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TOTILA

Eustácio de Sales



© Gregorius Vatis Advena 2017, Record E 6, engl. Totila, Hampshire, heterometres, 6087 lines, epic poetry, epography, Portuguese.



Totila

Introdução


Rei dos ostrogodos, Totila (lt. Tótila, gr. Τουτίλας, Tutílas) luta pela reconquista da Itália após herdar uma custosa guerra contra os bizantinos. Justiniano, o novo Imperador, sonha em revigorar o Império Romano. Roma porém está cercada. A fome e a destruição se espalham pela Itália. O Imperador, enfim, decide enviar Narses a cabo de imensas coortes. A guerra dos godos (535-554) é um dos momentos mais traumáticos da história ocidental.

Imagem: Imperador Justiniano (centro) e séquito (Belisário à esquerda, Narses atrás à direita), Basílica de São Vital, Ravena, ft. de Roger Culos, CC BY-SA 3.0.

Poema épico, Totila retrata a guerra como condição íntima do ser na angústia dum mundo irracional ou racionalizado arbitrariamente. O fogo, o conflito, a destruição exteriorizam tanto o animal indomável quanto o anjo perdido em sua luta por sentido, numa contenda invisível que arrasa e fortifica. O poema discute, entre outros temas, o conceito da boa guerra e seus paradoxos.


Sinfonia No. 9 em ré menor op. 125, primeiro movt., Beethoven, regência de Herbert von Karajan, Filarmônica de Berlim, 1962, PD [União Europeia].


As formas orgânicas do idioma são autônomas, livres de realidade. Não há um padrão morfossintático fixo. A composição reúne práticas medievais e medievalizantes, contemporâneas e experimentais. O mundo que o poema retrata é caracterizado por plurilinguismo e diglossia, sem uma norma coercitiva. O português serve apenas de língua-base para um idioma fluídico.

Em sua guerra de estilos inconciliáveis e escandalosos, é um poema moderno: Traduz o postulado de Rimbaud por uma arte progressiva onde os métodos mais avançados e diferenciados se mesclam às experiências mais avançadas e diferenciadas, também como crítica social.

Em métrica, o poema alterna episódios em hexâmetros longos e breves, por vezes irregulares – seis ou cinco tônicas separadas por uma ou duas átonas, ou por pausa. Em geral, o verso começa em tônica e termina em diérese bucólica – o ritmo tátata-táta. As alternações são frequentemente quebradas por quadros em verso livre.

O uso das formas épicas é tratado no quadro das conjugações épicas e no ensaio Prosódia e Grafia, notadamente os subtítulos [3] e [4]. Certas formas também são ilustradas neste excerto anotado, no Carolíngio.















Glossário Arcaico


Há dois grupos de formas épicas em Totila, as históricas e as avangardistas. No primeiro grupo, ocorrem tanto (a) formas arcaicas, documentadas no português antigo e que se pode consultar no Glossário da Poesia Medieval, quanto (b) formas arcaizantes, isto é, licenças épicas eufônicas ou latinizantes, composições sem documentação histórica, ainda que verossímeis. Dentre os termos documentados, sejam assinalados:


al, pron. [aliud]: algo, outra coisa

atender, verbo: esperar

ca, conj. [quia]: que, já que, porque

camanho, pron.: tal, tamanho

chus, adv. comp. [plus]: mais

eire, adv. [heri]: ontem

elo [ê], pron. [illud]: aquilo

ende, adv. [inde]: daí, de lá, disto

esto, pron. [istud]: isto

er, adv: ~ de fato (enfatisa o verbo)

home, pron. indef.: ~ alguém (~ “se” apassivador)

i, adv. [ibi]: aí

ja-quando, adv.: em algum momento

medês, pron.: mesmo


mentre, adv.: enquanto

mi, pron. dat. [mihi]: a mim

nimigalha, pron.: nada

nulhome, pron.: ninguém

nulho, pron. [nullus]: nenhum

ogano, adv. [hoc anno]: este ano

pero, adv.: mas (geralm. átono)

pero que, conj.: ainda que

pois (que), conj. [post]: depois que (com fut. subj., pret. perf. ou pret. ant.)

quejendo / quejando, pron.: qualquer que seja

quis, pron.: cada um; mais raro: alguém

rem, pron.: nada

sou, pron.: seu (altern.)

tou, pron.: teu (altern.)

u, adv. int. [ubi]: onde

vegada, subst.: vez




Conjugações Épicas


As conjugações épicas são tratadas neste quadro completo. Dentre as desinências mais recorrentes, assinalem-se as do quadro abaixo. A cruz pátea ( ✠ ) indica formas históricas documentadas, como o pretérito anterior (houve amado) e o particípio regular da segunda conjugação (perdudo, temudo, cf. fr. perdu, it. perduto):




PADRÃO FORMAS ÉPICAS


perco
perdes
perde perdet
perdemos perdemus
perdeis perdedes ✠
perdem perdent


perdi
perdeste
perdeu perdeut
perdemos perdeumos
perdestes
perderam perderom ✠


houve perdudo ✠
houveste perdudo ✠
houve perdudo ✠
houvemos perdudo ✠
houvestes perdudo ✠
houverom perdudo ✠


perderei perdeia
perderás perdeias
perderá perdeia
perderemos
perdereis
perderão perdeiam


perde
perdei perdede ✠


perdido perdudo ✠





Glossário Gótico


Poucas palavras do idioma gótico incorporaram-se ao português e castelhano. Em Totila, são reconstituídas algumas palavras em roupagem românica, indicadas no quadro abaixo. Indica-se em itálico o termo original e por vezes a correspondência no alto alemão antigo (AA) e no inglês antigo, ou anglo-saxão (AS).

Pronúncia: A letra ƕ (hwair) soa como uma junção acelerada de hw. A letra þ (thorn) é uma fricativa dental surda (/θ/, cf. th no inglês thick). A letra h final é uma fricativa velar surda (/x/, cf. ch no alemão Loch). A grafia gg soa ng. As grafias aí, ái e ai soam próximas de é, as grafias áu, aú e au próximas de ó.


acrão, subs. [akran]: fruto

aƕa, subs.: rio, água

anamantar, verbo [anamahtjan]: ofender, atacar, violentar

anguisa, subs. [aggwiþa]: angústia

ansa, subs. [hansa]: companhia, multidão

arbedar / abredar, verbo [arbáidjan]: trabalhar

arbel, subs. [arbáiþs]: trabalho

are, subs. [harjis, AS. here]: exército, coorte

armel, subs. [armaio]: piedade

aulear, verbo [aflētan]: perdoar

bandar, verbo [bandi: laço]: unir, juntar

barno, subs. [barn, AA. barn]: criança, jovem

berar, verbo [báiran, AA/AS. beran]: trazer, portar

blingar, verbo [bliggwan, AA. bliuwan]: bater, abater

bloa (m), subs. [blōþ]: sangue

bloma, subs.: flor

bor, subs. [baúr]: menino

brecar, verbo. [brikan, AS. brecan]: quebrar; lutar

brodo, subs. [brōþar]: irmão

dodra, subs. [daúhtar]: filha

eiþan (pron. /'iþan/), adv.: ora, portanto

ero, subs. [haírus]: espada

ersa, subs. [aírþa]: terra

erto, subs. [haírtō]: coração

escado, subs. [skadus]: sombra

escanda, subs. [skanda, AA. scanta]: vergonha

escão, subs. [skáuns, AA. scōni]: belo, bonito

escau, subs. [skatts]: dinheiro, custo

estau, subs. [staþs]: lugar, parte

estoa, subs. [staua]: conselheiro, juiz

éu, subs. [áiws]: vida, vitalidade, força, tempo (de vida), tempo, eternidade

fadro, subs. [fadar]: pai

fagro, adj. [fagrs]: belo, adequado, nobre

féror / fréu, subs. [faírƕs, AS. feorh]: mundo


flol / frol, subs. [þlaúhs]: luta, batalha, campanha

fragadar, verbo [frawardjan]: destruir, corromper

frial, subs. [frijaþwa]: amor

frião, subs. [frijōnds, AS. frēond, AA. friunt]: amigo

froia / frói, subs. [fráuja]: mestre, senhor; aqui: rei

gadrão, subs. [gadraúhts]: soldado, guerreiro

gaiúca, subs. [gajuka]: companheiro, camarada

gão, subs. [gaggs]: caminho, estrada, rumo

gardo, subs. [gards]: casa

gau, adj. [walis]: santo, escolhido

goia (m), subs. [gáuja]: conterrâneo

gor, adj. [gáurs]: triste, dolente

gorisa, subs. [gáuriþa]: tristeza, infortúnio, dor

greto, subs. [garaíhts]: justo, correto

gualdar, verbo [gawaldan]: governar, reinar

guem / guena (f), subs. [wēns]: esperança

guer, subs. [waír]: homem

guerso, subs. [gawaírþi]: paz

guês, subs. [wigs, AA. weg]: caminho, rumo

gueso, subs. [waíhts]: coisa

guma (m), subs. : homem

Gus, subs. [Guþ]: Deus

ƕa, adv. int.: quê?

ƕão, adv. int. [ƕan]: quando?

inufo, adj.: inglório, infame

lustar, verbo [lustōn]: desejar, cobiçar

ogo, subs. [áugō]: olho

suão, subs. [sunus, AS/AA. sunu]: filho

suim, adj. [swinþs]: forte, saudável

toer, verbo [táujan]: fazer (conj. como doer)

tringo, adj. [triggws]: fiel, verdadeiro, íntegro

ufão, subs. [wulþus]: glória


















Argumento


















Ode ao Fim


Por quê, se a verdade
è bõa que luz, destino
quis o fim de todos
dias? Antes da aurora,
serenidade o rever
do escado eternidade,
cintilante fréu.















Evocação de Apolo


Como devotos de Iemanjá lançando prenda ao mar depus no entardecer, Apolo, ofrenda de flores sobre a pedra cantando pelo prado um nome renembrado. Terás talvez de teus éus esquistos inda um olhar sobre a sombra das vidas? Tutor de tringos, é somente um poema que dedico ao teu escudo maior, è dom menor que a beleza da bloma e que a força das armas. Acede não por mim, mas pela dor de Roma que o verso recorda e que outrora te honrou.

Naveguemos, Febo, pelas ondas desta Internet, abominável bênção por onde, agitados, caçadores de moda e divisores de tempo vão flutuando vagos, intrigados no facebook e no twitter comentando a temperatura do vento. É por esse deserto que um destino severo impôs viver e dividir o que somos, e desse palco improvável evoco, na flor e na voz e no html, a transcendência dum deus incompatível.

Eu, se puder pedir, pedirei, ò Febo, que a tua mão se abata pelo fréu como um raio escaldante, sol devorador que sês, e fragades as redes e os cabos, como um martelo esmagues no ferro uma impostura exterminadora de vida e verdade. Confunde, gadrão insaciável, a pretensão dos distraídos: Atira os seus filhos contra a rocha!

Muitos quiserom prantear a gorisa que canto e também pranteio tarde. É preciso evocar, Apolo, com toda a força do sopro e todo el erto o teu concurso: Não naufrague na indiferença brutor o esmero de longos anos! É preciso muitas flores depor a fim de que a bõa sorte vença, se assim quiseres, a inveja de tantos deuses e dum destino destruïdor de desígnios. Praza às tuas setas cruzando o peito de eleitos despertar amor ao belo, ao bom e ao vero. Em ti se acaba o que seja velho ou novo.

Feita a minha parte, Febo, faz a tua. Ordena à musa inebriar o sopro do fagro ledor e destruir, no flol de teu verso, a presunção de quem lê com pressa e má vontade. Tu que miraste, rei guerrar, o fundo das almas, prepara-me a palma no templo donde Platão aguarda, juiz de Homero e dos maus. Não ergui minha voz para cantar quimera e quero vênia se algum momento o verso for menor do que a vida. Redime, Apolo, um cantar imperfeito e contudo ansioso da verdade. Ave eleitor de fortíssimos, ave desarmado desarmador de armadíssimos!















© Gregorius Vatis Advena 2017, Nulla Dies Sine Linea.



Totila






A





α

– Pois o corpo, Pelágio, desmoronou de repente
lá na fórum, mortinho e mastigando poeira,
gente do céu, non sobra nem urtiga nem rato,
Roma è isso aí que virou. Sabes quem era?
Era um home dos Flávio, povo lá do Senado 5
mês inteirinho cozinhano urtiga e comeno
cada coisa a pessoa de longe ouvir n’acredita.
Mas senhor, este cerco acaba quando, faltano
pão e carne, romano vasculhando excremento?
Nós aqui inventano alimento que a boca mastiga, 10
Bessas lá guardano gado, escondeno comida!
Fala com ele, assim non tem condições o negócio,
povo aqui sem dinheiro o cara cobrando cinquenta,
cem moeda por carne, peão, peraí, quequeísso?
Pó parar coessa história, è cachorrada issaí, 15
avisa lá que romano quer comer de verdade,
caso contrário pode abris’se muro e simbora.
Guerra è deles! Eu que vivo aqui no meu canto
quero o quê com guerra? Vitória nossa è comida,
pão no prato alimenta, o resto è palhaçada. 20


1




Pois melhor que nós tà viveno escravo com dono,
claro, a vida ali tem mais sorte longe de è cada
casos que vou viveno e vendo. Quem escraviza
dá sustento, ahissim! Agora do jeito que a coisa
vai non vai, e digo mais: Ontem de tarde Terêncio 25
vinha que andava e carregando os seus filho
rumo à ponte ali, a prole inteirinha gemeno
dava dó, que Deus è que sabe como passaro
todo o mês sem nada. Adota um filho, meu filho,
pois aí que se sabe a dor o que é: Terêncio 30
lá com cinco andano sem poder, prometendo
leite e pão – ô meu Deus, na frente daquela
prole arruinada um pai se atira da ponte!
Ele desaparece e deixa o resto sem rumo,
vivos só por força do Céu. E vi com meus olho 35
tipo do nada uas mãe de improviso, os osso vagano
semimorto, o choro pesando mais que o corpo,
dero braço aos renegados, enquanto naquela
margem buscavam caçano carne o corpo afogado.
É, meu amigo, è cada coisa que a gente vai vendo 40


2




fica louco! Esta gente cansada e sem guerra
fez que mal no mundo quem merecia descanso?
Olha a situação ca né favor que nos fazem,
foi Bizâncio com Belisário e Justiniano,
essa gente doida aí que trancou todo mundo: 45
Nem nascero perto nem nunca viero nem viro!
Caso contrário Roma inteira tava deserta e
nós correno pelo mundo, qualquer paradeiro
bênção já contanto que caiba vida e comida.
Mas se querem prender o povo feito escravo 50
den’do muro, peão, peraí, então alimentem!
Ou então que matem ca morte mata essa fome.
Só que do jeito que vamo nòr vamo tudo simbora,
cada qual fugindo como puder que sem medo e
quem vier punir que puna, contanto que mate! 55
I, Pelágio, fala pa Bessa entreg’â cidade
toda a Tótila, o rei dessa godaida danada.
Coisa feia demais esconder comida do povo!
Já falamo duas vez e já li imploraumo:
Ele mente! Vem reforço o quê de Bizâncio? 60


3




Era fermento, ahissim, o reforço! Tu que doaste
tanto, meu senhor, dinheiro e valor de bondade,
vê se intercede um pouco por piedade muitoro.
Só teu manto, Pelágio, protege o povo de Roma!
Pede ao general que as vidas vadamo embora 65
cada qual de seu rumo e sem destino e demora. –


β

Mal protestavam, pois a fome calava
a boca de audazes: Plebeus e senadores
iam dividindo caídos a terra e migalhas
levando areia à boca. Homem da Igreja, 70
Pelágio promete ao povo o quanto pode
como aos grandes de Roma, ora meros
mendigos, ossos ambulantes apenas.
A mãe segurava um ressecado rebento
berrando como gado e concurso de gritos. 75
Chegara ao termo, a multidão entendia,
o brio da idade eterna: Não adentrava
o soldado pelos arcos com prenda famosa,
portando forte a lança que outrora partia
os montes nem escudo. A seta punha-se 80


4




como o sol: Ocaso de impérios raiava
cedendo espaço à treva. Onde os leões
leixando atrás Itália rumo aos extremos?
Passavam devastando em moções arrojadas
peritos no cerco. Formavam suas fileiras 85
os braços imbatíveis de César, vencendo
valentes. Muitas vezes tropas ferozes
forom atravessadas a fundo por uma
única lança: Bastava a mão dum herói
impôr-li força e voo. Houve espessos 90
broquéis suportando a queda do templo.
O cavaleiro cruzava a terra num dia
e triste a tropa usando marcha contrária.
Pisar os Alpes, passar o Reno e Danúbio
era a jornada da morte: Cães implacáveis 95
e furiosas mãos dirigindo falanges
atropelavam bárbaros, homens e jovens
cavalgavam sobre o chão de cadáveres,
nadadores natos de sangue e de entranhas.
Vorazes carregavam troféus e cabeças 100


5




de volta ao ninho das águias, pela via
a turba ingente dando salvas afoitas
em nome de César. Quando os estandartes
da tropa tremulavam trazendo vitória,
abriam-se as alas de Roma e Roma dançava 105
em delírio as libações gloriar e de guerra.
O nome são do Senado e do Povo passava
de boca em boca como um vinho de amantes
por almas ébrias, lascivamente imortais.
U essora entretanto os leões agitados, 110
u los homens de imoderados humores,
varões violentos? Era terra perduda
e campo aberto a toda espécie de gente
o traço destruído da Itália: Entrava
como o vento em popa o cavalo inimigo 115
matando à toa. Bárbaros, homens novos
apareciam da treva lutando por terra.
Desnortearom cidades dantes floridas
vertend’o muro ao mar. A beira da estrada
mostrava norte e sul a pilha de corpos, 120


6




a terra fértil deflorada em batalhas.
O lavrador largava da mão la enxada,
pastores fugiam leixando o gado à deriva.
Quem se creu seguro em próspero abrigo
viu subir na aurora o soldado da morte. 125
Quem buscou la cidade cercada por muros
foi cercado pelos muros e pelos soldados.
O pão era raro e pereciam os fracos
corpos de fome e sede. El home prudente
quando havia tempo e valor e tesouro 130
zarpava em perigosíssimas naus a Bizâncio:
Muitas forom tomadas no mar ou na praia
de súbito assalto, vidas lançadas às ondas,
famílias desfeitas. Quem outrora soubera
o mal dos destinos de Itália cantara talvez 135
com lira menos forte o delírio das armas.
Frequentador da corte em Constantinopla,
Pelágio chegara rico de trigo e de prata
mas expôs o seu caso a Bessas, o chefe
das tropas defendendo a muralha ferida, 140


7




Bessas que enriquecera vendendo comida:
– Home non pode leixar esta gente sair!
Correndo morrem de fome e mão inimiga.
O mundo todo viu da sorte de Nápoles
como se dizimou sem dó fugitivos. 145
Há perigo demais, Pelágio: Esperem!
Em breve Belisário vem com reforço. –
Porém a voz duma grei perdeu paciência:
– O povo, Bessas, somos nós e queremos
que acabe logo o cerco! – Alguns fugiam 150
indiferentes à lei saltando de pontes,
caçando façanha contr’a incerta corrente.
Nem por isto se contentar’os restantes:
Houve conselho e debate forte e tumulto.
No meio da noite, os senadores buscarom 155
Pelágio, que pareciam tábuas andantes:
– Nunca se viu parar o comércio de Roma.
Parou! A gente quer obrar e non pode?
A vida humana jà não difere dos ratos
porém milagre, Pelágio, ainda existe 160


8




que salva Roma e presta bem atenção:
Irás a Totila! – O nome caiu feito raio
sobre um fraco que recuou aterrado:
– Totila, rei dos godos? – Era impossível.
Tremendas narrações circulavam por Roma 165
da iniquidade dum rei, detalhado o relato:
Cortava e decepava o braço de bispos,
lançando fora da boca a língua do audaz.
Homem irado e vário de humor e nervoso,
mudava de ideias. Dava ordens de morte e 170
traía Deus e promessas. Envolto em sangue
ergueu la espada e Florença veio por terra.
Tratava como escravos romanos e godos
forte no punho: Destruiu monumentos
coas próprias mãos. Tesouros antiquíssimos 175
forom roubados, herdeiros perderom a terra.
Bastava um ato, palavra errada ou depressa
custava a vida ao pedinte: Um rei implacável
reganhara uma guerra e rugiu lo tirano
amigo dos maus, seu nome causando tremor 180


9




em Roma e toda Itália. Em Constantinopla
o medo perseguia os passantes na sombra
e Justiniano rolava as noites em branco
falando a sós no pavilhão de audiências.
Totila esvaziava as cidades e as almas 185
no inferno, parece, temiam dardos do godo
mais que ao demônio. Juiz injusto, julgava
o seu juízo final e os pacatos tremiam.
Pelágio como que entorpisto em vertigem
meneava a cabeça, as mãos tremulavam: 190
– Romanos, qual poder de mundo convence
um homem desta estirpe? Totila me mata! –
O veredito porém de anciãos morredouros
mal se deixa esperar: – Hesitas, Pelágio? –
Assim falando mostravam as multidões 195
prostradas rente à morte. Ora o nobre,
envergonhado de pôr a própria vida
acima da salvação de seu povo, cedeu
temeroso. Pôs-se a sós ao caminho de fora
levando ao godo as embaixadas difíceis. 200


10




Saiu sem ouvir o apelo extremo de Bessas,
saiu pedindo a Deus piedade e constância.


γ

Ora, a boca de Roma assim rezou a Totila:
– Desconheço, froia, da lei e costume de godos
como tratam na guerra o mensageiro de estranhos. 205
Mas em Roma como em terra de gregos sempre
foi ouvido com caridade l’homem sem armas,
boca oferecendo a paz. Ao gesto de trégua,
quando è justo o governante e bom, acede e
Deus o tenha. Eu, entretanto, fui enviado 210
sem mi darem tempo ou preparar as palavras.
Venho aqui pedir por humilde gente e famintas
ordens venho cumprir. Deus ilumine o caminho
desde já dum rei que der ouvido ao pequeno.
Quero falar, se puder, e se aprouver falarei ou 215
como ao rei convier. – Tótila ouvindo responde:
– Podes falar! Inclui porém à paz a verdade e
diz o dia, Pelágio, onde o rei dum correto
povo castigou desarmados. Não me recordo e
tanta petulância me ofendes: Somente o covarde 220


11




fere na guerra a boca buscando paz e concórdia.
Mas diácono, nem dum cão se soube de ofensa
como a que temes. Quero conhecer a proposta:
Hei la paciência de ouvi-lo que Roma deseja,
como anela a paz e quais os termos do acordo! – 225
Isto dito, Pelágio rogou: – O povo se acaba e
vai caindo de fome e quase um ano de sítio.
Ó senhor, uma gente atormentada definha
sem maldade, sequiosa da vida e da morte.
Quem socorre, soberano, um destino arruinado? 230
Vão morrendo sem saber a razão duma luta
já maior que a razão. Melhor è nem recordar
as bocas mastigando rato e catando formiga,
verme, urtiga. Forom inventadas comidas,
ave, que nem se pode dizer. Culpa do povo? 235
Não! Os homens dessa resistência de Bessas
são apenas poucos: Reprimem no fraco o rouco
grito por paz. Será possível, rei dos godos,
certo amor ou piedade da vida inocente?
Como Teodorico, o rei de outrora e ditoso 240


12




pai romanor e de godos, cumpre agir. Agiremos? –
Mas responde surpreso um novo rei aturdido:
– Nunca desdenhei de nenhuma imérita coita,
sempre ajudei ca protegi da morte inocentes:
Basta a rendição de Roma e seremos amigos! 245
São apenas três as condições da concórdia:
Pelo próprio bem do povo a muralha de Roma
será destruída em primeiro lugar. O longo cerco
já teria acabado se os muros não impedissem.
Não devolvo, em segundo lugar, escravos fugidos 250
dividindo a bandeira dos godos. Não quebrarei,
jamais, el hombridade a quem combate conosco.
Puno Sicília em terço lugar! A terra de ingratos
há de pagar seu mal, porque meu povo a poupou
mas ela abriu seus portus às tropas de Belisário: 255
Sempre ajudei ca protegi da morte inocentes! –
Mal ouviu lo diácono e fraquejava perplexo:
– Que dureza de coração, Totila, e que raiva
contra um povo decente e quão injusto juízo!
Nem sabia a Sicília que Belisário aportava, 260


13




nem se soubesse, coitada, que combate ousaria
contra tanta esquadra a triste grei desarmada?
Vão pesando já los meus olhos só de pensar
naquela gente agricultora que mal se mantém e
jamais erguerá no mundo espada contra uma vida. 265
Este o crime, porém, de que acusais uma simples
grege tão somente abrigando quem foge de Roma?
Mas que digo e que esperança ainda mi resta?
Pois se contra um povo tão pequeno e pacato
tendes tanta raiva, quanto mais do de Roma, 270
ai, que tanto tempo abriga as tropas de Bessas
pero que a contragosto? – Mas o rei sitiante
não concede e Pelágio reconhece a derrota,
fim do intento e breve intervenção por caídos.
Era melhor, talvez, perder os pés e a palavra? 275
Antes porém de soluções e juízo acertado,
Pelágio viu-se a sós e transtornado e sem rumo.


δ

Tótila recordava o legado
todos os dias. Sob o sol e na sombra
o mal que descrevera, 280


14




o fantasma perseguiu-o. Cismando
e contrito falava a sós.
– Rigo! – chamou no meio da noite
o mestre de escudos. Num surto de febre
o monarca buscava resposta. 285
Andavam no escuro
debaixo das árvores quando o rei interrompe:
– Pelágio não mente. –
Mas o perito avisava:
– Ele torce por nossa desgraça, 290
conspira contra nós.
Aguarda as tropas de Belisário
ca então verás a verdade. –
Totila escutava,
mas Rigo não o vira: Verdade era parte 295
da voz de Pelágio.
Pensando além, ruminava as perdas
de guerra e tempo. Pesando os presságios
e muita dor
tomou pelo braço Rigo, depondo: 300


15




– Irmão que és,
farás um favor que te peço:
Veste a roupa do rei godor e te apressa! –
Rigo não entendeu, mas Tótila segue:
– Sabes do santo do Monte Cassino? 305
Busca-o! Finge seres Totila, pergunta
por Deus e pelo guês e vitória. –
Nembrando imagens
como Pelágio pintara, o rei prescreve:
– Se o cerco è vão, 310
nòs vamos embora! –
Falava aturdido
e repetindo palavras. Perdera o juízo?
Rigo partiu de manhã cavalgando por ermos,
no siso incerteza. 315
Vindo ao monte recluso,
por onde ao sopé cuidavam dous de verduras,
Rigo saltou do cavalo –
os hortelãos se prostrarom
certos da morte. 320


16




Mas o frião do rei
demanda: – É aqui
que Benedito se encontra?
Eo sou Totila, o Frói, eo quero vê-lo.
Chamai o gau! – 325
Os dous assombrados subirom
mas logo Rigo avistou, que descia moroso,
Bento abrindo seus braços:
– Bem-vindo, Rigo, à nossa morada. –
Como se um raio o fulminasse, 330
o servo do rei surpreso ardeu no seu pranto,
mas escondendo os soluços ouviu Benedito:
– Filhinho, será benvindo qualquer irmão
que visitar nossa escola de Deus! –
O cavaleiro subiu ao cavalo e 335
foi-se embora. Entrou aos gritos na tenda
do godo: – Benedito è bom de verdade!
Os ogos seus pousarom em mim e souberom
meu nome e quem me mandara! –
O rei no mesmo momento 340


17




leixou atrás o resto
subindo ao cavalo. Varou
os campos tristes dando ao Monte Cassino,
passou perante os mortos.
Quando a prima estrela raiava 345
chegou, de longe como olor da terra molhada
subindo ao céu, e pediu: Chamassem o santo.
O qual acedeu, que descia e saudava:
– Ave rei, que buscas? – Um rei de joelhos
beijando-li a mão falou do fundo do peito: 350
– Como foi isto, Bento?
Por que motivo
um homem ilustre e culto
abandonou seu nome?
Por que 355
buscaste abrigo em cavernas
bebendo chuva e comendo terra?
És um santo e punirei
quem te mandou embora de Roma:
Diz o nome apenas! 360


18




Diz quem te fez vagar pelo frio
abandonando a cidade! –
Mas Bento de Núrsia
põe a destra sobre el ombro do godo:
– A vida è constância 365
quando o Cristo guia, fuga não.
Abandonei meu nome
pois o nome nunca existiu, nenhum existe.
Deus
mostrou-mi um rumo maior do que a glória. 370
Non caibo num Fórum
que à vida verdadeira non cabe:
Foi Deus que me mandou embora!
Pois ouvi, entendi, retirei-me à caverna
pelo amor de Roma e de todos. 375
Deus não se impressiona com Roma,
Deus, que è rumo, vida e verdade!
Foi Deus que fundou esta escola
donde a vida humilde pede por quem è grande,
e pede só piedade. – 380


19




Olhos nos olhos, Totila
responde ardente: – Ai de mim, Benedito,
pois herdei um dever lastimoso,
eu, que nasci no reino tranquilo
na paz de Teodorico: 385
Era uma bloma a Itália, Roma era amor!
Por que odiarom tanto o meu povo?
Quero saber de Deus:
A vitória è nossa ou de Justiniano?
Um ano se passou de cerco e de fome. 390
Se Deus mandar embora eo vou,
reúno o meu povo e busco guês.
Mas Deus desdisse dos godos
depois de tanta guerra e sofrimento? –
O santo mostrando o céu emergiu: 395
– O futuro a Deus pertence.
Talvez a vitória venha a ser de teu povo,
mas ah, filhinho,
como è breve o ganho do mundo:
Vitória e verdade se excluem. – 400


20




Isto e muito mais el homem santo lis disse.
E um rei angustiado cavalgou pelo bosque
junto a Rigo et outros.
Não sabia, nembrando a grave sentença,
se Bento falava da sorte ingrata de todos 405
ou predizia a ruína.


ε

Veio a pé da Calábria gritando por dias inteiros
um home atravessando a terra, arfando cansado:
– Rei! A piëdade que rogo è somente a da morte,
sim, ordena ao soldado que desonrou minha filha 410
crave fundo esta faca forte aqui no meu crânio.
Olha, senhor, o mundo nem me ensinou a falar:
A vida minh’è leite de vaca e vagar em cidade
onde Deur me ajuda e vou vendendo e viveno.
Era tão bonito quando a menina era alegre. 415
Nunca fez um mal a ninguém, coitada que era,
só tocava em teta de vaca e cuidava de bode.
Dia e noite ela orava e preparava a comida,
tinha tristeza em minha vida não, soberano,
minha filha pensava mais em mim que na lida, 420


21




eu, que vou ficando fraco e ficando caduco.
Ai, meu Deus, chegou de repente aquele soldado,
dei-li o gado inteiro e comida e leite e dinheiro
não li bastou, Totila! A minha filha gritava
feita louca implorando em vão mar nada ajudava. 425
Maltratou demais a menina, desdisse de Deus!
Ela agora corre e grita e non sabe o que fala
nem reconhece pai nem mãe, sò fica chorano.
Isto nè vida não. Se alguma cura eo soubesse
dava dinheiro mas ali, senhor, non se cura. 430
Já que Deus non teve de nós piedade nem graça
vim morrer. Senão, eo vou viver de que jeito?
Era ela o sustento meu e da mãe perturbada
nem justiça ajeita mais uma vida quebrada:
Mata logo quem non tem nimigalha de nada! – 435
Dito isto prostrou-se como curvado de cãibras
mas Totila estendeu-li a mão, o rei ao caído,
contendo como podia as impressões desregradas:
– Tem a bondade, ancião, de revelandi o nome
desse soldado. – Feito assim Totila alterou-se:
– Prendam! Tu porém, senhor, descansa por hoje e 440


22




logo discutiremo-lo termo da morte que imploras. –
Mas aos soldados o rei ordenou li dessem abrigo,
pão e remédio: Fosse provudo bem e de tudo!
Quando aos conselheiros houve chegado o caso,
pela manhã demandarom transtornados Totila: 445
– Este werreiro, rei, è forte herói de batalhas!
Veio do peso da sua lança, tremendo projétil e
míssil que como nulhome arremessa, nossa vitória
contra Nápoles: Veio de graça ofertar a vida!
Quando a morte era certa, cercado nunca fugia 450
nem se viu nos éus valência maior entre godos;
antes corria enquanto a multidão de aliados
debandava em retirada escondendo-se em selvas,
todo a sós, al ombro a lança contra milhares
guer sem medo. Perdeu respeito à morte lutando. 455
Pois o corpo carrega inteiro marcas de guerra
como um troféu de sacrifício por nossas ansas!
Não baixar ja-quando o viço dum tringo soldado:
Que pensavem ao verem preso, punido ou caído
raro exemplo, monumento à coragem de guerra? 460


23




Toda guerra è feia, froia! Os crimes da carne
forom preço, nel ato extremo, de várias vitórias.
Algo de compaixão lo bom guerreiro merece,
doutro modo o gueso gótico nosso se perde e
vai-se embora na sua gorisa a massa dos bravos. 465
Já se passarom tantos anos de morte na Itália,
Gus dos céus, e cada dia se assoma incerteza
pelas mentes. Não fragades a guena menor e
foco de fé que nos resta ainda: Tempo è verdugo.
Eiþan, cá conclama o bom conselho dos rainos: 470
Seja solto, pelo amor da anguisa dos godos,
seja solto um tringo a quem se deve a vitória! –
Mas Totila responde: – Perdestes vossa memória?
Ik, estoas, selara acordo de paz com Bizâncio
pronto a render o forte e gumas meus de Treviso 475
quando viestes suplicando ofertar-mi a coroa.
Fôramos lá deixados por Vítice, o rei dos vis
covarde abandonando as arma durante a batalha.
Fora morto o meu tio Idibaldo, Deus o tenha,
mas a vós pareceu prudente crer no impossível! 480


24




Ora, desde o primeiro dia roguei mi dissésseis
contra quem imperava prosseguir esse flol.
Contra quem lutamos, godos, quem combatemos? –
Eles porém perplexos retrucarom de súbito:
– Contra Justiniano, Tótila, e contra Bizâncio. 485
Como não, se veio deles a guerra e ganância? –
Isto dito, o rei concatena: – Não mi rogastes,
goias, a luta contra romanos, contra inimigos
sim jurei guiar o meu povo, rei dos romanos
como dos godos. – Soldados recebendo o sinal 490
trouxerom adentro o genitor duma vida sem honra:
– Diz um gueso, ancião – Totila assim começa –
tinha a menina alguma relação com Bizâncio? –
Mas o velho assustou-se: – Tinha como, Totila?
Nunca saiu de casa. – O rei porém continua: 495
– U nasceu? – O velho disse: – Lá na Calábria. –
Nisto Totila apontando os conselheiros unidos
pede ao pai: – Explica por piedade aos juízes
qual a vida que tua filha levava em gardo. –
Mas o senhor ouvindo clara a palavra juízes 500


25




teve medo e deformado por lágrimas trouxe:
– Só tocava em teta de vaca e cuidava de bode. –
Foi levado afora por onde esperava aturdido,
Totila dentro falando aos anciãos temerosos:
– Fui traído, godos, foi punida a inocência! 505
Era aquele o soldado mais valente dos nossos,
ele que arremessou coa mão lo exército ao chão?
Foi de fato o mais covarde dos hômino aquele
que tanta força usou e contra a vida sem erro! –
Quando o guerreiro teve compareçudo na corte, 510
vendo junto ao rei lo conselho, o pai da menina,
pôs a verdade: – Rei, o crime meu è sem cura. –
Totila retruca: – Cão! Algum soldado dos nossos
foi mandar unires-te sujo à nossa cohorte?
Ƕa? Por que pagaste em guisa tão grotesca 515
tanto de guena depositado em ti pelo povo?
Para quê lo arbel de tantos gestos heroicos?
Não leixei passar um único dia em batalhas
sem avisando ao are que não tocasse castos
nem ferisse inocentes. U passavas, werreiro? 520


26




Éramos vinte mil gadrãos no início da guerra
mas gana e presunções e gestos feios minarom
nossa força: Homens como tu, vergonhoso!
Raça melhor requer um rei de escasso recurso
quando a salvação de seu povo exige a vitória. – 525
Mas o guerreiro sem medo agora calava-se,
vendo que nem defensores seus se alegravam,
antes balançavam baixa a cabeça confusos,
inda buscando pela mente fraca argumento.
Disse-lis pois o rei: – O pai daquela menina, 530
já sabeis a graça que veio rogar de seu froia?
Veio pedir, estoas, a própria morte somente!
Que toer? Mostrave al idoso gor e minado
que neste reino a morte vale mais do que a vida?
Ou foi ufão maior mostrar por alguma atitude 535
que neste fréu alguma coisa fagra è possível? –
Entra entonce o velho trato adentro na corte
donde Totila olhando os olhos seus explicou-se:
– Tenho torturado a mente em vão ruminando
como posso perante meu Deus, juiz de juízes, 540


27




dar-te a mortem que firmemente pedes e imploras.
Diz algum dos crimes que perpetraste na vida,
dá-mi ajuda, ancião, porquanto rem encontrei.
Antes pesei na mente os atos teus e palavras
e como pude as comparei com juízes. Andante! 545
Quanto mais a tua boca articula as palavras
mais se evidencia a mim que tou nome è justiça.
Como manchar de morte a vida que veio de longe
greta e caminhando por léguas a pé destemuda,
trazendo al erto apenas confiança em Totila? 550
Desta corte o tringo vai-se embora com vida! –
Mas o velho não se leixou levar por palavras:
– Rei generoso, è mais amarga a minha verdade.
Tudo acabou: Levaro meu gado, leite, dinheiro.
Todo dia eo busco um lugar de andar pelo mundo 555
mas no mundo acabou lugar ca meu gado acabou.
Sei viver sem rumo não, eo quero um descanso
e peço morte è para estar chus perto de Deus. –
Isto dito Totila estendeu la mão que calasse!
Junge-li o rei: – A tua morte non posso te dar 560


28




mas posso dar justiça e dom maior do que a morte.
Para que tou pedido non fique em tudo incompleto
dar-te-ei de fato uma morte, a morte del ímpio
ser que anamantou la menina. E dou-te um ordem:
Leva contigo o gado, o leite, l’escau, lo remédio, 565
leva el ouro que o rei te daremos e trata a menina,
trata como se fosse dodra dum rei que a protege
nem reclames: Maior justiça somente a de Gus! –
Totila, pois, ordenando a morte dum pravo soldado
deu los seus haveres todos, pilhagem de guerra 570
ao pai, que retornava embora aos braços da filha
rico rezando a todos que encontrava na estrada
quão bondoso li fora o rei Totila dos godos.


