |
9
inda quereis roubar à mesma rota pequenos? | |
Como è só de morte a vossa prenda à donzela, | |
era melhor que dormisse um sono eterno a menina. | |
Eu lhe concedo, meus senhores, como presente o | |
dom do amor.« A cadavérica voz se alastrava, | 185 |
mãos, por sobre a face decomposta, rugosas, | |
quase a cobri-la. Quando a pele gela em palores, | |
pouco ajuda o pó compacto, o peeling, o rouge e | |
nem se viu Louis Vuitton vencer os livores | |
quando a mancha se espalha, nem colares de brilho e | 190 |
joias da Tiffany & Co. Na vida como no verbo, | |
toda moda è morte somente. O belo adormece. | |
»Sendo morte o venenoso véu que escolhestes,« | |
segue a bruxa, »meros manequins ambulantes, | |
dar-vos-ei a vós também uma prenda perfeita: | 195 |
Ide dormir!« E naquele mesmo momento caiu do | |
céu um manto frio, imenso algor que lançava | |
rumo ao chão os corpos, em rigidez de cadáver, | |
ora elevados à nobre condição dos móveis e | |
bolsas de couro, colares e pedras e gemas briosas. | 200 |
10
Vendo entretanto a pobrezinha dormindo no berço, a | |
bruxa teve amor dos mansos. Seria adequado | |
pois punir quem nem viveu? As fadas madrinhas | |
inda imploravam como podiam, rogando clemência e | |
mais apelos fortes em prol da bela dormente. | 205 |
»Ela crescerá na inocência!« revela a bruxa. | |
»Quando porém chegar aos quinzē anos de idade, | |
há de tocar uma roca a fiar. E cair. E dormir. | |
Cerrar os olhos ao véu da vaïdade que invade | |
como o verme corpos o mundo em sonho funesto. | 210 |
Quem a despertará da cena vã que a tormenta? | |
Praza a Deus que um dia o príncipe voz da verdade | |
venha desvendar-lhe o dom que chamaram amor.« |
A Bela Adormecida | Folha V |
Três fadinhas criaram a bela e faltavam apenas | |
asas aos pés. As fadas, porém, temendo feitiço, | 215 |
logo mandaram embora daquele reino as rocas. | |
Todos pundonorosos presentes foram queimados, | |
roto consigo todo sinal que houvesse de luxo e | |
mesmo irresistíveis vestidos da Coco Channel. | |
Antes pomposo castelo, o paço real parecia | 220 |
11
quase um campo americano de hippies agora, | |
onde a malta maconheira dos anos setenta | |
livre amor gozava ao chão e cachimbo da paz. | |
Longe contudo daquelas califórnicas feiras | |
ia crescendo, lenta e como as aves, a bela. | 225 |
Dava as mãos à fada e passeava entre as flores! | |
Era puro o seu sopro: Cantava e calava e dançava | |
bailes airosos por entre as verdejantes trilhas. | |
Mas o tempo não se impressiona. Foram corridas | |
quinze primaveras – só de pensar nas meninas | 230 |
tantas que aos doze são mulheres feitas, inteiras, | |
putas mães nalguma favela do Rio de Janeiro ou | |
mães de tailandeses bordéis e boquetes baratos, ou | |
bem de Johannisburgo e doutros antros largados, | |
quase nem se sabe se as primaveras existem –, | 235 |
quinze anos de castos sonhos e risos ingênuos, | |
sim, nos contos de fadas os seres são ingênuos! | |
Quando porém ouviu por vez primeira do mundo | |
fora do canto estelar, interessou-se por roupas e | |
bolsas, sapatos de salto alto e fotos de facebook. | 240 |
12
Dia-e-noite, navegava em sites de moda e | |
punha ao rosto o pó da beleza. Gastava fortunas! | |
Dois costureiros gays encomendou da Suécia: | |
Deu-lhes abrigo dentro da torre e lá costuravam | |
vestes suntuosas que mesmo os reis invejaram. | 245 |
Foi assim que certa tarde, quando os senhores | |
iam tomando dela as medidas, longe das fadas, | |
viu las máquinas, rocas tecendo novo tecido, e | |
pôs, num único e apaixonado relance, o dedinho | |
sobre a madeira clara afiada. Caiu. Abalaram-se | 250 |
ambos homens rumo às fadas, debalde a jornada: | |
Sete dias e noites transfizeram-se em pranto, | |
mas enfim depuseram a bela no topo da torre. | |
Pois aqueles costureiros foram os últimos | |
inda a vê-la, antes que o maranhão de espinhos | 255 |
lá se erguesse. As fadas madrinhas foram morrendo, | |
não impressionaram o tempo. A bela sonhava | |
sonhos altaneiros, falava louca de príncipes | |
ora alados, ora montando a brancos cavalos, | |
ora descendo o rio no cisne-barco de Lohengrin. | 260 |
13
Mas a notícia da bela adormecida espalhou-se: | |
Homens e atrevidos mancebos vinham chegando, | |
todos atraídos por fama e poder e dinheiro. | |
É, a fofoca dos costureiros vazava com tudo | |
mundo adentro. Primeiro foi para Copenhague, | 265 |
desta a Hamburgo e daí a Londres e Nova Granada. | |
Era quase um exército rumo ao útero extremo e | |
cerca rude às infantarias vãs, congregando | |
tropas de todo tipo. Mas a coitados incautos | |
era de pouco proveito o gume do Zé da Peixeira e | 270 |
nem facão cortava aquilo, enxada nem foice. | |
Uns perdiam paciência: Lançavam aos galhos | |
corpo e alma e lá ficavam, premidos no grito. | |
Quem tentava ajudar, entrava e nunca saía. | |
Era sem volta emaranhar-se à maldita muralha | 275 |
quase viva. Vez por outra, até que mostrava | |
certa trilha de rosas feéricas: Iam dezenas | |
túnel adentro e súbito o maranhar os tragava. | |
Fora se ouvia as moribundas árias, suspiros | |
últimos semi-asfixiados. E o suco de fresco | 280 |
14
sangue corria pelo espremedor de laranja. | |
Essa inflexibilidade dos mórbidos muros | |
ia irritando valentões de tudo que è canto e | |
já corria o caso em grave alarde no facebook. | |
Novas expedições se mostravam, rude cohorte! | 285 |
Veio até o Chucky Norris coa tropa de elite e | |
tudo despreparado e desbaratado e lascado. | |
Era em vão esse romantismo da Idade Média, | |
era em vão a cavalaria e por isto entenderam: | |
Tinha que ter modernidade e máquina a coisa! | 290 |
Já que não podiam passar o bendito do muro, | |
pelo menos impressionassem a jovem beldade! | |
Houve toda uma exposição de cavalos, chiquérrimos | |
carros de fórmula 1. O gostosão da quermesse | |
vinha em BMW, ou M6 Gran Coupé, e | 295 |
logo atrás o Mercedez-Benz CLA, o | |
Bentley Continental GT Speed Convertible co | |
Lamborghini Aventador. Havia os excêntricos: | |
4 Roadster, Audi R8, Jaguar F-Type. | |
Dava dó de ver a rapazeada avançando e | 300 |
15
sempre trucidada, os gostosões e cavalos. | |
Eram jovens tão delicados que ali pereciam! | |
Essas novas enfim revoltaram os fabricantes | |
como os sequiosos dum Penis-Ersatz freudiano. | |
Poxa, ao menos o Chevrolet Corvette era digno, | 305 |
bem como o Prosche Cayman, o Boxter era digno, | |
tudo bom partido e rapaz de família decente. | |
Mas cantavam de galo em vão, a princesa dormia: | |
É que Marí-Gasolina, gente, è dum outro folclore. | |
Nem se importava coa carralhada dos marmanjões, as | 310 |
rodas do Hennessey Venom GT Spider, os | |
orgulhosos boçais ao volante. Tanta galinha | |
fácil de discoteca de quinta cedia ao galã, e | |
aquela ali nem dava bola: Que coisa, meu filho! | |
Será que ela procurava um rapaz comedido? | 315 |
Não que fossem maus os bonachões que chegavam. | |
É que se repetiam naquele concurso de machos | |
tantos playboys e gogo-boys na McLaren F1 e | |
Koenigsegg Agera que não lhes caía a ficha. | |
Lykan Hypersport? Nenhum cavalo faltava e | 320 |
16
tudo que è carro estava ali. Bugatti Veyron? | |
Nem o Lamborghini Veneno causou desespero | |
junto coaquele maridinho da Barbie ao volante. | |
Claro que, quando chegou lo Maybach Exelero, | |
esse que custa aindā oito milhões de dólares, | 325 |
chega em dez segundos a cem quilômetros-hora, | |
teve tumulto! Don Juan gracioso sorria | |
como dantes o Zé Bonitinho. Era um malandro, um | |
ai-jesus de meninas meiguíssimas. Era um possante | |
sosiazinho de George Clooney. Abriram-se os galhos | 330 |
tanto que alguns puderam ver o fim do túnel. | |
Lá se avançou lo galã, acelerando às carreiras: | |
Lá ficou, distorcido como o carro acabado. | |
Ê carraiadazada danada, passa um tempinho e | |
tudo ferro-velho – Deus me livre e defenda. | 335 |
Olhe! Dum musculoso e troglodítico exército | |
não pudera sair a verdade. Contra muralha | |
desse tipo tanque de guerra da Wehrmacht ajuda | |
não, que nada, nem canhão conquista o castelo. |
17
Mas voltemos ao caso inicial das estrelas: | 340 |
Nada se vê pelō orbe além das duas verdades, | |
nada se prontifica além do amor e da morte. | |
Há de fato um vazio que a velocidade das rodas | |
não preenche quando è derradeira a viagem. | |
Pois avança tarde esse carro enquanto livores | 345 |
vão revelando na pele a superfície do extremo. | |
Mas será que alguém atravessaria os espinhos? | |
Era uma vez um peão perdido sem era nem vez, que | |
vinha dalgum lugar desconhecido e sem brilho: | |
Vinha a pé, e de fato chegara ali por acaso, | 350 |
isso depois duma longa e cansativa jornada. | |
Era o príncipe? Dizem que proclamava nos sites | |
virtuais de amor que tinha um pênis pequeno, | |
olha aí que modéstia boa, rapaz comedido! | |
Tímido e desinteressado, mal se vestia, | 355 |
nem queria saber de carro e de parafernalha. | |
Ele passara a vida inteira sozinho naquele | |
trágico apartamentozinho sujo, enfadonho, | |
era em tudo um verdadeiro animal suburbano: | |
Pois levava aquela vidinha que nunca releva | 360 |
18
como gente que nunca chega a lugar nenhum – | |
nem engenheiro, juiz ou médico, nem fazendeiro. | |
Era decerto ajudante de algum pedreiro fodido | |
mal remunerado, talvez professor de bandido | |
pondo a vida em risco nalguma escola pública – | 365 |
certamente um funcionário baixo do Estado. | |
Sabe Deus o que era, mas tudo ali revelava, | |
sobretudo os olhos: Era um nada ambulante, | |
tépido o passo passando cabisbaixo na praça. | |
Pois caminhava como relembrando de longe o | 370 |
fim, um beco abissal de Lisboa, Rio de Janeiro. | |
Tinha os seus quarenta anos e um quê de Paris, | |
Paris inegavelmente, rememorando a calçada | |
podre perto da Rue Pigalle: Descia apressado | |
já que tomaram desde cedo o seu pálido ursinho e | 375 |
desde sempre carecera de abraço e de infância. | |
Certa vez, confessara a certas meretrizes, | |
olhos nos olhos: « J’connais rien, j’suis vierge! » | |