ζ

Na mesma noite aparecerom quatro
soldados bizantinos. Eram remotos 575
da Isáuria, pois lugares ermos proviam
a tropa de combatentes. Quando Tótila
os recebeu indagando o que ali buscavam,
os guardas apavorados se ajoelharom
trazendo: – A gentchi venh’aqui li falá 580


29




da partchi dji Bessas mandô a gentchi não.
Sinhô, até daqui si consegui iscutá
gemidu i som dji todu jeitu i sufridu
qui mermu surdu ôvi. Inda tem gentchi
im Roma guentanu gemê na fomi, è milagri 585
mermu du infernu! Maz ua coisè verdadji:
Vali nada essi Bessas guardanu cumida
du povu, coisa qui nenh’è deli, è du povu:
pedaçu dji grão i carni lá da Sicilha.
U qui eli gostè dji cachorrada, Totila. 590
Semana passada li iscreveu Belisáriu:
Tomi vergonha na cara, so trastchi infeliz,
e dê dji cumê au povu. I Bessas s’importa?
Ficô foi ricu dji tantu vendê pa quem pódi
pagá, ou melhó, pudjia: Djinhêr acabô. 595
Agora mi diga: Issè serviçu dji gentchi?
Até soudadu passanu fomi! Dji noitchi
u coru comi qui è bebedera i mulhé
i dança i só festança i lambança na torri.
Mar fora, meu Deur, dà dó djimair dji vê 600


30




morrê mininu i velhu feitu cachorru:
È coisa du cão! – O rei porém produziu:
– Por várias vezes, soldados, propus a paz
e a fome, como se vê, è culpa de Bessas.
Esse tipo de gueso no’existe entre godos, 605
quem veio viu. Que Bessas se renda e logo!
Comigo non cumpre falar, e sim com ele! –
Mas um dos quatro irrompeu desordenado:
– Nem quiu demôniu mi lev’eo falu cum Bessas,
gentchi rũi, qui si dependê dum cachorru 610
feit’aqueli Roma si acaba dji fomi i
aaave Maria. – Forom pois revelando-li
o plano: – A troca da guard’o sei a ora
quó é. Eu, i us treis aqui, cumeçamu
dji madrugad’u nossu turnu, u restu 615
durminu. Pelu amor dji Deus, soberanu,
entri dji veis im Roma, acabi cũ issu!
Nòis abri u portão laterau da muralha,
a trop’inter’invadji i termin’u suplíciu,
promessa nossa. Sò queru sabê ua coisa, 620


31




sinhô: Si nóis abrí u portão-là pa godu,
será qui godu dexa a gentchi vivê? –
Totila foi tomado como dum raio e
faísca nos olhos, concedendo exaltado:
– Ah, soldados, se for verdade a promessa 625
não somente vivêieis mas ricos sereis
e tereis de mim uma recompensa tremenda. –
Mostrava-lis pois o baú repleto de joias,
deliciosas as prendas de prata e d’ouro
e pedras delicadas, pulseiras, correntes. 630
Erguendo uma recatada presilha dourada
na forma e na tez duma borboleta luzente,
el-rei lis disse: – Vale mais duma vida! –
Choravam quase em comoção los soldados
nembrando as toscas ocas donde saíram 635
pelos ermos da Isáuria – eles, coitados,
que só buscavam pão de início, dinheiro,
leixado atrás em regiões desgraçadas
família grande na espera e mães e meninas.
Totila marcasse a data e logo abririam 640


32




as portas da velha Roma ao rei dos godos –
e quis-cada-quem encontraria ao final
lo paraíso seu, dinheiro out império.
Mas o rei confabulando nos bosques
com Rigo, lo tringo amigo, rogava aviso 645
e falava baixo: – Será verdade a promessa?
Sõ espiões mandados por Bessas, não?
È bom demais para ser verdade, meu caro. –
Mas Rigo ponderava em silêncio perplexo,
o queixo caindo. Vez et outra mirava 650
adoidadamente as folhas dum árvore antigo,
entusiasmado na sua incerteza, e por fim
devolvia: – Melhor atender, melhor estudar
e ver porque gente simples non sabe mentir.
Investiga bem issaí porque gente da Isáuria, 655
rei, dali non sai mentira. Os soldados
o quanto dizem pode esser emboscada,
sei, mas não parece. Totila, investiga
logo issaí que parece vitória, è verdade. –
Na mesmo instante forom mandados às pressas 660


33




dous ou três ou quatro a rondar a muralha
de madrugada e compravar os relatos.
Nisto porém a notícia do plano iminente
chegou a Bessas: Veio da boca dum bom
soldado e fiel guerreiro de Belisário. 665
Sim, Belisário sim amava e buscava
a salvação de Roma, contudo esperava
em Portus vendo o resto da Itália rendudo,
o comandante calado e de mãos abanando.
Quem não sabia da glória de Belisário, 670
quem não temia o grande general de Bizâncio
que destruíra os vândalos? Era o maior dos
guerreiros! Bessas não: ouviu la notícia
no meio da noite embriagado, nos braços
da sua puta e no toque da cítara grega. 675
Ouviu, bebeu, sorriu e nem sem importou:
Houve sim responso ao bravo informante
que a flecha forte dos hômino seus bastava
contra godo qualquer. No mesmo momento
quatro soldados transbordantes angústia 680


34




buscavam Totila: – Pel’amor dji Jesuis,
sinhô, qui demor’è essa? Si Bessas soubé
dalgua coisa a gentchi morri linchadu.
O quer’è quium raiu cai na mha cabeça i
mi matchi agora nafrendji tuquè gentchi 685
si fô mintchir’u c’o tô djizenu, qui Roma
tá qui implora invasão ’sa cidadji dji Roma,
sò faltè querê! – Totila enviava espiões,
e nesses lances de medo e tanta incerteza
o monarca buscava profundamente aprehenso 690
de novo a tenda de Rigo: – Talvez Benedito
preveire, gaiúca, a grandiosa vitoriam!
Reza, amigo, roga que Deus se apiede
da nossa gente, a glória seja a verdade
e não tropeço e não começo de morte. – 695
Quando ouvirom que já seguiam a Portus,
donde Belisário intentava o resgate,
muitos outros soldados, o peito na boca
querendo avisar o quanto antes o plano
ao comandante, aqueles quatro isáuricos 700


35




forom aos godos cavalgando e tremendo:
– É agora ou nunca! – Ouvindo e pesando
os detalhes, Totila incerto e lívido incede,
a Rigo e poucos outros dos próximos seus,
que fossem ver de si mesmos no meio da noite 705
o estado da rês. Em poucas horas voltarom
e disse-li Rigo medês: – Tudo em silêncio,
a guarda dorme e ronca e sonha tranquila. –
Deu-se assim que um rei, arfando exaltado,
mandasse a quatro soldados: – Podem abrir 710
as portas de Roma! Podem abrir a cidade! –


η

Quand’o aluvião de tropas entrou na cidade
Bessas e os seus soldados debandarom na hora.
Pela porta oposta e desordenados, perplexos
cães leixavam pelo chão escudos e lanças, 715
pois um medo feral cambaleava a coragem.
Eles contudo fugirom duma fuga ligeira:
Quem não conseguia fugir era sim o povo
pelas ruas, na sarjeta, na vala cons mortos.
Que visão e triste sina aguardava Totila e 720


36




quantos corpos apodrecendo à beira do Tibre:
Só sobravam quinhentas vidas naquela cidade.
Quem podia correr corria, no seu desespero,
rumo àlguma igreja de abrigo e não se enganava:
Era um ódio tremendo depois de meses em duro 725
cerco et anos florescendo no peito dos godos,
era de pouco efeito o sermão dum rei moderado.
Home assistia a lança atravessando os corpos
pelas costas no meio da rua. As vidas idosas
iam caindo e lamentando o que não mereciam. 730
Cada templo de Roma era um formigueiro de aflitos
dividindo a fome, os gritos e o medo do mundo.
Não havia plebeus e patrícios, e sim romanos
terrivelmente irmãos. Os senadores de agora
vinham batendo de porta em porta pedindo comida, 735
concorrendo com cães e moscas na caça por carne.
Uma coisa, parece, Totila ensinou aos soldados
pois que houverom trata os tempestuosos lanceiros
Rusticiana, que for’a esposa do antigo Boécio:
– Essa mulher do demônio pagou pra destruírem 740


37




a estátua de Teodorico! Pois prendemo a cadela!
Froi, a vadia nem precisa morrer de verdade,
basta nós usar como quer, nòs acaba com ela. –
Mas a refém mirava o chão e negav’a palavra,
ela cuja dor, relatavam, matara de pena 745
Teodorico, sim, num pesar desgostoso da vida.
Inda nembravam como outrora o rei da paz,
depois de trinta anos aclamado por todos,
fora imprudente em breve e desgraçado instante.
Dando ouvido à língua duma invejosa mentira 750
veio a crer que Boécio, homem de prece e poemas
cuja causa era um pobre povo, tramav’o assassínio.
Antes que algum apelo forte pudesse movê-lo
forom mortos Boécio com Símaco, pai et esposo
dela que agora ali se calava perante Totila. 755
Mas o rei da paz percebera tarde o seu erro:
Era em vão que perdia a noite inundado de pranto,
era em vão correr feito louco berrando orações.
Nem o perdão que requisera da esposa contrito
nem o perdão de Deus li bastava, antes sonhava: 760


38




Via Boécio derramando seus olhos no claustro
e tendo às mãos a cabeça decepada e sangrando.
Essa visão do inocente seguiu lo rei da paz
na aurora e tarde da noite não havia sossego:
Meses depois, Teodorico enfermou-se e morreu. 765
Mas também a matrona passara os últimos anos
presa dum pranto imorredouro e porém ajudando,
como outrora o marido, infortunados de Roma.
Tótila entanto manda: – Fique em paz a mulher! –
Mas o clamor maior se ouviu de manhã nos famintos 770
quando o monarca, tendo Roma inteira renduda,
veio rezar e agradecer a Deo por tremenda e
grandiosa vitória, dentro da igreja de Pedro.
Ora, la igreja de Pedro amanhecera lotada,
era uma densa massa o mar buscando refúgio: 775
Desde a madrugada as mães escondendo menores
atrás de bancos gemiam baixo cobrindo o rosto.
Eram muitos que ali andavam dum lado ad outro,
eram muitos chorando os seus desaparecidos.
Outros ficavam deitados num canto escuro calados 780


39




vendo a cruz e sem nenhuma esperança e consolo.
Quando Totila pôs os pés adentro da igreja
rumo al altar, o povo em desespero irrompeu.
Era uma gama de ajoelhados rogando clemência
como crianças balbuciando num pranto agitado, 785
como quem nunca tivesse sentido o gosto do mundo.
Criam que o rei entrara para mandá-los embora
já que fora do templo a ponta da espada aguardava.
Veio contudo um distinto vulto de encontro a si,
curvado e carregando uma bíblia. Era Pelágio: 790
– Pelo amor de Deus, piedade dos destitutos!
O pobre povo abandonado de tudo em Roma
fez o quê para merecer – pero não prosseguia
pois as suas palavras afogavam-se n’alma.
Mas Totila li acede: – Sai do chão, infeliz, 795
agora! Eu devia è brecar a tua cara de infame,
eu devia mandar cortar-te a língua, falsário!
Quando me houveste visto fiz oferta de paz
e generoso acordo: O testemunho da vida
prova quem eo sou e quanto fiz pelo povo 800


40




não dos godos, mais até por gente de Roma.
Ende rem impressiona as ambições de Bizâncio!
Tens a memória curta, cão! – Pelágio contudo
recomposto um pouco sussurra: – A minha ambição
de mundo, meu senhor, è pão pra Roma somente! 805
Eu que servia Bizâncio sejo agora tou servo e
servo apenas teu: Ordena de mim o que queres e
minha vida è tua. El única prenda que imploro,
rei, è compaixão por estes que nada fizerom!
Tem paixão de nós estora que Roma se rende: 810
Ordena por Deus aos invasôribos teus caridade
pois aqui se congregam não inimigos: escravos! –
Totila foi erguendo Pelágio et outros do chão e
proferiu aos seus leixar em paz moribundos,
mas voltou adrentro invocando: – Para, Pelágio, 815
suportei ofensas demais por esta paróquia.
Não mi venhas dizer perante o povo que è minha
culpa a devastação desta terra. Quero justiça!
Quero falar aos senadores no Forum Romano! –
Forom rebandados às pressas caindo aos pedaços 820


41




homens velhos e anamantados de fome farrapos.
Já também lo povo se aglomerava no Forum
para ver o que o rei diria e quanto ouviria.
Mas aqueles idosos de outrora império, calados,
forom despidos per ordem do rei perante o povo, 825
para que dessem nus o testemunho da inglória:
– Raça infeliz – Totila acena –, desde o começo
tenho mandado apelos desesperados e cartas.
Não entendo donde vieire a vossa descrença e
vou buscando em vão resposta e me desiludo. 830
Que de mal no mundo Teodorico vos fez,
senhor que dava à plebe pão e mão amistosa?
Era um protetor do Senado e do povo da Itália,
ele amava mais a Roma que a própria gente.
Inda dileto em toda parte, ele nunca interveio, 835
antes vos dava a cada dia mais liberdade.
Mas que paga feia dades ao rei valeroso!
Muitos forom privados para dar ao Senado
nova glória, pero que efêmera como vemos.
Mas i se vê lo princípio que move o destino. 840


42




Ele, que tudo fez, se pedisse algum favor
de vós seria rem comparado ao que dera e
deu de graça, pois è tal la guisa dos godos.
Eu, de minha parte, pedi que abrísseis a porta
para que o bem de Teodorico aqui prosseguisse! 845
Quis evitar o caso gor em que agora vos vejo
mas foi tudo ilusão, foi tudo incauto juízo! –
Inda boquiaberto, o rei mirava os fantasmas:
Ossos encolhudos no frio perdiam olhares
pelo chão enquanto a gente tapava os olhos. 850
Mas Totila em novo acesso incluía-lis inda:
– Er dizede perante a sombra de Teodorico
de qual bondade Justiniano usou per Itália,
homo que nem aqui nasceu! Peleja por Roma
como se Roma fora seu berço, mas eu vosso rei 855
è nado na terra e na mesma terra cá me criei!
Não cheguei nem vim de alhures como soldados
gregos e os persas e constantinopolitanos,
mercenários sem causa e de toda causa paga!
Não saí por aí corrompendo no mundo inteiro 860


43




jovens para lutarem comigo, nem combatemos
como aqueles no amor dalgum passado de ufão:
Nós lutamos è pela própria vida dos nossos,
vida que um homem decidiu arruinar sem remorso.
Quero ouvir um bem que lo Imperador vos confira 865
fora a guerr’e a demolição de tantas cidades.
Neste ardor de passado e de brio foi retomada
já dos vândalos toda a costa d’África e Líbia:
Deus dos céus, acabou-se l’África e Justiniano
cada dia aument’o imposto, arruína as ruínas! 870
Pois quereis que faça o mesmo da Itália? Fará! –
Mas nenhum senador aduz e Totila antefere
frente ao For’os quatro combatentes de Isáuria:
– Pois, romanos, doravante serão senadores
estes quatro, estes sim los amigos do povo! 875
Eles abrirom as portas para o fim da miséria!
Não julgarom bons os guerreiros de Justiniano
servos de tão ingrata gestão e fazenda de guerras. –
Como foi amargo desta vegada o silêncio
mentre Totila mirava aqueles homens nos olhos. 880


44




Mas ergueu la voz por eles um vulto singelo:
– Poupa, Tótila, tanta vehemência verboro
contra quem mostrou lealdade e ficou na cidade.
Não convém insultar um moribundo arruinado
quando a fome fez calar a verdade no ventre! 885
Qual das tuas cartas alcançou senadores?
Eram todas retentas pela guarda de Bessas
ora que o bom Senado não dispõe de recursos.
Qual dos nus que vituperas foi responsável
pelas tropas de Belisário, por armas alheias? 890
Pois non foi o Senado que as foi chamar a Roma!
Pois non foi Senado nem Povo que foi consultado!
Tanto nõ eram de Roma que nem lutarom por Roma,
saírom correndo co general e sous provimentos.
Estes que increpas sim, poderiam ter debandado 895
mas melhor pareceu ficar conosco e servir-te!
Portanto não maltrates quem te implora tutela,
pois ficarom por confiança e não covardia! –
Foi talvez no efeito desse apelo que o godo
mandou vestir do frio los macerados aspectos 900


45




mas intermitiu a Pelágio: – És o meu servo
como dizes? Ouvi direito o termo no templo?
Mas Pelágio, Roma quer a guerra ou lo guerso? –
Roma decerto queria paz e Totila arremata:
– Boca de Roma, tu que dantes iste falar-me 905
agora irás falar a Constantinopla por Roma! –
Houve tremor e convulsão perante os caídos
quando a nova circulou pelas ruas: Pelágio
fique conosco! Totila entretanto não concedeu.
Na mesma noite forom acertados às pressas 910
termos de paz: – Em tuas mãos – o rei avisa –
jaz o destino de Roma. – E não havia demora.
Zarparia a nave em breve et era de império
quanto antes retornar ca lo rei esperava.
Mas uma grave ameaça fora escrita e com ódio 915
na carta al Imperador: Se não bastare a derrota,
caso a guerra prossiga um pior evento virá:
Roma será deleta no fogo e na ponta da espada,
mortos os senadores, províncias serão arrasadas.
Tendo em mãos a missiva Pelágio zarpa apressado e 920
pelas ruas atrás vislumbrava um povo alarmado,
antecipando juntos o fim duma eterna cidade.


Totila






B





θ

Em torno do fogo um pequeno coro de godos
cantava serenas canções, os vitoriosos
soldados sorvendo em libações de alegria 925
as notas e um gole, doce, do vinho de mel.
Os ânimos ébrios, entrevendo a muralha
envolta no inverno lunar, alçavam o cálice,
bebendo e dedicando as bênçãos ao froia.
Se vinha à mente uma gor lembrança do dia, 930
consolo quem trazia mesmo era o fogo.
De gole em gole rolavam mais histórias
ali, ao redor da fogueira, e fatos heroicos.
Mas era um guerreiro em particular que buscavam,
um provedor de façanhas que os ébrios mandarom 935
trazer e trouxerom: – Ruderico, frijōnd,
a noite è longa! Drigk, fralusts ist slapan.
Conta aí pragente essa história, você
foi como que se salvou? – Um cálice cheio
esvaziava-se, aos poucos, na boca do jovem 940


47




e Ruderico livrava o discurso do peito:
– Ah, rapaz, a flecha entrou pela cara
e foi sair aqui no mei-da bochecha.
No dia seguinte só, sò no fim da batalha
foro ver de verdade. Passei que nem vi, 945
fiquei na briga tipo morto-vivo, Bizâncio
tudo apavorado. A flechona era imensa,
ficou na cara atravessando a cabeça. –
Mostrava as suas deformações elegantes
no rosto e completava: – Só me livrei 950
do pau no que pus sozim pafora e saiu.
Ninguém queria rancar e o povo dizeno
que ali non sobrevive, a carne todinha
rombada, ua dor que dava nem pa tocar.
Olha bem pa mim e mi diz s’o to morto, 955
gente de Deur, to vivè demais: bastou
tocar na flecha e caiu depoide dois dia. –
Mas Vilas, o mestre de lanças, desafiou:
– Eiþan, menino, mostra a seta na cara
como quebreires e como salvaste a cabeça. – 960


48




Do fundo do fogo a gargalhada irrompeu
mas Ruderico abafa os risos, ousando:
– Eo botè na tua cara e se tu quiser
agora, è só falar! – Mas foi impedido:
– Ei, gadraúhtōs! – O jovem Ruderico 965
com seus cabelos ruivos de flama e soltos
ao vento quase longos, os olhos do azul
dum mar revolto, cortara a cabeça dum grego
durante certa batalha e guardava seu crânio
como troféu de guerra, que agora mostrava 970
todo esbelto aos ouvintes. Ergueu a peça
roubada e vinta frente ao brilho que alçava
o teor de seu rosto bronze guerrar, e contudo
um pouco esmaltado de prata ao brilho da lua.
Ergueu lo crânio e derramou, no prenúncio 975
dum ritual, o vinho no cálice amargo
que el osso formava agora. Bebeu a bebida
do artefato sagrad’e assombroso num gole,
sedento de vida e morte, enquanto os outros
o viam lamber deliciosamente elas gotas. 980


49




Dizia a crença: Quem bebesse do crânio
dum seu inimigo sorver-li-ia a corage,
o medês espíritu. Era a vitória cabal,
conquistado o corpo a conquista del alma.
O jovem d’armas tragau num ruído voraz 985
o sopro dum morto outrora dito valente
por entre os camaradas gregos; as almas
de fato sobrevivem depois da desgraça?
Após as reflexões desta vida e da morte,
as canções de antanho soarom pela fogueira 990
e tornada a calma Vilas contou seu caso,
considerando o jovem: – Pois que cresceres
darás valor maior ao amor pelos outros.
Eu, por exemplo, não preciso de crânio
nem me curei de feridas extravagantes, 995
salvei meu povo foi sem alarde e sozinho.
Alguns se esquecero já pero não me importo:
Quando a gente lutou por Verona, lembra,
enquanto aqueles trinta mil de Bizâncio
tudo covarde brigava contra os nossos, 1000


50




de quem restava ali sò Deus e uma pars,
ali no mei-do povo quem tava era eu,
cercado e combatendo patrás e pafrente.
Vinham vinte pracima do cara e montados,
sorte sua se vinha menos de cinco! 1005
Caí, confesso, pensaro c’o tinha morrido
mas non sou disso não, nõ entro no flol
e pego e fujo pra não morrer, Ruderico!
Uma coisa, rapaz, meu fadro ensinou:
“Pode parar coessa história de erguer tua lança 1010
e depoir jogar no chão que nem vagabundo!”
Falou assim! Então non teve negócio
de lança cair mas eu correr, nõ existe:
Caí foi junto, caí mas me alevantei
pa derrubar peão do cavalo e com gosto. 1015
Escanda è fugir porque bonit’è lutar:
Gaiúca, o camerada naquela travada
chegou pa ficar e ficou quem teve corage
até lo fim, e quem caiu levantou-se e
quem morreu foi tringo. Fugiro foi eles, 1020


51




vinte mil crepado e rabo entre as perna,
jogando fora o scud’e a spada, cachorro
buscano canil. Mas Ruderico, menino,
não matei ninguém por caçano cabeça
nem chutei caído. Sperei que se erguessem! 1025
A minha lancè forte e nela eo confio:
a ponta derribou guerreiro e lanceiro
e flecheiro caiu do cavalo coa minha lança.
Aquilali que foi luta e de gente decente!
Nadei na corrente swim quebrando flecha 1030
coas próprias mãos, o rio me levava com tudo
mas eu que levava o rio que non teve conversa
e diabo de rio! Cheguei primeiro e valente,
viero pracima de mim, non quis nem saber,
arremessei foi de riba e botei pra correr. 1035
Foi assim! – Non teve quem não erguesse
o copo pelo ufão invejado daquele
mestre de lanças e dele ninguém maior,
até que aduz um goia: – Mas que queísso,
gente de Deus, è corage e dà nem pa invejar. 1040


52




Home non pode, a pessoa fiquè confusa
ouvino ua coisa dessa! Vou nem li dizer
meu caso, nem se compara c’ua coisa dessa! –
A voz dos ouvintes ébrios contudo insistiu
que a voz de Elerico falasse, portanto entoou: 1045
– Meu caso è nulha rem, nem conta meu caso.
Aconteceu no primeiro cerco de Roma:
Tava eu coa mim espada que è forte
e ganhei de dois que desarmei de repente.
Caíro e se ajoelharo e pediro, imploraro 1050
mas dava dó de ver peão que chorava.
Tav’è eu coa mim espada e pensava:
Mato ou solto? – A boca se esvaziou.
Um certo e sereníssimo olor de hidromel
tornava as palavras mais macias na bruma: 1055
– Leixei viver! Praquê matar desarmado
que já se rendeu? – Mas uma voz interpela:
– Homessa, Elerico, ès insano? Foi-te dada
a vida e deixas viver, frião, que dizes? –
Porém o guerreiro mirando além revelava: 1060


53




– Julgar essa vida è fácil, dific’è justiça.
Ah, leixei, meo amigo, ali me importei
porque juiz de verdade è Deus: perdoei...
Bonito era antigamente a vida sem guerra,
aí quera vida, ik friyoda Rumanan meina, 1065
iþ afar háifst fraláus ik friaþwa meina.
O coração decide ua rem mas a sina
non deixa a pessoa não, a pessoa, coitada,
tem que viver sem saber o que aconteceu,
se ainda existe, se vive aquela menina 1070
queu amo. – Sorriu dum tristoroso suspiro
enquanto o silêncio testemunhava respeito.
Seguiam na madrugada os casos e o brio
de poemas amenos num monumento perdido:
O vento levava embora a língua dos godos 1075
além dos muros de Roma e da mão do futuro.
O vento de fato è destruïdor de desígnios
nem se importa com nossas rodas de fogo.
O vento sopra, apaga e desfaz àmizade:
Quando se houverom ereitos os cameradas 1080


54




buscando lenha, no meio do bosque um gemer
abafado e desesperado subiu dos infernos.
Um homem prostrado, um macerado, um faminto
ergueu los olhos do chão. Era um romano
e veio de Vilas a mágoa quando indagou: 1085
– Pedacim de pão por aí? – O cão vislumbrava
contudo e perdia el ânimo junto coa voz.
O mestre lanceiro Vilas avisa ad amigos:
– Carece muito essome e vou-li buscar
algum pedaço. – Mas Ruderico interveio: 1090
– Diabo de pão! Cachorrè cachorro, bandido
tem que morrer! – Vociferando estendeu
la espada, separando os passos de Vilas
e a roda de cinzas, confundindo o guerreiro:
– Queísso, barno, que foi que o mendigo fez? – 1095
Vilas demand’e o jovem retruca: – Nasceu!
Perdi parente meu por ca-de romano! –
O froi ordenara clemência de todo soldado,
portanto Vilas num gesto grave e ligeiro
tomou às mãos a própria espada, antepondo: 1100


55




– És um grande atrevido! Para com isto!
Baixa a tua espada ou verás de meu ódio! –
Mas Ruderico em transações embalantes
rugiu como um louco: – Nim þana haíru! –
Vilas desbrava ouvindo o grito de guerra: 1105
– Recebo ordens do Froia: pão para os pobres! –
O sopro mal terminara as palavras e a luta
abriu-se viva, repentina entre as armas.
Voavam os velhos caçadores de sangue
pelos céus e farejadeiros de morte. 1110
Abaixo os gumes afiados cravavam
lâmina em lâmina e fulminantes rajadas
causavam tremor. Mas ai, a inveja do acaso
joga os sous dados na tirania do arbítrio,
destino desconhece a justiça e l'honor. 1115
Um gesto falso bastou, um momento fugaz,
e Vilas viu descer a espada dum outro
contra o próprio pulso: Um raio de ódio
caiu e dissociou a mão de seu braço!
Às pressas forom apartados, tarde 1120


56




demais, enquanto os cameradas choravam
pela morte iminente de Vilas, em sangue,
e pela de Ruderico, já condenado
do rei o réu de libações assassinas.


ι

Longe na sua barca, Pelágio 1125
aumentava em vão o tamanho do mar:
– Quanta mágоa, Deus, e quanta angústia
vai consumindo o meu peito e mi pesa
mais do que o mar e vai me engolindo
como um túmulo. Eo vou embora de Roma 1130
nesta nave e na verdade busco o navio
que me levasse embora è do mundo.
Eo fico olhando esse céu estrelado
como um tolo e vou errando em mim mesmo
e perguntando mais e sabendo e conhecendo 1135
menos. Mas que mundo è este?
Desde cedo eo sabia,
desde cedo eo fui buscando um caminho
longe de império, tormento, ilusão.
Desde jovem eo já ouvia 1140


57




como è tudo arruinado, tudo
que era forte e bonito arruinado.
Por trás da cor a sombra das coisas
era maior e mais verdadeira.
Eu passava pelas ruas de Roma e pelas 1145
estradas da Itália e nos traços
dos homens e das paisagens castigadas,
ai de mim, eo percebia bem que ruína
e que mundo sem futuro os pés andavam.
Eo vou fazer o quê dessa vida? 1150
Era todo mundo indembora,
ninguém sabia aonde, e quem diria!
Roma è velha. Mesmo com Teodorico,
aquelome bom que era generoso,
as pedras rudes de toda ruela 1155
já diziam que Roma acabou,
morreu, dali non sai futuro.
Recordo as almas da minha infância
de gente desencantada e sem ambição
porque não tem amanhã. A que ponto chegamos. 1160


58




Meu pai, graças a Deus, não viu
o que Roma virou e deixou de virar:
Teve sorte.
Quando meu pai era forte as estátuas
e as casas contavam histórias, 1165
era viva a lembrança, era doce.
Mas do lado da pedra estava a poeira
desde então e junto a sombra.
Que destino! Nasci na morte
dum tempo, nasci sem razão. 1170
Ninguém levanta não a cidade do chão,
acabou, meus filhos, ali se acabou.
Eo vejo os pobres na ermida
e andando entre o povo nas ruas
eo queria gritar no topo monumentoro 1175
como no altar das minhas lágrimas:
– Vai-te embora, sai,
sai pelo mundo afora, povo perdido,
Roma desaba sobre a tua cabeça! –
Só muito amor de nem sei o quê retém 1180


59




um homem naquele encontro de ratos.
Eu pensava até que o serviço de Deus
seria uma vida mais grata e feliz,
pero não, coitado e condenado de mim:
Fortuna arrasa o ser em qualquer posição 1185
e nem servindo a Deus o esser è seguro.
Em que vaga de perdimento me encontro,
eu, que quanto mais fugia a ruína
de Roma a ruína de Roma seguia
e vem comigo na terra e no inferno? 1190
Ó, Senhor, eo preferia mil vezes
o trato rude no extremo do mundo,
os homens sem cultura e fortunados.
Mas não, busquei a barca de Cristo
e as mãos dos homens vão me jogando 1195
polo mundo e me vejo no meio do mundo,
eu, que queria rezar no meu canto
longe de tanta sombra sem mundo.
Eo perco o fôlego e falo e me afogo:
Se ao menos aqui no peito eo soubesse, 1200


60




lá no fundo, que o dono das gentes,
o caro amigo que vou encontrar
pudesse ouvir e ver o impossível!
Mas non pode não, minha gente,
gente de dentro de mim, 1205
a pessoa non viu o que Roma virou,
e quando foi que palavra
tocou el alma dum homem tão distante
em nome só dum banquete de ratos?
Ah, non tem metáfora não, ali non tem 1210
poema não porque pedra non sabe ler.
Eu queria è desaprender a pensar,
subir dessa nave nas asas dum ícaro
e me perder pelo mar e pelos céus
sair voand’a um lugar de menos guerra, 1215
fome e menos ódio, mesmo que fosse
a caverna de Bento Coitado,
levar comigo um punhado de vento
e caminhar sozinho pela terra inteira
rezando pela estrada e desaparecendo. 1220


61




Mas não, issaí n’existe não,
o negóc’è viver sem saber praquê,
jogado pra lá e pra cá numa nau
que me leva às portas de Constantinopla,
lá pro palácio delicado da púrpura, 1225
lá pro sólio dum home assoberbado,
dono de Roma e que nunca viu
o lugar que governa, è issaí.
Mas não, no fundo è bom, ver praquê?
Que diferença faz mastigador de carniça? 1230
Ei lacerada existência, ei perdimento.
Era Roma o começo do mundo. –
Pelágio inclinando a cabeça
mirava, sentindo o frio das nuvens,
na superfície undar espelhos 1235
incertos, fitando o líquido brilho
como se desvendasse, da treva,
verdade no embalo do abismo.


κ

Quando porém Pelágio aporta em Constantinopla
pondo os pés no paço do Império, u do sólio 1240


62




Justiniano recebe os enviados e os grandes
(como li reza o protocolo col ordem do dia),
vai correndo levar ao Imperador a novi-
dade do rei, sous dedos tremulando coa carta.
Mas o dono do Império acena ao guarda doríforo 1245
e num segundo os hipaspistas, levando consigo
para fora os legados e os súditos, deixam vazio
l’átrio das audiências. Justiniano se apressa:
– Fala, caro, vejo que um caso urgente te move.
Que se passat e que mi diz Belisário da Itália? – 1250
Foi-li explicando os acontecimentos recentes
tão marcante e tão profundamente que o rosto
como o cetro quase que empaleciam no sólio.
Antes porém que o mensageiro de Roma entregasse
a carta Justiniano estende a destra impedindo: 1255
– É do rei? Non quero nem saber do que trata!
Rasga! Diz ao vil que a Belisário compete,
pois assim o quero, fazer a paz como a guerra.
Ele decida, pois o Imperador que procuram
não discutimus guerra e paz com usurpadôribos. 1260


63




Já podemus voltar portanto al ordem do diei. –
Mas Pelágio, antes que Justiniano acenasse
para os doríforos reabrirem as portas, orando
como podia mostra a missiva: – Honrai, Senhor,
o diadema d’ouro que ilustra o crânio do justo, 1265
esse que tendes! Pelo amor de Deus e de Roma
tende bondade e lede as ameaças dum godo!
Vim rogando ao céu durante a longa jornada
pelo mar que mi desse a letra e verbo correto:
Roma se acaba, Roma è como um túmulo aberto! 1270
A fome castiga os inocentes, os párias padecem
pelo frio mas apenas começa a nossa desgraça:
Pois Totila avisou, perante o povo cansado e
frente aos senadôribos: Roma será destruída e
posta ao chão se não bastar o termo do acordo! 1275
Venho cá na condição de escravo implorar-vos,
sim, que enfim me fiz escravo do rei e refém:
Basta um gesto e Roma inteira se perde no fogo. –
Justiniano lendo a carta pondera e reclama:
– Mas Totila non tem l’autoridade do Império! 1280


64




São de pouco valor essas ameaças fingidas.
Todo-los monumentos, os muros e os templos,
casas de Romae restituídas erem, prometo,
cada pedra recolocada ao lugar de origem. –
Nisto l’outro estende a mão suada interpondo: 1285
– As pedras sim, mas e las vidas? Que mão rëergue
tantas almas devastadas do chão que as acaba? –
Mas o Imperador reverbera: – A vida est amara,
vir, e não me tortures demais! Erat o início,
era o primeiro mês do meu governo somente 1290
e já chegavam cartas e apelos de Roma e godos.
Não me venhas dizer que tenho rem, o que seja,
contra um povo que apenas protejo da tirania
e como não? Esqueceste aquela tristem mulher
e filha de Teodorico, Amalasunta, a regente? 1295
Não mi implorava socorro a vida reta e valente?
Dês que o pai morrera foi leixada e guiava
Roma e seus godos já que Atalarico, o menino,
era herdeiro menor de idade. Foi perseguida,
Pelágio, foi condenada desde o primeiro momento! 1300


65




Nunca ouvi falar em mais intrigas e ofensas
contra uma vida tão desinteressada e pacata:
Esto, meu caro, pois queria fazer do seu filho
rei decentem, vida amiga da nossa bandeira
como dantes Teodorico a serviço do Império. 1305
Que fazer, indago, quando uma vida sem erro
como essa se lança a tous pés rogando socorro?
Ela perdeut o filho ca foi corrupto por vérmibos
como por homens torpes: Embriagado de morbo
não resistiu lo doente e despediu-se do mundo. 1310
Ela cedeu, Pelágio, contra os nossos apelos
o próprio trono: Quis salvar apenas a vida!
Ela escreveut as cartas mais penosas quas li,
die e noite implorando a proteção de Bizâncio.
Ela morreu! Assassinada per ordem daquele 1315
Teodato que as suas mãos puseram ao trono!
Era um próximo! Aprisionou-a pois numa ilha
e contra os meus apelos et ameaças solenes
ordenou de soldados a trucidassem na jaula.
Não bastou! Negou até la morte o seu crimen 1320


66




contra muitas provas et evidências patentes.
Ela, coitada, teria leixado embora a cidadem
vindo pôr-se ao pé de Bizâncio donde um retiro
calmo e generoso aguardava. E ali morreria.
Não li foi permitido inofensivo silêncio? 1325
Contra um ato inglório levantei mias armas
nem descanso até que os impostores se rendam.
Luto per Roma de outrora e per Amalasunta:
Saiam da Itália pois ou sejam nossos súditos! –
Vendo a fúria fulminar dos olhos do augusto 1330
Pelágio todavia devolve num gesto agitado:
– Deus dos Céus, se è Teodato a causa de tudo,
nisto existe consenso universal e concórdia:
Nem os godos duvidam, Dômine, que Teodato
foi lo autor da fealdade maior deste século! 1335
Mas o crápula foi degolado no meio da estrada
quando fugia para esconder do mundo a vergonha!
Ele morreu, o inferno è testemunha do alívio!
Nem se compara a Totila, Tótila è rei generoso:
Pois ergueu do chão Rusticiana e romanos! 1340


67




Mas que dizer ao rei generoso quando reúne
todo-los senadores e o povo de Roma no Forum
orando: “Que maldade fiz, ingratos, ao povo?”
Ora, as bocas dos oradores então se calarom
frente ao rei ca frente ao rei calarom audazes. 1345
Mas a resposta decerto somente Justiniano
sabe e somente a vossa boca prova e conhece:
Pois uma tal pergunta transtornada e pungente
Totila dirigia menos aos pobres que a Vós! –
O Imperador, a mão cobrindo a testa suada, 1350
fala baixo al outro, quase tocando seu ombro:
– Est um caso de fato raro, ingrato e funesto.
Já se evidenciat às ruas o brio de Totilae.
Mas direi, Pelágio, todo o mal que tem feito.
Veio das suas próprias mãos a proposta de paz: 1355
Pois que outrora Vítice houve rendudo Ravena
veio depois Totila, por carta, propondo render
as arma, os homens e a fortaleza sua em Treviso.
Pois! A pedido seu aceitaumus propensos à calma:
fora já marcada a data da entrega das armas! 1360


68




Mas agora pergunto: Que fazer, meu querido,
quando em toda Constantinopla irrompe um rumor
anunciando Totila o novíssimo rei dos godos?
Já li bastou dum pouco d’ouro e coroa de vis
e lá se foit infame revigorando os rancores? 1365
Não me acuses! Deus è testemunha do acordo:
Quantas vezes depus de bõa fé mias armas?
Eu queria crer em Totila letra por letra
mas non posso: Fui iludido, fui enganado!
Quantas cartas recebi recitando promessas? 1370
Não jurou Teodato que Amalasunta vivia?
Fui traído muitas vezes por muitos governos
mas, Pelágio, a confiança co tempo se acaba.
Não me comovem mais correspondências extensas
pois non sou palhaço, sou o Dono das Gentes: 1375
Quero pois, está decidido, que saiam da Itália! –
Lívida a boca de Roma transtornada recorda:
– Algo de alívio, Dom, è necessário dizer-lis
para acalmar os godos como o povo sem rumo. –
Justiniano li assere: – Digam toda a verdadem: 1380


69




Cabe a Belisário nossa campanha de Itália!
Já podemus voltar portanto al ordem do diei:
Há questões iminentes da santa Igreja tratandas! –
Ainda falava lo Imperador pero l’outro entrevia
como um fastasma Roma devorada por flamas. 1385


λ

Mas aproximou-se do rei lo guerreiro
Vilas, el homem sem mão, a lança caída:
– Durante dias, andei perdido por ermos
jurando a Gus e a Ruderico vingança.
Por onde meu corpo se arrastava doído 1390
o movimento tranformava-se em bloa.
Era um rio que jorrava, um mar infinito
levando embora o brio, valor de meu éu.
Caí, senhor, às aƕas dalguma corrente,
sem força de alevantando, presa del ódio, 1395
e quanto mais eo maldizia o destino,
o nome inufo de Ruderico e de infames,
mais o sangue fugia de dentro de mim,
mais aquele rio et as pedras e o guês
bebiam a minha vida, o vaso brecado. 1400


70




Não me recordo como colhi memórias
abandonado perante as portas do inferno.
Mas percebi, por algum recurso divino,
descendo no escuro pela escada da morte:
A mão tirana que me empurrava abaixo 1405
nõ era el ero maldito de Ruderico,
era meo ódio que propulsava o sangue
e derramava ao fréu afora uma vida.
Desde aquele momento e remorso, portanto,
retive a derradeira gota que havia. 1410
E derribando um peso mortal de meu erto
jurei de novo ao doador de destinos:
Dá-mi tão somente um pedaço de vida
e leixarei de mim, a meu rei e meu povo,
o testemunho dum coração sem rancor. 1415
Venho pedindo, desde então, armel
pela vida errada dum jovem sem pai.
Andei pela estrada refletindo meu rumo:
Deixa o barno viver comigo, Totila,
quero consumar esta minha promessa. 1420


71




Eu guiarei Ruderico, eo ero seu froia!
O povo inteiro em pouco tempo verá
do exemplo dum firme, valoroso na lança
como no flol escão gestor de vitórias. –
Contudo, um rei estupefato mirava 1425
quem os que amigos acreditavam morto.
Viera como um raio a notícia dos guardas,
de Vilas ferido, moribundo e perdudo.
Totila passara sete noites sem sono
vagando pelo escuro em recintos vazios. 1430
Ruderico detento em fuga e rendudo
sperava na jaul’a espada pena de morte,
o corpo ferido por toda espécie d’armas.
O rei, porém, imagens mistas na mente,
fitand’o ar tenebroso induz a Vilas: 1435
– Handus swinþista wast alláize gadraúhte,
eras el alma dum povo e blingarom tou viço.
È cada coisa que mi aparece, meu caro!
O gesto daquele covarde te converteu
à mesma covardia e pretendes amá-lo? 1440


72




Aqui non tem isso não, non quero conversa:
Mandei matar, mandei! Auleaste, infeliz?
Além de perder a mão perdeste a cabeça?
A mão que esse desgraçado cortou foi a minha!
O céu conhece o tamanho do meu coração. 1445
Perante o sofrimento dum home inocente
jamais hesitei: Estendi minha mão, perdoei.
Eo sou assim, do cavalo eu desço, eo amparo,
eo ouço confissões, eo pondero argumentos.
Agora dó de bandido e rebelde sem causa, 1450
Vilas, aí non dá, non cabe em meu peito.
Esse cara è do tipo que chuta caídos,
educação ali non corrige, acreditem!
Mandei averiguar como é quem vivia:
Vivia sem eira nem beira, negava comida 1455
a quem pedia, dava porrada em mulher
e vilipendiava cadáver coas armas!
O estilo era esse, Vilas, sai dessa vida!
Ali non tinha mãe nem pai e nem brodo.
Olha pra minha cara e mi diz se merece 1460


73




viver quem bate em pobre, caído e ferido!
Suão de Vilas algoz de mendigos? Me poupem! –
A palavras exaustas somavam-se gestos
e o rei arfava, pois ainda que fosse
possível perdoar Ruderico da morte 1465
seria um gesto de impunidade soltá-lo,
um exemplo mau aos jovens, vinta a virtude.
Mas Vilas não se abala, insiste e recria:
– Eu afianço a minha vida à promessa:
Se o filho meu cometer um gesto ingreto 1470
pode matar os dois, morrerei com gosto! –
Tótila enfim desiludido e surpreso
mandou trazerem Ruderico ao recinto
donde anunciou, na frente de Vilas:
– O crime teu, menino, não se auleia 1475
mas tua pena de morte será postergada.
Afiançarom a vida por tua conduta:
Mas Ruderico, non reconheces tou fadro? –
Assim mostrando o vulto de Vilas atrás,
Totila viu lo susto no rosto do jovem 1480


74




ora prostrado, a rouca voz soluçando
enquanto o novo pai tocava-li a fronte.


μ

Fora apareceu do nada uma sombra apressada
pedindo ver o rei, misterioso o seu vulto.
Foi com certo esforço que os cavaleiros godos 1485
enfim reconhecerom aquele aspecto assombrado:
Era Pelágio que demandava, um’alma penada!
Vinha dar a notícia de Justianiano a Totila
mas Totila entendeu na hora e foi concluindo:
Esse Justiniano era mesmo um homo sem honra! 1490
Mal se importara em ler (a dedução era óbvia)
o apelo e julgara o remetente um rei sem promessa.
Pois o rei cerrou sous punhos num gesto irascível,
foi secando el ódio dos olhos, dizendo a Pelágio:
– Esse Império Romano não se importa com Roma? 1495
Abre mão das construções, da paz e das vidas? –
Como tomado num riso atarantado e de asco
não se conformou, falou perdendo o juízo:
– Pois se Roma non vale porra nenhuma ao Império
pode botar pra quebrar, acaba de vez coesse lixo! – 1500


75




Não assentia o desrespeito à sua embaixada e
já cumpria gustar melhor o sabor da vitória!
Assim pensou, e firme perante os emissários
Totila sem mais demora e vacilo pronunciou:
– Quero que seja destruída a cidade de Roma! – 1505
Foi o rei falar e os incendiários chegarom
para embebedar as pedras de combustível:
Era em vão os abandonados correndo gritarem.
É difícil lembrar aquela cena: Totila
não queria repetir a história de Nero 1510
que incendiou e depois mandou apagarem.
Era questão de honor arrasar os edifícios,
pôr um fim pra ninguém reconstruir a desgraça.
Cada gradrão carregou seu martelo pesado
prenhe de morte e destruïção, violento o sinal. 1515
Fora selada a sorte da capital dos leões:
– Roma acabou, daqui pafrente è pasto de gado!
Pega aquela pedra ali, apaga essa história,
manda o boi pisar pa nulhome ver que existiu! –
Quando o fogo irrompeu das antiquíssimas casas, 1520


76




quando ao trom do martelo cambalearom pilastras
veio a massa às ruas, erguendo os olhos ao céu
por onde as flamas altas anunciav’a verdade.
Cada soldado era só entrar por tudo-què-lado
confiscando o que quer que fosse ninguém defendia. 1525
Não surtiro efeito os senadores em pranto:
Não, o que se ouvia era o crepitar e tremores,
sons de escudos, espadas abafavam clamores.
Era inútil buscar apelo, non tinha clemência,
era um rei que perdera a paciência e mandava. 1530
Era maior do mundo o grito rouco de Roma
mas o mundo ensurdecera esquecido de Roma.
Muita gente de madrugada chamou sem resposta
o nome do Imperador, l’angustiada esperança
via pelo fogo o vulto de algozes bradando: 1535
– Pode sair agora, quero romano aqui não!
Sai, vagabundo, sai, se não sair nòs te mata! –
Mas além da voz que chicoteava a cidade
o fogo mandava seus desobedientes embora.
É, non era fácil ver uma casa de toda 1540


77




a vida desabar na martelada e no incêndio,
gente parava e se perguntava se era verdade.
Certo que era, a cidade estava se esvaziando!
Mas ouviro contar que no meio daquele inferno
quando Totila dormia, do nada vieire do alto 1545
o clarão, a caravana alada dos cem cavaleiros.
Eram luminosos heróis em quadriga ligeira
que descendendo surprehendero Tótila. O rei
foi levado na carruage de roda de vento
rumo ao Forum donde um vulto escuro atendia. 1550
Quando os dois se virom a sós, o rei estendeu
a mão, o pária debruçado perante uma estátua.
Mas o outro se ajoelhou e buscando sous olhos
rogava ao godo: – Respeita Roma, apaga este fogo! –
Camanha dor entristeceu a Totila, pedindo: 1555
– Sai do chão, responde, fala: Como te chamas? –
Mas o pária chorando sangue mostra-li um busto
em cujo rosto o rei reconhece Teodorico!
Súbito um raio fulmina e despedaça esse busto
quando Totila acorda imóvel sentindo o trovão: 1560


78




O medo congelara os membros e a força do grito.
Entra Rigo no mesmo instante, transtornado,
corre como vedor de fantasmas prorrompendo:
– Tem andando um vulto atrás de mim sem cabeça
e vem correndo e me perseguindo a noite inteira. 1565
Era que nem um sonho, meu frião, no Forum:
Vinha vagano e carregando a própria cabeça
fora do corpo, Jesus, choramingano comigo!
Eu mandava sair pero o vulto parava e dizia:
Pede po rei, meu amigo, piedade de Roma. 1570
Vegada et outra descia um anjo querendo levar
mas ele recusava, ele mostrava o fogo nas casas.
Eu andava adiante mas ele sentava-se perto:
Pede ao rei, meu querido, piedade de Roma.
Quanto mais eo olhava o seu olhar arrasado 1575
mais eo via a multidão dos mil que seguia.
Eu queria fugir pero estendia-mi as mãos
e balançava a cabeça agoniado e manhava:
Pede ao rei, meu amigo, piedade por Roma.
Ave, que aluvião sem guês pedino socorro! 1580


79




Mas vi de repente a transfiguração duma alma:
Quando o vulto se diluiu num estranho vapor
uma chuva amena, meu Deus, como um sol radiante
cobriu os sofredores e a voz do céu ressoou:
Filhos de Roma, Boécio permanece entre vós. – 1585
Totila vai ruminando a intervenção do sonho:
Que queísso? Buscava resposta nos olhos de Rigo
mas o frião perdera a fala e Totila sugere:
– I buscar o cavalo, vamos a Monte Cassino!
Bento decifra sonho, Bento sabe a verdade. – 1590
É que ninguém avisara o que sucedera com Bento:
Certa noite, ele alevantou sous braços em prece,
tão bonito de ver, e caiu sem vida entre os seus.
É, meu amigo, a morte n’avisa o seu dia não.
Mas Totila non quis saber, o plano era o plano, 1595
que conversa e nada e visão e sonho e balela!
Inda faltava è destruir a muralha odiada,
pôr de vez no chão porque só travava os ataques.
Já soava mesmo o bater do martelo no muro
mentre o fogo passava atravessando vielas. 1600


80




Irom minando primeiro os bastiões importantes
lá da margem do Tibre e perfurando crateras.
Inda estava exposta a passagem que derrubaram,
isto, aquela que Pedro protegera do assalto:
Pois dissero assim, na campanha de Belisário 1605
quase o muro todo caiu mas nulhome invadiu
que a mão de Pedro impediu, deixou soldado não.
Ogano andavam longe Pedro e Bento e Boécio,
por longe andavam Teodorico e Justiniano.
Ogano passav’os retirantes em tiras extensas 1610
e pés senadoro e de párias unidos sem rumo.
Pois quem teve juízo não pensou duas vezes,
foi embora às pressas e não se adirom sozinhos:
Levarom consigo os fracos e deserdados embora
e pouco antes da aurora Roma estava deserta. 1615
Mas dos fugientes que se adentravam ad ermos
teve um que foi corajoso e voltou patrás.


ν

Entrou a sós pelo fogo o romano sem nome,
lançando seu corpo gasto aos pés duma estátua.
Godo quando assistiu ficou foi confuso 1620


81




e foi pegando as arma e caçando esse intruso –
mas ponderando a morte, iminente o perigo,
miravam desnorteados um gesto inaudito.
Era tamanho o descabimento do estranho
mendigo, lançado ao monumento em fogo, 1625
que mesmo osores se apiedavam da cena.
Ué, diziam, se o cara perdeu o juízo
alguém se prontifique, ajude, encaminhe!
E não faltavam mãos e atitudes valentes
de gente pronta e desafiando os calores. 1630
Ali non podia perder nem tempo, o romano
junto coa státua stavam cercardos por flamas,
os prédios prestes a sucumbir: complicado!
Pois se lançarom, desrespeitando os temores
pela vida própria e prestando socorro: 1635
– Inda dà tempo, bora coa gente, romano! –
Mas qual non foi, Jesus amado, a surpresa
pois aquele estranho que a tropa ajudava
houve erguida a voz, lamentando del alto:
– Daqui non saio, daqui ninguém me tira, 1640


82




a minha vida taqui nesse monumento! –
Falava assim, abatido, mostrava o mármore
enquanto os godos retrucavam pracima:
– Rapaz, você è louco? O cara oferece
ajuda e tu manda embora? Olha esse fogo! – 1645
Mas el home sem nome num ato de angústia
e confusão e desespero responde-lis:
– Nem que um raio me parta eo saio daqui! –
Aí que se convenceu de vez todo mundo,
só podia ser louco. Nisso os soldados 1650
até que argumentavam, por dó do romano:
– Explica aí então por quê quessa estátua
merece tanto, è tão importante essa estátua? –
Mas o romão tomando de fôlego assere:
– Ah, nè só por estátua não, meu amigo, 1655
voltei por causa dessa, a maior que existiu! –
O nervosismo aumentav’e o medo da morte
aguçav’a impaciência de quem perguntava:
– Mas è sua essa estátua? Deixa esse troço! –
Pois o romano se endoideceu, que gritou, 1660


83




rugiu, chorou, insistiu, se agitou, explicou:
– Isto aqui est um monumento da história,
esta estátua veio dos braços de Fídias! –
Narrou detalhadamente, do meio do fogo,
a vida dum grande escultor, exemplo sem par. 1665
Mas nem por isto os godos se contentavam:
– Pode parar, popará, poparacsaí!
Que palhaçada è essa, jà era esta estátua! –
El outro non quer saber de conversa e rebate:
– Éste l’alma de Roma que quero salvar! 1670
Escuta aqui, você tá nervoso, soldado?
É porque non foi sua a família que amou
e se abraçou a ela: os meus tavaqui,
seu pai, seu avô tavalá na casa da porra!
Então non se meta e respeite o sofrimento 1675
dosôto: a minha vida, ói, se eo quisesse
salvar psisava de ajuda não. Minha vida
taqui com ela e se ela cai caio junto,
cê tem o quê com isso? Então pelamor
de Deus me deixe em paz! Você já ganhou, 1680


84




o mundo è seu, olha Roma aí o que virou!
Pode levar, levembora esse agora que è seu,
eo quero è meu passado e do povo que è meu! –
Decerto eles godos inda não se esqueceram
de quanto amor separa pedras e estátuas, 1685
ca sol as pedras enxergarão nas estátuas
pedras apenas, apenas o amor monumento.
Mentre o calor e o nervosismo cresciam
non tinha argumento ali, era inútil tentar.
Num ato extremo contudo decidirom movê-lo 1690
embora à força, e sob ameaças de lanças
buscavam pôr as mãos num homem sem nome.
Mas o romano, apagando o fogo com pranto
e protegendo co próprio corpo a scultura,
rugia contra as mãos de socorro e de ataque: 1695
– Pode atacar, seu covarde, pode matar!
Se for pa viver sem mha státua psá vivenão! –
Os soldados iam se retirando às pressas
visto que a morte era pronta e se aproximava.
Os gritos de salvação e paz mesclavam-se 1700


85




aos impropérios, as preces a indagações,
mas o incêndio interrompeu los diálogos:
Num lance alucinado e veloz, o romano
tentou remover o monumento de Fídias
e carregar embora o tempo nas costas. 1705
Só que as pilastras do edifício defronte
vierom abaixo, soterrando as histórias
e o destemor da vida no escombro do agora.
Caírom juntos o homem e a obra de Fídias,
despedaçados quis-cada-quem a seu modo. 1710


ξ

Pela manhã la correspondência de Belisário
veio às mãos de Totila. Estava escrito no apelo:
“Rei de Roma, trata melhor a cidade que è tua.
Não condiz um gesto agitado coa palma da mão
que tantas vezes sem rancor estendeste a caídos. 1715
Não se passa um dia sem que ouçamos atentos
como retribuis o pai da mulher desonrada,
como salvas da morte pequenos e poupas o fraco.
O nome teu se espalha pelas plagas da Itália
como doador de consolo, um farol de esperança. 1720


86




Mas, Totila, explica, por atenção aos amigos,
como entender o que se tem passado por Roma.
Donde apareceu este novo rumor tam maldoso
contra ti que a tua ira incendeia a cidade?
Esse tipo de coisa abate os bons que te prezam. 1725
Roma è tão generosa et abriga tantas famílias,
Roma tem uma história tam longa e tão venerada.
Pensa melhor. Se fores o vencedor desta guerra,
queres despedaçada a capital do teu reino?
Caso tu percas, queres ser um mau perdedor? 1730
Quão distintamente o tou nome será relembrado,
rei, se mesmo perdendo tiveres salva a cidade
mãe de mundo. Meu amigo, essa coisa de incêndio
não condiz com quem verdadeiramente tu és.
A Itália te ama et espera pela tua grandeza.” 1735
Fora de fato acordado pela voz de Pelágio
junto a mendigos e senadores no meio da noite.
Mas o general de Bizâncio, passando vertigens,
pôde apenas pedir que lo atendessem um pouco
mentre o pensamento concatenava as palavras. 1740


87




Ah, quem visse aquele ali, naquele momento,
nem acreditava em quantas glórias e guerras
ele alcançara, ali era um sem igual Belisário.
Fora o mentor de campanhas vertiginosas na Pérsia.
Fora o gestor duma reconquista inaudita em Cartago 1745
quando triunfara contra o reino dos vândalos.
Ele nem sabia direito em que porto aportar!
Pois chegou de manhã, e de noite jà tinha vencido:
Comeu do jantar que estava pronto pro rei inimigo.
Cônsul de Roma, desembarcou na Sicília e tomou. 1750
Foi à Calábria, entrou vitorioso em Campânia,
teve Nápoles, teve Roma e Ravena e Florença.
Era um homem prezado em continentes diversos,
tanto que até depois da primeira guerra dos godos
mesmo os godos dissero “vem, vem ser nosso rei!” 1755
Mas o destino inveja quando a pessoa è perfeita,
não, non tem condições. Justiniano entendeu
e não gostou daquilo, era perigosa essa fama.
Tinha que pôr Belisário meio prafora, inativo,
mas o povo que è povo amava era Belisário, 1760


88




não, n’adiantava não esconder Belisário.
Só que Justiniano fez o quê? Percebendo
tudo chegou com “ô, meu querido, dá uma passada
lá na Itália, resolve ali pra mim essa história
com godo e Tótila, vai” e Belisário, contente, 1765
foi, mas chegou non tinha soldado, aí complicou
bastante, o Imperador tipo “ah, qualquèóra eu te mando”
e tudo mais, o estilo era esse, era esse o problema.
Lá varava então pela Itália feito um fastasma,
por terra e mar um colecionador de desgostos 1770
mentre godo dizia “isso è que è rei de verdade!”
Era aceitar. Ali non tinha debate, era claro:
O plano era desmoralizar Belisário completo,
ele acabado, implorando piedade a Totila.
Mas Totila ponderando o seu gesto extremo 1775
leu e releu durante horas o apelo da carta.
Era de fato um caso desesperado e perdudo
para Bizâncio. Mas quando Rigo leu a missiva
pronto irrompeu, falando pelo próprio peito:
– Gus non quer que seja destruída a cidade! 1780


89




Pelo amor deste povo, Tótila, toma u’atitude!
Que sinais ainda atendes da terra e do céu?
As almas transtornadas de Teodorico e Boécio
vagam de noite e de dia os inocentes lamentam.
Já se bandam vivos e mortos, o grito è sincero: 1785
Para, Totila, a covardia ofende as estátuas,
tem romano morrendo no meio do fogo por elas.
Isso n’é bonito não e non pode existir
ua coisa dessa, não, apaga logo este incêndio! –
Totila tomou lo amigo pelo braço e li trouxe: 1790
– Rigo, trahirei las mias palavras de guerra?
Olha esse filho da puta em Bizâncio, propus a paz,
o cara non quer saber, o cara quer que se foda! –
Rigo redobra: – E godo quer saber de cachorro?
Godo è gente, Totila, e tem que agir quenem gente. 1795
Quem abandona o povo desse jeito è cachorro
filho da puta. Tem que punir mas não quem è gente,
tem que punir, Totila, cachorro e filho da puta. –
Ah, Totila non suportava mais essa história,
triste, cansado e desgostoso. Cedeu numa coisa: 1800


90




– Pode conter, apagar de vez esse fogo de Roma,
deixa em paz os monumentos, as pedras, o tempo.
Para de usar o martelo desmembrando a muralha,
jà foi obliterado o seu poder estratégico!
Mas escuta e manda o povo escutar: A cidade 1805
vai ficar deserta a partir de agora, deserta!
Pode punir quem puser o pé no que resta de Roma!
Roma acabou, romano eo levo embora comigo,
pobre e senador, quem quer que seja que venha! –
Forom consigo nem cessaro sofrendo na estrada 1810
até la Campânia, por onde se permitiu moradia,
é, mas n’era bom não tentar fugir escondido.


ο

Quem buscav’a fuga da inglória e milagres
era Belisário conjunto a falanges
de desesperançosos que pouco alçavam: 1815
Durante meses Roma esteve deserta
enquanto o General, ancorado no porto
e sem reforço, mirava em vão direções
por onde encadear ataques certeiros
em certa brecha et ousadores intentos. 1820


91




Mas onde quer que zarpasse ao horizonte
olhava o mundo e sabia: O mundo era godo.
Os montes escondiam fortes armados,
as armas eram fortes, subiant aos montes:
Cada estrada ocultava la sua emboscada, 1825
cercada de espadas e tempestade de lanças.
Por pouco eles retiveram Portus, sozinha
no meio da noite: Era pequena el única
célula ainda de resistência por milhas.
Cada movimento adentrando a paisagem 1830
longe do mar expunha Portus ao cerco.
Muita vegada um passeio breve bastou
e norte e sul se revigoravam os godos
em violenta vergasta, donos do ensejo.
No cerco a morte era certa, a fuga impossível, 1835
e mais: quem podia ajudar passava longe,
estava cansado e maltratado e distante
toda uma eternidade no leste e n’oeste –
desolador o cenário às margens do Pó
e desencantadora a guarda em Ravena, 1840


92




pior ainda a situação na Calábria.
A causa de Belisário estava perdida,
non tinha como alcançá-las portas de Roma.
Mas Belisário na impaciência dos dias
não se conformava coa mão do destino, 1845
antes tapava os olhos coas próprias mãos
repudiando o veredito e visão da verdade.
Pois rebelou-se! Reunindo os soldados,
ergueu a voz e pronunciou lo seu brado:
– Escuta aqui, quem quiser salvar uma vida 1850
covarde e desonrosa, pode s’embora!
Eu porém seguirei coas minhas armas
a Roma, por Deus! E seguirei de repente
e contra o titubeio me impera marchar! –
Houve alarme dentre impávidos homens 1855
ca Belisário non tinha essomem falar
que nem por falar e só pra encher a boca,
ali n’existia a pessoa falou descumpriu,
ali o estilo era outro: então se assustarom!
Era um gesto impensado, aventura de vidas! 1860


93




Atordoados, ouviant os planos e o risco
rogando em vão explicações e cautela,
sabendo só que uma nova luta retinha
Totila alhur. Todavia, senhores da terra
como eram, ninguém garantia passagem 1865
segura pela estrada e caminho de Roma:
Era caso de sorte, destino ou de Deus.
O general maior non concede e prossegue:
– Guerreiros, não me deslocaro de longe
no rumo de Roma para salvar-me medês 1870
mas pela salvação de Roma e da Itália,
nem aceitei um dever maior do que a vida
para julgar mia vida maior que o dever.
El home poderoso e gestor de vitória
non dependeu de ocasião favorável, 1875
meninos, para alçar o nome que tenho.
No meio da luta non venho com “ah, bora ver,
se for pra ganhar eo fico, se for pa perder
eo corro tipo cachorro,” tem isso aquinão;
combato è com valentia nem fujo nem temo 1880


94




e quero cair com valor se o destino è cair.
Portanto nòs marcharemos juntos a Roma e
lutemos como quem faz o seu próprio destino! –
Assim falout e assim se fez a jornada:
Pois houvero desperto na auror’os soldados 1885
pronto forom tomando os escudos e espadas,
futuros troféis ou testemunhos da audácia.
Destemudos da morte abraçavam-se amigos
qual del último abraço, jurando promessas
de lealdade eterna e recíproco auxílio. 1890
Enfileirarom-se pela marcha e marcharom
homens sem esperança de vida e sem medo!
Os despreventos soldados godos sozinhos
eram rendudos, aprisionados ou mortos.
O arqueiro impedia a fuga de audazes 1895
trânsitos pela flecha e caindo no campo.
A lança lançou ao chão inimigos de longe
e quem escapou pereceu na ponta da espada.
Nos flancos cavalaria forte avançava
impressionando incautos como o perito. 1900


95




Ao fim do dia surgiu la cidade fantasma
coberta de musgo e grama, largada a ruína.
Quem nos tempos de César Augusto e Trajano
pintasse aquela imagem do Forum Romano,
ousasse profetizar uma astrosa verdade! 1905
Ogano entretanto nenhuma visão de abandono
lis parecia impossível, infinda a derrota.
Exaustos num sentimento de amor e de morte,
alívio na reconquista de Roma e tristeza,
os homens amparavam-se cheios de angústia, 1910
os olhos confusos. Mas Belisário, na mágoa
de percebendo o pesar estampado nos rostos
como agora enxergassem o quanto o descaso
das tropas regulares custara à cidade;
vencendo a comoção Belisário lis prega: 1915
– I se vê, romanos, a nossa desgraça
e cá mirai-lo preço do vosso vacilo
et anos de hesitação, a coragem incerta.
Mas se algum iluso de vós presumeire
que já bastava a reconquista de Roma 1920


96




para a nossa mãe retomar o seu brilho,
engana-se: Não vos enganeis, combatentes!
É trabalho demais e sem trégua trabalho
que as vossas mãos ainda têm pela frente!
Os monumentos que a mão hostil derribou 1925
a mão amiga alevanta e restaura as ruínas,
devolve à pátria o brio, a vida, a vitória.
Reconquistar o passado è metade da meta
ca cumpre agora reter, defendê-la cidade:
Vamos tomar aos ombros as pedras de Roma 1930
e reerguer, no cimento de tanta aflição,
a lida, a muralha, o monumento dum povo! –
Assim orou, e tomando a primeira pedra
a recolocou aos pés da muralha sem base.
Sem dormindo aqueles soldados lançarom-se 1935
a Roma perdendo a noite e ganhando firmeza.
Mas não se arriscarom sozinhos: Pela manhã,
quando a nova das tropas se teve espalhada,
correu de volta à cidade um povo plangente
turvando de longe a nitidez do horizonte. 1940


97




Leixaram para trás os negócios que havia
e sem promessa de pão, de teto e de vida
pisarom ele chão que o rei prohibira
e terra que em vida já non creram pisar.
Jurarom, carregando o peso dos sonhos, 1945
jamais abandonar a morada e morrer
se preciso fosse, mas cair coas ruínas
trabalhadores rudes e nobres sem nome
mas não sem um sentimento raro no peito.
Quando Tótila ouviu da vitória das tropas, 1950
cercado de ansiëdade e combates acerbos,
leixou de lado a luta e subiut ao cavalo
zarpando inopinadamente, assombrado,
acompanhado do grosso do exército godo
e guerreiros acostumados a todo cenário. 1955
E qual non foi lo sobressalto de Roma
quando se ouviu la cavalaria de longe
gritante maldições, impropérios irados.
No terremoto que fez tremer os intrépidos
tinha agravante: Que as portas de Roma 1960


98




ainda non foram repostas, lacunas abertas
no meio dum muro reergudo de súbito.
Gritos dos invasores eram mesclados
ao desespero ofegante correndo nas ruas:
Romanos que poucas horas antes plantavam 1965
grãos pelas praças prevenindo escassez,
perdiam novamente a esperança e fitavam
l’horizonte hostil, a muralha indefesa
ca manifesto estava: Fora preciso
obrar de dias pra terminar os portões! 1970
Soava naquelas mentes sinal de chacina
e jovens e velhos fabulando sem nexo
sentavam-se pelo chão esperando o martírio.
Mas Belisário conclamando sous homens,
selecionando os mais audazes a dedo 1975
mandou: – Seremos nós as portas de Roma!
Provade, honrados, de qual cimento se fez
o portão de vossos braços chave da vida.
Sabei uma coisa apenas: Se o braço cair
cairá co vosso braço la história dum povo. 1980