Coisa curiosa, que quanto menos recebem as | |
almas amor, amor a mais para dar acumulam. | 380 |
19
« Faites vos jeux, messieurs », reverberava a fala | |
rente àquela roleta encardida enquanto a mundana | |
como num gesto de asco: « On dit jamais cela! » | |
Tão barata resposta e recusa abafava-se à mesa, o | |
grito: « Rien ne va plus, monsieur, rien ne va plus! » | 385 |
Et plus n’alla rien. Deixando embora o convento, a- | |
inda ouvia na mesma rua uma voz insistente, | |
quase tomando o braço: « Viens passer une soirée | |
toute entière au Royal, je connais la fille parfaite! | |
Elle est jeune et tu seras content avec Jeanne! | 390 |
Elle est belle! » Perdeu porém dinheiro e certeza, | |
indo adiante: « Non, mon destin est sans elle... » | |
Essas lembranças bobas atravessam as ruas | |
junto aos pés e à mente ruminando o passado, | |
mas vidinha è isso aí, e a gente se acalma. | 395 |
Dorme, adormecida! Sonhar è melhor que viver. No | |
quarto e só, o peão que não era peão ponderava: | |
Era doutra gente esse amor e de poucos a sorte. | |
Esses rumos daqui, dali, de todas as partes, | |
toda parte enfim desanima. Vinha de jovem | 400 |
20
já jogado, raro afeto em casa e na escola, | |
vida na base de berro e tapa e surra: Vidinha. | |
Nunca ninguém o quis, e agora o resto calava. | |
Ora era grande, grande o medo, grande incerteza. | |
Foi demitido e foi vagar por aí, sem arrimo: | 405 |
Indo assim, de rumo em rumo tragara um deserto. | |
Mas chegou ao ferro velhō, o arame farpado | |
recobrindo restos de carros, rostos e corpos. | |
Era um ferro velho mas a cerca era verde: | |
Que lugar è este, algum lugar assombrado? | 410 |
Sisudo frente ao muro, cala. Recua. Lamenta. | |
Nem deseja saber que terra estranha se esconde | |
pois a morte gotejante causa-lhe um nojo. | |
Mas um aroma fresco e confortante o reteve | |
quando repentino viu nos espinhos o ursinho! | 415 |
Ah, se o seu dedo pudesse retorcar o infinito! | |
Pois tomou coragem, tocou de leve os espinhos | |
como um corpo de antiflores pleno de morte. | |
Foi então que se deu lo indescritível milagre, | |
foi então que a cerca se abriu num túnel virente! | 420 |
21
Era um caminho de flores por onde o vento soprava. | |
Era agora um arco, um pórtico áulico, entrada | |
rumo à felicidade, ao segredo infinito da estrela: | |
Ele fechou los olhos e entrou sem temer pelo sonho! | |
Ele, que sem nenhum apreço a tesouros e prêmios | 425 |
era o nada, transpassava a muralha impassável! |
Bom jardim, num canto estelar, lembrava o sublime | |
século XIX, quando o mundo era grande. | |
Vinha passando a caravana longa do sonho | |
junto às alegrias ressurgindo da sombra. | 430 |
Como Lohengrin no reino de Pársifal antes, | |
era convocado a sentir a perfeita virtude, o | |
gozo do belo absoluto, dō homem total e dā arte. | |
Era o fim, a superação do homem relâmpago, | |
quando a metamorfose sublima ō erro do tempo. | 435 |
Esse mundo belo que destruísse o que è feio | |
dentro de câmaras atras de gás exterminadoras, | |
era o fim das degenerações esse mundo. | |
Onde se mata a modernidade e reina supremo o | |
verso clássico, paira a romantizada existência | 440 |
22
pelo engano. Lá mirava uma estrela o jardim no | |
brio polar, e no céu ressoava o canto de Wolfram: | |
Mas o canto è selvageria perantē Ausschwitz. | |
É, o amor do século XIX era lindo: | |
Era a quimera que Hitler quis salvar da verdade. | 445 |
Nós, vivendo sob a sombra de crimes e crenças, | |
fomos perdendo a strada em busca da mesma estrada. | |
Tantos e eternos civilizatórios projetos não | |
deram em nada. Tinh’ua pedra no mei-do caminho, | |
tinh’ua pedra. No mei-do caminho tinh’ua pedra. | 450 |
Mas è tarde, è tarde, è tarde a fatiga, poeta, | |
pois aí estão: o tempo, a vento, os livores. | |
Passa a vida, passa o canto, passam as flores! | |
Bom jardim convidava à dissolução perfumada | |
pela sombra e pelas cintilantes essências. | 455 |
Ele, porém, que vislumbra a morte, a verdade, | |
foi passando impávido, foi entrando na torre. | |
Inda carregava na mão e no peito o seu velho | |
sonho, esperança roubada. Vai subindo as escadas, | |
ah, o abraço dum tenro ursinho, o peito agitado | 460 |
23
vai subindo as escadas como se fosse menino, | |
chega, abre a porta, para. Teme. Perpassa. | |
É desvendado o véu! À beira do céu repousava | |
calma a bela adormecida, uma doce princesa. | |
Era pálida a pele que a luz do sol esquecera, | 465 |
mas o sopro era puro, a cor do sonho era bela. | |
Ele entrou, e contemplando à beira da cama o | |
rosto quase morto, amou, tocou – desejou-a. | |
Mas será permitido perturbar o seu sono | |
tão profundo? O coração que falava profundo | 470 |
não se contentava, o despertar da verdade | |
não podia esperar. E será bonita a verdade? | |
Era um peão perdido sem era nem vez que varara | |
pelos arcos do espinho. Era um homem errado. | |
Como porém partir daquele quadro perfeito | 475 |
rumo a nunca mais sem nem o sonho dum beijo? | |
Não, a vida è curta demais, ousemos o beijo! | |
Pois aproximou seus lábios ao anjo intocado, | |
foi beijando a bela adormecida no rosto, | |
misturando os sopros, lábio tocando lábio. | 480 |
24
Era o beijo de Siegfried despertando a valquíria | |
quando o canto da aurora derradeira ressoa: | |
– Eia, luz da estrela, eia, terra dourada! | |
Longo foi lo meu sono, longo, estou desperta! – | |
Nessas obras loucas e pelos cantos de Schubert | 485 |
reina uma imagem mentirosa, como se os homens | |
nunca fodessem. É bonita a mentira dos velhos | |
onde os amores são somente o beijo inocente. | |
É do século XX a ressureição da volúpia | |
quando o filme pornográfico expõe la verdade: | 490 |
Como è feio o tesão, e como o tesão è nojento. | |
Come as entranhas. Come cu. E porra na cara, o | |
resto è romantismo e lenda e conto de fadas. | |
Mas o príncipe iluminado não se importava! | |
Era adepto dum novo amor, impossível quimera. | 495 |
Ela sabia, porém beijou. Beijou la princesa | |
como quem não tem nada a perder e tudo è perdido. | |
– Príncipe! – Era a voz! A princezinha acordara. | |
Olhos nos olhos, o despertar revelou a ternura: | |
– Foi você? – O peão desvalido inclinou a cabeça, | 500 |
25
triste por si porém sorrindo e fitando o sorriso. | |
Foi difícil depois de tudo a conversa das almas: | |
Ela perguntava sem pausa por joias e bolsas, | |
dando voz a lascivas imagens, erótico o sonho. | |
Onde os costureiros e as roupas, onde o cavalo? | 505 |
Onde aquela lista de convidados do baile? | |
Cabisbaixo e sem saber, o peão se encolhia | |
vendo como os olhos da bela perdiam seu brilho. | |
Era como se o beijo nem tivesse existido. | |
– Ouça, menina, não sei de costureiro nem roupa. | 510 |
Sei que beijei e despertei você desse sonho. | |
Vinha passando aqui, ali, sò Deus è que sabe | |
como aqui cheguei. Cheguei! Mas vou de meu rumo, | |
pode ficar tranquila, meu lugar eu conheço. – | |
Foi contando aos poucos a sua história de vida, | 515 |
ela escutando e mostrando mesmo algum interesse. | |
Era bonito ouvir, mas quando corria à janela | |
vendo afora o Jaguar, o Lamborghini Veneno, | |
dava um fogo dentro do peito. Olhava o perdido | |
quase com dó, que nada tinha a dar e pensava: | 520 |
26
– Pois è isto então, a menina è Marí-Gasolina! – | |
Ela até que fazia algum esforço e sentou-se | |
devolvendo-lhe o beijo mas sonhando acordada. | |
Ele entendeu. Ergueu os olhos e disse severo: | |
– Pode ir, menina, divirta-se, vá mas aprenda: | 525 |
Homem são de verdade quer amor de verdade! – | |
Nisto levantou-se balançando a cabeça, os | |
olhos baixos. A bela contudo mal entendia, | |
ora respirando como afogada em anseios, um | |
sonho delirante e surdo invadindo o seu corpo. | 530 |
Cega e vendo heróis automobilísticos disse: | |
– Príncipe! Que desejas de mim? – Ele fitou-a | |
como louco mas segurando as rédeas triunfa: | |
– Não, mulher, não é assim que quero a pergunta. | |
Não me trate assim porque não sou lo seu dono | 535 |
nem dirá verdade dizendo que sou, porque sabe: | |
Dono você não tem nem ninguém, no amor as pessoas | |
são sinceras, no amor se preenchem. Amor acontece | |
linda e delicadamente, espontâneo, divino, | |
forte acima de tudo, mas você me oferece | 540 |
27
não amor e sim favor. Não quero, menina! – | |
É, devia ser estranho mesmo esse homem | |
tão além da mera fodeção e do instinto, | |
tanta desilusão e sede do amor verdadeiro. | |
Ela, porém, lacrimejando e pensando distante, | 545 |
veio a seu encontro e lá se deitaram no sonho. | |
Desde então divergem as fontes. Dizem algumas, | |
novas, que a princezinha acordou de manhã e deixou o | |
quarto na ponta dos pés e sem barulho, espertinha | |
rumo ao rendez-vous co namoradinho do facebook, | 550 |
toda orgulhosa. Daí fugiu. O carro era imenso, o | |
Bentley Continental GT Speed Convertible, as | |
rodas impressionando a menina, o fogo agitado. | |
É ō que sói se ver: A verdade acorda sozinha. | |
Outra fonte, a velhinha, diz que viveram felizes | 555 |
para sempre, ou não: Em breve surgem livores. | |
Chato è quando a rigidez cadavérica impede a- | |
quela festa, a fauna destruïdora na espreita. | |
É, paciência è bom, por isto os fungos esperam, | |
vale a pena: A rigidez cadavérica passa. | 560 |
Dura por vezes setenta e duas horas, depende, | |
tem o clima, a causa da morte, a força do corpo. | |
Começa ali na terceirā hora após o decesso e | |
chega ao auge em doze horas. Depois enfraquece. | |
Some do mesmo modo que avança. Sai pelos olhos, | 565 |
vai descendo pelo queixo, pescoço, por membros. | |
Cessam os últimos órgãos, mesmo aqueles tenazes, | |
mesmo o fígado. Quando enfim os pés amolecem | |
tem lugar o relaxamento eterno dos músculos: | |
Pobre a bela, pobre o príncipe, pobre a verdade. | 570 |
Folha VI |
© Gregorius Vatis Advena 2014, Record E 4, Engl. The Water Lily, January 2014 to March 2014, Hampshire, dactylic hexameter, 1029 lines, epic poetry, Portuguese.
Mara engravida por intervenção de Jaci (a lua), mas o cacique Puã não lhe crê e Mara é punida. Quando nasce Mani, Puã se arrepende e perdoa a filha. Mani porém perece e deixa atrás de si um divino milagre. Mara não se consola e foge pela floresta, buscando em seu desespero a transformação numa estrela.
Vitória Régia retrata o conflito entre a busca pela transcendência incondicional e a limitação material da existência. Mara incorpora em seu anseio pelo impossível a mais profunda revolta contra a fragilidade e a improbabilidade do sublime. Na negação desesperada da insuficiência dos fins revela-se a tragédia do ser em sua inconciliabilidade máxima.
Abertura de Lohengrin, WWV 75, por Richard Wagner, European Archive – Musopen CC PD.
O verso é hexamétrico – seis tônicas separadas por uma ou duas átonas, ou por pausa. Em geral, o verso começa em tônica e termina em diérese bucólica – o ritmo tátata-táta. É datílico ao evocar o antigo dátilo no ritmo tátata. Todo verso possui ao menos um dátilo tonal. O dátilo classico, porém, era quantitativo.
O uso das formas épicas é tratado no ensaio Prosódia e Grafia. Ocorrem neste poema: formas átonas (è, atè etc.), artigos líquidos (lo, la) conjugações épicas.
em memória
de Gonçalves Dias
e d’Os Timbiras
que naufragaram
Prenhe? – Da boca ressoava um grito agitado. | |
Vinham trazendo Mara, que aparecera de bucho, | |
semi-nua, de mãos amarradas. Em torno da jovem | |
índia aglomerava-se a tribo como num círculo, | |
não porém por dança. A voz do cacique, tremente, | 5 |
dava bem a saber o tom duma fúria sem cura: | |
– Quê? De menina fez-se meretriz e me ofende? | |
Há de morrer o homem que desonrou minha filha! – | |
Pouco fora o valor da intervenção dum sábio, | |
velho pajé, guerreiro, quiçá mulheres idosas. | 10 |
Era de ordem vi-la puxando pelos cabelos, | |
enquanto ao pé da maloca-mor o pai preparava | |
rara tortura: Pintara o rosto de luto e de ódio! | |
Tinha às mãos já pronto o cipó, a vara pesada: | |
– Mata um homem! – diziam , nem faltavam decerto | 15 |
casos, provas. Matava no ato! Duas vergastas, | |
uma bastava a depender da mão que lançava. | |
Era uma arma tremenda e ganhadora de guerras. | |
Suja de barro, Mara baixava o rosto molhado | |
frente ao cacique, a tribo vislumbrando aturdida: | 20 |
1
– Mata não, Puã! – interpõe-se ao golpe o pajé – | |
deixa ouvir por bem de Ceci, nossa Mãe, a menina. | |
Como foi isto, Mara? Quem te abusou, de que terra? | |
Conta, salva a tua vida e confessa a verdade! – | |
Mara porém calava, os olhos deitados à terra. | 25 |
– Isto me afronta, – Puã perdia a voz desairada – | |
– quem não vê que pede a própria morte a devassa? – | |
Ato contínuo, desferiu-lhe uma forte vergasta, | |
balde ensanguentado alagando um rosto sereno. | |
Mara perdeu naquele mesmo instante a beleza. | 30 |
Era em vão que Jupi, o bom pajé, defendesse, | |
único homem ao qual tamanho império se dava: | |
– Deixa viver, Puã, deixa a criança no bucho, | |
deixa viver quem nem nasceu nem teve nem tempo | |
inda de ser culpado. Mata a menina depois! – | 35 |
Era o silêncio que o não deixava mais em sossego: | |
Mara, quase morta e de boca ainda calada. | |
Ia-lhe dando uma sanha ingrata pelas entranhas | |
tanta insolência: – Quero que fale! – dizia Puã – | |
se quer viver, que o diga! – ora os envelhecidos, | 40 |
2
olhos túrgidos, davam algum aceno discreto, | |
certo implorando à índia falar. Jupi lhe tomava | |
pelas mãos, limpando sangue: – Defende-te, Mara, | |
tem piedade de nós e diz ao juiz o que houve. | |
Este silêncio já nos mata. Fala, filhinha! – | 45 |
Mara falou. Apoiada ao braço do velho pajé, | |
a língua, torta depois do golpe, buscava palavra: | |
– Foi Jaci, meu pai, Jaci do céu que mo deu. – | |
– Cuja audácia és, menina! – ruge num rouco | |
grito o chefe Puã seu pai, e desfere-lhe às costas | 50 |
novo golpe, qual se quebrasse uma árvore farta: | |
– Como ultrajas – segue o pai – um nome divino, | |
tantas vezes santo e venerado entre os justos? | |
Ó guerreiros, que grei ingrata de minhas entranhas | |
veio à luz! E foi Jaci, que clareia os abismos, | 55 |
alva como nenhum mortal que se viu neste mundo, | |
foi Jaci, infeliz, que te pôs no ventre este filho? | |
Ousas levar a tanto ultraje a impostura que encenas? | |
Falta-me o golpe forte à mão de matar-te, rameira! | |
Diz a verdade, fala já! – Os homens da tribo | 60 |
3
todos angustiados olhavam: – Mara não mente! – | |
disse Jupi, o cajado de pau cravado na terra – | |
conta, menina, como foi! – E a boca falou-lhes. | |
Foi na terra das amazonas o sonho de Mara, | |
onde a luz das noites era o céu estrelado. | 65 |
Sobre a montanha longe surgia o pálido rosto, | |
faces cintilantes pousando os olhos à virgem: | |
– Mara – dizia – terás uma filha. Mani se chamave. – | |
Quando acordava, restava do sonho apenas a lágrima. | |
Todas as noites, a imagem voltava. Mara esperava. | 70 |
Era como se a voz de Jaci lhe falasse, do alto, | |
como se estrelas cadentes, plenas de raros presentes, | |
ora viessem elas mesmas trazer-lhe uma prenda: | |
– Mara – diziam – terás uma filha. Mani se chamave. – | |
Tarde o pajé Jupi lembrava as noites compridas, | 75 |
quando se ouvia da moça um estranho delírio, | |
quando ainda na aurora aqueles olhos brilhavam. | |
Era em vão que bebia misturas em busca de cura. | |
Logo voltava o mesmo sonho, Jaci que cantava: | |
– Mara – dizia – terás uma filha. Mani se chamave. – | 80 |
4
Certas vezes, Jaci tomava a forma dum homem | |
bem brilhante, guerreiro navegando nos astros. | |
Pouco ajudava a bofetada que alguma das velhas | |
dava-lhe às faces, no meio da noite, pouco ameaças. | |
Mara sonhava acordada. Alguns a tinham por louca. | 85 |
Ora que o ventre não mais negava, ouviam a história | |
como maravilhados, e irados, da boca de Mara: | |
– Foi Jaci, meu pai! – e o velho pajé se lembrava, | |
algo arrependido, de frases às quais recusara | |
crédito, sempre que ouvia a voz de Mara na rede. | 90 |
Como agir? Puã perguntava à prole guerreira | |
pelo pai de Mani. Mas Mara nunca se vira | |
só com homem que fosse nem na tribo nem fora. | |
Sua vida era junto a Puã, ao pajé, a doentes. | |
Era fraca demais para guerrear em batalha, | 95 |
pela caça. Mesclava fluidos suaves somente, | |
gotas de cura, tintura que a selva dava de alívio. | |
Ante as vergastas, era milagre que ainda vivesse, | |
mal se mantendo em pé, ali, no meio de todos. | |
Foi Jupi que interveio, de novo, e Puã repondera: | 100 |
5
– Viva, portanto! Mas viva longe de mim, escondida | |
como as meretrizes do mato. Depois de parir, | |
deixe a menina, tome seu rumo e nunca retorne! – | |
Duas lágrimas já se mesclavam ao sangue de Mara, | |
rosto encharcado. Jupi tomou-a pelos braços | 105 |
e pôs a ensanguentada num canto longe da tribo, | |
onde todos os dias lhe dava um banho de folhas, | |
ervas e algum de-comer que generosas mulheres, | |
longe dum pai severo, preparavam sem medo. | |
Muitas noites, porém, Puã procurava o pajé, | 110 |
e longe das vozes confabulavam ambos na mata: | |
– Onde se viu, ancião, Jaci emprenhar uma virgem? | |
Diz, Jupi, que louca lenda foi esta de Mara? – | |
Mas o pajé, interrompendo: – Mara não mente! – | |
Como não? – retruca – Queres crer de fato que a lua – | 115 |
e logo tapava a boca. Jupi narrava-lhe casos | |
raros, nunca aclarados. Mas um ser de vingança | |
não deixava em paz o cacique. No plano da mente | |
vinham surgindo pavorosas máquinas múltiplas. | |
Mara também buscava atônita alguma palavra | 120 |
6
calma do bom Jupi, mas era longe o consolo: | |
– Todo meu amor meu pai assim que me paga? | |
Ele crê que uma vida fiel por todos os anos | |
perpetre ligeira e facilmente tanta desonra? | |
Mãe Ceci, eu nunca tive um pai neste mundo! – | 125 |
Tais esforços eram contudo escassos de efeito. | |
Nada arredava Puã dos passos dados, e duros, | |
nulha palavra o pudera convencer duma lenda: | |
– Olha, Jupi – tomou o pajé pelo braço uma noite | |
– sabes que tenho bom coração, mas essas histórias | 130 |
inda me matam. Diz a Mara o quanto lhe quero. | |
Pai è quem perdoa! Se confessar que è mentira, | |
diga o nome do pai de Mani, ou mesmo que o cale, | |
diga apenas que é de um homem nosso que è prenhe, | |
eu a perdoo. Homem! Este desgosto me mata... – | 135 |
Mara, porém, ouvindo do velho a nova embaixada, | |
como batida dum raio, aleventou-se tremendo: | |
– Não me ofendas, Jupi! Diz a meu pai me perdoe, | |
pois o preço do amor não pode ser a mentira. | |
Foi Jaci que me deu esta filha. Onde no mundo, | 140 |
7
céus, eu podia apontar o pai de Mani sem mentir? | |
Não encontro em selva alguma o divino guerreiro, | |
nem entranhas de minha mente confusa conhecem | |
donde venha o pai de meu fruto. Diz ao cacique, | |
homem, diz que mande buscar num rumo distante, | 145 |
lá buscar no mundo em vão dos meus sonhos o pai, | |
que mesmo eu me torturo, confundo dias e noites, | |
busco em toda parte, no céu e nas selvas, a imagem. | |