99




Usai com gosto o vosso impávido escudo
porquanto muitos de vós ende erguerão
aqui pel última vez, e não os lanceis
ao chão sem antes leixardes pelo chão
a própria vida testemunhando quem sois! 1985
Pensai nas mãos que se calejarom caladas
para vestir broquéis às portas de Roma!
Pensai na angustiada esperança deposta
por estes caídos em vós e apenas em vós
porque vos digo, filhos, se não lutardes 1990
pelo povo honesto atrás destes muros
como se fossem vossos pais e famílias,
leixai las armas antes mesmo da luta
e poupai da vergonha nossa grande batalha:
Guerreiros mais credores desta vitória 1995
dividirão elor sangue amargo conosco! –
O ataque irrompeu interrompendo junções.
Totila contudo em seu avanço exaltado
mirou surpreso a ressurreição da muralha
e de escudos humanos que ali se puseram 2000


100




desrespeitando as ameaças da morte.
Acumalavam-se corpos de nome indistinto
perante os muros: Sob assalto incessante
lanceiros cercados derrubavam cavalos,
escudos repelindo a clava dos godos. 2005
Trocavam turno os combatentes nas portas
aliviando feridos, mantendo esperanças
e os novos braços avançavam na linha
spada contra espada, broquéis de bravura.
Muita vez um soldado caiu atingido 2010
e prevendo mortem deslocou-se, calado,
para que o corpo derrotado na história
não perturbasse o pelejar dum amigo.
A imagem do fim, despojo inadequado
tomando espaço à virtude, não molestasse 2015
um sacrifício maior que a vida exige:
a morte oculta, não porém sem memória.
Mas outros num movimento mais embalante
lançarom-se repentinos contra inimigos,
e enquanto os invasores alçavam a lança 2020


101




tremenda e míssil derrubador de gigantes
a espada atravessava rasgando as entranhas,
tolhendo o golpe. Forom vistos valentes
de Belisário tendo um braço arrancado
enquanto l’outro arremessava uma clava 2025
certeira contra a cabeça dum desprovudo.
Os semimortos no chão perfurav’os cavalos
e os corredores incautos caíam atônitos.
Do céu desciam vorazes corvos e abutres
e disputando a carne coas águias lutavam 2030
a guerra dentro da guerra, ébrias de sangue.
Quando porém lo arqueiro subiut os muros
mirando facilmente a flecha à vontade,
Vilas, o professor maior dos lanceiros
tomando a Ruderico seu filho adotivo 2035
correu a Totila. O dia inteiro passara
e já caíra a noite nas portas de Roma.
O rei, depois de recultos os combatentes
no mar de feridos ouviu la palavra de Vilas
que não insista no ataque! Os corajosos 2040


102




merecedores de morte mais proveitosa
seriam presa fácil no campo de flechas.
Fosse pois evitado um cenário penoso
e triste desperdício de vida e de povos.
Totila como um surdo manteve a campanha 2045
e lo sol assitiut o segundo diem de sangue.
Mas Roma não se abalara! Um novo utensílio
de guerra, durante a noite os soldados cravaram
estrepes na terr’e agudas pontas brilhavam
em torno dos muros como engenho de quedas. 2050
Ai do cavalo que cavalgasse emboscadas
pois cavalgarom colecionando desastres!
O godo lançado ao chão coa flecha no peito
fechava os olhos fitando o céu sem resposta.
Ainda assim lo rigor dum olhar cuidadoso 2055
muita vez enxergou Ruderico, o zeloso,
versado o braço derrubando os arqueiros.
Vilas notando agora o brio de seu filho
notava também Totila ciente do fato.
A morte contudo acumulava os seus ganhos 2060


103




transformando o campo de guerra em planalto.
De noite Rigo, o guarda do rei, se aproxima:
Era melhor escutar o conselho de Vilas!
Totila se encoleriza e não se impressiona,
trompeta de praga e percussor de impropérios 2065
berrando a perda de Roma. Inopinado
nasceu lo raciocínio do ataque frontal,
e rompendo a luz de mais um diei desdito
Totila lançou los godos às portas de Roma.
Mas às portas de Roma o soldado esperava 2070
mais valente de nunca e tropas impávidas
ora que a resistência, a força braçor
em repelindo revigorava os escudos
e a sorte das armas aumentava o moral.
O rei dos godos percebendo os vigores 2075
mudou la meta e concentrou los soldados
quase todos aos pés dum única porta,
decerto presa fácil com menos escudos.
E flutuavam num mar espadar e de lanças,
cavalos e clavas intimidando os ferozes. 2080


104




Contudo o destino provou correto o conselho
de Vilas como depois a palavra de Rigo
porquanto um fato ominoso se deu de repente:
Num lance agitado veio ao chão co cavalo
o grande porta-bandeira do rei, atingido 2085
ao mesmo tempo por flecha e lança: Morreu.
Quando enfim circulou pelas tropas a nova
que el estandarte do rei, a briosa bandeira
caíra ao chão pisada por patas equéstribos,
lábaro violado por barro e por sangue, 2090
houve medo e tumulto no exército godo.
Vilas e Rigo e todos os grandes dum povo
correrom ao rei: – Termina agora o combate! –
Logo Totila recebendo em mãos o estandartem
dourado e recuperado e contudo ultrajado 2095
mandou soar a trombeta do fim da batalha,
batendo em retirada co grosso dos homens.
E o povo de Roma vendo um novu milagre
ergueu las mãos aos céus e beijou Belisário,
enquanto os combatentes trocavam abraços 2100


105




e lágrimas e sentimentos mistos, cansados,
contando façanhas ganhas e amigos idos.
A vida quis assim: Um homem sem meios
caído em desgraça fez-se patrono de Roma.
Colheu el última grande vitória de Roma 2105
um homem fiel, desmoralizado e sem medo.
Leixou para trás a sua esperança e fortes
soldados, para que nunca mais se atrevesse
um rei a despovoar a matrona dos povos.


Totila






C





π

Nome: Totila, ou Baduila. Data de nasci- 2110
mento: desconhecida. Lugar: Treviso na Itália,
isto ou Espanha. Mãe: alguém. Pai: o irmão
de Idibaldo, o rei. Altura: um e setenta e nove.
Olhos: azuis. Cabelo: louro, longo, ondulado.
Peso: magro. Nacionalidade: dos godos. 2115
Crença: cristão ariano. Ocupação: guerreiro,
rei aclamado. Acusação: derrota de Roma –
veio, cercou, invadiu, incendiou, arrasou, des-
povoou, depois vacilou, perdeu, se irritou, ten-
tou retomar, non conseguiu, a bandeira caiu. 2120


106




Assim falav’os gadrãos e os estoas, pedindo explica-
ções ad um rei cabisbaixo e cumpria mesmo falar.
Nisto avançou, tomou corage, inventando uma nova
força e lançando: – Minha gente, atenção, quequeísso!
Ninguém ti explicou a guerra comé que é? A pessoa 2125
um dia ganha, o l’outro perde, a guerrè issaí.
Tem que saber perder, meu erreiro, a vidè issaí,
quer saber de “ah, non seiquê” aqui não, se oriente.
Guerra a pessoa ganhar è bonito, agora bonito
mesmè cê perder que nehn’home! Comigo chegou com 2130
“toma aí ‘sa coroa què tua”, então non pensei,
mandaro peguei, e non vim com viadage aqui não pa-
cima do povo, falei na cara: tem hora que perde,
seje home, aceite! Deus ajudè quem se garante,
mas direto o peão se garante e Deus non permite. 2135
Vem choramingáqui não! Perdemo, è verdade,
mas non foi vagabundo ali não que ganhou, ganhou
foi Belisário, rapaz, o cara mais forte ali deles!
Ganhou non foi que godè fraco, ganhou porquè louco,
nós lutano ele apareceu foi com coisa adoidada, 2140


107




contrariando a razão de quem sabe lutar, confundindo
todo mundo: tinha tudo a perder, mas destino ajudou,
meu filho, aí complica o negócio. Non tinha guerreiro
nosso na estrada, mas saporquê? eo ti digo por quê:
guerreiro nosso tava lutando num’outra estrada, 2145
tava correndo não, meu nego, tava ganhando!
Então n’esqueça não que grande povo nòs somos:
Ele ganhou que o destino ajudou, senão perdia;
godo que è godo psá de destino não, tem força.
Ó, se fosse força com força, sem mão invisível 2150
tava claro quem ganhava, mas Deus non quis,
então paciência. Tem que ter fé nè só quando ganha,
tem de dar benzadeus quando perde porque tà vivo.
Eire Deus decidiu, amanhã decide de novo.
Perdeu? Perdeu, mas a guerra taí, continua, 2155
bola pafrente, né tipo “ah, perdeu, vamembora”,
sai dessa vida! O estilè “dia melhor virá!”
Então pelamor de Deus, meu filho, seje home,
erga a cabeça e da próxima vez er outro o destino.
Vira e mexe o cara cai do cavalo, acontece, 2160


108




só non pode perder è fé, meus amigo! – E calarom.
Mas dali, Totila entrou numa crise terrível,
só andava de lá pra cá e falava sozinho.
Uma coisa è falar na frente de todo mundo,
outra coisa è viver e ver as coisas de fato. 2165
Tinha rumores aqui-ali de alguma vitória,
mas a verdade era clara e Totila sabia: a respon-
sabilidade daquela derrota era dele mesmo.
Pois è nisso que dá nõ ouvir conselho, avisaram!
Ah, essa coisa de guerra acaba sim coa pessoa, 2170
perde a paciência. Bonito è feito cavalo.
Tarde da noite o rei olhava o bicho nos olhos
como se fosse amigo, mas olha que era. Totila
tinha aquele cavalo desde criança. Gostava
muito mas dava dó, invejava a sua inocência: 2175
coitado de tudo que é cavalo a correr por aí.
Do nada chega o l’home fingindo ser amigo,
quando vê o bicho vira escravo e chicote
dói na cara e no lombo: que vida! Cavalo perdoa
tudo, tadinho, tam puro, e a gente non tá nenhaí. 2180


109




Ele non sabe a causa da guerra e sofre sem causa,
mas ele crê na bondade original do què mundo.
Pois è muito injusta a farsa desta amizade:
Ora o cavalo leixava a liberdade dos campos
u corria outrora, contemplando o seu modo, 2185
para servi-lo amigo mau na batalha da morte.
É, merece mesmo um destino melhor o consorte
mudo e generoso de tanta coita e maldade.
Passa a guerra e depois o que resta è ver cavalo
pelo chão agonizando, o bicho te olhando. 2190
Quebra o coração da pessoa quando è sincera,
dá pra ver no l’íris o desespero inocente,
ah, e aquela pergunta: Que fizerom de mim?
Oche, a minha vida era cavalgar no meu campo
sem maldade e sem mal – fizero o quê de mim? 2195
Cavalo era como o povo godo e la gente de Roma
tudo arrasado, ensanguentado e despedaçado.
Tinha tudo pra ser amigo essa gente bonita,
Cristo, quem deixou terminar assim o conflito?
Mas Rigo interrompeu la reflexão de seu froia: 2200


110




– Sai daí, Totila, cê tá falando sozinho,
calma, vai dormir, tá parecendo um fantasma! –
O rei non quer saber, o rei non tem ouvidos.
Antes de mais, o rei se enveredou pela noite,
foi correndo pelo campo em busca do nada. 2205
Não se importava co vento castigando o rosto
nem o frio importava, importava perder o rumo.
Mas o frião lo seguia mantendo às custas um passo
mais e mais ansioso: – Tótila, para com isto,
né assinão, Totila, a pessoa tem que enfrentar! – 2210
Mas o rei caiu sobre o feno olhando uma estrela
feito cavalo querendo resposta na sua agonia:
– Rigo, enfrentá o quê? Olha o mal queu toí,
perdemo Roma! Guerreiro morreu pela minha burrice. –
Rigo entendeu. Mas reatou, ponderando com calma: 2215
– Ah, issaí jà foi conversado, bola pafrente,
foi você que disse, non foi? Então perfeito!
Olha, Totila, daqui desse peito sò sai lealdade,
pode crer, foi muito sangue que derramei e
vou seguir derramando, tem conversa aqui não! – 2220


111




O rei porém condena: – Era a mensagem de Bento!
Era o que o gau estava a dizer. Ganho de mundo
passa e Deus abandonou lo gueso dos godos! –
Rigo interveio: – Ô, Totila, non diga u’a mentira
dessa não que Deus quem è pobre e fraco ele ajuda, 2225
gente feito godo, que è povo sofrido e demais.
Se teve um povo que Gus amou foi este que è nosso.
Ei-lo povo que agora tem que ganhar essa guerra:
Deus que è grande pôs em tuas mãos a vitória! –
Mas Totila, enojado e solene, repudiou: 2230
– Como te enganas, amigo, e tristior a verdade. –
Rigo falou pero um rei doído irrompeu explicando:
– Crês de fato que Deus me pôs no trono dos godos?
Ouve pois o meu mérito e julgarás com juízo:
Eu me rendera, sim, eu e meu forte em Treviso 2235
de muitos gumas. Já selara a paz com Bizâncio
quando uma tira infeliz de dissidentes mi atira:
Toma a coroa! Em vão eo falei da paz contratada
como em vão pedi respeito ao rei que reinava.
Não te ocorre mais à mente o fim de Erarico, 2240


112




froia sem feito? A sua morte nasceu em Treviso,
Rigo, nasceu da mesma voz que escutas agora!
É verdade! No mesmo instante em que recusei,
a grei lustosa e manipuladora mi disse:
Mas Totila, se o rei morrer, estamos sem rei! 2245
Eu, sem pensar, no afã de consolando uma gente
disse assim: “Ué, se o rei morrer, meus amigos,
aí se não tiver ninguém eo aceito a coroa!”
Pois pronunciei, meu Deus, u’a sentença de morte!
Quando tive atinado melhor coa coisa e com tudo, 2250
Rigo, já vinham trazendo, um, a cabeça do rei,
e o l’outro a coroa dos godos! Então assassinei,
meu caro, olha minha cara e mi diz o que eo sejo!
Ô frião, sè assim que se inicia um reino,
cadê l’honestidade e bênção de Deus neste reino? – 2255
Rigo se transtornou ca non conhecia a verdade,
tanto que o rosto se deformou assustadora-
mente. Retoma: – Então è isto? Mas... impossível! –
Era coisa demais borbulhando na mente ao mesmo
tempo. Rigo orava tonto: “Ergui meu escudo, 2260


113




Deus, de bõa fé, meu coração inocente:
Tem piedade aqui do resto! Este homem errou
mas eu também sou godo. Tem paixão de meu povo!”
Mas retendo o teor duma forte emoção, encoraja:
– Nosso exemplo è Teodorico, è ele que guia. 2265
Povo que è grande è grande por caude todo mundo. –
Totila percebe, è claro, o esforço de seu escudeiro,
fecha os olhos num sentimento amargo, suspira
e pede: – Esconde essa monstruosidade do povo,
Rigo, não me queiras mal, defende este povo! – 2270
Era noite avançada e as palavras non combinavam
mais co silêncio. Agora era digerir a verdade:
Rigo se foi, e Totila desmoronou pelo feno.


ρ

Mentre um rei jazia a sós
plangia o seu lamento ao céu: 2275
– Eu me perco de mim pelo fréu
deitado na vala feito um morto!
Ai, gente, eo vivo e mi pergunto
por que, naquele dia infame,
eirem tão longe iludir minha gente! 2280


114




Meu povo andava livre na estepe,
sem maldade o meu povo arbedava,
meu povo conclamado de tão longe
para entrar nesta terra tão danada.
Estes coitados vierom num gesto inocente 2285
ca prometeram que a l’ersa era sua.
No estusiasmo do instante, eles
leixarom para trás o que sabiam,
montaro elor cavalo e zarparom,
além da esperança trazendo 2290
mães e dodra e bode, arado.
Mas que mentira e desengano!
Foi per dó de Gus que Teodorico
morreu sem vendo o que a gente virou,
um povo fragadado e perseguido, 2295
um povo sem rumo e sem amigo.
Ô gente, eo me cansei de pedipaz,
mandei jurar o guerso a tudo què contra
nós, prometi: Escolhe aí, Justiniano,
escolhe o diem da paz e pronto, 2300


115




serei teu filho de coração,
serás o pai dum povo: Estes godos
seguir-te-ão por tudo què féror
onde a guerra chamar o Império!
Ah, minha estrela, o que Deus decidiu 2305
foi anamantar de vez minha gente:
Mas a que estau abençoado e grato
eu levarei, desta terra enganadora,
a multidão dum povo inconsolado?
Mi mostrem por bom frial no norte 2310
e no sul apontem à fuga o portu
em que o l’home maior deste mundo
não encontre meu povo nem persiga!
Isso nè vida não, issè cachorrada!
Eo passo os dies olhando estrela 2315
mas l’horizonte non quer saber não:
O mundo è pequeno ca sempre soube
e decidiro, meu povo non cabe não!
Tem tanta vida aí nessa grei
maior da minha e vida forte! 2320


116




Olha pra mim que assassino queu sou:
Pode punir, Senhor, ua vida errada,
salva o povo só que o povo è teu!
Eo vejo quem eo sejo e porque sou
me odeio e quero gritar bem alto: 2325
Eu me arrependo, errei, desdigo
o dia em que usurpei um cetro maior
do que as minhas mãos forom dignas.
Olho patrás dos meus caminhos
e não me encontro em meus díebos 2330
ca nenhum desses dias foi correto.
O instante em que fui nado
me persegue, entristece e mata:
É issaí, minha vida è derrota
e minha morte è vontade de Dei – 2335
ca não se viu jaquando um danado
manter-se no die del ira e da verdade.
Mas antes que minha vida se acabe
lá no triste inferno que mi cabe
eo quero, ai, meu Deus, ai, leixar 2340


117




frial ao povo e refazer esta terram.
Será verdade queu tô implorando?
O mal queu fiz, ali se repara não,
ali fui mau de verdade, tem jeito não.
Peço perdão de meu erto, mas pedir 2345
è falar, cachorro como eu melhor agir:
ca Deus condena mas meu povo espera,
meu povo bom que sò merece vitória!
Mais que perdão eo quero a bõa hora:
Eo quero a l’hora dum gesto frião 2350
dos homens e digno de todo povo,
isto: o criminoso quer um bom ensejo,
Senhor, não por mim cuja vida è nada
mas pela guarnição desta gente:
Ergue o justu do chão, judia não! 2355
Eo vou reconstruir a ruína de Roma!
Se pela estrela dum mundo melhor
Teodorico me escuta então escute:
Abre a porta daquela cidade mais
uma vez e vamos ver o que rola. 2360


118




Rei verdadeiro que sês de meus godos,
pede pelos teus suãos que te amam.
Intercede aí por tantos que vão morrer
na ingratidão desta Itália que amarom.
Ô meu Deus, vai se perder comigo 2365
a gente mais fiel que andou pelo mundo?
Deixa não, non pode acontecêsso não!
Sò muita força dentro de mim que nem sei
donde vem pra guiar meu povo e salvar:
è mha família tudo issaí, è sangue meu. 2370
Mas que situação, eo aqui no meida noite
falando a sós com fantasma. Ah, quem sabe
um fantasma tem dó de meu povo bom! –
Assim falava um rei rendido à sombra
mentre as noites transformava em mar. 2375


ς

Mas Ruderico, astuto, explicout a seu pai:
Durante a guarda noturna fora atacado!
No fervor da refrega apoderou-se da clava
e contra quatro romanos, mancebos rudes,
lançou-se derribando os elmos intrépidos. 2380


119




Terminarom aos socos. Medida a valência
e vendo-se os quatro desarmados de súbito,
houve pânico e pela noite adentro correrom.
O filho de Vilas, um pertinaz na batalha,
não se satisfez com vitória sem ganho. 2385
Emaranhou-se no bosque buscando fugidos
e em diro golpe bateu-os, um contra quatro.
Se alevantarom atordoados da lama,
cada qual tateando um caminho no escuro.
O primeiro caiu partido em dous pela lança 2390
afiada do jovem. Os três restantes, irados,
vendo Ruderico sem arma e sem medo,
tentar’um ataque, mas o golpe certeiro
do punho fez cair de pronto o segundo.
Como um leão se atirando à fera indefesa, 2395
pulou sobre o morto que a sua lança partira
e retirou da carcaça a lâmina em sangue,
sedento de mais e maior mistura de fluidos.
Os sitiados gadrãos, porém, no transtorno,
julgando a vida maior do que a causa de Roma, 2400


120




ajoelharom-se, flentes, aos pés dum herói
pedindo clemência e sussurrando promessas:
– Nóis si rendji, mata não qui nòis fala,
tudu quiu frói quisé qui nòis faz obedeci!
Mar non dexa nóir morrê não, Ruderico, 2405
nòis tem familh’i fi pa criá, nòis ajuda! –
Houve barganha, pois o filho de Vilas,
pero que fosse bastante pedirem clemência
(ele anembrava ainda o próprio destino),
fora excitado ao prometerem proveito: 2410
Pois explicassem a proporção da vantagem!
Foi-lis arrancando os detalhes da jura:
Abrir de novo aquelas portas de Roma!
Era palavra de emocionar defuntos.
Como penhor, leixaront um dos gadrãos 2415
sob a guarda de Ruderico, o temível,
enquanto os outros retornariam a Roma
a preparar melhor o plano – partirom!
Quando pois Ruderico abeirou-se de Vilas
levando sigo o refém, a fatal garantia, 2420


121




Vilas reprehendeu: – Corrompeste soldados? –
Mas ouvindo melhor o cas’e o contexto
não li desagradou la coragem do filho.
Foi-se apressado ouvir o sereno conselho
dum portador de escudos e mestre da guarda. 2425
Antes porém que Rigo dissesse ao lanceiro
o novu desespero a que o rei se lançava,
Vilas e Ruderico e refém prorromperom
palavras, descrevendo em detalhe as imagens.
Rigo entonce num sobressalto exaltante 2430
saiu pelos ermos procurando Totila,
seguido pelos hômibos: Totila correu-lis
como por acaso de encontro aos passos
e ouvido o longo relato deu-lis el ordem:
– Viche Maria, pode explicar issaí! – 2435
Se aproximavam já na noite seguinte,
ainda feridos e atordoados da luta,
os desertores: – A gente nós chegaro
aqui da Isáur’e vimo comé que se paga
serviço bom pa conterrâneo nosso! – 2440


122




Nisto se referiant aos quatro que outrora
abriram as portas de Roma, ogano opulentos.
O rei, mandando vi-lo tesoureiro do reino,
mostrou no tempo medês o talho do agrado
esclarecendo: – Com nós funciona assim, 2445
a pessoa ajud’e a gente ajuda a pessoa.
Aqui non tem conversa e nhenhenhem não,
maluco, abre as porta e tu fica rico! –
Falou pra ser entendido, mostrando joias,
prometendo mais e melhor recompensa. 2450
Pois de imediato acertou-se o momento!
Mas horas antes do ataque, Totila mandou
juntar perante si lo grosso das tropas:
– Desta vegada, gente, non quero saber
de violência, vagabundage e putada! 2455
Pode levar cachorrada pra ca’do caralho:
non toque em mulher, criança e peão desarmado! –
Quando, porém, abertas as portas, entrarom
de noite e repentinos na antiga cidade,
descarregau-se nos fracos um ódio sem nome, 2460


123




ca muitos ali destilaram veneno por anos
e vendo a confusão perdero o controle,
saíro arrebentando gadrãos e destitutos:
non teve dó de mulher, idoso e doente,
o l’ódio tinha sede, a morte também. 2465
Enquanto alguns seguiam a voz de Totila,
outros lavav’as mãos num sangue inocente.
O rei, porém, erguendo os olhos aos céus
perante o sacrifício dum povo pacato,
vendo talvez renegados favores de Deus, 2470
agiu ligeiro – mandou que fossem tratos
muitos dos desobedientes notórios,
e frente a romanos e godos forom malditos:
– Pó matar! Mandei ser bom mas è mau,
non presta não. Então vai pa casa do cão, 2475
bandido, vem estragar meu exército não!
Aqui se respeita a paz e a vida mansor! –
Ali se viu, Totila falou, tà falado,
tem brincadeira não, e largaro da espada.
Assim reconquistarom-na sombra de Roma. 2480


τ

Não durou demais o regozijo dos godos
pois se aproximava já da Itália Germano!
Primo do Imperador e general violento
desde sempre vastou, impávido, os bárbaros.
Era herdeiro imperial do trono e do cetro! 2485
Cedo nomeado mestre do exército em Trácia,
logo impôs um golpe irado às armas eslavas.
Foi Germano que, como de intervenção divina,
frente a milháribos repeliut o rol de invasores
pouco longe das portas magistrais de Bizâncio. 2490
Foi ataque de monstros raro lido em relatos:
Seres animalescos andavam leixando terror
em toda a terra da Ilíria. Sedentos de império
fácil, dividiram, na sorte dos dados, o mundo.
Iam, pois, levando aos ombros a morte certeira 2495
rumo à casa alheia. Non tinham dó de inocentes.
Punham ao chão pontiagudas estacas de lenho
lá cravando o lombo de quem a vista alcançasse:
Eram assassinados os velhos e mães e pequenos.
Mentre o lenho lis adentrava fundo as entranhas 2500


125




grito em sinfonia de sangue ecoava no incêndio,
nem as casas nem lavouras poupadas de flamas.
Antes entravam pela fresta procurando pertences,
todo valor humano ou bruto. Passada a derrama
eram entregues cada qual a destino arbitrário 2505
(palha ao fogo e vida às espadas), eram lançados
contra a rocha recém-nascidos, aos pés de cavalos
vinha terminar o labor de pastores tranquilos.
Não havia em todo oriente uma terra segura,
medo levantava o sol do horizonte e depunha 2510
toda vila e família em renitente incerteza.
Ora, Germano, carregando sigo falanges,
homens abissais e feras de todo inferno,
foi vencendo os invasores em cenas inglórias
ante as portas da capital e vãos de províncias. 2515
Pois pagou-lis o dobro de escandalosas chacinas!
Forom dizimadas tropas num paraíso de abutres,
sangue e carnificina o testemunho da pena e
pus e maldições por u los olhos caíssem.
Deste modo e de modo pior a razão conhecia, 2520


126




certa, por quais horripilantes estâncias vastaram
mãos de Germano, o vencedor de invictos severo.
Herói temível, fora mandado às bordas da Líbia
para debandar, sem mais, a resistência do vândalo,
logo reduzindo a poeira o reino de Estozas, 2525
ora deserto desordenado e morada de najas.
Indo à Pérsia, impôs temor a leões irascíveis!
Viço leal, recusou concurso a conspiradôribos
quando houverom tentado oferecer-li a coroa.
Quando a rumo da Itália uma nova incursão ocorreu 2530
de grupações vehementes cruzando o Danúbio,
não hesitou: Mudou de rumo e modo e contenda
já recrutando, além de romanos, homens alheios
como impetuosos lombardos, gépidas, érulos –
fortes, unidos no desamor do inimigo comum. 2535
Lá fundarom, em vilarejo e por entre lavouras,
largas charcuterias de corpos a céu aberto e
diro albergue de redivivas aves carnívoras,
víboras monstruosas, de rara estirpe elápidas.
Não os impressionou la multidão de invasores 2540


127




nem moções de iniquidade e sevícia sem nome:
Quis-cada-quem impôs a força máxima à firme
lança derribadora insaciável de equestres!
Forom ali descobertas destruïções de inimigos
inda não narradas em prestimosos cronistas. 2545
Tal teor e grau de incubações vingativas,
tal vigor exterminou la campanha de eslavos,
fez do oriente o cemitério aberto dos povos.
Falanges vencedoras gozav’o amor à vitória
mais visceral e desumanemente possível. 2550
Ora, Germano, a cabo de similares cohortes,
pôs-se em cavalgada veloz a caminho da Itália!
Dentre os trunfos terríveis que carregava consigo,
foi temida por godos menos a lança certeira,
menos a espad’e a coleção maldita de arqueiros. 2555
Era la esposa, sim, a força maior de Germano!
Filha de Amalasunta e neta de Teodorico,
Matasunta, forçada ao matrimônio com Vítice,
rei de vis, migrara junto ao monarca rendudo
rumo a Constantinopla. Ali foi bem cobiçada, 2560


128




logo após a muito esperada morte do cônjuge,
pela corte inteira e, notadamente, Germano.
Certo, o primo do Imperador, medindo os efeitos,
viu na viúva a clave para o domínio da Itália.
Ora, casou-se! E Matasunta, infeliz nos amores, 2565
pouco pôde interpor ao cortejador influente,
ela, que ainda chorava a sós a desgraça da mãe
Amalasunta. Ela não se esquecera das tantas
cartas do Imperador prometendo ajuda à matrona.
Não esquecer’a imagem daquela amada regente 2570
feita prisioneira e trucidada na jaula!
Sabia, como não, que a causa de Justiniano
era menos el honra da mãe, ardiloso pretexto,
menos que a reconquista a todo custo da Itália.
Inda assim, sem escolha, cedeut à mão de Germano. 2575
Stava prenhe! Uma constelação de vitória
já se formava aos olhos do ambicioso marido:
Era o signo da legitimidade do Império,
chave-mor da união pessoal num único herdeiro.
Mas a mãe refletia, triste, a que ponto chegamos: 2580


129




só de pensar que um dia se imaginou ver unidos
todos os godos, fortes na Itália como na Espanha.
Era o casamento de Amalasunt’e Eutarico.
Isto sim que seria um destino, mas foi diferente:
Nada disso existiu, Eutarico morreu inda jovem, 2585
pai dum povo e pai somente seu, e fechara
deste modo a porta entre os povos. Isto o destino
quis, enbranquecendo os cabelos de Teodorico,
rei que, batudo deste e doutros males do acaso,
morreu sem gosto a pressenti-lo fim de seu povo. 2590
Ogano aquele povo estava à mercê de Germano,
mentre Matasunta implorava: – Tem piedade
desse povo, por favor non destruas meu povo!
Olha, Germano, teu filho aqui que vou carregando:
Sangue godo ele tem, o filho que te ofereço! – 2595
Era triste se ajoelhar aos pés dum marido
rude e que não amava, grávida e sem escolha.
Mas Germano, arrebatado em paixões e desejos
ante aquele raro troféu e despólio de guerra,
dentro ouvindo, porém, uma emoção de justiça, 2600


130




via la esposa e reërguendo do chão prometia:
– Ai, meu amor, non fala assim não queu te amo,
amo teu povo também, inimigo meu è Totila.
Todo mundo sabe, eo mandei avisar pela Itália:
Quem se render vou receber de braços abertos! 2605
Tem rancor aqui não, sò tem amor no meu peito! –
Como porém Matasunta, inconsolável, chorasse,
Germano recolhia em beijo as lágrimas da esposa:
– Não, lindinha, non chores não, eo existo por ti!
Nunca existiu amor tam grande como tenho por ti! 2610
Ama-me um pouco, Matasunta, só um pouquinho,
deixa o meu coração te provar com sinceridade:
Nunca vai existir eo fazer o que quer que seja
contra um povo teu, do teu filho e meu pra sempre. –
Ela entretanto ouvindo e meditanto intervinha: 2615
– Ah, Germano, eo já conheço esse tipo de fala,
não me enganes não, porque te dei meu carinho! –
Mas Germano invertendo os papéis no seu desespero,
ele medês se ajoelha e beija os pés da esposa:
– Não te engano não, princesinha do meu coração, 2620


131




jamais, eo te amo com tod’o ar que sai desse peito
quando falo contigo. Eo vou te fazer, eo prometo,
rainha, a rainha mais amada que já se viu.
Tomo a coroa das mãos dum tirano e ponho em ti! –
Era de ver nos olhos que aquele amor non mentia. 2625
Mas como governar, por mais sincero que seja,
sobre amálgama tão brutal de tropas unidas?
Era difícil ver. E dentre os godos na Itália
rondavam casos, histórias e narrações abissais
de quem destrói num misto raro de ofício e prazer. 2630
Medo, esperança e sentimentos confusos passavam
pela mente dos godos em contemplando o problema.
Era de fato inimigo ou companheiro do povo?
Era um alarme! Totila reconheceu num segundo
tod’a astúcia, a malícia que mascarava o projeto: 2635
Rigo, Vilas e os conselheiros li derom razão.
O rei, reunindo os grandes no meido breu, ansiava:
– Isso tà claro: Se ele pusere os pés por aqui,
aí se acabou de vez nosso povo, pode esquecer! –
Desde então buscavam convencer os soldados 2640


132




como os nobres do risco, mas alguns resistiam:
Como erguer as armas contra o sangue sagrado
de Teodorico? Matasunta seguia Germano!
Foi em tal desespero de vagações solitárias
pela noite que o rei, confuso, se viu abordado: 2645
– Não adianta, Totila, buscar abrigo no escuro. –
Era Rigo! Antes que o rei porém respondesse,
inda envergonhado da confissão que fizera,
Rigo prossegue: – Ah, mha vida eo vivo no agora,
sirvo mou rei que jurei tà jurado. Ali foi feio, 2650
Frói, mas a guerra continua e Germano vem vindo,
vamo lutar primeiro e tu chora depois, meu amigo!
Tem que tomar u’atitude logo, o caso è grave! –
Que fazer, porém? O tempo medês era contra!
Rem obstante, o mestre dos escudeiros sugere: 2655
– Manda emissário! – Já no die seguinte partiam
rumo a Germano os representantes do rei de Roma,
gente de todo sangue unida na causa dos godos.
Fossem claros: Era oferta de paz a embaixada!
Pois falassem a Matasunta se fosse preciso, 2660


133




não podiam poupar recurso, esforço e manobra.
Pelo amor de Deus, non voltassem de mãos abanando:
só voltassem coa paz! Era uma audácia tremenda
mas ninguém discordava do froia. Era sabido
já que a situação era tão perigosa que mesmo 2665
a paz nos termos do Império seria aceitável!
Dias depois, seguia ainda umoutra missiva:
Tótila quer entregar a Matasunta a coroa,
pede humildemente que sejam feitos súditos
novos os seus guerreiros, asseguradas as vidas 2670
como pertences: Nulho soldado seja punido!
Mas também se organizava em meio a temores
graves a resistência antecipando o combate.
Cá e lá, fortificavam o muro dos burgos,
eram mandados corredores rumo à Dalmácia 2675
para saber a que ponto cavalgava o inimigo.
Nada garantia sequer a chegada por terra:
Era preciso entender se passariam por Vêneto
ou zarpariam do mar, desbaratando o preparo.
Uma vez demandando os litorais de Salones, 2680


134




vila maior da Dalmácia, eram donos do acaso:
Basta um vento suim, em poucos dias alcança-
riam Piceno, desembarcando perto de Ancona.
Era um cenário forte: Em sobressalto ansiosos
gadrãos repetiant os exercícios de guerra. 2685
Flecha, escudo, espada e sobretudo os lanceiros
não dormiam, a todo instante esperand’o ataque.
Fato inquiëtante, Germano chegara a Salones!
Cada nova aurora, Totila entrevia o retorno
triste dos emissários seus, prenúncio de anguisa. 2690
Qual non foi, contudo, o estupefato, a surpresa
quando correu dum lado ad outro do mar Superno,
boca a boca, uma fulminante notícia: Germano
pondo os pés na velha capital da Dalmácia,
olha que coisa, contraiu doença e morreu. 2695


υ

Totila tinha certeza: A mão do destino
mudara o curso da história pelos godos!
Cumpria agir: Mandou reunir senadores
e muito velhos da Cúria, dentre os quais
Leôncio. A cavalgada a caminho de Roma 2700