Foi-se-me embora, Jupi, embora num canto estelar! – | |
E prorrompia em lágrimas. Era nesses instantes | 150 |
vagos que vinha o pajé falar ao pai na maloca: | |
– Ouve, Puã, a causa do mal de Mara è mistério. | |
Não condenes, amigo, sem prova maior a menina. – | |
Disse-lhe então o quanto ouvira. Puã refletia | |
horas inteiras, trocava o dia por noites na mata: | 155 |
– Isto è muito orgulho! – ouviam-no a sós no escuro. | |
Como porém lhe surgissem, dessas horas ermitas, | |
novas ideias, frescas e ao mais das vezes abruptas, | |
certa noite abordou a Jupi num súbito enlace: | |
– Chama os xamãs a que imperas! – Foram lá reunidos | 160 |
8
cinco homens, no meio da noite, bebidos de fumo, | |
água e maga mescla de terra. Dissessem as línguas, | |
sob a força de sopros ancestrais e fantasmas, | |
quem o pai de Mani, de que tribo e terra oriundo. | |
Mas naquela noite as bocas-xamãs se calaram, | 165 |
pouco auxílio o fumo, cantos e o casto chocalho. | |
Era uma treva densa a resposta dos seres noturnos. | |
E bastava um silêncio tal a Puã. Mal se continha: | |
– Mas Jupi, se verdade è que a minha filha não mente, | |
nem os santos xamãs, que profundamente se calam, | 170 |
claro está nosso caso! – Jupi fitava assombrado, | |
mal movendo as mãos e a cabeça. Puã prosseguiu: | |
– Mara enlouqueceu! – E seria em vão discordar. | |
O pai convencera-se, pois, que a filha fora ultrajada, | |
crendo porém se tratar dum cavaleiro da estrela. | 175 |
Nesses lances vinha-lhe novo a máquina à mente, | |
como suflada por espíritos maus da vingança. | |
Poucas manhãs depois, Jupi notou los guerreiros | |
mudos que afiavam a ponta de lanças e frechas, | |
cordas, arcos, enquanto carragavam as bélicas | 180 |
9
tintas, cor de alerta e morte. Jupi lhe falou | |
severo e baixo: – Puã, que nova guerra è esta? – | |
Como um raio a notícia varou as veias do velho. | |
Era um grande assalto contra uma tribo pequena, | |
mera cabana de desprovidos e magra existência. | 185 |
Não havia tempo a debates. Correndo ofegante | |
junto aos jovens, Jupi tentava em vão demover, | |
e via já cons olhos d’alma o banho de sangue. | |
Não se enganou, a tribo foi rota. Contudo Puã, | |
querendo ali mostrar algum espírito humano, | 190 |
fez amarrar ao tronco o cacique e dois valentíssimos | |
índios rendidos. As mãos meladas de sangue, rugia: | |
– Como foi que disseste, infeliz? Puã desvairado? | |
Fora tua a filha abusada na flor da inocência, | |
logo se vira a quais mortais ações te moveras! | 195 |
Mas evoco a sábia voz de Jupi que te diga | |
onde nas selvas se viu o caso incasto de Mara! | |
Faço-me breve: Confessa qual infame dos vossos | |
foi lo autor da triste audácia, confessa e viveies. – | |
Mas ninguém conhecia daquele evento nem alfa. | 200 |
10
Que responder? O cacique ferido falava do tronco: | |
– Como, Puã? De nós um gesto desses não sai. | |
Esqueces tão depressa como somos amigos, | |
como a vida nossa è difícil? Os jovens morreram. | |
Quem acusas dum crime tamanho se apenas caídos | 205 |
vivem conosco, o resto de adoecidos idosos? – | |
Nesse momento, Puã tomou da mão dum guerreiro | |
seta aguda: – Fala! – de nada valiam apelos. | |
Antes porém que o degolasse, Jupi lhe remete: | |
– Para, Puã! Não vês que o homem diz a verdade? | 210 |
Não bastou, cacique, vergar do próprio rebento | |
teu o ventre e perder num dia la inteira virtude? | |
Fora preciso ainda assolar essa gente distante? | |
Tem paixão duma tribo cujo único erro | |
foi estar em paz e tão perto da tua iracúndia! – | 215 |
Ora Puã, nos olhos um lago de líquido ódio, | |
ato contínuo puxou coa corda forte do arco, | |
quanto pôde, a frecha maior que ali se mostrou. | |
Largou. Veio de encontro ao corpo exposto a seta, | |
quase o partiu em dous. E degolou-se os restantes. | 220 |
11
Quando a má notícia chegou aos ouvidos de Mara, | |
pela boca de alguma das velhas, correu como louca, | |
cá e lá, tapando coas mãos os olhos fechados: | |
– Não lhe bastou a vida da mais infeliz das mães | |
que o mundo verá, que já pareço morrer renegada! | 225 |
Ó Jupi! Foi preciso levasse o crime adiante, | |
ir imolar um canto por quais estrelas choraram! | |
Foi em nome da minha honra este crime hediondo? | |
Minhas palavras, Puã, se perderam. – Jurou de joelhos, | |
ante os velhos presentes, que nunca mais falaria, | 230 |
não a Puã, novamente. – Pois que se cale a rameira – | |
disse Puã, golpeando o chão, ao saber da promessa. | |
Mas a natura muda os maus humores dos homens. | |
Passa o tempo e as emoções extremas vanecem, | |
nascem novas. Nasceu, numa linda aurora, Mani. | 235 |
Era serena e desde a primeira hora da vida | |
foi uma fonte de amor. O terno olhar amansava | |
mesmo feras e quem a visse enlevava alegria. | |
Vinham velhas portando toda espécia de plantas, | |
gotas odorosas, cultura dos anos inteiros. | 240 |
12
Como se ali demandara um novo, ignoto mistério, | |
visto apenas em lenda remota, xamãs abalavam | |
rumo à casa tosca de Mara, vencendo a distância. | |
Mesmo um guerreiro se maravilhava em tanta ternura. | |
Mara aprendeu a sorrir novamente. Passava as horas | 245 |
dando alento e leite a Mani, e dava-lhe o colo. | |
Eram risos porém de pouca vida e momentos. | |
Vinha uma sombra em meio ao raio novo de luz. | |
E quase chorava ao lembrar a mão, a voz de Puã: | |
Deixe a menina, tome seu rumo e nunca retorne! | 250 |
Mara definhava aos olhos vistos de inquieta | |
nesses lances, pobre mãe se abraçando à criança. | |
Ora, Puã, como ouvisse os repetidos relatos, | |
não porém ousando adentrar a oca da filha, | |
houve por bem mandar trazer embora a menina | 255 |
quando Mara dormisse. Houve debate e conflito, | |
houve pouca gente disposta e muita insistência, | |
tanta relutância que apenas a grave ameaça | |
pôde vencer. Lá se foi na noite, portanto, | |
triste tira de velhas tomar a filha de Mara. | 260 |
Vitória Régia I | Folha VII |
Levaram. Quando enfim Puã tomou-a nos braços, | |
vendo a graça infinita e sorridente da neta | |
enquanto toda a tribo chorava, amou-a de morte. | |
Foi em tal ameno humor que Jupi abordou-o: | |
– Olha, Puã, a gente vai-se embora com Mara! | 265 |
Não dividas mais o amor que lhe temos e à filha. – | |
Mas Puã, num lance abalado, cobrindo a pequena | |
dentre afagos e beijos, ajoelhou-se cantando: | |
– Esta è Mani então, a filha alegre de Mara? | |
Mani! Mani me salvou. Puã renasceu nesta aurora. | 270 |
Mani, guerreiros, Mani carece do leite de Mara! – | |
Súbito alevantou-se, cruzando num átimo o pátio | |
rumo ao recanto da filha, seguido pelos índios | |
todos afoitos, levando ao braço Mani que dormia. | |
Mara, porém, deitada de bruços como a poeira | 275 |
pelo chão que os olhos alagavam amargos, | |
via já perdida Mani, perdida a esperança | |
como no sonho no qual Jaci levava o rebento. | |
Foi tomada de assombro quando o pai adentrou, | |
num ímpeto grave, portando à boca o peito pesado: | 280 |
1
– Mara, mha filha, Puã perdoa o quanto fizeste! | |
Toma aos braços o anjo bom que ao mundo pariste, | |
fica conosco o quanto queiras e podes criá-la! | |
Dá-me as mãos, esqueçamos para sempre o passado! – | |
Ela, contudo, curvada, não lhe dizia palavra. | 285 |
Tendo Mani de volta ao braço, baixava as pupilas. | |
Inda doíam as costas da chicotada levada, | |
inda no rosto a marca macerava-lhe a carne. | |
Não esquecia os pobres tipos que o pai trucidara. | |
Ora, Puã, aterrado, cobria o rosto coas mãos: | 290 |
Era severo o veredito dum longo silêncio. | |
Desde então buscava em vão a vênia de Mara. | |
Vinham presentes. Era visto falando sozinho, | |
ora chorando à beira dos rios, ora batendo | |
forte ao peito. O nome de Mara soava no escuro | 295 |
quando o pai sonhava a sós. E de nada valiam | |
as rezas nem exortações dum pajé venerável: | |
– Filha – dizia Jupi – em qual tristeza te acabas? | |
Sê modesta, Mara, aceita o perdão de teu pai | |
e volta a viver conosco. Não te percas em pena! | 300 |
2
Antes tem amor de teu pai em nome da estrela! – | |
Mal sabia Jupi dos tantos sonhos terríveis, | |
cena que atormentava a mãe de Mani pela noite. | |
Quando veio a fome e rarearam-se os peixes, | |
mal chovia e caíram pragas sobre as espécies. | 305 |
Era em vão os xamãs da lua pintarem o rosto, | |
era em vão invocar na mata espíritos puros. | |
Pouco adiantava o sacrifício das cobras, | |
pouco o sangue bebido acalentado das feras. | |
Não surtiam efeito as oferendas diversas, | 310 |
era como se fossem surdos os seres e o sopro. | |
Muito se debateu na tribo sobre a causa, | |
fonte de tanta privação, carência da vida. | |
Cada dia passava na inconsequência da seca. | |
Era o milagre do mal a visão da flor definhada, | 315 |
trilhas recobertas de carcomidas carçacas. | |
Certo os elementos conjuravam desgraça. | |
Quando após as plantas as aves foram embora, | |
houve clamores altos e o pranto forte soava. | |
Quando a pedra pareceu renegar de repente | 320 |
3
amparo aos pés, os pés tituberam na pedra. | |
Ora os flagelados deitavam à espera da sorte | |
pela maloca erguendo a vista ao céu taciturno. | |
Quanto mais Puã pensava, mais lhe passavam | |
cenas à mente de como outrora punira Mara: | 325 |
Mara perdeu naquele mesmo instante a beleza! | |
Quando fechava os olhos evitando a sentença, | |
uma coisa apenas lhe parecia importante: | |
Era mister prover Mani do quanto possível! | |
Não apenas Puã, mas também os velhos xamãs | 330 |
e guerreiros davam àquela bem-amada da tribo | |
tudo que houvesse e todo mal visível pedaço, | |
fosse peixe, pássaro, fosse flor ou floresta. | |
Mara desesperadamente alentava a menina. | |
Quanto horror contudo ouvir o grito noturno | 335 |
quando acordava a sós dalgum tristíssimo sonho. | |
Quantas vezes foi vista vagar, levando Mani | |
ao braço, sob a luz da estrela. Tantas estrelas | |
eram vistas naquelas eras, era o infinito. | |
Mara varava as auras lunares horas inteiras. | 340 |
4
Muita vez, erguia a filha como um troféu, | |
talvez escudo contra a vida vaga na terra. | |
Era uma espada luminosa em celeste cadência. | |
Como brilhavam os olhos seus: Mani cintilava! | |
Nesses enriquecidos segundos o mundo esquece | 345 |
quase a fome que assola e dói num gozo sem nome. | |
Coisa notável, jamais se vira Mani chorar, | |
sorrindo sempre. Era decerto um anjo encarnado, | |
era uma porta à salvação do peito. Era divina | |
bênção consolando a tribo perante a miséria. | 350 |
Ai esperanças, quão diverso o plano dos astros! | |
Doze meses depois de nascer, Mani pereceu. | |
Quem naquela noite ouviu los urros de Mara, | |
pouco lhes deu valor, pensando que fossem | |
inda os velhos sonhos. Foi durante a manhã | 355 |
somente que a gente ouviu Jupi. Caiu de joelhos | |
ante os olhos de todos os reunidos guerreiros, | |
velhas, xamãs e do chefe Puã: – Mani morreu! – | |
Uma fortíssima frecha varou naquele momento | |
tanto o cacique quanto o resto dos moribundos. | 360 |
5
Fora desferido o golpe final, era certo, | |
contra a tribo e debalde misturavam gemidos. | |
Ora Puã chorou, invejando anciãos que morriam, | |
vendo morta na bem-amada uma nova esperança. | |
Há no homem, pior que a fome verga do ventre, | 365 |
outra escassez: o pão das almas também se perdeu. | |
Os mais amados ao fim se vão e seca-se a fonte | |
donde outrora o transtornado sorvia alegria. | |
Era porém um pesar maior que Puã suportava. | |
Via já perdidas as duas almas queridas, | 370 |
uma de morte, outra de similares silêncios. | |
Mara calava. De todo alheia ao luto de alhures, | |
ia cobrindo, coa própria nudez, a morte da filha. | |
Não permitia à tribo entrar. Velava sem nome. | |
Quando de noite durante a chuva Jupi procurou-a, | 375 |
núncio da dor de muitas bocas num coro de luto, | |
viu-a deitada rente a pequenina defunta: | |
– Mara! Mani morreu, filhinha. Nada se pode | |
contra estrelas. Mas se queres matar-te de luto | |
longe de quem te amou e do quanto ordena prudência, | 380 |
6
deixa ao menos a grei de quem se deplora contigo, | |
Mara, despedir-se da bem-amada que deste à floresta. | |
Pensa na gente afoita que espera afora um consolo! | |
Não lhes negues divino direito, que neste mundo | |
nem o vivo pertence ao vivo, e menos a morte. | 385 |
Vem comigo, filhinha, devolve Mani ao regaço | |
generoso da terra, deixa partir para sempre | |
quem a morte carregou. Em vão te defendes! | |
Ouve teu pai que quase morre de tanto remorso. | |
Morre? Mara, teu pai também morreu neste dia! | 390 |
Resta viva somente uma mera força ambulante, | |
corpo que os olhos mal reconhecem. Puã se deplora | |
frente ao mundo. Pede perdão a quantos o ouçam, | |
roga implorar um derradeiro afago à defunta. | |
Vamos afora, vamos velar pela morta cons outros. – | 395 |
Mara, porém, respondeu sem grande esforço e cuidado: | |
– Que me importa agora, Jupi, o amor dessa gente? | |
Quando Mani crescia em mim, ninguém me ajudou, | |
ninguém confiou. De quem maior consolo esperei, | |
Puã, meu pai, me baniu, puniu-me como rameira! | 400 |
7
Homens sem crime foram mortos, Jupi, em meu nome. | |
Algo em mim destruiu-se naqueles dias tiranos. | |
Quanto a Mani, mha filha não carece de lágrimas. | |
Dei-lhe a vida sozinha, dou-lhe a morte sozinha. – | |
Fez-se como a mãe avisara. Ainda na noite, | 405 |
pouco antes da aurora, Mara enterrava Mani, | |
a sós, e nem Jupi ao lado. Cavava coa mão, | |
fundo o quanto podia. Trabalhava ansiosa, | |
como a temer que alguém da tribo logo acordasse. | |
Depôs Mani no fundo da cova. Cobria de terra, | 410 |
lenta e relutante, o fruto perdido. Cantarolava | |
quase esquecendo que a vida existe, vida que acaba. | |
Disse a Jupi, depois de muitos dias passados, | |
onde a deixara, e os curiosos da tribo seguiam, | |
uns levavam folhas ou fumo. Puã ordenara | 415 |
rezas constantes nem deixava em paz o pajé. | |
As velhas se sujeitavam caladas, sujas de terra. | |
Era cumprido o sonho de Mara: Mani perecera. | |
Tarde a tribo entendia a razão dos gritos noturnos, | |
eram imagens da filha morta os horrores de Mara. | 420 |
8
Não se conformava. Passava as horas alheia | |
pela mata. Falava sozinha. Lançava-se à terra, | |
todos os dias banhando a cova de leite e de lágrima. | |
Era pungente assitir o rito. Xamãs intervinham | |
mas debalde – não havia palavra que agisse. | 425 |
Nova esperança, doente, tomara raiz no juízo | |
fraco de Mara, alimetava o rigor dos clamores: | |
– Volta, Mani! – E tal gemido flente vergava | |
fundo a grei, atormentava mesmo o guerreiro. | |
Iam agora aglomerados num dó desmedido | 430 |
todo dia sentar-se ao redor de Mara, calados, | |
iam depor a seus pés a su’ humilde homenagem. | |
Mas Jupi, prorrompendo uma feita com voz alterada, | |
não se conteve: – Para, Mara! Conforma-te enfim! | |
Se assim seguires, eres logo tu que enterramos | 435 |
junto a Mani nesta cova. Tem piedade de nós | |
e dá valor à vida própria que apenas começa. – | |
Nesse tempo extremo, também Puã se exaltava, | |
quase irrompia em bofetadas fortes à filha. | |
Mara chorava como insana e pouco atinava | 440 |
9
quem lhe falasse. Rejeitava comida, bebia | |
pouco a goles afoitos. Inda grassava a fome | |
pela tribo e Puã pedia a Jupi que velasse: | |
– Não a deixes só senão se perde na mata. | |
Já nem sabe o que faz, coitada, nem do caminho | 445 |
donde vem nem vai nem existe. Fala a fantasmas. | |
Mara esqueceu-se até de viver... – Puã soluçava – | |
Foi demais, pajé, a punição que lhe dei? | |
Se foi, Jupi! A culpa è minha. Mara quebrou-se! – | |
Era a expressão que usava a dizer a perda da filha: | 450 |
– Mara quebrou-se! – Ela porém mantinha seu rito | |
todos os dias, agora já sem soluços: Chorava. | |
Ia calma e sentava-se à beira da cova: Regava-a, | |
inda uma vez, regava e de novo, regava, regava: | |
– Volta Mani! – Nasceu, num lindo alvor, uma planta, | 455 |
vinha prenunciando um caule com duas folhinhas. | |
Como uma alvíssara a nova correu e vinham ver | |
a novidade, crescendo forte e vividamente. | |
Mas ninguém conhecia a espécie, nem os xamãs | |
maduros nem o próprio pajé. Puã se intrigava, | 460 |
10
pois talvez houvesse algum veneno na planta: | |
Era decerto a derradeira vingança da estrela! | |
Era possível, o chefe indagava de si para si, | |
que a filha de Mara fosse filha também de Jaci? | |
Nunca se ouvira um tal relato, mas como podia | 465 |
Mara mentir, fiel que sempre foi da verdade? | |
Dia e noite, curvado em tão cruel raciocínio, | |
não dormia, balançava a cabeça em desprezo | |
próprio o pai. Por que não refletira melhor, | |
por que não dera ouvido ao bom Jupi que falava? | 470 |
Mas a voz dos ancestrais ressoava severa: | |
Não se aceita em tribo reta tanta desonra! | |
Ai coitada, mas era não a Mara que a rude | |
verga cabia, era ao homem daquela desonra, | |
índio que seduzira e perdera a filha imatura. | 475 |
Que servia porém lembrança? Baixava a cabeça, | |
mas agora vinha à mente o mistério da planta. | |
Não podia deixar que mais visões enganassem | |
sua filha! Passados uns dias, mandou buscarem | |
aquela planta, feita agora arbusto formoso. | 480 |
11
Foram na madrugada, quando Mara afastou-se. | |
Foram buscando a raiz e descobrindo arrancaram, | |
olhos atentos estudando o caule e detalhes. | |
Mal imaginavam que novo plano arrasava | |
pela noite o penar de Puã. Estava convencido: | 485 |
Era veneno! Antes que comam, eu comerei! | |
Seja a minha morte o pagamento do mal | |
que fiz a Mara e Mani! Foi então ingerindo | |
pouco a pouco a raiz, o caule, folhas inteiras | |
ante a comoção de transtornados guerreiros. | 490 |
Certo sentiu-se mal, mas era o mal da memória. | |
Ora, Puã mordeu, mastigou, engoliu – e viveu! | |
E quanto mais comia mais se fartava e mordia. | |
Era de fato um precioso maná que ingeria: | |
– Isto è pão, meninos! Filhos, isto se come! – | 495 |
Entre os famintos a comoção ecoou e sem força | |
foram-se ajoelhando e recebendo, das mãos | |
de Puã, fartura inebriante e cura da fome! | |
Foram plantando inopinadamente as sementes, | |