135




passava pelas estradas cheias de corpos
apodrecendo enquanto o medo grassava.
Totila os recebeut às pressas e andarom
passando além por construções arruinadas.
Os olhos pousavam atordoados por antros 2705
testemunhando outrora um espírito urbano.
O rei notava as impressões de Leôncio,
que balançava a cabeça ao ver a verdade.
Ali non podia esperar, importava falar:
– Leôncio, non tem como levantar do chão 2710
a ruína? Olhaí que situação, que flagelo!
A guerra foi ruim, me arrependo do incêndio,
só que a cidade jà tava bem combalida
dês que os vândalos saquearom, faz tempo,
desde o reino de Vítice o fogo judia 2715
das pedras monumentor e Roma se acaba.
Eo sei, Leôncio, que muita gente non gosta
de mim, mas esse estrago aqui non fui eu
que fiz esse mar de escombros não, senador.
Do jeito que tá non tem condições a cidade, 2720


136




então melhor agir, te chamei praísso!
Ô Leôncio, ajuda aí com reforço,
Roma non pó ficassinão, ressuscita!
Saqui nè roça não, è mãe dum império.
Eo abro de coração as portas da Cúria 2725
pra decidir comé que renasce a Cidade.
Contigo a gente pó contar, nè verdade?
Ué, Leôncio, vai me deixar na mão? –
O velho senador, cabisbaixo entretanto
de avermelhados olhos, a voz tremulante 2730
e cambaleando no passo, para um momento.
Retendo um rei que prosseguia na estrada
frente a danificadas pilastras, pondera:
– Rei de Roma, tantas vezes pedi piedade
desses escombros desolados por terra 2735
nembrando: Poupa, frói, o passado inocente!
As pilastras arrebentadas no meio da rua
forom perdudas, se aqui se permite a verdade.
Eram da Grécia e da Itália, eram de raro
mármore as obras caídas e mármore caro. 2740


137




Vierom das mãos de inimitáveis artistas!
Mas eu, que perdi família, nome e sustento,
qué sabêtsonão, to corren’de problema.
Enxergas mal a condição dum coitado –
é desilusão e desgraça o destino: 2745
Antigamente a gente ainda abarcava
muita terr’e escravo por tudo què canto.
Daí chegaro os federados e os bárbaros:
chegou que nem sem terra tomano tudo,
tanto que ogan’eo vivo só de migalha. 2750
Eles vândalos, pero que não tomarom
a nossa propriedade per’de Cartago,
ali non deixava mais o fruto sair,
ficava lá, e a gente aqui sem comer.
Bonito era quando tudo vinha da l’África, 2755
tinha fartura, frói, mas a fonte secou.
A fonte foi secando aos poucos, secando
tanto que agora è toda seca e deserto
e somos ora à mercê do acaso somente!
Erguer ruínas? Os mármores u buscar, 2760


138




pagar com que dinheiro? Onde artesãos
imitadores de momumentos antigos?
Ave Maria, saí custa mais do que o peso
do mundo e construções de Constantinopla:
Ali vão construindo um templo gigante 2765
às custas do nossa escombro e da vida.
Rei de Roma! Tantas vezes pedi piedade
de nós e das nossas pedras maiores de nós!
Levanta do chão, Totila, nossas ruínas,
abre as portas da Cúria, reúne recursos! 2770
A minha vida è sombra, o nome è vazio:
No cerco, de porta em porta eo passava
pedindo pão e recusando a verdade.
Estou de fato vivo? O pão que me derom
veio de gente outrora escravos meus! 2775
Veio de vidas mais fiéis do que honor
permite esperar, e contudo eram servos.
Estou de fato vivo? No amor desse nome
que nem sequer mereço eles vão dividindo
migo um pão impossive, uma escassa seara. – 2780


139




Mas Totila no impulso da pena o reteve:
– Entendo bem, Senador, as tuas palavras?
Ah, então tà tudo acabado de vez...
Leôncio, non tem nenhuma ajuda? Leôncio! –
Atarantado, um rei mirava as estátuas, 2785
baixando o rosto como se visse um fantasma.
Considerando as vertiginosas pilastras,
Totila escorou-se aos galhos duma oliveira
por u la sombra o retrazia à verdade.
Leôncio, contudo, continuout o relato 2790
alheio ao quadro desolador do monarca.
O velho dum povo a muito custo somente
leixou-se convencer ao cuidado romano.
Talvez, de fato, algum auxílio minuto
o tempo inspirasse, o tempo revelasse. 2795
Naquela tarde porém de ocaso imaturo
nada mais li restava senão avisar:
– Ó, Totila, se for pra ficar eo fico.
Mas o gesto maior vou dizer de verdade
e ser sincero, è pouca coisa o recurso: 2800


140




Começa com pão e circo o governo de Roma,
o resto è pilastra despedaçada na rua! –


φ

Quando Justiniano pareceu confortado,
como um trovão arrasador a morte ecoou.
Correu alada no paço imperial e nas ruas 2805
tendo à boca assustadora o trunfo: Germano!
Pasmo o dono do Império leixau cair o cetro
pelo mármore frio do seu salão de audiências.
Vagava mudo de madrugada os átrios escuros
horas inteiras, louca aparição sem cabeça. 2810
Uma circumstância em particular agravava
tanto luto, pois non for’a espada inimiga,
lança ou flecha el aniquilador de seu primo,
não humana: flecha sim do acaso implacável!
Era correto um herói morrer daquela maneira? 2815
Não se encaixava o fato atroz no plano divino.
Forom consultos os sacerdotes e muitos prestes
e fez-se claro o caso: intervenção do demônio!
Deus, assim pareceu, em tais desastres pune
a presunção de potestades e reis ociosos. 2820


141




Manda a morte castigar com Satã la nociva
preguiça arrebatando toda a força do Império.
Pois agissem! Arrebentassem de vez o inimigo
nem atendessem pior evento das mãos do diabo.
Não estavam sozinhos. Desdo começo da guerra 2825
muitos senadores migraram a Constantinopla,
donde, rancorosos, lançavam mão de recursos
para convencer a corte da guerra na Itália.
Die e noite se acumulavam cartas e notas,
era influente a facção em torno de Justiniano, 2830
vates opulentos que decidiam destinos.
Eles eram resquícios da fina flor de Roma,
bem sabiam donde vinham. Falavam sem medo
como se co-investidos da púrpura imperial:
– Age, César, tira de Roma a cambada de abutres! 2835
Onde se viut uma eterna gente entregue a cadelos?
Limpa a mãe do Império da bacanal de bandidos
nem consintas mais Império Romano sem Roma! –
Era em vão relembrá-las desordenadas finanças,
quão escassa era a verba e quão custosa a guerra. 2840


142




Pois Totila na conjuntura era o caso menor:
Havia a Pérsia, poderosa, hostil, perigosa.
Mas o orgulho falava altior naquelas cabeças:
– Éste persa o teu império, l’Império Romano?
Não hesites! Não import’o esforço nem preço! 2845
Pode ser enterrado até lo coveiro do mundo,
pode custar a vida del último abutre na Itália:
Mas que seja destruído o domínio dos godos! –
Foi ali deciso, portanto, o fato dum povo
nem pungentes termos de paz seriam releitos. 2850
Quem contudo encarregar dum gravíssimo ofício?
Era a prioridade manter Belisário por perto
tanto pelo risco da Pérsia quanto por fama:
Fama demais ameaça a consistência de tronos.
Inda aguardava, em Salones, João de Vitaliano, 2855
genro até de Germano, estrategista de astúcia,
mas faltava o carisma condutor da vitória.
Indo por nomes, apenas um general pareceu-li
digno da perigosa empresa: Narses, o eunuco.
Foi chamado às pressas à sala das audiências 2860


143




onde o dono dos povos transtornado li reza:
– Narses, eres a salvação da cidade de Romae.
És a derradeira esperança, Narses, do Império. –
Foi-li mastigando o plano oneroso do prélio,
foi-li pouco a pouco revelando os detalhes 2865
vivos e tortuosos de delicadas campanhas.
Narses, porém, concatenando benh’a extensão
de tal fazenda e belicosíssimos riscos recua.
Pede tempo. Assiste o pôr das horas calado
frente ao Bósporo mas adentra enfim o palácio 2870
donde, reverente e caro, responde ao supremo:
– Ó destino impossível, desanimada existência!
Desde a primeira vez que vi a sombra do mundo,
César, eu me vi produto duma indústria de ultrajes.
Não se passou na minha vida um dia sem coita: 2875
Fui castrado, vítima grátis, privado e vexado.
Quem me vê por aí atravessando as ruelas
como um condenado eunuco, ridículo e rindo,
ah, non conhece a dor dos sentimentos inúteis.
Eu existo mesmo è pra ser a piada do mundo, 2880


144




para non ser amado, para amar sem direito,
para ver passar uma bela mulher e saber
que não existe lugar ali para o meu coração,
non cabe neste mundo o lixo de ser o que sejo.
Saber que no abraço meu floresceria uma vida, 2885
ah, um’alma cara e velida, mas que naufrago
como quem nada e morre na praia. A vidè assim,
assinh’è la vida, non vale nimigalh’o infinito
dentro de mim, o poço da felicidade: tapado.
Antes, quando cabia esperança no meu coração, 2890
rogava a Deo poderoso: Senhor, matai-me jovem,
ponde fim a tanta tristeza! Aqui me encontro,
ai de mim, setenta primaveras de angústia.
Bem eo sei que meu drama corriqueiro entedia
sim a sorte dos grandes, meu lugar eo conheço. 2895
Mas por quê motivo, Dom, aumentar a desgraça
já da minha existência mutilad’e humilhada?
Por que razão me assassinar numa guerra perdida
pois que servi fiel com tanto amor este Império?
Teve coita demais minha vida, psá disso não! 2900


145




Ali jà tá decidido aquele destino, non quero!
Já tentou Belisár’e todo mundo, mas falta
tudo: Soldado quer lutar, non tem armamento.
Quer comer, non tem comida e na fome enfraquece.
Quando luta, luta mas non tem pagamento! 2905
Que serviçè este? Desmoraliza a cohorte.
Não queu seja ingrato, lealdade è meu sangue.
Sempre me desloquei por Vós em tropas e armadas
nem jamais pedi favor, recompensa que fosse.
Fiz por amor, ca sei quem sejo e donde cheguei! 2910
Então se digo “não, nõ eia à guerra na Itália”,
né porque non quero: ali non tem condições.
Se for pra ser como foi com Belisár’a campanha
pode esquecer, è desperdício de força e de vida.
Falo como quem defendeu vosso trono e lo cetro 2915
quando o dever mandou: non deu em nada essa guerra.
Pois, Augusto, se permitis ficarei no meu canto,
peço apenas ela paz de estrebuchar em silêncio.
Quem cuja vida foi vexame desde o começo,
gente, a pessoa non psá morrer na vergonha. – 2920


146




Antes porém que prosseguisse a voz suplicante
foi interrupta. O Imperador emitiu de seu sólio:
– Nesta idade que vai mi enbranquecendo o cabelo
nunqua vidi um homem, Narses, da tua altitude.
Est em cásibos como o tuo que Deus manifesta 2925
toda a verdadeira grandeza que cabe num peito.
Esse comércio estranho e desonroso de eunucos
já mandei banir dos hemisférios do Império,
pois amar e ser amado è presente de Deus
que todo homem filho do mundo quer e merece. 2930
Tu sofreste mais de qualquer herói que conheço
mas a tua vida te fez o herói de verdade.
Tu tiveste menos amor que todo-los homens
mas a tua graça foi maior que a de todos.
Eles gozavam a vida, tu servias a pátriam. 2935
Eles falavam, tu agias. È deles a infâmia!
Ora então non mintas, pois eo sei quem tu és!
Vexame quem apaga è virtude e por isto te peço:
Vai pr’a Itália , Narses, apaga aquela vergonha! –
Eles vão para fora e contempl’o Bósporo calmo. 2940


147




Narses repara um rosto envelhecido com rugas,
fita o cansado olhar e nota o suspiro pesado,
mas o grande peso era o luxo em torno do homem.
Que contraste com tudo o que vira pelo Império.
Era difice a tarefa do Imperador, porque via 2945
Narses guardar rancor pela fama de Belisário.
Eles se olharom dum olhar estranho, dum mundo
cada qual diferente, ligados pela inexpli-
cável contingência da vida. Narses entende
bem, aquele belo discurso era todo uma farsa. 2950
Era praticamente uma emboscada a campanha,
mas non tinha escolha. Ele tenta esquivar-se
sem soar ingrato a l’honra tão questionável
que ali se oferecia. Reflete e conclui consigo:
Tem que expor a situação sem nenhuma ilusão. 2955
Portanto devolve: – Raramente ouvi piedade,
Dom, me sinto muito obrigado a Vós pelo afeto.
Mas então, ali na Itália o negóçè o seguinte:
Esse novo rei è forte, o terrenè complexo.
Pode ganhar, mas né Belisár’ou eu que venceia: 2960


148




Tem que ter recursos que, sinceramente, non vejo.
Posso ir, mas com meia dúzia de gatos pingados
vou fazer o quê? E como é queu recruto
sem dinheiro? Se for ser como foi doutra vez
com Belisário, melhor nõ ir. Praquele conflito 2965
tem que ter um exército digno do Império Romano.
Quero poder nutrir, vestir e pagar de verdade
meus soldados para que lutem com fé e com força.
Quero cavalo, quero as armas mais poderosas,
quero dinheiro! Quem luta, luta pela vitória, 2970
quer entrar numa guerra sabendo que pode vencer.
Merece respeito e compaixão lo soldado romano:
É preciso viver quem quer cumprir seo ofício,
pois macar a morte seja o preço do ganho
muitas vezes, nenhuma vida que julgo decente 2975
quer morrer em vão numa guerra mal planejada.
Mas em tal situação se consomem as tropas
que dá desgosto e dó de ver, então praqueísso?
Pelo amor de Deus, praquê Narses a cabo disso?
Sem contar aliados como o povo dos érulos, 2980


149




ah, coitados, tão leais enterrando centenas.
Dono das gentes, se consentis aqui la verdade
quero ser sincero cá entre nós, por bondade:
Esses recursos novos que tenho visto agregardes
bastam para a morte, pr’a vitória non bastam. – 3985
Narses calou-se e Justiniano corou, golpeado
fundo na espinha dorsal de seu orgulho. Contudo,
mede as palavras, pondera longamente e profere:
– Ego consinto a tua verdade e respondo coa minha:
Se for recurso o problema, o problema está resolvido. – 2990
César mandou pará-la construção do seu Templo!
Essa Itália, ruminava, non serve pra nada,
como è vazia a pompa da reconquista de Roma.
Mas um detalhe inconveniente era manifesto:
Era de Roma que vinha o próprio nome do Império. 2995
Bem sabia que o povo detestava os pesados
novos impostos, financiando a guerra da Pérsia
como a construção da basílica Santa Sofia.
Quanta opulência e desordenação de recursos!
Como se nada disso bastasse, uma guerra por nada 3000


150




fazia esvaziar a fazenda, o erário, o tesouro.
Quem vislumbrava as movimentações em Bizâncio
bem atinava coa proporção daquele projeto:
armas e provimentos, cavalos, ouro e bandeiras,
Narses munido. O plano era simples: destruir 3005
Totila! Unir-se a João de Vitaliano em Salones.
Ir recrutando a caminho. O Imperador o despede:
– Uma coisa, Narses, ia-me quase esquecendo:
Minha parte eo fiz, agora faz a tuam partem.
Pois parei este Império para prover a campanha. 3010
Tens agora recursos que pagam, se não a vitóriam,
pelo menos as mortes. Só te peço uma coisa:
Vence, pois se fores perder ere minha a derrota,
teu lo vexame. Se tudo for em vão, meu amigo,
tudo fore em vão depois de camanhos esforços, 3015
não retornes. Morre por lá! – E Narses partiu.


Totila






D





χ

Totila, porém, no medês instante adentrava
o Circo Máximo donde a massa aguardava
ansiosa a corrida bigar. O ensejo festivo
que o próprio rei custeara marcava uma nova 3020


151




amizad’e a reconciliação entre os povos:
Era um pequeno agrado aos desesperados.
Prenunciando os ludos, a pompa circense
marchava pela arena, plebeus e soldados.
Romanos e godos carregando a bandeira 3025
toavam os cânticos pela parada solene.
Já se perdera a memória dos últimos jogos
a reunir multitudes, e mais memoravel-
mente saltava aos olhos um raro evento,
um caso caríssimo e sobretudo ao froia! 3030
Totila quis ganhar o povo primeiro,
depois a guerra, por isto cumpria agir:
curar, tratar ao menos, a velha ferida.
Forom restaurados alguns monumentos
e construções e foi proviso alimento, 3035
mesmo sabendo que a sedução era breve.
Quando chegou ao fim a pompa de praxe
o rei ergueu-se frente à massa, propondo:
– Povo de Roma! Nem as pedras ignoram
o nome do vosso labor e vossa tristeza. 3040


152




Pequenos pagarom pelo vício dos grandes
um preço que não convém ao homi sereno.
Não creais que me desloquei de distâncias
berando pela Itália as armas e os homens
para erguer o meu ero contra caídos! 3045
Dês que Gus mi trouxe a coroa dos godos
e o fardo angustiado guerrar e do sangue,
julguei correto e consoante à decência
buscar em campo aberto os meus inimigos:
poupei de longe das vilas a vida inocente 3050
merecedora de morte honrada e tranquila.
Segui assim, os homens meus è que sabem,
pelos ermos do Vêneto e pela Toscana,
segui buscando e desafiando oponentes
e preparando em campo aberto o meu are. 3055
E no entanto os inimigos fugiam ligeiros
quando as ocasiões de batalha arribavam,
leixando o campo e transtornando sensatos!
Corriam querendo abrigo em cidades e gãos,
atrás de muralhas, cada qual da primeira 3060


153




que via, para que, perdedores, morressem
não sozinhos, mas levando inocentes
sigo! Em tal valor vos medirom, romanos,
que rem lis importou la vossa existência!
Antes aglomerarom-se atrás desses muros 3065
por u la fome veio punir vossos filhos
mentre comiam a sós do grão que colhêreis.
Entristeçudos dum modo ingrato de guerra,
muita vez apelaumos em vão, repetindo:
Covardes, não vos escondais pelos burgos 3070
mas vinde medir a vossa força coas nossas
como convém ao bom guerreiro o seu flol!
Mas não vierom, e bem sabemos do resto.
Romanos! Foi por amor da vossa firmeza
e vida reta que despovoei la cidade. 3075
Eo fiz trazer ao chão a muralha maldita
para que não custasse, mais uma vez,
as vossas vidas como a vida dos vossos!
Se dano indébito a minha ira abalada
causou à cidade, vão-se já reparando 3080


154




estragos e mais remédios serão ministrados. –
Houve pausa, porquanto a voz de Totila,
enquanto o rei nembrava imagens, tremia
e os olhos seus avermelhavam-se fartos.
A massa silenciosa atendia entretanto 3085
e lo rei, tomando fôlego novu, rezou-li:
– Ô meu povo de Roma, non cale a boca
desse jeito não que quem fala è quem ama,
nossa gente è pra ser unida pra sempre.
Olhe, meu povo, a partir de hoje começa 3090
a verdadeira amizade, uma nova era.
Agora vai ser assim: a pessoa honrada
lusta e quer trabalhar, aqui se respeita,
pode arbedar porque nulhome atrapalha.
Aquela história do povo erguer a enxada 3095
com medo acabou, porque se alguém molestar
a gente acaba è com ele, non tem discussão.
Quem quer viver em paz, em paz viverá!
Quem quer vender seu pão et al, que venda
e vá prover no suor quejandas vidas, 3100


155




assim que è bonito e digo mais: uma coisa
pode crer c’o garanto: quem luta coa gente
pra defender inocente jamais se arrepende.
Aqui nõ existe não essa história, meu povo,
do cara oprimir e o juiz fingir que non sabe, 3105
pois meu reino è de godos e reino livror!
O velho comércio e desgostoso de escravos
não condiz com respeito a Deus poderoso,
pode esquecer, mandei libertar todo mundo!
O l’homem bom querer guiar o seu éu 3110
pero o mau senhor impedir, mandei proibir!
Dagorendiante o nome de Roma è Justiça,
o nome è proteger quem trabalha bonito!
Pode seguir plantando acrão pela terra,
levando gado, vá com Deus e sem medo! 3115
Tem ladrão aquinão, a porção que se dava
antigamente aos ingratis dareis ao Froia,
que em vosso nome distribui pelo povo
aqui na cidade e no campo, assim è certo.
Aqui todo mundo conta e se alguém discordar 3120


156




de alguma coisa avise, a gente conversa,
porque bonito è governar tudo junto.
Non tem Justiniano que vença, Romanos,
a força dum povo livre, unido e que luta.
Esta era a liberdade que um dia existiu 3125
no povo e foi assim que Roma cresceu.
È dessa Roma que a gente mais necessita,
dum povo em que cada qual será senador:
porque se ouvirá, Quirites, a voz de todos!
Salve a liberdade maior que a dos Gracos! 3130
Que Deus permita a guarnição desta Itália
contra a gama de osores da nossa inocência!
Eles maquinam a todo escau nossa morte,
comprados e compradores sedentos de bloa.
Eles vêm recusando os acordos e as cartas 3135
pois non querem guerso, a desgraça procuram:
Que marcham violentamente em campanhas!
Então è isto, Romanos, o fim duma história?
A gente vai leixar esse bando de abutres
passar por cima da vida e do nosso trabalho 3140


157




pra sustentar ladrão, vagabundo e tirano?
Eo não, friãos, non vou deixar isto não!
Mas todo verdadeiro guerreiro sò vence
quando o povo confia e por isto que peço:
Confia, povo de Roma, confia em teu rei! 3145
O gesto da minha vida è singelo, è de amor
e gratidão, è de pai: e por isto ofereço,
amigos meus, aquestes jogos festivos.
Eo peço perdão por um gesto feio, agora
o que eu prometo è paz, justiça e vitória. – 3150
Houve aplauso. Houve ardor prolongado
e profundos brados e comoção pela prole.
O nome do rei dos godos soava espontâneo
por entre as bocas como o Frói Romanor!
Num gesto raro, os cujo ouvido sentira 3155
levadas pela brisa as palavras dum rei
estendiam os olhos, as mãos, a sua angústia
na direção de Totila. Speravam socorro
e que lis importavam, coitados, bandeiras
e nomes de reis? Estava clara uma coisa 3160


158




somente: Era decerto um senhor generoso
que erguera a voz à plebi em tal gravidade
e tão patente arrebatamento de espírito!
Era de fato um tutor, escudo justor
e protetor perpétuo de vidas perdidas. 3165
Aproximou-se porém o vetusto Leôncio,
impressionado e repetindo os apelos:
– Aduz verdade, rei, a tantas palavras!
Inclui verdade se podes, pois iludir
um povo generoso e crédulo e simples 3170
è crime pior que impiedade na guerra.
Era melhor matar todo mundo de vez,
Totila, que prometer, mentir, enganar
uma gente condenada, aflita, arrasada! –
Passavam no embalo bigas, cavalos afoitos 3175
dobrando perigosas curvas e esbeltos
enquanto a morte suplicava por carne.
Bastava a queda em velocidade voraz
e os éguos sem freno arrastavam-no corpo
agonizante em desgraciosos trajetos, 3180


159




a biga vazia e descontrolada e tombada.
Muita vez, um guia de carros perdia
controle de rédeas e parecia ceder,
e pero ressurgia pleno em comando
quando a massa o cria morto na arena. 3185
Mas quem atinava coas emoções esportivas
quando ainda soavam dentro do peito
as graves orações, a promessa de alívio?
Quanta vez os olhos voltarom-se ao céu
calados nalguma espera de paz duradoura. 3190
Totila ganhara a massa. A massa contudo
descendo os olhos do céu mirava o chão
e questionava do acaso a verdade do tempo.
Será que algum Apolo ou Cristo Jesus
ainda recorda por alto o povo romano? 3195
Terá piëdade enfim de quejendo destino?
Mas as vozes se erguerom amargas pedindo
a Deus amor. Assistiam, sem o saber,
os derradeiros jogos do circo de Roma.


ψ

Narses, o general, passava por entre pobres 3200
vilas balançando joias douradas no braço,
mar de prendas comovendo àmbição de mancebos.
Como esperado, jovens de todo modo e talento
já largavam a vida velha juntando-se às tropas.
Era de confundir os olhos a grei de guerreiros 3205
cada dia a crescer e desafiando contagens.
Quem buscava a cohorte abandonando a familiam
era menos a mágoa dos seus do que certa alegria:
Vinha da guerra a l’única esperança de vida.
Mas julgout enganado quem julgou nesses homens 3210
prole de desafortunados que a prata comprara.
Quando soau nas abissais estâncias da Trácia
como pelas montanhas e em litorais da Dalmácia
que Narses aglomerava tropas no rumo da Itália,
veio ao seu encontro o povo inteiro dos érulos, 3215
grêmio distinto. Irom às arma sem que soubessem
bem de recompensas pagas, de como e de quanto.
Antes lis importava apenas servir um vetusto
amigo e protetor e companheiro firme no prélio,
pois honravam, em tudo, a retidão do aliado: 3220


161




Não existia Narses voltar atrás em palavras
como quem fala primeiro e só reflete depois.
Promessas vãs passavam longe da sua amargura.
Foi de fato um claro e raro exemplar de destinos
onde a frustração conduziu la vida a virtudes. 3225
Pouco antes porém que demandassem Salones,
houve, num vilarejo perto, um certo episódio.
É que circulava livre um ladrão de galinhas!
Ágil, furtava de madrugada, na aurora e no die,
inda impune e despertando a raiva das tropas. 3230
Pois se fez questão de ficando mais uma noite
para armar emboscada: Foi detento em flagrante!
Quando contudo o carrasco levantava o machado
contro ladro, a mãe correu carregando crianças.
Ela ajoelhou-se em frente ao primeiro que viut 3235
e derramava inquiëtante afluência de gotas:
– Mata Procêncio não, guerreiro, mata a mãe,
mata eu que foi eu que fez Procêncio ladrão,
mandei roubar galim pacomer c’os ova acabou!
O sei quessa vidè vida suja de gente feia 3240


162




e vida feia, mas vida fei è mió que morrer.
Vida fei è sa vida que fez mo filho viver.
Mata não, coitá’de Procêncio que nem queria
viver, viveu foi só porque mandei pa roubar.
Ô guerreiro, Procens acabou! O pai de Procêncio 3245
morreu por Belisário na Itália, Procens acabou!
Pode matar mas se matar matè todo mundo
logo que morre tudo junto e morre com gosto! –
Era pois a Narses que aquela mulher suplicava!
Quando porém ergueu lo rosto cons olhos molhados, 3250
Narses amou-a como nunca se amou nelas eras.
Era a nembrança viva de desventuras antigas,
faces que o coração guardou em vão pelos anos.
Ó desencantos, ó, reerguer do fundo as almas
um die amadas, memória devidamente esquecida. 3255
Mas a sublime sacerdotisa-mor de Afrodite
não se contentava e bela abraçava-se aos pés
de a quem inocente e sedutoramente implorava:
– Manda os seu soldado pó me matar, mata eu!
Procens è menin de coração fez mal pa ninguém, 3260


163




meu fi sò quer comida, vida e pai de verdade.
Ô guerreiro, non tem lugar pa Procêncio na tropa?
Leva Procêncio, leva, pra ser escravo e ser filho!
Leva, que aqui vai ser ladrão de galinha e quem sabe
Procêncio na guerra junto cocê vira um home de bem. 3265
Mas leva embora pelo amor de Jesus porque aqui,
soldado, essas vidè fei e non temnem como criar.
Ensina tudo o què de bom pa mo fi que meu fi
vão ter orgulho dele e muito! – Faltava-li a fala.
Mas o eunuco, amando em silêncio e sem esperança 3270
como escondendo a dor do próprio rosto, profere:
– Para, cadela, enxuga logo essas lágrimas, vai,
è tua impostura roubar o soluço do amor verdadeiro!
Certo jà ti disserom quem sou e da vida que sofro,
pois então me respeita e me poupa de palhaçada! 3275
Vem chorar por ladrão galinar aquinão, prostituta!
I falar a teu filho, vai, o menino te espera!
Pois essas lágrimas tuas se esgotarem por ele,
vem conversar e non chores como se fosse por mim! –
Narses entrou na tenda, onde, cabeça entre as mãos, 3280


164




pensava, deliberando o fato de dous infratores.
Mas a mulher, chegando a saber a quem suplicara,
veio de novo ao general, trazendo Procêncio.
Foi perdendo arrebatadoramente as palavras:
– Ô senhor, mim desculpe, o nem sabia quem era, 3285
o tava atormentada, o precisava implorar.
Non sei falanão, non sei vivenão, mim disculpa!
Narses, o faço o quê coessa vida desnorteada?
Procêncio vai morrer mas quer pedir perdão
porque Procens errou sem querer, errou nascer! – 3290
Antes porém que o filho erguesse a voz remoída
Narses indaga: – É verdade essa história, ladrão
que a mando da tua mãe furtavas ovo e galinha?
Foi a tua mãe que ensinou, celerado? Responde! –
Mas Procêncio, pesando a consequência funesta 3295
de tal confissão, gemia e balançava a cabeça.
Ela contudo reafirmava a verdade da culpa
tão vehemente e destemuda que o filho cedeu.
E Narses, o coração diviso no amor e na fúria,
disse-li: – É, mulher, eo devia quebrar tua cara, 3300


165




sim, cortar tua língua transmissora de crime. –
Isto dito, fez entrar o carrasco, aduzindo:
– Ele vai coa gente! Mão de ladrão alongada
vira mão de arqueiro aqui, que non tem e precisa.
Procêncio! Ouvindo um tormentoso apelo de mãe, 3305
quero levar-te embora como filho e guerreiro!
Quero mostrar o laborar que edifica uma vida
e pois voltares tomarás as funções de tou pai
que, como ouvi, caiu valente e por causa correta. –
Antes contudo daquela mãe chorar de alegria, 3310
o eunuco, mostrando a direção da rua, pedia:
– I-te embora! Terias sido feliz em mous braços!
Mulher, eo faço o quê dessa vida desnorteada? –


ω

Reconhecendo ainda o fim de Germano,
Totila dispôs num sobressalto os gadrãos 3315
e parecia contar coa bondade da sorte:
Escravos aliavam-se às tropas buscando
a vida livre e guerreiros bizantinos
largav’o posto para unir-se a Totila,
migrando em massa abandonando a bandeira. 3320


166




E pois o rei gozasse o domínio da Itália
todo inteiro, cumpria cortar o sustento
que alimentav’os inimigos, tolhê-la raiz.
Navios de guerra pelas águas de Nápoles
forom presos, levados chus ao norte 3325
mentre navegavant incautos e súbito
os marinheiros arremessados de bordo.
Em pouco tempo os godos usavam de frota:
A mando do rei, zarpavam em rumo diverso
desafiando a fúria do mar, cobiçando 3330
saques e ataques em litorais adversos.
Inopinados, desembarcarom na Córsega
para ficar e não poupar’a Sardenha.
Correu la nova com’um alarme em Cartago
a comando das ilhas, ora incapaz de agir. 3335
Rumavam no mesmo instante agitadas galeras
sedentas de Grécia: Devastavam a costa
tomando embora opulentos envios de Bizâncio
como os provimentos expostos nas praias.
Justiniano ouvia os relatos tremendos 3340


167




e balançava lento a cabeça cansada.
Concatenava a custo o vigor das imagens
deliberando em vão repentinas medidas.
Totila assomara uma abundância de naves
a dar inveja a l’antiga gana dos vândalos. 3345
Decerto Genserico, o rei das esquadras
que se apossaram d’África como de Roma,
desafiando em frota sem par o destino
e derradeiros dies do Império d’Oeste,
decerto invejaria as galeras de godos; 3350
o rei, incendiando o grosso da esquadra
romana em litorais espanhóis, destruiu
de Majoriano, lo Imperador humilhado
e l’último deles patrícios cabos de guerra,
poder, a esperança, nome, desejo de vida. 3355
O serviço de Genserico a Majoriano
Totila ansiava prestar ao dono gêntio.
Não hesitou! Vencendo o forte de Régio
zarpou sem mais na direção de Messana
cruzando irado o mar, arribando apressado. 3360


168




Desembarcou na Sicília stilando em rancor
o seu afã de exaurindi a seara da Itália.
A terram percorrerom sem pena, pilhando
gado, grãos e o quanto a vista avistasse.
Que não leixassem nimigalha patrás! 3365
O godo acompanhava os passos e as arma
ditando à tropa insaciáveis derramas.
Iniciou pilhando só los patrícios
como das vilas de Gordiano, lo Anício,
enquanto Gregório, o filho menor, meditava 3370
convicto e tristoroso já de que vida
segura no mundo fosse a vida dos monges
como a de Bento demandando a caverna –
Gregório que dedicou a Deus o seu sopro.
Mas não bastava o confiscar de benesses. 3375
Famílias remotas lamentavam caladas
a mão levando além animais e frumento.
O l’home de bois que duvidara tranquilo
do desembraque dormia ogano com medo.
O plantador de sementes mirava a lavoura 3380


169




e derribav’o arado chorando em presságio.
O rei, porém, perambulando nos campos
veio a dar enfim no prenúncio da aurora.
Como num breve instante parasse a mirar,
ouviu das ribanceiras um berro de bodes. 3385
Acompanhava o pastor que passava ansioso
enquanto longe ovelhas mudas seguiam.
Vinha correndo de quem buscava seu gado!
Totila notou la inquirição dos ovinos
e quis: – Aonde foges, pastor, de gadrãos? – 3390
El outro, contudo, sabendo a quem se avançava,
falou de voz temerosa e caçando palavras
enquanto a talha berrante cercava Totila:
– Perdoa, rei, a intervenção de meus bode
pela minha vida e menor do que a deles. 3395
Matei ninguém, non roubo, non sou de mentir!
A minha vidè de andar por aí sem caminho
e bode veio atrás e botei pa comer.
Agora, rei, meu bode non vive sem mim
nem eu sem bode, què bode par’da família, 3400


170




filho meu da cabra e tirei da barriga.
Apareceu soldado caçano o mo gado!
Ei quer levar simbora mo bode què meu
c’o dou de viver, mo rei, mas quequeísso?
Aqui nego leva mha cabra eo jogu’è praga, 3405
eis tão pensan’ quisaqui foi presen’de rei?
Toma prumo, peão, sai palade mou bode! –
Ao redor amedrontad’as ovelhas pastavam,
os olhos inteiramente voltados ao rei,
rebanho mastigador de pasto e fitando 3410
calado, prestes à fuga desordenada:
Bastava um passo violento e corriam.
Mas ele pastor tomando calma seguiu,
enquanto os gadrãos atendiam resposta:
– A vida tua, Tótila, è de gesto bonito 3415
e bonito que nem tu fez mo’rmão abonado.
Veio um soldado maltratano a menina,
Totila matô’o soldado e cuidou da menina
e deu dinheiro e gado e cuidou da menina!
Quando voltou mo’rmão e falou de Totila, 3420


171




o povo entendeu “issaí què rei de verdade.”
Agora chega o rei quiè este quiès tu
e vem tomar meu gado, por quê, praqueísso?
Ô meu Deus, explica aí, tou confuso,
rei què bom roubano embora mou bode! – 3425
Os bodes, percebend’a aflição do pastor,
berravam inquisitivos dum berro agitado.
Totila, porém, nembrando o caso longínquo,
mirou melhor el homem de ovinos e disse:
– Este homem pode reter o seu gado! 3430
Ladrão, pastor, ladrão Totila non foi.
Explica aos conterrâneos teus da Sicília
que o rei sentiu la ingratidão do teu povo
quando alegre e de braços abertos abriut
os portus e as portas del ilha a Belisário, 3435
sabendo que guerreava contro meu povo!
Desde ele tempo, carrego muito entristo
a nembraça dum gesto apagador de amizades
porque, pastor, a vida próspera vossa
também se deve a Teodorico, o bondoso 3440
que nunca pôs a mão no pão de seus pobres.