ora regadas pelo pranto dos redimidos. | 500 |
12
Para comemorar o dom de Mani, nomearam | |
pelo nome de sua oca o seu doce maná | |
e nunca mais careceram: milagre da Mani-oca. | |
Foi Jupi que entendeu la intervenção de Jaci: | |
– Mani, meninos, veio mandada longe da estrela | 505 |
para acabar coa fome dos homens! Ela morreu, | |
Puã, a fim de que nós agora vivêssemos fortes. | |
Eia, pão da vida! Bendita a mãe de Mani! – | |
E Puã, a sós no luar, amargamente chorava. |
Folha VIII |
Que valia a Mara um milagre? Tomara-lhe a vida | 510 |
quase a morte da filha e desgostou-se dos dias. | |
Era apenas a noite que a via, faces alçadas | |
rumo às invisíveis miríades. Pouco dormia, | |
rente ao chão, perdera o medo da cobra noturna. | |
Ia banhar-se pouco antes da aurora num lago | 515 |
frio de profundíssimas águas. Numa das noites, | |
quando deitada, Jupi abordou de fora da oca: | |
– Ó minha filha, sai daí! – Em vão intervinha, | |
ora que pouco auxílio trazia um sermão de ameaça. | |
Quando o pajé tomou-lhe a mão, aterrado e rogando: | 520 |
– Fala! –, Mara ergueu enfim os olhos fitando. | |
Já não eram dela aquelas pupilas de espectro: | |
– Mara morreu com Mani, Jupi! Meu nome è Naiá! – | |
Jupi recuou de susto e calou, num gesto confuso. | |
Veio-lhe à mente o claro efeito daquela palavra: | 525 |
Pois trocar embora o próprio nome por outro | |
era contra a mãe Ceci um sinal de repúdio. | |
Não se assentia tanta audácia: Era costume | |
desde sempre mandar emborar quem ousasse, | |
fosse velho, xamã, guerreiro. Como uma seta | 530 |
1
farta contra o peito a nova chegou ao cacique: | |
– Fala a verdade! – Puã cerrou as mãos violento. | |
Ato contínuo, tomou do cipó: – Tragam-ma cá! – | |
Pelo pátio a novidade correu como um raio: | |
Vinham reunir–se, aflitos, em frente a Puã, | 535 |
enquanto Naiá se deixava levar austera e calma | |
pelas mãos dum guerreiro. Mas o pai delirava, | |
vendo–a novamente atada ao tronco e calada: | |
– Fala! Como è isto, Mara? Mudaste o teu nome? – | |
Mara porém responde quieta: – Meu nome è Naiá! – | 540 |
A gente contrita suspirava e Puã reprimia: | |
– Não se permite aqui viverem vidas ingratas! | |
Olha, menina, suportamos demais tu’ audácia! | |
Mas trair o próprio nome, a tal ponto chegaste? | |
Homem de fora já teria sentido nas costas | 545 |
golpe de vara e castigo apropriado na cara. | |
É teu pai que te implora, filha, diz a verdade, | |
diz o teu nome. – Ela, porém: – Meu nome è Naiá! – | |
Falava tão serena que exasperava o cacique. | |
Pois num súbito lance o pai, erguendo o chicote, | 550 |
2
fê-lo cair com toda a força contra a maloca. | |
Houve ali correria, tumulto e gente aturdida, | |
ora que os anciãos falavam baixo ao cacique: | |
– Mata não, Puã! – Naiá, porém, cabisbaixa, | |
sempre queda, não reagia: – Não me conformo | 555 |
mais com tal desprezo! – disse o pai confuso – | |
dei o quanto pude, implorei, tentei de tudo. | |
Desde que vi Mani tomei a neta nos braços, | |
Mara, e perdoei teu gesto, quando de fato | |
fora eu que de mais e maior perdão carecera! | 560 |
Rogo em nome da mãe Ceci: Perdão, minha filha. | |
Não passou de meus dias nenhuma noite sem pranto | |
desde que ousei lançar a minha mão contra ti. | |
Em vão pedi perdão às ancestrais entidades, | |
rogo às águas e ao fogo imerecido consolo. | 565 |
Ora se queres punir-me pelo silêncio, que seja | |
mas: Se mudares teu nome não te posso reter, | |
jamais, as leis dos ancestrais proíbem. Responde! | |
Diz uma última vez a verdade, diz o teu nome! – | |
Era em vão seguir inquirindo: – Meu nome è Naiá!– | 570 |
3
Puã convocou adentro os anciãos e desfez-se: | |
– Ó minha gente, já nem sei o que faço com ela. | |
Podes, Jupi, banir as leis ao invés de Naiá? – | |
Jupi hesitava: Causar a ira de antigos espíritos? | |
Nunca! O rito reza o desterro. Ouvindo anciãos, | 575 |
Puã pesava à mente o maior agravante: Naiá! | |
Em toda a terra das amazonas, fora a guerreira | |
mais valente e mais temida mulher conhecida. | |
Nunca se ousara, nas eras de selva nenhuma, | |
nunca ultraje a tão distinta e divina amazona. | 580 |
Como usurpar tamanho nome? – Coitada de Mara... – | |
disse o pai solene, – Naiá da estrela perdoe! – | |
Mas Jupi, refletindo em meio ao fumo odoroso | |
junto a xamãs interveio: – Pois que seja Naiá, | |
se a tal se atreve! Não se sabe que sopro inspirou-a | 585 |
nem se a condenando acertamos. Cumpre o costume, | |
sê contudo manso, Puã: O caso è de extremos. – | |
Deste modo confabulando e trazendo à memória | |
viva a bênção da bem-amada, o conselho saiu. | |
Puã, mirando a gente na espera, enfim declarou: | 590 |
4
– Naiá! O apreço nosso ao grande nome que abraças | |
pede que possas mantê-lo. Mas o nosso costume | |
reza que vás de teu rumo! – houve soluços na tribo | |
mas o cacique pediu silêncio, seguiu reticente: | |
– Cabe a ti saber, guerreira, a hora adequada. | 595 |
Fica o quanto quiseres, pondera, decide sozinha | |
quando irás. – Era um certo alívio mas o pajé | |
dos homens indagava perante uma gente ansiosa: | |
– Como podes tomar o mais sagrado dos nomes? | |
Aonde irás, Naiá, que novo rumo encontraves? – | 600 |
Nada obstante não respondia, a mente na estrela. | |
Foi depois que Naiá lhe falou, no meio da noite | |
quando se viram a sós na oca, dizendo-lhe grave: | |
– Eu me vou deste mundo a melhor! – Jupi alarmou-se. | |
Que lhe passava à mente, que novo plano formava? | 605 |
Era urgente impedir mas foi ouvindo o relato: | |
– Já não sabes, homem, como nasce uma estrela? – | |
Ai o sabia! Lembrava arrependido, de fato, | |
como as velhas narravam casos dum tempo passado. | |
Era uma longa história que o bom pajé confirmara: | 610 |
5
Quando Jaci, que brilha branca no céu e nas águas, | |
toma de amor àlguma virgem, em luz a transfaz! | |
Leva o seu coração acima e nascem estrelas. | |
Trás montanhas que apenas amazonas conhecem, | |
colhe Jaci num beijo maternal as estrelas. | 615 |
Deste modo falando Naiá mostrava as alturas: | |
– Olha o tamanho do céu e como tudo lhe cabe. | |
Há decerto um lugar para mim naquelas entranhas, | |
vê, por entre aquelas duas estrelas, aquelas... | |
Olha quantas outras mais e quanto espaço separa, | 620 |
quanto mistério. Se for demais, alguma se move, | |
dá lugar cadente à nova que chega de longe, | |
dá lugar para toda a luz – Naiá decidira. | |
Ia embora buscar Jaci além. Jupi ponderava: | |
– Mas Naiá, se fores tão longe embora do mundo, | 625 |
que faremos nós, desolados sem ti na floresta? – | |
Ora a outra baixando a cabeça disse ao amigo: | |
– Este mundo è sombra somente e nada me resta. | |
Quais os dons da terra, Jupi, ainda carrego? | |
Esta vida somente cansa um’ alma que sofre. | 630 |
6
Ai Jaci, transfaz em luz meu corpo de sombra! – | |
Era um caso a carecer de astuta estratégia. | |
Sob incansáveis apelos Puã prometera silêncio. | |
Ante o perigo, bastava um passo falso somente, | |
ato impensado, e lá Naiá se perdia de vista! | 635 |
Jupi foi ter coas velhas a sós, expor o tentame | |
triste ao qual Naiá se lançava: Foi decidido | |
pouco a pouco demovê-la e logo em seguida | |
veio alguma das velhas falar a sós a Naiá. | |
Narrava, e não mentia, sobre monstros na mata: | 640 |
– Toma cuidado que o Boitatá devora uma vida! – | |
Tinha forma lodosa e vivia à beira das águas, | |
era capaz de façanhas imerso no rio prohibido: | |
– Sabes quantos rios existem na mata, Naiá? – | |
Nenhum mortal jamais o soube: – Sabes, de fato, – | 645 |
ia seguindo a velha – quais as formas a mata | |
toma pela noite e quanto se move nos ares? – | |
Foi assim arrancando, numa e noutra palavra, | |
toda a extensão do plano. Ria, como segura: | |
– Ó Naiá, as amazonas se foram aos montes | 650 |
7
mas os montes, que esperanças, longe demais. | |
E nem se sabe mesmo se existem. Nunca se viu | |
montanha na selva. – Naiá duvidava da velha. | |
Veio o xamã durante a noite e longa conversa | |
sobre Jaci tomou lugar. O xamã que escutava | 655 |
dava-lhe crédito: – Isto è certo, quando Jaci | |
decide, nasce a nova estrela. – Sonhava acordada | |
frente ao velho enquanto o velho porém avisava: | |
– É Jaci que decide, Naiá, e não o nosso desejo. | |
Ela que desce e colhe e leva os corpos ao céu. | 660 |
A nós não cabe buscar, Jaci conhece o que somos. – | |
Mas Naiá retrucou: – È bem Jaci que decide. | |
É preciso, porém, num santuário de luzes, | |
ir buscá-la longe do mundo. – E não concedia | |
quanto a isto. Como pudera? Sabia de outrora, | 665 |
pela boca do mesmo xamã, da velha viagem | |
rumo às impossíveis paragens onde amazonas | |
eram colhidas. A velha ouvia aflita e calada. | |
Horas inteiras, Naiá quedava falando coa lua | |
como a desenhar no firmamento um caminho: | 670 |
8
– Não percebes, Naiá, o preço de tanta viagem? | |
É perderes a própria carne, perderes a vida. | |
Queres ser uma estrela fria, morta, longínqua? | |
Ó Naiá, as luzes dos astros nada sentem... – | |
era Jupi que argumentava em vão, devastado. | 675 |