172




Pode avisar por aí que esse gado que embora
levo, eo levo a Roma e non levo pra mim!
Pastor, se eo precisasse roubar roubaria
de quem tem muito mais e merece benmenos. 3455
Aqui foi sempre assim lo costume, frumento
e gado vão para Rom’e uma parte fica.
Non tou inventando do nada, então por quê
surpresa e raiva? Antigamente ninguém re-
clamava, que foi que mudou? A fome è menor? 3450
Quem tinha fome quando os tiranos gualdavam
inda passa fome, pastor. Non somos amigos? –
O pastor, entonce, escolhendo de bodes,
cedeu parcela a Roma e Totila se foi.


α’

Mas em Roma o rei sofreu numa triste missiva: 3455
A mão de Rodelinda lhe fora negada.
Como se não bastasse a paz
o amor também fugia.
Totila relembrava
as juras de jovem, 3460


173




as confissões trocadas
no canto e no vale.
Perdera muitas noites
com saudade do abraço
guardado pelos anos. 3465
O coração se transforma
na ausência, depois de crer
na promessa e no mundo.
E agora, que acontecera?
O rei relia a carta 3470
em busca do tempo perdido.
O nome do tempo era Rodelinda,
a princesa dos francos.
Como o tempo engana!
Era tão bonita ela amizade 3475
entre as terras e os povos.
Eles trocavam presentes
e provas dalgo duradouro.
A flor populoro unir-se-á
num casamento estimado. 3480


174




Mas essas juras de amor,
que ilusão, que pecado crer!
Ogano Tótila via quem eram
os francos e o quequeriam:
No meio da luta mudavam 3485
partido, agora cá, ora lá.
Primeiro estavam no norte,
depois invadiam o sul.
Essora era só lo mar
separando os godos 3490
da Espanha e da Itália.
A guerra eclodiu, fecharom
acordo com um e outro.
Vítice, aquele rei godor,
lhes dera a costa da Gália, 3495
Marselha a fim de acalmar,
mas dali quiseram benmais:
Tomaro o norte da Itália
nos Alpes, soltos no Vêneto,
Totila e Justiniano assustados. 3500


175




Se aproveitavam da guerra
que ocupava dois governantes.
Eles dois queriam dos francos
neutralidade, assim se calavam.
Mas uma coisa o Froi conseguiu: 3505
Que os francos ficassem no Vêneto
ata lo fim da guerra, a promessa.
Home acertasse então o novu acordo.
A verdade do dia era a carta
do amor que jamais è verdade. 3510
Dizia o quê? Ah, Totila non tem
direito de amar ca não è rei:
Totila tomou a Roma e perdeu,
o Imperador nensequer reconhece!
Que rei, que partido e noivo è este? 3515
No mundo civilisado, a barbaridade
máxima è mesmo amar de verdade.
Pairava a pergunta: Rodelinda
então se importa só com nomes?
Era mentir o amor de Rodelinda? 3520


176




Acreditar em palavras como dói,
ah, como dói acreditar em palavras!
Era dessa gente a promessa da vida,
a espera da paz e do bom coração.
Era desse povo a voz da salvação. 3525


β’

Contudo um outra carta abordou, navegando
da Itália e caçando João, cabeça de tropas:
“Valeriano, a comando em Ravena, saúda.
Aqui tà caban’a comida e tamo cercado,
falta dinheir’as puta tudo foimbora, 3530
então tà fei o negócio, cara, acredite!
Agora Totila cercou nosso forte, viu?
Cercou de verdade, aqui nõ entra comida!
Eo já falei mas vou repetir: Atitude
de home tem que tomar agora ou nunca! 3535
Que porra è essa, soldado caçano rato?
Mas c’oc’o to fazen aqui sem reforço?
Você non sá que Ancona se o pessoal
caí a Itália cai todo mun’de vez?
Rapaz, eo nem guento escrever de tanta fome! 3540


177




Ó, se non for pa mandar socorro agora
tu pó ficar, viu? Psà vim pacà não,
sò manda a pá pa enterrá q’o godo enterra.
João, tu quer ser home? Zarpa com tudo,
socorre nós pel amor de Deus ou de Apolo!” 3545
João de Vitaliano, balançando a cabeça
e mirando longe o mar, pondera o dilema.
A l’ordem è clara, atender em Salones
até que as tropas de Narses arribassem,
depois segui-lo cons homens e as naves. 3550
Estava escrito, assinado por Justiniano!
Será que Valeriano estava falando
sério? Mas por que também mentiria?
Non tinha como non ser verdade, mas honra
impera rogar, d’a quem se deve, anuência. 3555
O caso era espinhoso, o tempo era escasso.
O cara manda uma carta hoje a Bizâncio
e são semanas de espera. A morte iminente
non dá licença. Num caso de vida ou morte,
João ruminava as consequências dos atos: 3560


178




às vezes è desleal mostrar lealdade.
O bem de Ancon’e o juramento a Bizâncio
surgiam, gladiantes, na arena da morte.
João passara menosprezado por todos,
guerreiro que era talentoso e contudo 3565
um poço guardador de mágoas turvas.
A voz dos generais abafava os conselhos
mas o meio da luta os provava corretos.
Estava louco sim para ter um ensejo,
louco para provar quem era! Mas isso? 3570
Contrariar seo Imperador e non al?
Ali se calou na comparação dos males,
curvado ao peso do dessaber e das horas.
O fato era forte e não cabiam lamentos
ante a lição do acaso e destino incautoro. 3575
João, num surto inordenado e na pressa,
conclama, ordena e grita à massa: – Prepara
navios! – E sem sabendo futuro e jornada,
as tropas embarcam rápido naves adentro,
João escolhendo a dedo os heróis de valor. 3580


179




Zarpou! Ao bafo de frientíssimos ventos
e mar violento, cruzou na tempestade
em virações tenebros’a garganta adriática.
Trinta e oito navios avançarom impávidos.
O remo que a mão impôs à boca das ondas 3585
não se quebrou: Por breve instante a vida
venceu – o vaso frágil – a fúria do inferno.
Passarom fortes, humilharo nos braços
a força de temporais e l’orgulho do mar.
Exaustos, não contudo victos, pisarom 3590
atrás de escuridões flutuantes o margem,
vistando nas nuvens o sitiado penhasco
donde se erguia firme o forte de Ancona.
Desembarcavam prevendo certos o inglório
tamanho da luta e João apontava claro 3595
a sorte. Em terra e mar, o frio hibernal
mesclava-se ao arrepio, os temores das almas
subiam, em contemplando o perigo da morte,
alturas maiores que a ribanceira cercada.
João mirav’as mãos e as mãos de sous homens 3600


180




titubeavam perante o prospecto da treva.
Qual non foi contudo o suspiro de susto
quando do fim de angustiantes praias
surgiu, nas brumas derradeiras, moção
de horizonte, véu, revelando do incerto 3605
a bandeira inabalada de Roma e broquéis
de guerreiros: Valeriano e Ravena abordavam!
Ossada ambulante, um general concorria
a João, derramando dos olhos o seu alívio.
João, porém, percebeu la causa da empresa: 3610
Valeriano o julgara um soldado sem honra
como os homens vis que, vendo o companha
clamando, passarom reto. Não esperava
ver naquela costa os navios de Salones:
A prova era o vir em pessoa por não confiar. 3615
Astuto... Pedira ajuda alegando fraqueza
e pero aparecia benforte ao combate:
É por essas e outras, João contemplava,
que a vida vai minando a verdade da gente.
Valeriano, enfim, percebendo a tristeza 3620


181




envergonhou-se um pouco da própria alegria:
– Perdoa de mim, João, um juízo incorreto!
Começo a ver, conquanto tarde, o tamanho
da tuas palavra e tua verdade me humilha.
Agora sei, guerreiro, quem sês e quem foires! – 3625
Agora? João, vislumbrando o perder-se do mar
um segundo, logo baixou os olhos na areia:
– Traí, general, o Imperador em Bizâncio,
perdi meu honor pra vir aqui te ajudar. –
Valeriano, mordudo por dentro, entendeu 3630
melhor o candor e a raridade dum homem
correto e triste injustamente ultrajado.
Erguendo a voz contrita responde: – João,
juntei mos home preles ver de verdade
nocê comé que se luta firme e bonito, 3635
home nosso, teus benmais do que meu.
Marchei, João, foi só pa vim te entregá
que tu merece mais vinhaqui pa ganhá:
Traíste não, você ganhou foi valor!
Aceita esses home aqui, sacrifício meu 3640


182




de amigo que to trazen’e jà vou mimbora. –
João demite ele gesto acanhado: – Fica,
guerreiro! È generoso o pendão da vitória,
paira sereno et abriga o nome de muitos. –
Num momento amargor e remorso abraçarom-se. 3645
A dor se interrompeu pela nova notícia:
Totila já sabia o que estavam pensando.
Mandara, ouvindo o desembarque arrojado,
possante armada em quarenta e sete navios!
Chamara cedo os conselheiros do reino 3650
e reinante explicara: – Basta Ravena cair
e teremos tod’a Itália. Ancona se rende
a guerra acaba, os provimentos adentram
por lá, Ancona a gente tem que tomar! –
Mas quando teve exposto o curso do plano 3655
de como a frota avançasse buscando a batalha,
as vozes se erguerom: – Tótila! Werra de mar
e guerra d’água è bem diferente da terra,
o bom manejo ali tem que ter firmeza,
non basta ser lanceiro não nem flecheiro. – 3660


183




Assim falara Vilas, e Rigo assentira
cons outros. Porenh’o rei godor retrucava:
– Mas duvidais, estoas, do extremo do caso?
Gadrãos, escolha non temos, tenhamos coragem!
Non tem auxílio de terra chegando alinão: 3665
No mar que tem que arrebentar o perigo! –
Os homens grandes vislumbravam os anos
lustando aquela força d’água dos vândalos,
como outrora com pouca frota apossaram
o mar e do mar a cidade de Roma e milhares. 3670
O sangue irmão dos godos, comum germanor,
decerto fervia como nos vândalos antes
robusto e prometendo a proeza nas ondas.
O rei, atenuados os grandes, adverte:
– Agora è só sperar que a sorte è lançada! 3675
Se o forte de Ancona resistir à bravura
do assalto, estoas, nada mais interrompe
os pés de Narses, estamos arruinados. –
Irom zarpando afoitas de toda a costa
galeras largas e carregadas de guerra, 3680


184




bandando-se embora em perdições adriáticas
u remavam, depressa, a destino sem medo.
E flutuando o mar como o fogo do inferno,
sofriam no corpo os elementos da fúria.
Ao cabo da grande armada estavam capazes 3685
dominadores de remo. Provindos do Império,
buscavam do novo rei la paga e prestígio
que longe Bizâncio negara. Traziam consigo
perícia de naves e perspicácia de ardis.
Arqueiros eleitos se exercitavam na popa 3690
e na proa, donde afiav’as flechas, a cópia
de lanças passava pelas mãos de gadrãos,
notadamente dum jovem: Tenaz, Ruderico
desdo começo pediu a seu pai, insistiu
em seguir e mostrar, aos inimigos de além, 3695
o temor da sua lança e valor de seu nomen.
Não se menospreze o poder do arremesso!
E contros avisos insistentes de Vilas
nembrando que mar carece mais de arqueria,
embora embarcou desafiand’a incerteza. 3700


185




Quando detrás dos horizontes de Ancona
e de brumas despontar’os navios apressados,
João e los marinheiros zarparom. Da nave
o general de Salones exorta: – Guardai
no peito, meus caros, o nome desta jornada, 3705
porque depende dela e sò dela o futuro
do Império, Roma e vossas vidas. Coragem
mostrade e valor e experiência e grandeza,
porque son poucos ensejos que a vida presta:
Se aquela frota vencer, o destino acabou! 3710
As armas que se abrigarem no vosso abraço
usai com orgulho e como pel última vez,
porque depois de nós amanhã è milagre! –
Entraro enfim a bruma do além, inimigos
remando de encontro. Eles não hesitarom 3715
quando pronto irromperom galeras hostis.
A tempestade desesperada das setas
cruzava o vazio do abismo al horizonte,
as mãos de romanos largando a flecha d’arco
caçavam pelo véu a cabeça de incautos. 3720


186




Puxado o míssil co viço maior do braço,
ao homem na mira milagre algum socorria
contudo caía, cravada a perda no peito
e carregado em vermelhantes ondas embora.
Os godos, então, aproximando as barcas 3725
e as naves atracando, lançavam os corpos
contra os corpos, atacavam com clavas,
saltando e penetrando a popa de hostis
por onde arremessavam lança e cortavam
co gume a carne, amedrontando os audazes. 3730
Julgarom já maior a coragem que a vida.
Cantout errado cujo canto de guerra
bradou vitória cedo e tarde a verdade,
porquanto longe e destemudo assomava
o braço de Ruderico, certeira a lança. 3735
Desafiando os arqueiros, o filho de Vilas
coa mera força da mão catava dos ares
pujante pontiagudos projéteis, impunha
a palma como escudo frustrante de setas.
O peito exposto a provocá-lo invejoso 3740


187




destino, bom lanceiro tomava da proa
as arma em cuidadoso arsenal, coletas
por anos as setas que todo dia afiava.
Alimentava a sangrenta sede dos fios
de gumes et haste, cinco pés de madeira. 3745
Troféu tremendo, rumava a lança de ponta
a ponta banhada em sangue de vísceras
quando atravessava o corpo e varava
além, buscando vidas outras no incerto.
O brado, o mar, a morte pouco importavam 3750
e pouco impressionav’os afoitos ataques,
o herói da lança cercado e gestor de vitória.
Ereito o braço, o jovem lançava arremessos
que em repetidos golpes cortavam escudos,
quebrando a sós o peito armado de intrépidos. 3755
Tamanha força lhe propulsava de entranhas
que às vezes a fúria da lança levava consigo
embora os troncos, cravand’os no fundo do mar.
E quanto mais pelejassem contra a perícia
de Ruderico em tanto mais perecessem, 3760


188




porquanto o braço contro qual se lançavam
braço inquebrantável no amor de seu povo.
A frota pois de João aturdida, a vitória
surgia descendendo do sonho à verdade,
nutridos ora os godos, o viço em coragem 3765
de luta vastando pelo mar e quebrando.
E pero pouco vale a valência das armas
quand’o acaso se opõe, inimigo de esforços.
Ora, Fortuna, invejando a vitória do forte,
beirando o ventu que ali passava odiante 3770
ordena ao elemento: “Confunde esses homens!”
Súbito o caos se alastra em góticas frotas,
desordem desbaratando o governo do remo.
Enquanto o bom lanceiro atirav’um petrecho,
o engano flutuante levava exaltadas 3775
galeras ao rumo invocador de desgraça.
Ilusas, ora se aproximavam demais
atrapalhando caminhos umas das outras,
conglomeradas naus e naus atracadas,
ora no afã de desvencilhar-se contudo 3780


189




demais se afastavam perdendo o contato.
Assim unidos no caos e de todo isolados
bradavam-se antagônicas ordens apenas
e não lutavam, romanos tomando proveito
e arrebatando embora as barcas e as vidas. 3785
Industriosos na espreita, pronto cercav’a
galera à deriva, saltando a bordo e matando.
Cruzando grupos de duas ou três atracadas
naves de godos, aproximavam-se arqueiros
enquanto os incautos debatiam aos gritos 3790
governo de rumo, e miradas as flechas
o peito alvejado frente ao mar tropeçava,
desgovernadas feridas, carcaças tragadas.
Em vão a barca assaltada lançava de bordo
as arma, ajoelhados rogando clemência, 3795
rendudos todos e todos ali degolados.
Caíra a noite e galeras desesperadas
cuidavam fuga apenas, remando sem rumo
e cada qual por si dispersa, perdudas
no medo e vagas pela gartanta adriática. 3800


190




Pobre a nau que se deparasse no azar
pequena ou grã perante as naves em fúria,
o assomo ondaro como se pouco bastasse.
João general, reconhecendo a verdade
no escuro, atribuindo pois uma estranha 3805
vitória ao acaso, conclamou marinheiros
e desdenhando, cônscio de si, galardões
de corriqueira fama e troféus, navegou
embora a Salones, o coração humilhado:
Ele a certa altura perdera a batalha. 3810
Assim pensava e ruminando nas brumas
rumava além com vitoriosos incautos
e preparava desde pronto a pungente
missiva, rogando a Justiniano perdão
por gesto intempestivo e dever arriscado. 3815
Em meio à tormenta navagavam os poucos
godos que, sobrevivos por certo milagre,
buscavam nas ondas a direção duma costa.
Mas Ruderico, lançado em fúria de bordo,
tomara uma tábua e flutuava em distâncias, 3820


191




oculto em perdições impossíveis na treva.
Decerto Netuno ali vingava ultrajad’o
honor divino que um povo inteiro traíra
quando, inopinado e deitando por terra
antigos ídolos, novu deus e de longe 3825
tomou por seu contrariante avoengos.
Assim coligado à fortuna rancorosa,
soprava assustadoras vagas e abismos
tragavam as desesperações dum guerreiro,
porquanto o filho de Vilas, longe lançando 3830
embora as armas ora inúteis, pregava-se
ao carcomudo escombro que o fato lhe dera.
O acaso, porém, erguendo altíssimas crestas
altíssimo alçava quase às nuvens o náufrago
e súbito, o mar cessante, o abismo se abria 3835
por onde em vertigem Ruderico varava
em queda livre. Muita vez a madeira
perdeu-se fraca daquelas mãos e da vista
e Ruderico nadando e buscando e clamando
tomava como do nada e que quase afundava 3840


192




o pedaço de tábua, pau que o deus maldizia.
A voz, abafada no vão das vagas mas alta,
bradava tragando fúria, ventu e rajadas:
– Cresci cum fé, Jesus è remo de náufragos!
Ô, meu Jesus, me deixa morrê aquinão! 3845
È tanta coisa queo tem pa fazer nessa vida,
eo tava só começano a viver quenem gente
agora queo tenho pai, amor de meo povo!
Quanto mais façanha o mou braço toía
mais eo via que Deus è paz e bondade. 3850
Non deixa o mar traiçoeiro acabar comigo
não, eo tenh’um passado pra consertar,
fiz mal pa muita gente, eo preciso mudar!
Ô Senhor, rema eu desse mar, me-dà força
que Deus è grande e dá pa quem non merece. 3855
Que triste aquele dia em que ergui minha mão,
que triste, contrum home que hoje è mou pai!
Non pode, essa vida e maldade tem que acabar,
por mim cabou, eo quero ajudar quem precisa.
Mas que bastardo queu sou, que cão, que maldito: 3860


193




eo to pagano por toda essa vida enganada!
Me esquece não, Jesus, pieda’de meu pai!
Me rema que agora em diante eo saíno vivo
daqui mha vida è tua e do povo de Deus!
Eo sinto den’de mim, meu povo quer paz, 3865
romano também, então que Deus abençoe.
A vida verdadeira è bonita e sò vida
bonita cabe ao verdadeiro guerreiro. –
Assim chorando a Deus e rogando nas ondas
o filho de Vilas passav’o abismo de crestas. 3870
Desembarcar’os poucos que a sorte trouxera
em colisão a rochedos e a bancos de areia,
nadando como andando e distantes do porto.
Corriam na madrugada os demandantes ajuda,
os restos da formidável armada que a fúria 3875
e muita inveja do acaso soprara à ruína.
Ela derrota de mar quebrou-lhes o espírito.
Partirom endoidecidos no meio da noite,
levando a notícia desastrosa a Totila.
E longe de praias, escuridões carregavam 3880
a triste tábua de Ruderico à deriva.


γ’

Narses porém marchava longe daqueles eventos,
tendo em mente o novu filho, a mãe que assombrava
firme ainda na imagem, die e noite, a memória.
Gradualmente, o general se orgulhava da vida 3885
quando se comentava o desempenho do jovem.
Era destreza até de calar a boca dos mestres.
Narses merecia o contentamento, depois de
tudo o que fora um desviver, ao menos um filho,
sim, uma certa bõa ilusão de afeto e família. 3890
Nesse novo sentido à vida, um homem idoso,
baixo, frágil, cabelo sujo e de rosto enrugado,
teve um antegosto de quão gostosa esta vida
pode ser se o mundo não destrói nosso corpo.
Eles olhos brilhavam qual se fosse menino 3895
como Procêncio, sereno, virgem e sonhadora-
mente iluminados, ah, que esperanças de amor
e como è bonito o mundo nos corações inocentes,
como são delicada-las armas que vão erguendo
pela estrada na angústia dum sentimento melhor: 3900


195




– Que tristeza è essa, Procêncio, sai dessa vida!
Pó deixar tristeza acabar co sonho da gente
não, meu filho! Teve gente aqui que tentou por
anos e ainda não consegue atirar uma flecha
como tu! Levanta a cabeça! – Procêncio respeita: 3905
– Issè verdade, pai, to levando jeito p’a coisa,
mas eo só atiro em passarinho e nas planta,
nunca flechei ninguenh’e fico aqui matutano:
mas será queo levo jeito mesmo pa guerra?
Tipo, eo puxo a corda sim mas dà dó de soltá, 3910
coita’do passarinho e quanto mais dum soldado.
Só que aí me envergonho porque roubei galinha
mas non sou violento, eo fiz p’ajudá mha família.
Ero eu, que non sou violento, um home de guerra? –
Procêncio baixa a cabeça a chora, pensando na mãe: 3915
– Vêm da vida reta as tuas palavras, Procêncio,
são motivo de orgulho pra quem te ama e te educa.
Uma coisa na vida aprendi de soldados sinceros:
Ser violentè uma coisa, outrè usar violência.
Filho! O bom guerreiro alevantou suas arma 3920


196




como gesto de amor primeiro e depois violência.
Quando o homem vil, destruïdor de pequenos,
põe a lança aos ombros querendo como presa a
vida sem erro, tem que fazer o quê? Impedir!
Erguer a bandeira da inocência e co peso da vida 3925
como das armas lutar, prohibir um gesto indevudo
contra nossas mães e amigos. Ol home de guerra
sabe usar violência quando salva uma pátria,
mas el home de guerra, filho, foi justo primeiro
e só depois è de guerra o guerreiro què justo. – 3930
Dito isto, Procêncio calado e boquiaberto
bem reparava a situação: se fosse verdade
pois que a guerra è para os violentos apenas,
que estaria fazendo Narses naquela campanha,
frente a poderosas tropas um velho, um eunuco? 3935
Ele entendeu, naquele momento e nos olhos do pai,
a verdadeira força que faz um distinto guerreiro.
Mas o dessossego prossegue: – A guerra castiga
tanta gente, meu pai, que não merece a derrota.
Tantas vezes o cara que sabe lutar de verdade 3940


197




teve que obedecer calado uma ordem injusta,
foi obrigado a fazer maldade até sem querer.
Non quero terminássim não quenem criminoso. –
Narses acariciou-lhe a cabeça, ensinando:
– Filho, a fealdade maior duma vida que vale 3945
foi erguê-la espada quando alguém se rendeu!
Aí, Procêncio, tem que ter caridade e bondade.
Quando a pessoa está se ajoelhando e pedindo
paz respeita: teu dever è agir a l’altura. –
Isto sim Procêncio entendeu ali como certo: 3950
era impossível vir de Narses um ordem covarde,
mal que desrespeita a retidão de quem serve.
Mas o pai completa: – Quando o comando ofende
a consciência do lutador e o peso das armas,
sê primeiro home e salva a verdade das armas: 3955
pois o nome da bõa guerra è virtude, mentira
a guerra que ofende a vida desarmada e caída. –
Foi redentor vislumbrar a silhueta de longe:
era Salones interrompendo a conversa importante,
era João de Vitaliano, apressado, ofegante: 3960


198




– Eita, Narses, fui passado patrás, me enganaro!
Fui lutar ni Ancona contra as ordens da corte:
ganhei no mar mas quase perdi, ganhei por acaso.
Narses, non tive escolha: Valeriano escreveu
que nem guentava andar mas tava lá combatendo! 3965
Olha, o Imperador jà foi avisado, eo te imploro,
xô continuar cucê nessa guerra, me ajuda! –
Ora, o pai de Procêncio considerando o relato
disse apenas: – Prepara logo as tropas e vamos! –
Forom! A nova marcha unia aos homens de Narses 3970
os restos da momentosa grei que seguia Germano
quando a morte o sequestrou, e leais de João
ogano redobravant a vid’e a cópia das armas.
Era excitante ouvir a batalha de Sena Gálica:
Narses pensava o caso inusitado dum grande 3975
ter que pedir desculpas pela própria vitória.
Entre si, a sós, o general se aproxima:
– Foi impressionante, João, la tua coragem.
Posso pedir um favor de amigo? Ensina Procêncio,
mostra um pouco aí desse seu valor pra meu filho! – 3980


199




Ah, João cabisbaixo se emocionou como nunca.
Isso sim è què ordem de guerra, issè comando!
Procêncio ganhou ali no mesmo dia um segundo
pai, um protetor incansável: – Então, professor,
foi covardia fugir – o jovem aluno indagava – 3985
quando o cara tá perden’e non dá pa ganhar? –
Mas João, contente apesar das feridas, concede:
– Caso non dê p’avançar, você recua um momento,
volta depois e ataca, as armas aí do seu lado.
Mas tu pó se render se tá cercado e sozinho, 3990
cê que sabe. Tem duas coisa só que non pode:
Uma è pôr as arma no chão, traição, covardia.
Outra è lutar com raiva: cabeça fria, Procêncio,
raiva só atrapalha a mira, então se concentre.
Quanto a perder, se for non tenha medo, se renda: 3995
pois guerreiro que è forte aceita e te deixa viver.
Covarde mata, mas ó, se impressione não, è melhor:
melhor morrer que esser escravo de gente covarde.
Nesse caso aí quem ganhou foi você, è consenso.
Mas enquanto houver um bem a ganhar numa luta 4000


200




pó lutar porque nessa luta a morte è vitória. –
Isto e mais debatiam quando o filho interpela:
– Então, João, non pó ter raiva não de Totila?
Mas ele fez o quê? Tótila è mau de verdade? –
Dentro em pouco receber’o reforço lombardo. 4005
Povo errante em desafeto aberto dos povos,
seus governantes geravam guerra constantem
contra os gépidas, érulos, francos, Bizâncio.
Mãos violentas incendiavam os corpos e aldeias
mas o Imperador, no afã da conquista da Itália 4010
como sedento de amigos, retecera cons bárbaros
nova causam, forjando-se em dubiosa aliança
o dote desastroso e dor hedionda na história.
Inda assim, ao amor do sangue esperdiçado
o povo rude mesclava afeto ao nome de Narses. 4015
Lá marchavam agora os povos unidos do Império,
levando pelo mundo os homens, as armas e as aves.
Era incerta a via, o prenúncio do sangue trazia
medo à menti de alguns e contudo sede ad outros.
Já se aproximavam quase as paisagens dal Ístria 4020
quando João general recebeu missiva da corte.
Era decerto a l’ordem de retornar a Bizâncio,
era a punição do trono. Mas o astuto enganou-se:
“Tomamus ora nota, João, dum gesto impensado.
Segue, destrói Totila e trataremus do resto.” 4025


Totila






E





δ’

Qual non foi a surpresa por Deus milagroso
pois que demandando as portas do Vêneto
um forte francoro interrompeu-lis o rumo,
donde Segisberto marchava de encontro:
– Em nome da vossa bõa guerra, aliados, 4030
ide embora daquesta terra e salvay-vos!
Ousaves, Narses, ofender este solo e
sujeitar a Itália à mercê de lombardos?
Muito me entristece a que ponto chegaste! –
Narses, porém, perplexo da audácia, retruca: 4035
– Pois me espanta, Segisberto, que os francos,
a quem o Dono dos povos chamava aliados,
num gesto menor se apoderassem de terras
propriedade de Roma e das leis de Bizâncio!
Como se não bastasse a reis sem nobreza 4040


202




usar ovantes a partem que o Dom concedera,
vierom farejando o que elor nunca fora!
Ora, em toda esta palhaçada a que ponto
os cobiçantes reis chegueirem, declara
mais da palavra a triste cena que assisto. 4045
Non quero nem saber em cujo desígnio
migrout o povo franco do norte ao Vêneto,
mas desejo avisar em que terra te encontras:
Propriedade de Roma e das leis de Bizâncio! –
O comandante do forte contudo interpõe: 4050
– A profusão de imoderadas palavras
menos me ofende que apenas entristece,
vinda que vem do de quem melhor se atendia.
L’home que vê primeiro e que julga depois
jamais desabusou deste modo a meu povo. 4055
A terra do Vêneto, ousado, foy concessa
de fato pelos godos à nossa tutela.
Propriedade de Roma, Roma a cedera
a Teodorico e los sucessores do godo.
Foy Totila, o consolador de oprimidos, 4060


203




que aqui nos deu o patamar em que estamos:
Pois a nós, aliados de Roma e dos godos,
compete defender da impostura uma Itália
tão relegada à barbaridade das armas:
Tão exposta que nem hesitas de intro- 4065
duzir aqui, audaz, um rol de lombardos
et homens vis que recrutaste em cadeias,
comprando com prata l’afeição de ladrões! –
João de Vitaliano ergueu sua espada em
protesto contudo Narses tranquilo provoca: 4070
– Ladrão, meu caro, è povo que invade país
alheio sem convite ou permissão adequada.
È tudo pretexto: Teodebaldo, o teu rei,
uniu-se a Valdrada lá do trono lombardo!
A diferença que sei de lombardos e francos, 4075
Segisberto, è esta: O lombardo se agrega
à causa do Império quando nós conclamamos.
Adentram-na terra alheia quando chamados
não por falsário, mas pelo Dono dos povos
cuja vontade questionas e desobedeces. 4080


204




Pois aí se vê lealdade o que seja,
pois aí se vê sacrifício de vida.
Eu, contudo, vejo bem desses francos
como prometem primeiro e depois decidem.
Ué, non foi assim que este mundo assistiu 4085
la profusão de tantas juras traídas?
Chamados para provar valor e hombridade,
não viestes, ficastes, calastes, fugistes:
Vivestes deliberando ganho e malícia!
E no entanto mi cumpre revelar a verdade 4090
desta terra e doutras que tanto usarpades:
Propriedade de Roma e das leis de Bizâncio! –
Mas Segisberto crava o seu ero na terra
enquanto em torno os impropérios irrompem
pelas tropas na troca de olhares irados, 4095
e realçando a voz em flama interrompe:
– Não se assente em meu domínio mentira:
Estuda nossa história e verás o que somos!
O povo dos francos è federado do Império
pois o trono do Imperador a que serves 4100


205




reconheceu. Governamos de fato e gualdamos
num território concesso, nunca roubado
e digo mais: Adotamo-la fé de Bizâncio,
aí se vê lealdade, enquanto te abraças
a hereges, um povo desordeiro e sem rumo 4105
e transmissor de desgraça por donde se apossa.
Não se assente em meu domínio lombardos! –
Mas Narses não se impressionando comanda:
– Abre alas, Segisberto, a meus homens:
lombardos, érulos, gregos, persas, romanos 4110
que os francos em vergonhosa mente traírom.
Abre alas ca os homens todos que adentram
adentram contra godos e não contra francos.
As ordens vêm do Imperador, obedeçam! –
E como Segisberto negasse a passagem, 4115
Narses ouvia calado a resposta do franco:
– É direito meu decidir os que adentram
a partem que o rey mi confiou de defesa.
E para que não repitas de modo indevudo
ofensas contra um povo correto, amigo 4120


206




não de impostores mas de Deus e da paz,
discutiremus aquesta causam que invocas
não com tipos da tua estirpe e soldados.
Ainda hoje a delegação dos legados
ere enviada a caminho de Constantinopla 4125
para tratar, com a quem compete em pessoa,
propriedade de Roma e domínios francor! –
E não mentiu, porquanto os altos legados
leixavam a fortaleza remota, seguindo
viagem planejada e visita de estado. 4130
E que fazer? Entrar por força das armas?
Era arriscado demais atacar uma gente
de jure aliada, expor o grosso das forças
à guerra contra dois inimigos unidos,
quando em verdade estava incerto o caso 4135
contrum único apenas. Francos e godos
unidos contro Imperador? Desastroso!
E Narses calado e consternado nas portas
do Vêneto consultava em vão conselheiros.


ε’

Apareceu’m mendigo buscando Segisberto, 4140
todo pálido, coberto com pele de carneiro.
Dentro do forte foi que reconhecerom:
Era Rigo, o escudeiro do rei
gemendo, rogando
ver Teodebaldo, o rei francoro. 4145
Mas ali se encontrava em caravana de acaso
uma taciturna mulher,
e Rodelinda bem percebeu lo traço gótico,
dizendo a Rigo: – Queres o quê de meu brodo?
Está de cama, está doente! – 4150
Rigo: – Doente o jovem rei,
o filho de Teodeberto doente? Mas como? –
Antes de mais a princesa:
– Ah, eu sey quem te mandou!
Tótila não me engana apesar do tempo e da guerra. 4155
Quem o viu durante a paz o que as horas fizeirem
quase desacredita como tudo se perde. –
Rigo não permite: – Perde não, Senhora!
Ele ora por vós como amigos.
Ele sofre ao ver 4160


208




como son vãs as palavras que prometemos por aí.
Mas o coração què tringo o tempo non fere!
Só Totila sabe o que teria a dizer
à mulher que sempre amou.
Ao rei francor direi 4165
la verdade: Tótila ainda espera, meu Deus,
um gesto a l’altura deste povo.
Não o gesto de tou pai, que chegou invadindo
nossos castelos. Mas Totila auleia
porque o passado è maior. 4170
Aqueles laços que unirom dois povos,
foi tudo em vão, foi tudo mentira?
Totila sò quer sinceridade, sò isso! –
Ela sentau-se perante a janela
donde mirava, tristonha e sonhadora, o cursu dum rio: 4175
– Rigo, responde,
Tótila quer o quê? – Rigo: – Vitoriam,
vida, a salvação dum povo
que o mundo inteiro persegue sem motivo.
Totila quer o quê? Um mundo melhor! 4180


209




Longe dum peso repressor querendo o passado,
ele pesa à mente o porvir duma Itália liberta.
Nosso povo veio dum estau sem escravos,
sem pobres, sem gente caída pela estrada.
Roma è assim que deve ser! 4185
Nós abrimo-los braços sem medo,
nós dividimos do próprio pão.
Como è justo, gente, o reino dos godos,
como defende o fraco da truculência do forte!
Como salva da morte o faminto, o moribundo 4190
nesta terra farta e provedora de muitos.
Ah, que feliz o reino cujo rei nunca pôs
a mão no trabalho e no pão de ninguém!
Vai pela estrada querendo verdade do povo
pois dirão quem foire Totila e quem é. 4195
Totila? Tótila não, Teodorico,
porque Tótila só imita.
Vamos viver juntos, amigos, vamos! Vamos
construir esse mundo novu, livre, bonito
onde toda palavra, toda amizade è verdadeira! 4200


210




Não vamos partir cada qual no seu rumo não:
Nós os godos non temos muita gente
e quanto a vocês, essa paz não vai durar.
Non pensem os francos que essa terra
è lor, onde estão porque Tótila quis. 4205
Non pensem que um home como Justianiano
vai querer alguma coisa com franco
quando formos destruídos! – Rodelinda
apenas interpõe: – Mas Rigo, Rigo, Rigo,
por que tudo isto, esta desgraça, esta guerra, 4210
donde saiu isso? Meu coração não se esqueceu
de Totila, mas Tótila era tão diferente.
Como foy isto, Rigo? Eram tão friãos
os reis godor, o Imperador, os povos!
Eu vou pensando e vendo que o mundo non cabe 4215
na minha cabeça, eo não entendo este mundo.
Nesses anos de tanta confusão e de dor,
em vão me perguntey e pergunto ao céu
mas non vejo, nesta guerra, o partido de Deus. –
Mas Rigo, os olhos avermelhados, contesta: 4220


211




– Ah, Rodelinda, o partido de Deus
está num povo caído, abusado e ferido.
Num povo que vivia em paz numa terra distante
quando um falso amigo disse: Vai pra Itália,
vai, vai que a terra è tua, toma què tua! 4225
A nossa gente implorou: Senhor, non faça isso,
a nossa gente è simples, não caçoe da gente!
Insistirom: Pode ir, pode ir! E vierom,
ah, com tudo o que tinham, vida, amor, esperança
maior do que... Agora è isso, 4230
agora è assim, agora tem que sair todo mundo
feito cachorro com rabo entre as pernas.
Agora è fugir ou morrer, mas não, lutaremos,
non temos escolha, nós que plantamos, cuidamos,
lubamos esta terram como nunca se amou, 4235
nós que morremos perguntando a Gus:
Por quê? Fizemos o quê para merecer isto?
Mas quanto mais el erto se despedaça
mais sabemos que Deus è compaixão de pequenos,
Deus è partido, meus friãos, duma grei sem amigos! – 4240


212




Rigo falou. Do silêncio aniquilante
ela ergueu o rosto, limpando a lágrima lenta:
– Cala a boca, Rigo, porque non sabes de nada, nada,
cala a boca e non sês ingrato, cala a boca
e me escuta, infeliz: Ouvi que uma certa mulher, 4245
sabendo que Narses se aproximava da Itália,
pediu a Segisberto, implorou:
Non deixes, impede a passagem de Narses.
Ouvi que uma certa mulher,
sabendo que o seu frião estava em perigo, 4250
abandonou lo próprio irmão doente na cama
para pedir: Segisberto, deixa chegáqui não!
E ouvi que nada mais se pode toer
contra quem nunca fez nada contra nós.
Meu pai jurou lealdade a Justiniano: 4255
Non posso, Rigo, erguer a espada contra
meu fadro! –
Uma flecha forte entrou, devastando
a mente, el erto, as entranhas do mensageiro godoro:
– Wê, Rodelinda, que sinceras palavras e triste 4260


213




a gente que se ajoelha a teus pés.
Ergo do chão sozinho as migalhas dum povo
generoso, sem crime e sem paz!
Deus desdisse mesmo do povo dos godos. –
Mas Rodelinda, erguendo o rosto ardente, murmura: 4265
– Rigo! Rigo! Fala a teu froia:
“Say, meu amigo, say desta terra ingrata!”
Rigo! Conheço uma certa mulher
que saberá de abrigo a teu rey
werreiro e generoso! 4270
Abandone a guerra e tenha dó dos amigos!
Diz que uma certa mulher implora,
um vivo cadáver: “Foge, salva a tuam vida!
Salva, porque se morreres
morre contigo quem tanto te amou!” – 4275
Ela afogou-se em soluços, perdendo
desesperadamente a voz e os sentidos.
Segisberto, calado, olhava Rigo
e balançava a cabeça.
Mentre Rodelinda era carregada às pressas, 4280


214




Rigo abordou Segisberto: – Por dó desta mulher,
obedece, impede Narses, impede! –
Olharom-se amorosamente. Rigo:
– Vem chegando a primavera e cultores
precisam de paz. Se Narses trouxere a guerra 4285
nada se planta nem colhe.
Franco que és, Segisberto, que fomos friãos outrora
mais que agora os nossos povos, por favor,
resiste até lo estio e ganhamo-la guerra:
È sò isto o que pede meu povo e meu rei. 4290
Totila è bom, Segisberto! – Segisberto anuiu
auxílio. E Rigo partiut
orando alto, rogando a Deus piedade dum povo.


ζ’

Mas pelas folhas dum bom jardim
ouviu-se a voz duma certa mulher: 4295
– Eo ando pelas trilhas e quanto
mais o meu passo as marca mais
mi dou conta da vida e triste sina
e vejo e sey que nunca mais verey
quem amo e mais que ninguém amey. 4300


215




E no entanto, quanto mais eu ando
a derramar de meus ogo verdade
e fôlego, mais me perco e mais
mi dói lo peso de ser e esconder
de todo-los homem como me sinto 4305
e sejo: Ca dês que vejo este mundo
vejo o que este mundo me fez
e nem se viu jamais, neste mundo,
o mundo ouvir ou sentir a dor
dum ser que chamarom mulher; 4310
que sendo já maior do que mundo
o mundo menospreza e toda parte
ofende, como se fosse menor
e pior do que o mundo el erto
redentor e sereno que sofre. 4315
Por quê, se meu coração è maior
e mais verdadeiro que a vida
que Deus mi deu, este mundo
me ofende e despreza meu ar?
A minha vida è barganha somente 4320


216




nas mãos do império dos homem,
que nem na vida e na morte
saberão lo que cabe e carrego
num coração melhor desta vida
e da morte, ay, meu fôlego, ay, 4325
morrer, se esses homem soubesse
o que è de fato uma guerra
e como luta contra o mundo
e contra si uma vida sem erro
mas que sendo vida e mulher 4330
non tem estau em que seja livre,
livre sem que uma espada ou braço
interrompa o candor de seu passo
por entre as aves e as árvore,
inda que apenas procurando, 4335
como busco, Deus que me alenta
e sabe, talvez, de melhor morada
por onde a vida è livre e verdade
pode andar sem grilhões e sem medo
cantar por entre toda-las aves 4340


217




e as árvore sem a tristeza
da morte! Mas Deus è grande
e mundo com Deus non se acaba
nem vida em Deus è pequena.
O mundo me ultraja mas vivo 4345
e vou vivendo como o guerreiro
a quem recusarom as armas,
e adentrando o campo de guerra
eleva os olhos ao céu, erguendo
a spada da prece como el única 4350
arma que tem porque Deus li deu
e ninguém desarma e que peço
às avibos, aves, levade a Deus
minha prece que è prece apenas
e não espada, e prece da vida 4355
sem rumo e que non sabe orar
mas ora e por quem padece!
Clotilde, mãe de meus franco,
desce um momento da excelsa
esfera que Deus te abonou: 4360


218




Ensina à vida que só è livre
na prece a rezar, como a vida
que ao menos merece o que tem
e que sendo pouco tem que ser
o melhor que há. Tu que outrora 4365
fizeste a conversão de Clóvis,
inspira menores e dá-mi forças
de erguer a Deus um pranto melhor
e não de murmúrio, mas de amor,
para que firme um grande Rey 4370
estenda do firmamento a sua mão
de misericórdia ad um homem,
ay, que tanto padece e que tanto
e por tão grande tempo eo amay
sem medo e sem permissão do mundo. 4375
Gus è testemunha, eo não me movo
por corriqueiro desejo, mas o amor
de meu peito maior do que a carne
e maior do mundo me impele e peço:
Piedade, Céus, dum home que tantos 4380


219




odeyam mas cujo coração conheço
apenas eu, que peço amor e peço
compaixão e peço a Deus o ensejo,
se ensejo aprouver, de ajudar
o meu frião maior e meu homem 4385
como a Deus meu Pay convier:
Levay, andorinhas, levay a Deus! –


η’

Mas Rigo foi abordado no meida estrada:
– /o, mo si'ɲo, to 'venu ki tu ɛ 'godu,
m_ja'ʒudɐ_'i, pfa'vo, ko to proku'ɾɐ̃nu 4390
mo ɾej to'tʃil_i 'vilɐs pẽ'so ko to moxtʰ,
mew Dewz_o to ɛ 'vivu max 'kõm_o nũ sej,
a'ʒudɐ ew! / – E Rigo ampara, depondo:
- /ɛw'ke ktu'kɛ, hɐ'pa, falɐ_'i ko t_o'vinu,
to'tʃiʎ_ɛsɐ 'ʒẽtʃ_a'i se ko'ɲɛsi dʒi 'õdʒi? / – 4395
E pero o balbuceio do l’outro interrompe:
– o 'higu, nũ 'sabi mas quẽɲo'so? m_jakɐ'bej
nu max ki neɲ_ɐ'migu mew heco'ɲesi?
'ave ma'ɾij_ĩ'tɐ̃w̃ vo te ki dʒi'ze
mo 'nomi 'mexm_ɐ'ki ɐ 'kaɾɐ nũ 'bastɐ? – 4400


220




Ah, bastou, porque Rigo olhou melhor
e viu com muito susto quem lhe falava:
– Pelo amor de Deus, ès tu, Ruderico! –
Inopinados e assaz adoidadamente
forom-se abraçando os dois dum abraço 4405
calmo e sincero e pero vivo e pulsante
e repentinamente o bor e o legado
abandonados ao deus-dará do momento
ou sabe deus por ação premeditada
se libertaro sem mais ad um novo tremor 4410
ou carinho ou calor que subia e fazia subir,
e desenfreados saírom rolando no campo
num misto de lágrima, afeto e beijos,
bocas murmurantes o amor de Deus
e dum povo e duma nova emoção arrebata- 4415
dora e penetrante, os olhos nos olhos:
– Comé co to vivo, o meus amigo tudo
morreu! As onda levava pa tu-què lado,
eo era tipo um briquedo ali de Netuno.
Me abraça, Rigo, abraça co to devastado. 4420


221




Ai, com’eo amo esse povo, mas por que
que Deus faz isso cum nóis, eo mim perguntava
enquanto ele mar bebia eu bebia-o
mar mas aí gritei-ô, Senhor, piedade,
se abeira do meu naufrágio, me tira daqui 4425
queo vivo vou vivê quenem gen’de verdade!
Era cada cresta, era cada abismo,
Jesus, eo fecho os ói e vejo atè hoje!
Mas Deus è bom demais me salvou, jogou
nas rocha e passou pescador me deu de comer, 4430
to vivo, Rigo, me abraça, eo te amo demais! –
E Rigo o tinha entre os braços como um tesouro,
um mensageiro divino: quiçá nem tudo es-
tivesse perdido. Dividindo os beijos
e muitos soluços dum reencontro improvável, 4435
eles se amavam mentre o jovem ouvia:
– Guerreiro bom de verdade Deus n’abandona
não, Ruderico, a prov’è a tua vida!
Te abraço e te amo sim que você merece
amor do meo coração e dum povo inteiro! – 4440


222




Era verdadeira aquela amizade.
Rigo acariciava o rosto do jovem
e como custava crer que Ruderico
vivia, chorava e sorria. Ambos envoltos
no raro amplexo, ambos até se esqueciam 4445
de como rolavam praticamente entre os mortos
num trato de terra destruído de guerra:
– Rigo, eo non tive pai, eo non tive amor
mas Vilas me adotou e você me entendeu,
amigo, que bonito è você existir! 4450
Rigo, eo fiz ua jura no meido mar:
agora que Deus me salvou, agora è ganhar
mha guerra e depois o vo vivê feito Bento,
ca vida bonita è vida onde tem gratidão.
È cada coisa, frião, quesse mar me ensinou! – 4455
As mãos entrelaçadas, passarom a noite
ali dividindo o sopro, o corpo e as estrelas.
Sirius e Procyon, Rigel e Betelgeuse
e muitas outras menores, testemunhas
do amor e da humanidade. ––––––– 4460


223




A comoção de Vilas porém foi maior, que
se ajoelhou calado ao vê-lum milagre,
os olhos fermos enquanto o peito batia:
“È bom demais mo Deus què Deus de verdade,
gente, Deus non podja leixar Ruderico acabar 4465
no mar justagora co to começano a cumprir
mha jura de guerra e de amor, mo povè que sabe.
Deus non fas’se tipo de coisa e maldade
cum quem traba’de verdade, Deus è bondade,
ah, meo Deus, que alegria è viver Ruderico!” 4470
Mas Tótila, o rei, no meio da noite atinava:
“É, meu sopro, quando Deus è quem manda
a pessoa se salva de cada situação...
Amor de pai transforma um home em herói,
agora eo vi como é. E meo povo atacado? 4475
Será que Deus levanta do chão esses godo
tudo gente inocente e fiel sem amigo?
Será que por cau’do meus erro um povo bom,
um povo generoso vai se acabar por inteiro?
Ô Senhor, Ruderiquè godo, foi nós que fez 4480


224




Ruderico: Salva nós também que te implora!
Errei demais, esqueci muita grei, fui ingrato:
Pelágio rezou por mim... cadê Pelágio?
Meu povè bom, e o bom se vê pelo bem.”
Assim pensou Totila, o rei de seu povo 4485
na noite, e pela manhã ordenou que chamassem
Pelágio e mandou que levassem grão e gado
em graciosa abundância aos fracos de Roma,
pois quem recebe è bom dividir com carente.
Chegou Pelágio e Totila abraçou muito forte 4490
e veio Leôncio também, que falava a verdade.
E mentre o caso de Ruderico inspirava
um novu esforço encorajando os gadrãos,
fortificavam-se abastecendo as defesas
impávidos como convém à vida bravor! 4495
Totila envia Teia, um temível, no rumo
francoro: Se Narses passasse Segisberto,
seria contenso por cavaleiros tremendos.
A fama da violência seguia os passos
de Teia e Tótila balançava a cabeça 4500


225




ca Teia fosse o l’único seu recurso.
Mas buscando Pelágio, buscando Leôncio
soprou: – A causa de Deus a gente sabe,
amigos, è paz e amor e união de verdade.
Me ajudem, vocês que è velha gens romana, 4505
tem que trazer romano e godo junto.
Tem que fundar uma escola pra Roma ver
que godo quer è paz e pa godo entender
que Roma è mãe de muita gente, uma escola
por onde romano e godo viu que è bonito 4510
tudo junto a pessoa andar como amigo.
Funda essa escola, Pelágio, Leôncio, funda
essa paz pa romano e godo se conhecer,
saber que vive diferente mas vive
bonito quando è grande a vida, ca vida 4515
quandè de amigo non tem diferença a pessoa. –
Irom-se pois colhendo pelas províncias
a fresca infância de centenárias famílias
por casas de senatoriais e patrícios.
Unido enfim o rol de trezentas crianças, 4520


226




fundaro uma escola expondo o modo dos godos,
o modo romanor e a visão da amizade.
Ainda descontente, o rei abordou
na calma e lacrimosamente um guerreiro:
– Deus me ensinou a ver, meu fiel Ruderico, 4525
que quando uma vida erra o dever è guiar,
porquanto a vida errada que Deus amou
se conserta quando tem perdão e bondade.
Ruderico, perdão! Perdão, meu fiel Ruderico!
Agora eo sei, errado que sou, que uma vidè 4530
que nem a flor, a pétala cai mas o sol
què pai continua raiand’e nisso ela cresce
e fica brilhando como o sol que ela espelha. –
Mas antes que Ruderico alcançasse a resposta,
o rei duma gente em perigo e sem nenhum 4535
amigo pôs o rosto entre as mãos e leixou
ecoar um fortíssimo pranto enquanto de longe
as aves calavam, e o rei cavalgava querendo
Pelágio e li dita uma novam carta a Bizâncio
que avise, esclareça et implore a Justiniano: 4540


227




“Dono das gentes, a luta inglória desune
irmãos que Deus destina iguais ao eterno
banquete, na Itália, na terra como no céu,
e quanto mais a guerra se afasta de alturas,
a vida mais ensina que a causa dos homens 4545
em Cristo è paz conciliando amarguras.
Rogando pois aos céus um juízo correto
Totila ansia, renunciando de glórias
e vahidade e vitórias, o fim dum conflito
que Deus desabonou e que ofende serenos. 4550
Um pródigo filho depõe aos pés de seu Dono
uma oferta que apenas a vida iníqua recusa:
O norte da Itália dominado por francos,
restando em flor do antigo reino godor
apenas Sicília, Dalmácia somente, governa 4555
as terras essas como bem entenderes!
Os godos, retendo a destituta desgraça
e relevando do abismo a ruína que resta,
serão teus filhos, darão ao trono o tributo
que o Dom quiser em ouro e prata e suor. 4560


228




Aponta pois a terra onde a guerra te chama
e lá te segue uma gente aliada no peito,
lutando e morrendo pelo amor de teu nome.”
Porém o Imperador recebendo os legados
rasgout a missiva e mandou-os via calados, 4565
Tótila ouvindo o caso e querendo o porquê.


θ’

Quando se ouviu na tropa a novidade de Teia,
ora forte em Verona obstand’a estrada e cavando
fundo fosso ao longo do Pó, eversa a passagem
rumo a todo o resto da Itália, Narses vacila. 4570
Mesmo se Segisberto permitisse a passagem
de nada serviria o favor, e soldados à espera
viam como a consternação calava constantes.
Mas João de Vitaliano se avança, que avisa:
– Pót’squecês’se cara, Narses, sai dessa vida! 4575
Olha nós aí... sentados à margem das ondas
feito boi enquando o tempo passa e non brinca,
pois Valeriano, ali se acabou resistência! –
Isto ouvindo, Narses conduz: – João conselheiro,
sei tampouco a solução deste caso assombroso e 4580


229




passo as noites em vão concatenando conatos.
Fala aos teus! Pergunta a conterrâneos da Itália
como agir e que via andar lis ocorre na mente. –
Esto acertando e pronto demandand’os nativos,
rompe da multidão atônita o Paulo, escudeiro 4585
rumo a João: – Na riba tem os peão peixeiro
tudo amigo ali non passa gadrão nem fudeno. –
Narses, porém, que ruminava a marcha morosa
diz apenas: – Já perdeste, Paulo, a prudência?
Fala! Comè que vai passar nonseiquantos soldado 4590
numa foz de rio complicada e chei de laguna?
Home vai contornar dequejeito esse delta lodoso?
Leva muito tempo issaí, tem pântano e tudo.
Passa a primavera e seu pé talá, atolado! –
Paulo, filho daquele trato e perito de escolhos, 4595
vendo unidas as naus de João redentoras de Ancona,
nembra: – Sai dessa vida, Narses, ali passa barco! –
Narses se irrita: – ’Ma vergõemsacara, moleque,
porra de barco! Tem ua tropa aqui de meimundo,
passa como essa tropa? Cadê seus barco? No avanço 4600


230




godo vê desbarata o desembarque e te arrasa. –
Mas a voz do escudeiro consiste: – Psá de galera
não, general, ali pa travessia o que basta,
basta tipo ponte. – João dubitoso interveio:
– Quem constrói porém, e como, cópia de pontes 4605
quando escasseia lenho, pedra e tempo e diversos
braços d’água requerem a cada passo um milagre? –
Paulo compõe: – A ponte ali vai ser de barquinho,
sabe? Barquinho vai, tardinha cai? È simples:
Bota uas tira enfileirada de barco que vira 4610
strada pa nego passar se equilibrando, com calma,
sim, ali ficou nervoso cai, temque ter jingado,
tem que rebolar com delicadeza o maluco,
um depois do outro, nós flutuando de perto
lá na tábua, marchano e navegan’, è assim. – 4615
Pois no meio da noite alevantarom-se as tropas!
Rumo à costa marchava lento o passo nascosto,
buscando a si pequenos barcos que desde Salones
vinham consortes e recrutando ainda em reforços,
u preciso, aventureiras naus de pesqueiros. 4620


231




Como Paulo aconselhara, assim praticarom:
Qual non foi a beleza enfim à vida do ingênuo
ver de longe cruzar as caudalosas correntes
fila de amigos, equilibrando a toscas madeiras
corpos e os pés na inusitada baila das ondas. 4625
Quando porém Procêncio depondo os arcos olhava
a sós o poente endourecendo a cor da laguna,
Narses, sentando-se ao lado: – Respeita, menino,
tanto mar! A pessoa que menospreza o perigo
vira presa fácil, portanto nunca te enganes. 4630
Olha como passam quïetas elas ondinas!
Basta um vento maior e logo avançam tragando
barca e vida. Ama se apraz a beleza oscilante,
não porém osciles, meu filho! – Assim apontava
longe uma luz que naufragava rubra no incerto. 4635
Mesmo o pai, contudo, cruzando um braço do Pó
no meio do nada, andando pelas barcas, saltando,
alça os olhos ao céu clamando: – Casório feliz,
Procêncio, foi casório de rios e mares e noivos
como estes que a mão de Deus uniu para sempre. 4640


232




Vê! No medês instante se funde o fluxo diverso
salso e doce: Estamos no rio out estamos no mar?
Estamos em toda parte e porque vivemos estamos,
pois as ondas, porquanto revelem onde passamos,
calam ainda o que somos e somos em toda parte 4645
como agora, pequenos e salteando por barcas
sem sabendo se estamos e como no rio ou no mar. –
Procêncio vislumbrando ainda mar no horizonte
volta a si: – Entendo bem que o mundo decide
muita vez por nós na terra como nas ondas 4650
u estamos, por onde andamos e como passamos;
não contudo, nem na terra e no mar, o que somos:
Sou guerreiro! Sou guerreiro da guerra que è bõa
como a verdade que em toda parte está lo que é.
Prossigo sim, meu pai, levando migo a flecha 4655
d’arco forte! Caço em campo o peito de inglórios
pelo amor de teu nome e nome dos meus e de Roma!
Narses, terás orgulho de mim! – O pai arremata:
– Ah, Procêncio, orgulho mesmo eo tive de vendo
amor de como honreires a tua mãe no infortúnio. 4660


233




Honra agora Roma também que padece e que sangra,
mãe de nossas mães! – Seguiam assim travessias
quando uma carta arrebatou los olhos do eunuco:
“Narses! Soldados outrora abondonando bandeira
vêm pedir-te perdão, e aumentaremo-lo império 4665
já de poderosas cohortes se apenas mandares!”
Isto lendo, Narses manda que venham sem medo,
Narses promete: Receberão enfim pagamento
todos os combatentes, a quem Bizâncio devia
muita prata, porquanto a prata agora chegara! 4670
Como um raio a varou notícia excitante guerreiros.
Nova carta porém, e peior, arribava de longe:
“Narses! Por piedade do pó que resta de outrora
deixa em paz a cidade de Roma! Gera essa guerra
longe dos párias que um generoso rei protegeu! 4675
Pouco importa a quem caído se abriga em ruínas
rei de perto ou de longe imperadores; caídos,
sim, Totila ergueu do chão meninos e estátuas
priscas e não derrubes, Narses, mais uma vez
depois de tantas, o reergudo escombro das vidas.” 4680


234




Narses releu por diversas vezes o apelo mendigo,
carta anônima, já que lo autor temeu represália.
Quem duvidava, de fato, da intervenção de Pelágio
como a voz esconduda sob a sombra dos tempos?
Quem non via naquela missiva a mão de Leôncio, 4685
Rusticiana e senadores e irmãos na aflição?
O eunuco, porém, aproximou-se inquedo dum poço
para beber, e deliberava o destino das almas
quando uma velha atordoada abordou-o do nada:
– Beba não, senhor, que desse poço se morre, 4690
só eo sei, e como, que desse poço se morre:
Eu, se me nembro, produzia vaso de argila
bem bonito e meu filho, o viajeiro de vila,
ia vendeno. Chegou, coitado já de meu filho,
bebeu do poço e morreu, coitado já de meu filho, 4695
filho meu sem rancor e sem maldade no mundo.
Foi depois que dissero da má verdade do poço:
Dissero que Belisário jogou carniça no poço,
foi, que aquele forte ali pacima do monte,
forte de godo usava dele e bebeno vivia. 4700


235




Quando depois o godo soube disso, rendeu-se
pois sem água l’home non tem sustento na vida.
Mas coitado chegava com sede depois e bebia
sem saber desse poço e do poço coitado morria.
Ai, senhor, è vida não essa vida què nossa. 4705
Eu que sei o que é porque que o mundo se acaba,
pois escute: Novo deus que trouxero de longe
gos’da gente não. Deus que gosta da gente,
deus que sempre amou foi deus Apolo e Netuno.
Quando a gente punha fé nesse Apolo e Netuno 4710
coisa ruim assim que nem de agora non tinha.
Esse deus de longe è deus que desdisse da gente!
Mas atrás daquele monte encontrei uma gruta
bem bonita, e vou botano uma flor e pedindo
junto àquela estátua de Jano por dó de romano, 4715
gente nossa què maltratada e coitada demais.
Era tão jeitoso o meu vaso que a gente comprava.
Leve consigo um desses aqui, e leve de graça,
leve, que é pesado comigo de andar pelo mundo
e sei que já ninguém passano aqui nesse poço 4720


236




tem dinheiro, mas leve mesmo assim que precisa.
Leve, que noutro poço a boca bebe e guarda
mais o resto d’água de muita estrada no vaso.
Custava caro quando tchá dinheiro no mundo! –
E lá depondo aos pés do general um ânfora 4725
foi-se embora errando e titubeante nos passos.
Era petrecho benfeito e de mui custoso labor
que lá deixara, rara e formosíssima a prenda.
Mas a João que se aproximava Narses ordena:
Issem comprar daquela velha as ânforas todas, 4730
pagando muito ouro para que não carecesse
a bõa vida que a sua vida salvara sem preço.
Ora, tapando o poço da morte, seguirom viagem
inda e sempre e burlando as emboscadas de Teia.
Foi na aurora que as almas vislumbrarom de ameias 4735
cores patenteando na bruma a bandeira de Roma.
Vinham já de encontro Valeriano e famintos
pelas ruas saudando como a César o eunuco.
Narses cavalgando calmo e seguido de amigos
via à beira da estrada centenas de ajoelhados. 4740


237




Clamavam como o pai da liberdade o seu nome
quando lançavam aos paralelepípedos flores.
O pranto mesclou-se à comovida salva de palmas
testemunhando a redenção que chegava a Ravena.


ι’

Da porta oposta contudo adentra Ravena 4745
o repto a Valeriano, a missiva dos godos
contendo: “Cê non tem vergonha, bandido?
Ave, ques covarde esses home escondido
enquanto a guerra espera, camba’de cretino!
Honra teu povo, honra o seus petrecho 4750
e bora medir, bora vê a força das arma
quenhè mais e quenhè bom de verdade!
Aqui ninguém tem me’de morrer ni frescura,
’s home nosso aqui, pode crer, se garante.
Agora, tá com medo, então vapacasa! 4755
Na guerra nego entrou vai ter que lutar,
jà tá passano da hora: agora o que falta
è só il tudo ou nada, a batalha final.
Nòs godo tá de saco chei de vyadage,
putada e palhaçada: foge não, vagabundo! 4760


238




Tu quer ser home? Então vem ser de verdade,
depen’de vocês àtitude! Xá de ser rato,
maluco, vira gente! Què pau no rabo
vai pa Grécia, tem nhe-nhe-nhem aquinão!
Valeriano! Sous home está cum vergonha 4765
de tu armado e pedino socorro, queísso?
Até tem braço aí fortior que do teu
e tu desmoralizano a trop’e a gelera!
O cara tchi olha, cai n’ua depressão:
tous home è suim, teus home gos’de guerra. 4770
Non gos’de sangue vaza, eles luta por tchi.
Espera Narses não, quem espera è gestante,
nego aqui tà passano fome, Ravena tamém!
Então, inimigo, vem, porquanto injungimos:
Mostra-tchi em campo aberto, traz contchigo 4775
tudo os home e las arma, traz pa batalha
final e para nunca mais!” Provocarom.
Mas caiu a carta nos dedos do eunuco
que inopinado mandou legado a Totila.
Os godos maquinavam naquela astúcia 4780


239




recursu arriscado: Antes de Narses Ravena
e Valeriano e los restos fossem rendidos!
Quando se houverom acumulado de longe
rumores que Narses demandara a cidade
em tremenda cohorte e quantidades dignas 4785
do Império Romano, tumulto e pavor abalaro
o moral de pequenos e grandes. Refletiam:
Nem com quase tod’a Itália nas mãos
ganharo a batalha contra o mar e João.
Agora que Narses trazi’ua grege sedenta 4790
de morte e mais numerosa, como ganhar?
Totila, reunindo o conselho dos nobres,
buscava às pressas discernimento correto
quando de Roma não missiva arribout
e sim Pelágio que prorrompia agitado: 4795
– Ouvimos, rei de Roma, a nova do eunuco
e derribamos ao chão uma indébita espês.
Posso falar por um antro de condenados?
O povo non quer aquele teatro de guerra
adentro Roma e muro adentro as ruínas. 4800


240




As obras da vida reërguida, as estátuas
hão de cair de novo no estrondo atroz?
Avisa, rei, somente avisa e nos eimos
embora pelo mundo sem paz e sem rumo!
Mas ah, Totila, cabem tantas histórias 4805
em Roma e vidas! Por piedade, poupa
das arma os alicerces que mal se rëeguem
do cerco, incêndio e derribada de pedras.
Mas que faremos e como, aonde iremos
e quando chega Narses e quando morremos, 4810
coitados de nós? – Totila não li permite:
– Não me ofendas, por caridade, Pelágio!
O povo de Roma conhece o meu coração
que nunca neste féror negou-se a caídos.
O cerco foi num tempo e num caso diverso 4815
como um caso diverso a tristeza do incêndio.
Percebo bem que nutro em vão esperanças
ca nunca perdoarom de mim um momento,
um gesto infeliz que tantas vezes chorei
e, como vejo, em vão intentei reparar. 4820


241




Percebo tarde demais, das tuas palavras,
o medo e pouco apreço que Roma mi deu,
percebo triste e contudo alegre te peço:
Retorna em paz, frião, cà mão violenta
que porventura abata os menores de Roma 4825
jamais nos éus, jamais será de Totila.
Paguei, meu caro, o preço amargo dum erro
e decerto degustei da lição do remorso.
Mas seja sim se assim requer o destino:
O l’home virtuoso jamais se equivoca 4830
e Tótila, tendo errado apenas um die,
errou errado, errou para a vida inteira:
Todo acerto do resto è resto somente.
Mas essa guerra nova, e se a nova vier,
será distante, confia em mim, de Roma: 4835
Ere num campo mais conforme à desgraça
que atende o nosso povo sincero ou Narses
ou todos ambos. Conforta o povo, portanto,
e quem souber orar que interceda por nós! –
Assim falando Tótila pôs seu exército 4840


242




em marcha rumo a Ravena destino de guerra.
Mas pouco andout em campo e veio de encontro
cultor de terra depondo aos pés do monarca
verdura e pranto, armado de muitas rugas:
– Bonito è ver a florescência dum prado, 4845
Totila, quando se deixa em paz a semente.
Bonito era o tempo de Teodorico, que o rei
mi deu de terra e vim plantano e vivendo.
Chegava a colheita, eo vinha a pé entregar
com gosto a verdejância do mundo ao rei. 4850
Mas passa a guerra e guerra vai pisano
no grão e mata quem nem consegue brotar.
Pois, senhor, se non brota, morre a semente
que quer nascer e morre o que espera brotar.
Destino è assim: Parece que vem a colheita 4855
coa folha verde saindo, e passa uma tropa
e pisa e guerreia e vem morrer no meu campo.
A mão condenada quer colher e non pode,
passa a primavera enterrano esse mundo
que meu arado plantou e que a guerra abortou. 4860


243




Passava gente sem rumo na estrada e parava
et eu parano dizia: “Filho, sai dessa vida
que esse rumo è de nada e non passa por nada.”
E passando-li a enxada e didivino da mesa
aumentei sem medo a família, que Deus abençoe. 4865
Mas rei, o trabalho valia de quê, se na hora
do grão nascer passava a guerra e pisava?
Quando a lida è de bode o home na luta
sai correndo no meio do mundo co bode.
Mas o home que planta aonde que corre 4870
e corre como a semente que nem desabrocha?
Amor demais de Deus que me deixa viver
e só, que de grão nulhome nado consegue.
Mas olha só que milagre e que coisa bonita:
Bandei família e sustento e me vim semeano 4875
e já non sei se por certa ilusão de meu Deus
ou que coisa que for parece ogano que brota!
Será que brota, mha gente? Passa por longe,
rei, e marcha além de meu prado arruinado.
Pensei que dessa vida eo ainda colhesse 4880


244




alguma coisa depois de tanto e sem fruto.
Contudo já me canso de vida e de angústia
que è desespero o fim dessa tanta esperança.
Percebo já que a guerra precisa dum campo
e de tod’os lugares ela gosta è do meu. 4885
Mas desse estio, Totila, a vida non passa
e ninguém de casa conseguirá suportar
um ano a mais de fome e de aborto de terra.
Toma então, meu rei, toma aí da verdura
que muita vida perdida te traz e perdoa, 4890
se podes, quem plantout e non pôde colher. –
Totila, porém, estende a destra ao cultor
e controlando a cor de sous olhos suspira,
querendo: – Como aceitar a prenda bondosa,
frião, se a mim doando te privas de vida? 4895
A tua prenda maior forom tuas palavras!
Posso morrer em paz enfim, que na Itália
ao menos um se recorda de Teodorico.
Planta mais, cultor, e levanta os caídos
da estrada a que unidos cultiveis àmizade. 4900


245




Era de paz o intento outrora dos godos,
somente amor dos povos que cultivava
o benfeitor te concedente esta gleba.
Perdão te peço eu que viajo de guerra
e muito mais te dera se Deus permitira. 4905
Mas ouve! Meu povo inteiro marcha comigo
e vamos já de encontro ao fim desta luta,
fim qualquer que seja: O povo dos meus,
cultor, non mais suporta o destino dos teus.
Se algum apreço porém te resta de antanho, 4910
tributo que rogo è rogares a Deus piedade. –
Assim orando, um triste rei recompôs-se
e devolvendo a verdura partiu de seu rumo,
nenhum dos pés desbaratando as sementes.
Andou contudo pouqu’e uma carta secreta 4915
arribava: “Ainda è tempo! Se lubas a vida
apenas cruza o Pó que estaremos unidos.”
E bem sabia o rei de que mãos delicadas
e peito generoso as palavras brotavam.
Cruzando qual dos rios porém e que ponte 4920


246




salvasse as multidões que Totila aduzia?
Wardando pois ao cor a missiva querida
o rei seguia avante no amor de seu povo.
E pouco menos andou e legados de Narses
chegavam, o qual leixara embora Ravena 4925
no rumo de Roma junto à tropa universa.
Intrépidos pois os enviados avançam:
– Estamos acampados por perto, Totila,
munidos de tudo. Queres ouvi-la proposta?
Narses propõe a paz em nome do Império 4930
se apenas o povo teu abandone la Itália. –
Totila demite: – A paz è decerto benvinda
quando espelha justiça. O povo a que falas,
legado, nada roubou que te deva entregar!
Chamou-nos Zenão, o Imperador, ao domínio 4935
da Itália e cá viemos, toendo-li agrado
e fiéis amigos. Só los cadelos da estirpe
que serves quebram elor palavra de honra.
Mas não trates meu povo como sem terra
ou como ladrão ou fugitivo em delito. 4940


247




Aqui ficamos de jus! – Legados contudo:
– A condição de paz è somente que vades! –
Totila proclama: – Pois na sorte das armas
home então decida quem vai e quem fica! –
Os núncios retrucam: – Marca logo a data! 4945
Marca e cá viremos e o resto veremos! –
O rei, enfim, reconhecendo o tamanho
del ódio que produzia à boca as palavras,
recua aterrado, entretanto pouco li resta
e responde pausado: – Em sete dias veremos 4950
pois de Deus o destino e duelo dos povos. –
Assim partirom levando a Narses a novam.
Tótila em valentíssimo incêndio de fúria
manda logo marchar, seguindo de encontro.
Nel ato, a multidão de soldados ergueu-se 4955
e pôs aos ombros a lança, espadas e flecha,
legados correndo à cavaleria dispersa
de Teia que, congregada, viesse a combate.
Mas Rigo reconhecendo um risco iminente
e buscando o frói em transtornados saltos 4960


248




impõe: – A marcha è repentina, a surpresa
do nada desestabiliza os soldados
e gente cansada luta mal na batalha.
A mão precisa de tempo e mais preparo,
a mente tem que ter perícia de campo. 4965
Calma, calma! Reflete melhor nosso caso
e deixa Narses chegar, que chegando Narses
ere dos seus o fardo da marcha e do pouco
tempo e preparo escasso. Aqui parecemos
melhor munidos, melhor ficar por aqui. – 4970
Totila sucede: – O casu inteiro reflito:
És insano? Marcharo a pé da Dalmácia,
a pouca estrada que resta è nada pra eles.
O trunfo nosso, Rigo, è chegar de surpresa
e vê-los não exaustos, contudo confusos. – 4975
Assim lançou por terra, ainda uma vez,
o conselho de Rigo e Vilas porém interveio:
– Totila, a situação tem que ser estudada,
cuidado requer indústria! Basta uma falha
e veremos todo mundo confuso e perdendo 4980


249




a vantage de estar em casa. Meus lanceiros
estão com medo dos riscos têmporo e mal se
tragou a derrota no mar. È melhor esperar,
esperemos a Narses! – Quanto mais a fala
ofegava mais o rei balançava a cabeça, 4985
limpando a profusão vermelha dos olhos,
repondo: – Bem conheço o temor de derrota
e para menos temer que se lute sem mora!
O desgostoso estado em que vejo meu povo,
amigo, não mi permite maior incerteza: 4990
Perda de tempo agora è perda de guerra.
Tenha fim, portanto, àflição de guerreiros!
Corramos logo, ergamos o véu do destino
sem medo e desespero de vida e de morte,
pois além da vida e da morte se avança 4995
a retidão dum povo! – E assim refletindo
os godos marcharom, temor no peito e coragem.