Quando Naiá pediu a guerreiros arcos e setas, | |
tintas, fumo santo às velhas, Puã interveio: | |
– Toma prumo, insana, deixa de pouca vergonha. | |
Queres morrer, Naiá? – Mas era clara a firmeza. | |
Foi em vão deixar as armas à espreita na noite | 680 |
qual se até pudessem contê-la. Naiá se esvaiu. | |
Quem o viu a correr aos gritos sem rumo correto | |
mal podia crer que aquele guerreiro, vergado, | |
era Puã, desairando perante a beira da aurora: | |
– Foi-se embora, Jupi! Perdi minha filha Naiá! | 685 |
Quedê, minha gente, quedê Naiá? Quedê minha filha? | |
Não a verão de novo estes olhos? Dá-me a beber | |
de morte, pajé! – Jupi mandou guerreiros buscar | |
mas tornaram, depois de poucas horas apenas. | |
Era verdade a nova e Naiá se perdera de vista. | 690 |
9
Dentre todas as formas de morte ali concebidas, | |
fera, fome e veneno, monstros de vário caráter, | |
houve consenso quanto ao mais temível destino: | |
ermo à beira dos rios, o Boitatá traiçoeiro. | |
Movem-se ondas no ar, pupilas, cílios de fogo | 695 |
levam embora as almas à mata na noite sem fim, | |
devoram olhos, guardam ossos na gruta profunda. | |
Quem as enxerga, perde a vista, a vida amiúde. | |
– Calma, Puã, – dizia o pajé –, ninguém conheceu | |
jamais os bons e os maus intentos do Boitatá. | 700 |
Não condenes um ser que nunca viste no mundo. – | |
Puã contudo lavado em lágrimas disse ao amigo: | |
– Protege Naiá da morte! Salva mha filha se podes! – | |
Já se encontrava longe Naiá daquelas paragens. | |
Era o peito a bússola única! Durante os primeiros | 705 |
dias correu o quanto pôde, na densa floresta, | |
rumo aos montes onde a terra tornava-se azul. | |
Jaci buscava apenas quem chegasse à montanha | |
mais elevada. Descendia dum astro vizinho | |
como um alvo, feérico véu lançando-se à mão, | 710 |
10
ao corpo inteiro. Transubstanciava-se a strela, | |
era eversa a madeira da carne em foco perene, | |
doce e doloroso o trabalho e parto da luz. | |
Desfeita a derradeira parte em poeira estelar, | |
Jaci ascendia, levando à cima infinda a criança. | 715 |
Quanto porém de selva e quantas léguas errôneas | |
era preciso vencer. Naiá prosseguiu a viagem | |
sem descanso, correndo quarenta dias e noites. | |
Dois caminhos havia, d’oeste como do norte, | |
mas o rumo oeste era perigoso e distante. | 720 |
Ora, avançava uma cordilheira mágica e vasta, | |
cada cume a porta de entrada, o céu infinito. | |
Era porém inalcançável aos pés, afirmavam. | |
Dentre as lendárias amazonas nenhuma chegara | |
pois aquele rumo era o rumo da eternidade. | 725 |
Bem melhor seria buscar o caminho do norte, | |
onde os cumes eram menores e perto a vitória. | |
Mas a selva cobria a trilha na copa das árvores: | |
Nem de dia e nem de noite, nem nos luares | |
foco algum ilustrava a tenebrosa passagem. | 730 |
11
Era andar custoso: Quando a noite triunfa, | |
resta no coração das selvas o azul invisível. | |
Já nenhuma estrela vencia a crosta das folhas | |
mas angustiada Naiá prosseguia, que ousava | |
pela noite andar na busca incerta da trilha. | 735 |
Cada passo deixava atrás a severa certeza: | |
Nunca passara tão distante e corria adiante, | |
longe dos homens e até de si na selva deserta. | |
Antes buscava a solidão maior no mistério, | |
ela que recusava a luz do dia e dormia. | 740 |
Via cabisbaixa o sol e de pouco importava, | |
astro que então abandonara o pranto de Mara. | |
Era doutra esfera de luz que Naiá carecia. | |
Onde porém o raio final? Onde as montanhas? | |
Pobre Naiá que quanto mais errava na selva | 745 |
menos sabia por qual vereda estranha passava. | |
Veio o medo. De noite apareciam fantasmas. | |
Entre uma sombra e outra balbuciava a palavra, | |
certas vezes gritava sozinha chamando Jaci. | |
Do meio da mata respondiam os urros dum bicho, | 750 |
Vitória Régia II | Folha IX |
ora um’ ave afoita, símio, feras e répteis. | |
Quando entendeu, chorou: O rumo estava perdido. | |
Vinha a noite e Naiá recostava o rosto na pedra | |
como esperando as sombras e o novo medo passarem. | |
Medo de monstros? Ela temia o que não tem nome. | 755 |
Mas temeu de verdade quando no meio da noite | |
viu de longe a sombra do vulto e gritou agitada: | |
– Quem ès tu? – O espectro desfazia-se em sombra | |
mas então ressurgia o passo esquivo na trilha. | |
Pelas folhagens ressoava um rouco rugido. | 760 |
Era lodosa a forma? Eram de fogo as pupilas? | |
Era decerto o Boitatá, e Naiá preparou-se | |
longe da estrela para o mais temível destino. | |
Olhos amedrontados, mirava a treva e calava, | |
ora recordando as noites da história da morte, | 765 |
ora apavorada no peito e soluçando prostrada: | |
– Que fizeste de mim, Jaci? Aqui me trouxeste, | |
mãe Ceci, e aqui morrerá quem tanto te amou? – | |
No mesmo instante emerge uma imagem tremenda! | |
Era o vulto que toda noite seguia a guerreira | 770 |
1
pela sombra das árvores, lado a lado o fantasma. | |
Quando enfim notou, gritou mas a voz lhe faltou: | |
Naiá vislumbrou na sombra gigantesca uma onça! | |
Era um jaguar de proporção jamais conhecida, | |
pronto a matar e de fato avançou-se contra Naiá! | 775 |
Saltou, e repentino rugiu lo trovão pavoroso | |
pela selva, transtornando as águas e a terra. | |
Houve tremor e caiu do céu um fortíssimo raio | |
quando a voz de além ecoou nas comas da várzea: | |
– Eia, guerreira, levanta-te, amazona, e cavalga! - | 780 |
Era como se ao firmamento e no fundo dos rios | |
fosse uma força, a voz onipresente da estrela. | |
Veio do fundo um clarão etéreo buscando as alturas: | |
Vinha pelo véu em resplandescentes exércitos | |
vão de amazonas a cavalgar das selvas aos astros: | 785 |
– Monta! – Naiá de pronto monta ao lombo dum’ onça | |
mais pujante e poderosa que a morte e cavalga: | |
– Eia, sus, à montanha! – Zarpou, zarpou como raio | |
nem cavalgava, voava por sobre um cometa dourado. | |
Como brilhava na sombra o felino e como varava | 790 |
2
célere rumo ao máximo monte, Naiá transformada! | |
Fora transfigurada a selva, o mistério desfeito, | |
fora toda refeita a beleza que Mara perdera – | |
bela enquanto sombra alguma cobria o seu corpo, | |
livre nas veigas onde a nudez è pura e perfeita. | 795 |
Seus cabelos suaves crescidos eram a imagem | |
clara do céu deitando estrelas no meio da trilha. | |
Que bonito se o mundo visse uma estrela ascendente: | |
Ela buscava e cavalgava as copas e os cumes, | |
ela varava a caverna em profundezas do inferno. | 800 |
Indo em jornada aventurosa de rumo em rumo | |
dois amigos descobriram um novo hemisfério: | |
Era a terra dalguma extinta gente gigante, | |
era o reino anão, mas onde a trilha da estrela? | |
Quando penetraram a selva das cobras souberam: | 805 |
Eram elas em cuja cauda o chão se tremia | |
dando vida ao vórtice engolidor de floretas. | |
Elas mudavam serpenteando o curso dos rios | |
enquanto o navegante buscava o porto seguro. | |
Foi ali que travaram a memorável batalha | 810 |
3
quando emergiu do turbilhão a primeira serpente: | |
Pôs a cabeça fora d’água abrindo a garganta | |
mas Naiá montada se esquivava do ataque. | |
Era um desfiladeiro sem fim a boca e mordia | |
contra as águas voraz e procurava os audazes. | 815 |
Nada contudo impôs temor ao salto da onça | |
quando Naiá no desespero extremo exortou: | |
– Jaguar, lutemos, vamos, meu jaguar, e lutemos, | |
teu nome è Guaraci porque me lembras o sol! | |
Jaguar, ilumina e guia e defende meu rumo | 820 |
como o raio que sai vitorioso da sombra! – | |
Pois da sombra Guaraci emergiu fulgurosa | |
contra as cobras duma desordenada alcateia. | |
Ia veloz e passava e se esquivava e saltava | |
sem pensar de copa em copa enganando serpentes. | 825 |
Mas do escuro um lance perigoso entreveio | |
quando uma cobra traiçoeira tragou los dois: | |
Garganta adentro pareciam descer pelo abismo | |
nem por isto Naiá nem Guaraci se renderam. | |
Pois testemunharam cobras e os olhos da estrela | 830 |
4
quanto valor viveu no vigor dum raro jaguar! | |
Pois testemunharam como dum único golpe | |
Guaraci desvirtuou do abismo a fronteira! | |
Como um delicado copo e cristal se estilhaça | |
quando a mão aperta, a garganta larga cedeu. | 835 |
Naiá da escuridão irrompeu, divina ascendência | |
duma estrela, refeita a destemida guerreira. | |
É bonita a vida de dois amigos unidos, | |
foi bonita amizade quando foi verdadeira. | |
Ora Naiá contente abraçou-se à onça pintada | 840 |
como a boia, socorro a quem se agita nas águas. | |
Era em verdade um semblante familiar e Naiá | |
em vão se indagava donde conhecia o felino. | |
Mas agora que estavam juntos era mister | |
saber o derradeiro cume, o rumo estelar. | 845 |
Um cheiro doce anunciava a nova esperança | |
quando o brilho noturno redobrava o mistério. | |
Vinha então dos céus uma azulada cadência, | |
foco ameno movendo-se pela flora e morrendo. | |
Era a luz do sonho nas folhas, era Jaci | 850 |
5
que pelas auras evocava o beijo impossível. | |
Como avançava sobre as coisas o véu prateado! | |
Como a voz enlevante ressoava nas almas | |
selva adentro e perto do céu o cume acenava! | |
Certo estava perto o derradeiro destino! | 855 |
Mal sabia Naiá respirar e ofegava nervosa | |
quase esquecendo a si, dizendo à onça pintada: | |
– Olha, jaguar, as amazonas! – Descia de além | |
o raio por onde a cavalgada das almas passava. | |
Como um milagre atravessavam o verso das folhas, | 860 |
ora que a luz vencia a sombra e Naiá se banhava. | |
Era agora de fato uma estrela terrena avançando | |
pelas matas e cavalgando na angústia do sonho. | |
Mas será de bom sucesso a viagem da estrela | |
quando no meio do rumo a dúvida ataca a certeza? | 865 |
Já bastava uma vaga lembrança e já se perdia | |
pela sombra dum pranto inopinado o clarão: | |
– Mani, filhinha, volta, volta, Mani, filhinha! – | |
Pobre Naiá que cavalgara tão longe e que agora | |
mal se erguia dum triste chão que em vão inundava. | 870 |
6
Pouco atinava com Guaraci que urrava adiante: | |
Por que duvidar, Naiá, de tão distinta amizade? | |
Pois do chão a que se abraçava Naiá duvidou: | |
Eu sei, Mani, que Guaraci me engana e me perde! | |
Era um raciocínio ganhando força invencível, | 875 |
tanto que a todo custo Naiá buscava uma brecha. | |
Tarde da noite, enquanto o bom jaguar repousava | |
mal Naiá se continha: – Guaraci que me engana! | |
Ai, Jaci, ninguém, ninguém no mundo me amou! | |
Mani morreu, Guaraci, porque ninguém confiou! – | 880 |
Não havia tempo a pensar no véu do passado. | |
Clara e rapidamente, aproveitando o silêncio, | |
paz do sono, Naiá desvencilhou-se da fera. | |
Pois correu o quanto pôde, entrou pela sombra, | |
foi de perto reconhecer os temores do cego, | 885 |
foi buscar a morte das cores. Vagava e parava, | |
olhos desesperados no nada, apalpando as folhas, | |
fogo e frio no meio da mente. Naiá caminhava | |
pelos descaminhos orando às almas da noite: | |
– Eu não quero mal, Jaci, a ninguém neste mundo, | 890 |
7
quero apenas passar pelo mundo buscando uma estrela! | |
Ó ancestrais, se algum de vós conhece o rumo sereno | |
dai-me verdade e luz, aclarai um caminho iludido! | |
Minha existência não carece de sopro e de essência | |
nem espero favor de ninguém, eu quero a montanha! | 895 |
Onde encontro a luz sem fim que Jaci prometeu? | |
No mundo tanto perdi que estou perdida no mundo, | |
mas onde, ancetrais, Ceci conduz estrelas, dizei! – | |
Ela ajoelhou-se e num gesto inocente esperava. | |
Ó Naiá, por que quiseste a senda impossível? | 900 |
Não se sabe se a luz que àquele instante desceu | |
do céu foi por piedade ou Naiá que inventara. | |
Mas a lua surgiu mostrando a trilha final | |
e Naiá seguiu, correndo como louca de morte. | |
Não podia perder de vista o divino tesouro, | 905 |
luz que quanto mais tocava mais lhe fugia: | |
– Não, Jaci, espera! – a voz guerreira gritava | |
como em desesperada batalha buscando a quimera. | |
Ela tocava a cor de Jaci na folha e no galho, | |
pela sombra e pelo chão mendigando a verdade. | 910 |
8
Mas revendo por toda parte o brilho da lua, | |
viu repentinamente um puro reflexo nas águas. | |
Ela chegou enfim ao mais distante recanto, | |
onde a luz de Jaci pousava na plácida margem: | |
Era um rio perigoso no qual o céu cintilava! | 915 |
Mas Naiá, no desassossego das suas lágrimas, | |
viu na luz acenando das ondas o fim da jornada. | |
Ela lançou-se à correnteza de braços abertos, | |
ela entrou desavisada no engano das ondas. | |
Nem a mão tocava o céu e nem os pés o fundo: | 920 |
– Mani, socorro! – o pranto balbuciado ecoava | |
mas o gole das ondas silenciava os gritos. | |
Quanto mais apelava a Jaci, Jaci lhe fugia | |
pelo corpo inteiro desgovernado nas vagas. | |
Onde passava Guaraci, protetor de perdidos? | 925 |
Mas Naiá naufragou na intransigência das águas, | |
ela calou a floresta que percebendo ecoou: | |
Naiá se afogou! Naiá da estrela, Naiá se afagou! | |
Entre o mundo e a morte em derradeira agonia, | |
ela ainda esperava a transcendência do eterno: | 930 |
9
Era isto o parto da luz? Mas Naiá naufragou | |
sem nem ouvir do céu e nem da terra a resposta. | |
Foi então que das trevas irrompeu um guerreiro, | |
tarde demais, correndo pela margem aos gritos. | |
Ele bem sabia a desgraça que ali se passara: | 935 |
Era Puã, que junto a duzentos guerreiros cruzara | |
toda a terra numa busca infeliz e sem trégua. | |
Era Puã, que se aproximando das ondas mandava: | |
– Vamos buscar, ainda è tempo e Naiá nos espera, | |
não, è minha vida que espera no fundo das águas. – | 940 |
Foi demovido a grande custo pelos duzentos | |
homens chorando àquela margem: – Naiá se afogou! – | |
Era em vão mergulhar colecionando vestígios | |
mas Puã, erguendo as mãos ao céu, implorava: | |
– Ó Ceci, eu me vim de tão longe para perdê-la! | 945 |
Perdão, Naiá, meus pés me recusaram vitória, | |
minhas mãos te abandonaram de novo, filhinha! – | |
Mal terminou e já se aproximava da oposta | |
margem um’ onça pintada e protetor de perdidos. | |
Mas Guaraci baixando o corpo entendeu o destino! | 950 |
10
Foi dos homem que prorrompeu de repente o pavor: | |
Pois imaginaram sem mais que Naiá se afogara | |
quando fugia desesperada as garras da onça! | |
Foi assim que Puã, num novo gesto impensado, | |
tomando o arco apontou a frecha e puxou a corda. | 955 |
Mas Guaraci, que mirava entristecido, saltou | |
da margem buscando amigos, fiel companheiro: | |
Foi alvejado no alto, sangrou e caiu moribundo. | |
Quando Puã se deparou conduzindo guerreiros | |
deu-se conta enfim das ilusões deste mundo: | 960 |
Era o semblante do bom Jupi que ali se mostrava: | |
– Eu fiz a terra parar, Puã, eu tentei ajudar | |
mas eu falhei, amigo, a morte è merecida! | |
Eu fiz relampo e trovão, eu defendi a guerreira | |
pela treva e Naiá raiava como uma estrela! | 965 |
Mas Naiá duvidou, meninos, da minha amizade, | |
Naiá fugiu, Naiá se perdeu, Naiá se afagou! – | |
Era Jupi, e fechando seus olhos Jupi pereceu | |
nos braços frios de Puã, mas logo Puã se ergueu, | |
e contemplando as ondas revelava a verdade: | 970 |
11
– Não entendo, eu não entendo mais este mundo. | |
Mas esta foi a mão que desferi contra Mara, | |
esta foi a mão que arrebentou inocentes! | |
Matei Jupi, meninos, como se não me bastasse: | |
Foi Puã que lançou à lama o nome do mundo! | 975 |
Essa vida, minha gente, eu não sei o que é, | |
que quanto mais se vive mais a gente se perde! | |
Era bom morrer com Naiá por dentro das ondas, | |
mas a morte seria uma fuga amena demais. | |
É preciso viver e dizer ao mundo o meu mal: | 980 |
Eu careço è duma pena pior do que a morte! – | |
Sem esperar resposta, Puã tomou duma larga | |
lâmina e fez cair com força contra o seu braço. | |
Ele cortou, separou, decepou a mão que matou | |
Naiá e Jupi, o punho que arrebatou inocentes, | 985 |
nem se sabe se após o golpe Puã se salvou: | |
– Ide, guerreiros, retornareis o rumo sozinhos! | |
Esse que outrora foi cacique nunca existiu! – | |
Assim falou, e assim deixava o sangue dizer | |
a todos o veredito dum sacrifício tardio. | 990 |
12
Onde estava Naiá, Naiá que buscava uma estrela? | |
Mas ainda faltava a palavra final, e escutaram: | |
Era o Boitatá, defensor perpétuo dos rios | |
surgindo repentinamente, emergindo das ondas! | |
Ele se ergueu, o monstro temido e destemido | 995 |
trazando aos braços o corpo sideral de Naiá: | |
– Jaci! – clamou a voz que trovejou pela selva. | |
Viu-se então da montanha das amazonas aladas | |
raro clarão, azulado manto descendo à floresta. | |
Mas o Boitatá lhes intercedeu as palavras: | 1000 |
– Eu defendo a glória imaculada das águas | |
contra os maus e não persigo a vida inocente! | |
Eu ouvi, Naiá, o teu lamento às alturas, | |
eu me ajoelhei contigo e pedi piedade. | |
Mas te abandonaram à morte, vida serena! | 1005 |
Sim, ofenderam este rio tão puro e distante | |
depondo às minhas mãos a tua morte indevida! | |
Por que, Jaci, renunciar a quem tanto te amava? | |
Pobre Naiá, que nada fez de mal neste mundo: | |
Eu saberei, Naiá, recompensar teu esforço. | 1010 |
13
Não te farei estrela pois o céu é distante, | |
mas serás a mais distinta flor de meus rios: | |
Toda noite teu brilho será maior do que a noite! – | |
Não entregou o corpo a Jaci, mas a lua chorou. | |
Desde aquele instante vem tentando esconder | 1015 |
em vão a própria luz, passando noites inteiras | |
longe da vista humana. Alterna os dias minguante | |
como louca no seu remorso imortal, mas avisa: | |
– Ó Naiá, perdoa o mistério do céu e não chores. | |
Não me ofertaste em vão a tua vida inocente | 1020 |
pois um protetor te amou do amor que mereces. | |
Foste ouvida, filhinha, serás estrela das águas! – | |
Quando o Boitatá beijou Naiá sobre as ondas | |
ela renasceu como o lis estelar da verdade. | |
Eia, luz da vida, bendita a mãe de Mani! | 1025 |
Toda noite a flor desperta e luz a floresta, | |
marca eterna aos céus a vitória régia dos rios. | |
Suas folhas flutuam firmes em palmas abertas, | |
dando calma, socorro a quem se agita nas águas. |