Totila






F





κ’

Quando Narses ouve a narração dos legados
manda prepararem os braços e toda-las armas
para àurora, já prevend’o ataque iminente. 5000


250




Não se engana, pois o primo raio do leste
longe revelout a bandeira em marcha dos godos,
grave e retumbante o brado ecoando nos montes.
Vendo enfim moções dum formigante horizonte,
homens de guerra em sobressalto pedem palavra 5005
quando Narses, interrompendo angústias, explica
o plano, a formação da batalha. Os homens paravam
mirando quis-cada-quem amigos, sentindo nas clavas
o peso salvador da vida, a esperança no extremo.
Medo porém falava altior ao cor de bastantes 5010
e Narses, reconhecendo o desassossego de tantos
como até de Procêncio, conclama os combatentes!
Tendo perante si, aflitos e ouvindo calados
todos os regulares soldados e bárbaras gentes
(eram hunos, lombardos, érulos junto a romanos 5015
em multidão sequiosa), a voz do eunuco ressoa:
– Quanto orgulho escorre destes olhos, meninos,
ao ver gregada sob a sombra de excelsa bandeira
grei de amigos, povos tão distantes de mundo
lado a lado erguendo ao ombro amor à justiça. 5020


251




Será milagre divino a concordância das gentes?
Pois humano, filhos, e muito humano o milagre
mas milagre que apenas este pendão oferece,
largo e generoso e já maior do que os séculos.
Não vos enganeis na aflição porquanto a verdade 5025
pela qual erguemo-las arma desfaz-se da prata,
d’ouro que paga e não porém sacia a virtude.
É por bem maior que lutamos! O bem que elegendo
pelo ardor defendemos è bem de Roma que herdamos.
Vede pois o que somos e quão distinta amizade 5030
colhem povos unidos no amor do Estado e del ordem,
o rol de moderados poderes e harmônicos órgãos,
o foro das instituições e das leis protetoras.
Tal tesouro os antepassados suores leixarom
não a Roma apenas, porquanto ao braço decente 5035
Roma abraça e não pergunta ao amigo da lei,
jamais, se seja grego ou persa ou donde provenha,
antes estende sobre todos um nobre estandartem,
abre as portas do Estado protegendo perdudos
homens como ao general humilde que vedes. 5040


252




Eu, meninos, nasci sem prata e fama e distante
pelos vãos de Armênia, u nimigalha è destino.
Desde cedo, porém, no amor das leis e del ordem
Narses reneguei minha vida servindo a maióribos
homens e causa maior. E desprovudo de mérito 5045
mesmo assim gozei da confiança do justo
como do Imperador que aconselhei pela vida,
eu, que vim servir apenas e agora comando.
Não, heróis, em povo alheio nenhum o pequeno
pede amando a lei refúgio e vive sem medo, 5050
Roma apenas ama lo amor renegado dos retos,
e a quem duvida rogo examinar minha vida.
Credes mesmo que essa nova estirpe de godos
possa gerir sem lei correta o destino da Itália
tanto tempo acostumada à constância das leis? 5055
Vede o que foi outrora e donde veio la Itália,
vede se a tal porção do Império cabe a desordem!
Digo porção? Eo disse errado, direi genitora
deste Império Romano cuja bandeira elevamos
e cuja bandeira tanta vez elevou nossas vidas. 5060


253




Tão distante por este mundo andaumos, guerreiros,
e agora titubeades que è já patente a vitória?
Semos ora dignos da longa marcha que agimos!
Ora que Deus nos concedeu chegar à batalha
como compete ao viço que não vacila no prélio 5065
para alçar maior o nome dos Céus e do Império,
ora lutemos como cabe ao fiel combatente,
ora lutemos, filhos, a derradeira das lutas,
luta derradeira talvez das vossas vidas
como talvez a derradeira luta de Roma. 5070
Usai de vossas armas como quem se despede
já da vida e das armas, não porém da vitória.
Homes de guerra! Nõ é derrota que apaga virtude,
vício somente e covardia. Se acaso cairdes
como muitos de vós cairão que sei e que aviso, 5075
sabei cair a queda de quem entrou em batalha
para ficar e não fugir, servir sua causa,
pois caindo o bom herói è maior do que a vida,
vida sem honra e sacrifício è morte somente.
Ora vivei, guerreiros, a verdadeira das vidas, 5080


254




eia, regai de vosso sangue o grão da vitória!
Uma coisa apenas, apenas uma eo vos peço:
Ide à luta orando a Deus piedade a pequenos,
pois a força das armas e o sacrifício perito
quando Deus non quer non desabrocha vitória, 5085
mas vitória que vem è graça apenas de além.
Rogai de Deus um generoso olhar sobre nós
e a guerra venceremos como a nossa miséria!
Basta tão somente lutar coa virtude de sempre
como cabe à bandeira da bõa guerra que erguemos! – 5090
Totila, contudo, alheio às orações dum eunuco
como à causa de tal clamor, espera na angústia.
Ora, Teia e sous cavaleiros por onde passavam?
Inda chegave a tempo da luta? Mirando medrosos,
o rei dos godos manda a todo instante legados 5095
a Narses a ver se ganha tempo. Mas os soldados,
vendo lo atraso de Teia e presumindo o peior,
corriam atordoados contendo prantos et uivos
(como pois travar sem cavalos camanha batalha?)
quando a carta arribava anunciando a chegada 5100


255




em meio dia ou menos de cavaleiros sem medo.
Tótila, erguendo caídos e confortando abalados,
nesse instante alçou-se pelo relevo do monte
frente às multidões que preparavam os eros
como escudos e lanças. Conclamado-los homens, 5105
eles ora voltavam os olhos sedentos de alívio
rumo ao rei, que pronunciava forte a verdade:
– Povo dos godos! Aguarda o galardão da vitória,
pois vencendo Narses nòs venceremos a guerra.
Essa grei de vis que congrega e moções do inimigo 5110
são menores que o nome e nossa história revela:
Não existe no mundo o viço, a virtude do tringo
sofrer derrota verdadeira na vida ou na morte.
Essas vidas que se aglomeram num velho estandarte,
que princípio, que bem e que justiça professam? 5115
É bonita a glória dum povo à custa de escravos?
Erguei melhor a cabeça ao relembrar o que somos:
Quando em tempos ancestrais nosso povo godor
ainda estava em paz na floresta como na estepe,
quem passava fome e quem viveu na miséria, 5120


256




ƕão se calou a voz da compaixão de pequenos?
Nós erguemos na piedade as nossas bandeiras,
nós non temos rico nem pobre, nós dividimos.
Vossas mães estão aí, perguntai que dizeiam
como é que se gesta uma sociedade justoro. 5125
Foi por esta virtude que nós viemos à Itália
junto a Teodorico, porque confiaumos no Império.
Mas por confiarmos no Império estamos pagando,
vede aí, um preço bentriste, cruel, desastroso.
Pois do começo ao fim è mentira a bandeira de Roma! 5130
Filhos meus, no princípio o nosso povo era livre:
Não havia pilastras de mármore em nossas florestas,
pois è sempre o braço escravo que arrasta esse mármore.
Mas se alguém non sabe eo direi o que havia entre nós:
Havia a dignidade intocável de todos os homens, 5135
pois de tudo o que construímos, humilde que fosse,
nada se deve a trabalho escravo, tudo a nòs mesmos.
Depois vierom eles, dizendo que o mundo era deles,
crendo que nós somos deles, nada melhor do que eles.
E nós nos revoltamos contra um pendão de impostores. 5140


257




Nós estávamos quase às portas de Constantinopla,
nós e a liberdade lutando contra opressores,
quando Zenão propôs a paz e falou de amizade,
deu-nos a chave da Itália como gesto de apreço.
Eles mentirom a Teodorico e meu povo godoro, 5145
eles zombarom do nosso coração sem maldade,
eles nunca nos forom amigos, è esta a verdade.
Nós aqui chegaumos com tod’a esperança dum povo:
Era a nossa a chave, a paz, esta terra era nossa.
Pois aqui nos desenganamos e agora nos mandam 5150
ir embora feito cachorro co rabo entre as pernas.
Desde sempre eles procuraro um pretexto de guerra!
Eu humildemente expliquei o que aqui se passava,
vendo um povo inteiro pagar pelos erros de poucos.
Eu pedi prudência, perdão, caridade, clemência, 5155
mas a resposta è Narses, è guerra e mais violência.
É por isto que quand’o escravo arrebenta grilhões
nòs damos abrigo e levantamos o fraco do chão,
nòs damos pão à fome e pomos fim à vergonha.
Vem a vida erma e sem gão e recebe de nossos 5160


258




braços éu, amizade, amor de Deus e trabalho.
É preciso dizer a muitos homens quem somos:
Somos a Itália da aurora como a flor do futuro.
Não permitiremos jamais que a mão de impostores
apague da história o nome do povo dos godos. 5165
Cumpre enfrentar a derradeira luta que atende,
cumpre lutar com toda-las armas, o mérito è nosso.
Narses è grande, homem forte e distinto guerreiro!
Para Narses porém esta guerra è lazer corriqueiro:
Narses pode perder confortavelmente esta guerra, 5170
Narses tem o seu palacete e pilastras de mármore,
Narses tem escravos e luxo a l’espera em Bizâncio.
Tanto faz ganhar ou perder: ganhar è bonito,
mas Narses nada tem de seu a pender nesta luta.
Nós, contudo, temos tudo a salvar do que è nosso: 5175
A terra por onde andamos, o modo como nascemos,
o mundo que cultivamos, a vida que conhecemos.
Tudo o que nos è caro depende desta batalha,
desdo ar que inalamos até lo peso dos sonhos.
Mas os homens de Narses son mercenários apenas, 5180


259




braços comprados sem nenhum amore à bandeira.
Ou será que algum lombardo ou povo distante
vai, na hora do vamover, ofertar sua vida?
Não porém na ganância de impreciosos metais
entraumos destemidos neste campo de guerra. 5185
Vede bem a multidão que aqui se congrega
como as ondas do mar maior, sabendo com Deus
que nunca nulho guerreiro foi preciso comprar,
mas lutam pelo mero direito de ser uma gente
mentre os vis os querem ruir apagando de mapas. 5190
Nós apelemos à paz mas nunca fomos ouvidos.
Pois então se decida enfim na sorte das armas
quem e que povo pode ainda existir neste mundo.
Vamos pedir a Deus por compaixão de quem sofre!
Regai de vosso amor, suor e sangue guerreiro 5195
nossa semente e terra abençoada da Itália!
É distinto o soldado que sabe ver na vitória
como na morte a mão de Deus redentor de destinos.
Mas guerreiro maior foi ele que ergueu suas armas
por amor dum povo maior que a vida e a vitória. – 5200


260




Pois assim falou Totila, o rei de seu povo,
e assim rejubilou-se novo o viço dos godos
pronto para a sorte das armas, o cor confiante.
Ora o monarca, montando repentino o cavalo,
passava frente aos seus em dourecente armadura, 5205
destra lançando alto as lanças que a mão esquerda
calma pegava del ar em queda franca e velozes.
Homens de toda grei, impressionados miravam
quanta perícia o rei atestava. Lançava sem medo
como em desafiando inimigos, erguendo o moral 5210
de muitos combatentes. Ora, Narses, o eunuco,
certo non fora capaz da façanha. O rei cavalgava
como cavalga quem passou la vida a cavalo.
Era uma imagem sem par a luz do céu refletindo
nítido o rosto amado a refratárias distâncias: 5215
olhos claros mirando as almas em cada soldado,
pálida a tez e cabelo balançando ao vento,
a barba envelhecida, nariz e boca delgados,
mãos delicadas nem por isto alheias à clava.
Ele dançava! Firme em dirigindo o cavalo, 5220


261




dava aos olhos mil dos encantados guerreiros
rara prenda, lição de vida heroica nas armas.
Como uma estrela irradiando o sol que reflete
brio da verdade, Tótila cavalgava e bradava
como a trombeta final anunciando a vitória. 5225


λ’

Antes que os grandes cavaleiros chegassem
àquelas regiões tortuosas del Úmbria
dava-se já contenda aos pés dum outeiro,
porquanto os ambos oponentes o vendo
virom vantagem para a mira do arqueiro. 5230
Totila num sobressalto enviout em velozes
cavalos guerreiros, já porém se abrigavam
peritos escudeiros a mando de Narses
obstando estrada. Eram menos em número
mas o tamanho da audácia de fato se infere 5235
dum raro episódio: Quando houvero arribado
aos pés do monte e vislumbraront escudos,
os godos prepararo os cavalos e eloro
clavas ameaçando e mostrando o tamanho
da morte, mas como os escudeiros do Império 5240


262




não lhes cedessem, cavalgarom de encontro,
a mão armada caçando o peito incautor
e a pata de violentos equestres cabeça.
Romanos então se ajoelharom às pressas.
– Já se rendem! – ouviro o coro de godos 5245
em prematura emoção, porquanto inimigos
tomando da terra o quanto vissem de pedras,
roçavam-nas contra a superfície do escudo,
criando no atrito os acutíssimos guinchos
e sons que transtornavam éguas, medrosas 5250
ora em desordenados relinches e saltos
enquanto os escudeiros nel ódio gritavam:
– Ô vagabundo, vamo medir nossas arma e
bora ver quem è mais! – Mas se avançavam
os godos titubeava o galope dos bichos 5255
ouvindo os guinhos. Inda não conformados
coa cena desgastante, os homens do froia
largando a rédea desciam trazendo espadas,
lançando-se contros detestados broquéis.
Porém os romanos, peritos de antigo modo 5260


263




depondo cabeça e corpo atrás de escudos
e lado a lado, desbaratavant o ataque,
espada pronta à mão esquerda esperando
a brecha do imigo et al: Um gesto impensado
expunha o braço ou peito ao gume afiado. 5265
Delibarando melhor a incerteza do acaso
os combatentes mandam legado a Totila
pedindo reforço. Não porém debandarom,
antes lançavam assaltos notando melhor
a cada movimento o preparo de guerra 5270
dos escudeiros de Narses. Estava claro,
patente estava: Prosseguindo a contenda
conquanto nada perdessem nada ganhavam.
Mas com muita astúcia os lanceiros irom
aos poucos se adequando ao novo cenário: 5275
Agora evitavam contato, caçando lacunas
de gesto e falhas que vez e vez sucediam.
Ganhando tempo exasperaro oponentes
e pouco a pouco o bom moral oscilava,
fortes acumulando respeito e vitórias. 5280


264




Foi então que da formação dos escudos
alevantou-se firme um home, clamando:
– E aí, boiada e godaiada aloprada,
será que alguém docês aguenta comigo? –
Assim falando, avançou perante os broquéis 5285
chamando imigos à sorte e guerra de corpo.
E com certeza sabiam que sol um perito
faria um tal desafio. Mas como os godos
contavam com muitos agastados, perdiam
a paciência primeiro, depois a contenda. 5290
Ora, o valente, quando não derrotava
armado muitas vezes tomava a lanceiros
espada e lança coas próprias mãos, lançando
ao chão perante as testemunhas atônitas,
um gesto desonroso à virtude de incautos: 5295
– Desarmo mas non mato! Verme e covarde
eo deixo viver! – E provocava aos poucos
incêndio nel imo dos cavaleiros, bradando
sem medo e desarmando as mãos de peritos.
Quando contudo a multidão ultrajada 5300


265




veio toda de encontro ao peito do herói,
os outros homens levantando os joelhos
e escudos encorajados pel alma do sangue,
gritarom guerra e, defedendo do ataque
o bom valente, ainda uma vez impedirom 5305
fortíssimo prélio. Mas o caso notório
vindo ad ouvidos de Narses, Narses indaga
os detalhes, ouvindo impressionado o relato.
Quando pois se lhe avança o l’homem sem medo,
em qual surpresa os olhos do eunuco desvendam 5310
de tal semblante um nome estimado: Paulo
que outrora guiara as tropas pelas lagunas,
os pés enfileirados passando por barcas,
Paulo fizera-se herõem maior do que fora.
Ao desarmado desarmador de armadíssimos 5315
e como animado dalgum divino elemento
Narses, o eunuco, orou: – Doravante serás
o guarda, herói, do general te falante
e doríforo como os hipaspistas exímios! –
Assim usando, Narses tomou-se de Paulo 5320


266




como de amigo fiel no peito, retendo-o
todo instante perto de si na batalha.
Do monte contudo aproximava-se Rigo
a mando do rei, averiguando o terreno.
Mal vislumbra os escudeiros do Império 5325
contendo ataque e remata: – Bons de guerra,
aqui perdemos tempo que o caso è perdudo
e não me espanta. Conheço bem la façanha
de escudos, escudeiro que sou, e de fato
em vão roguei do rei enviasse broquéis 5330
e não cavalos. Sabia já que um escudo
se atento vale mais do que vida e cavalo
jamais derruba e nem espada a constância. –
Dito isto, guiava embora do outeiro os
desiludidos guerreiros quando romanos, 5335
ora embebudos de si, cercaro os equestres
e a marcha de godos, provocando iracúndia.
No mesmo instante alevantarom-se espadas
das ambas partes e corpo a corpo o combate
tingiu lo chão. Seguindo àviso de Rigo, 5340


267




porém, de guardando as armas par’a batalha
em campo aberto, os godos se contentavam
na defensiva e na retirada ligeira
ao sopé, recuando sim, fugindo jamais.
Mas Rigo, acompanhado apenas de escudos, 5345
num súbito lance foi cercado de lanças
e gumes, hostis interrompendo-lho passo.
Num gesto inusitado, interpôs o seu braço
em frente aos violentos que ali marcharom
e deu-se o prélio: Os poucos homens seus, 5350
munidos no escudo e desprovudos d’al
obstavam. Na força de suas égides largas
a ponta e desavisada espada crepava-se
contra as placas. O peso tantoro metais
condidos em arma rem impedia que Rigo 5355
erguesse como pluma apenas, levíssima
prenda que o braço alçava e rabiscava
nel ar e cá e lá, confundindo os expertos.
Vindo dous ou três em fortíssimo ataque
o braço de Rigo entanto sabia o momento 5360


268




de cada espada e rumo de gume e de punho,
a mão esquerda livre esperando vacilos.
Como girasse a toda parte e sem tempo
o metal que a vida inteira passara lidando,
impunha contro corte o peso nel ângulo 5365
certo e deturpador de intrépidos fios,
como um destino destruïdor de desígnios.
Quebrando as lanças, exasperava os incautos
e incautos no desespero e nel ódio lutavam
com menos perícia. Menosprezaro o talento 5370
da vida dedicada ao emprego correto
dum certo petrecho! Quanto mais perdiam
a ponta afiada mais se lançavam a Rigo,
irados ao ver o fio cortante do rasgo
retento na superfície firme e rugosa. 5375
Era como se o ferro gostasse dos golpes
que quanto mais apanhava mais o poliam.
Incrédulos frente às milagrosas proezas
lutarom até lhes cair el última espada,
ponta quebrada ou torta, a força humilhada; 5380


269




brados insanos, Rigo entretanto calado.
Notaront enfim lo viço de quem se impôs,
e deles quis entendeu que aquele petrecho
de lidas era inquebrantável. Partirom.
Souberom apenas depois, no meio da noite, 5385
que o portador de escudos era o maior
escudeiro dos godos e protetor de Totila.
Estava completamente apagada a vitória
de poucas horas antes e escudos menores.


μ’

Mas àurora trouxe nova força ao Império 5390
quando arqueiros forom deslocados ao monte
para se contrapor ao contrataque iminente.
Dentre os atiradores daquela estirpe valente
stava Procêncio, a pontaria melhor que existia:
Não existia o seu dedo equivocar-se na seta. 5395
Subira o monte enfim no entusiasmo da guerra,
pronto à proeza. O pai porém chamando João
ainda roga: – Anda perto e defende meu filho,
pois è meu legado, futuro e vitória do Império.
Quando Justiniano vir o valor desse jovem, 5400


270




nada obstará Procêncio do cetro do Imperador. –
Pois houvero chegado os cavaleiros de Teia,
Tótila velocíssimamente agiu, que dispôs o
seu exércitu inteiro em posição de batalha.
Narses contudo concatenando os riscos ordena: 5405
Frente a todos e face a face perante inimigos
fosse exposto o povo lombardo, a grei violenta
cercada em toda parte por cavaleiros do Império.
Não lhes fosse possível reconhecendo o perigo
mudar de ideia e desertar, repentinos na fuga. 5410
Hunos dispôs atrás de lombados. O povo contudo
dos érulos, ora fiel de palavra, houve consigo,
cônscios eles dum erro grave e gratos agora:
É que durante a guerra contras arma de Vítice
d’anos antes houvera de fato um certo episódio – 5415
quando se houveram dispersos pelo norte do Pó,
los érulos forom passando e saqueando cidades,
pondo fogo, roubando inocentes, seguindo adiante.
Perto porém de Milão buscando chus, a nembrança
doutro modo arribout a frear ela grei cobiçosa: 5420


271




Pois o próprio rei Fanisteu morrera na guerra
quando sucumbira herói nos braços de Narses.
Mas se até lo rei doau sua vida, atinarom,
os aliados seus mereciam melhor atitude.
Súbito pois se arrependerom cruzando embora, 5425
triste o peito, regando toda a Itália de pranto.
Eles mandarom missiva confessando o lor crime,
letras contendo dentre mais: “Concede perdão,
Senhor, ad um povo ingrato em desditoso delito
e decide, por caridade, a qual deserto do mundo 5430
iremos além, escondendo sob as mãos a vergonha,
a sina infeliz dum gesto apagador de amizades.”
Mas o Imperador, conquistado dalguma emoção
melhor e mais generosa que a brevidade da vida,
deu-lhes perdão e permitiu e pediu que voltassem 5435
pronto, para lutar ao lado de Narses campanha
nova em novíssimo gesto apagador da vergonha.
Pois então mudaro o rumo e viero de encontro,
firme no cor o intento de reparando uma falta.
Mas comé que pode o juízo ser tão diferente 5440


272




contrum povo a favor dum outro? Chegava legado
godo e dava dó de assistir como quera tratado,
mas os érulos, grei igual ao godo em virtude,
deles o Dono Gêntio ficou com dó, ao que consta.
Quando um só è senhor de tudo, assim que se vive. 5445
Mas ali se juntava aquelora o povo dos érulos
grande e vivo, Narses o pai. E Narses dispondo
mais dispôs nos flancos laterais os lanceiros
junto ao mar de espadas bradejando coas vozes.
Tótila enfim notando as posições de inimigos 5450
pôs o grosso das lanças na prima linha de guerra,
para atrás apenas a espada, arqueiros ao lado.
Rigo ainda assim e Vilas ouvindo as ordens
não hesitarom: – Mistura mais espada no campo,
rei, senão lanceiro nosso está tudo cansado 5455
quando àjuda do flanco chegar. – Totila discorda:
Quer ativos na linha frontal lanceiros somente
e pouco atina com Vilas balançando a cabeça.
Lá se avança Ruderico na frente do exército,
o braço intimorato carregando o petrecho 5460


273




junto àgrupação de clavas, herói de seu povo.
Ó destino incerto, quem viu de longe essa luta
pediu a Deus protetor vencessem ambos os lados.
Mas fortuna è surda às preces e avançam as armas
e súbito vida contra vida em fortíssimo impacto, 5465
dous inimigos mesclando a morte ao rubro da aurora
quando o sangue impôs o ocaso ao raio nascente.
Firmes em tanto embate as armaduras colidem
contras outras, umas contras outras lutando
lança e spada. Fortuna viu la mão de lombardos 5470
longe arremessar ao chão oponentes sem vida,
godos no mesmo instante atravessando àrmadura
como o corpo hostil na fúria louca de lanças,
muitas vezes uma apenas quebrando a coragem.
Raro guerreiro a tropeçar ergueu-se de novo 5475
mentre os milhares de pés pisoteavam a carnem.
O passo desordenado passava contra o primeiro,
braço cravante ao peito ou pelas costas a espada.
Os godos peritos ora mirando longe um perdudo
davam rumo forte à flecha: Deitaront à terrae 5480


274




gama incautor arrancando sem dó suas arma
da carne furada, agonizante a carcaça jorrando
pela lama. Vinha porém destemudo o lombardo
contra um pouco atento: Segurando os cabelos,
súbito o golpe dissociava do tronco a cabeça, 5485
novu troféu ereito ao céu. Passava ao rosto
fel em ritual tenebroso quando de encontro
gótica espada ou clava terminava-lhe o gozo.
Doutra vegada o guerreiro, crepitados ousados,
vendo além o amigo em perigo corria de auxílio, 5490
pronto dilacerada a carne atacante por duas
lanças fortemente enterradas, ruindo sem alma.
Doutras almas ainda arqueiros cortaront o grito
quando a flecha no coração calava impropérios.
Ora atacando marchavam, marchavam ora em defesa: 5495
Marchavam pelo campo e as pilhas córporo vastas,
em todo andar tegumentos ofendendo a semente.
Quando enfim dos godos se extravasaront espadas
nem esperavam mais o gume dalgum dos érulos,
nova batalha ecoava pelos metais de armaduras. 5500


275




Pois do trom atroz que trovões invejarom dilúvio
d’ondas cobriu a gleba de fluidos atros purpúreos.
Nada mais impedia as façanhas que a mão inventava
como os passos de Ruderico cercado e sem medo.
Ele, atacado, jogava a sós de ribas ciclopes, 5505
a lança deitada ainda à terra. A lança, se erguia
rumo ao peito dum certo atrevudo, a vida fugia
já do corpo amedrontada evitando àrremesso.
Mas ao filho de Vilas não ferirom feridas
quando lhe houvero deformado o rosto ligeiras 5510
como o corpo. Rasgarom fendas que pouco notava
pois sabia: Guerreiro bom è quem vem com vontade,
vem mostrar na luta o que foi amor de verdade
pelas mães de seu povo, amor sem medo e coragem:
– Vem, maldito! – extravasou’m jovem lanceiro 5515
frente às levas mílito. Quando a fama espalhou-se
pelo rol dos lombardo-los homens vinham de longe
ver que irradiava o sol, e assim por primeira
vez se emocionarom dizendo duns para os outros:
– Isso è rei de verdade, fala com ele, convence, 5520


276




leva a coroa: Vem, Ruderico, ser rei de lombardo,
vem, que amor e respeito nunca vão te faltar. –
E quanto orgulho resplandecia da morte ao morrer
morrendo pelas armas de Ruderico, o valente.
Quanta corage erguia do chão as vidas feridas 5525
pelo míssil, sentido da estrela a voz inaudível:
‘Vai lutar, lombardo, não por tirano maldito,
vai lutar por quem merece viver de verdade,
vai lutar por quem padece na mão de impostores!’
Isto e bem mais o raio de Ruderico ensinava 5530
como um rei guiando os povos com força e bondade:
Quando lombardos oferecendo-lhe a vida deitavam
armas ao chão, ajoelhados rogando clemência,
a mão do herói ergueu o lor viço. Issem embora
como friãos na paz de Deus que defende seus mansos! 5535
Ele não se esquecera da própria vida arruinada
quando aos pés de Tótila após o crime implorava,
a mão que restava em Vilas reerguendo as ruínas.
Mas o rei se concentrava em assuntos diversos:
Vinha camuflado por entre os comuns e guiando 5540


277




como ouvindo ansioso o parecer de peritos.
Pois o farol do diei passava já pela tarde
nem por isto movia consigo a linha da guerra.
Que toer? Chamando Vilas e Rigo e rogando
Tótila ouviu: – Agora Deus è que sabe destino 5545
pois agora è caminho sem volta, agora è coragem. –
Rigo mandaut a campo os escudeiros melhores
e novas espadas arribaro à foz do combate
mas àngústia penetrava um rei que escutava:
Deus redentor terá desdito do povo dos godos? 5550


ν’

Narses não se via em melhor conjuntura,
guerreiros sacrificando em vão lor esforço
porque soldado arfava e nulhome avançava.
Mas ao ver a moção dos arqueiros ordena:
Atirem contra os cavalos! E assim atacando 5555
projéteis dilacerarom a carnem de equinos
causando alarde e perturbando projetos.
Corria dele outeiro aos ouvidos do eunuco
o milagre d’arco pelas mãos dum herói:
A mira infalível derrubava os impávidos 5560


278




como animais, e presto Procêncio trocava
os alvos marcando imperturbado no tiro.
Soltas as cordas, sous dedos inopinados
puxavam a sua próxima flecha, deitando
às cordas uma atrás das outras, perito 5565
diminuindo aos poucos o exército godo.
Em tal fortuna Vilas, l’home sem destra,
andava atrás da linha ajudando caídos
e removendo as setas de peitos feridos
coa mão esquerda apenas. Veio contudo 5570
num turbilhão desordenado de marchas
a guerra, pois a linha mudara de rumo e
surprehendeu em campo o varão desarmado,
perdudo agora no próprio seio do prélio.
Pois alevantando da terra a primeira 5575
lança que ali divisara, Vilas impede
como pode lo assalto do gume dos érulos.
Quando porém recua buscando os sentidos,
guerreiro hostil que vislumbrava de longe
obstou num sobressalto o passo do velho: 5580


279




– De mim non fujas, godo, a fuga covarde! –
João de Vitaliano indali se expusera,
alçando a spada e desferindo ataques
que a mão de Vilas a todo custo parava,
porquanto o gládio minuto não alcançava 5585
o corpo ancião devudo à lança comprida.
– Desiste, gadrão, a tua espada pequena
me alcança não que contra lança ere inútil –
avisa o mestre de godos. João todavia
peleja, fiel à bõa guerra que abraça, 5590
quando num gesto de titubeio do imigo
derruba pelo chão lo que resta de Vilas.
Erguendo porém a espada ao golpe final,
João, ouvindo o brado exausto dum velho
divisa no corpo de Vilas verdade: A destra 5595
outrora dissociada feria os sous olhos
como o fio da espada. Em triste vertigem
João generoso e tomado de angústia recua.
O godo contudo crendo a morte iminentem
tira do chão la primeira adaga que atende 5600


280




e de súbito fere em desespero por vida
a mão et as faces do general, que no susto
tombou, enquanto Vilas erguendo-se presto
tomou da sua lança e com força enterrou-a,
profundo, na terra e por um triz de João, 5605
roçando-lhe quase o crânio. Olharom-se ambos
num longo e desgracioso silêncio de morte,
que Vilas enfim interrompeu, rematando:
– Aí se vê, werreiro, a vida que engana,
assim se aprende o que a vida tói da gente. 5610
O l’home vão comemora vitória e non sabe
e passa um vento e já lhe mostra a verdade.
Verdade a pessoa descobre com vida no chão,
ca o l’home de pé non reconhece a verdade
e verdade derriba e quem caiu testemunha. 5615
Levanta-te desse chão, inimigo, levanta
e leva embora de mim tua vida, que vida
nulha è minha e não adentro uma guerra
buscando vida que nimigalha mi serve. –
Vilas estende ao outro a mão sinistra. 5620


281




João, porém, ouvindo do chão penitente
reflete ainda e dedica: – Notei de começo,
inimigo, que a tua estirpe era rara e distinta.
Talvez por esto eo quis saber o que sês,
previ correto, a luta contigo è daquelas 5625
que ensina a viver. Disseste mal uma coisa:
Caí ao chão que me enterra não por fugaz
amor e vislumbro de corriqueira vitória.
Caí porque perdi a moção de meu peito.
Perdi porque te vi sem mão que lutavas, 5630
honroso a quem somente a vida covarde
derruba e vence. Mas no ataque entendi
la certeza que já supunha: O homem correto
em luta mesmo sem mão è gestor de vitoria.
Elo e mais por nosso encontro entendi, 5635
agora eo quero saber a verdade da mão,
porque guerreiro da tua altitude non perde
por nada e quero que seja bõa a razão.
Aclara um pouco esta confusão e revela
o l’home que desonrou tão feio tou braço 5640


282




e diz o nome, pois eo hei de buscar,
eo não me canso até vingar tuam vida! –
Mas Vilas contendo os olhos e os membros
opõe a João: – Eo er percebo, inimigo,
quão distinta grei por aqui representas, 5645
e foi sabendo da piedade que abraças
que vim olhar a profundez de tous ogos
e ouvir tua voz e dizer de nós a verdade:
Da luta nossa aprendi que uma ponte nos une,
um laço invisível maior que vitória de guerra. 5650
O homem porém que arrebatou minha destra
foi lo que mi ensinou grandeza e corage
e fez o bom guerreiro que sejo e prossigo.
Meu filho e professor apagou lo seu erro
e não me vingues pois éste Deus a vingança. 5655
A vida que agora levas a deves àquele
que tanto tem chorado um momento infeliz.
Vingança não, issaí nè mha guerra aquinão!
Non fosse a mão perdi, perdão que aprendi,
eo não me comportara perante tous olhos 5660


283




como compete ao verdadeiro guerreiro.
A vida è isso o que é: Quando me vires
caído em campo e se novamente eo caíro
em tuas mãos, recorda a vida o que é.
Levanta já do chão, inimigo, levanta-te 5665
e segue embora! – Mas João que se erguia
tomando a mão de Vilas assente responde:
– Viveste bem, disseste bem, uma ponte
passa entre nós, inquebrantável certeza:
Jamais ergueia contra ti, e nem permito 5670
a meus amigos, a mão de guerra e de morte! –
E assim falando e misturando promessas
partirom, cada qual na incerteza do rumo,
olhando vez e vez para trás e querendo.


ξ’

O novo estrondo contudo interrompia o juízo 5675
pois a guerra avançava cá e lá demandando.
Ó visões de transtornadas gentes parindo
morte e desassossego e tormentoso estupor!
Jazia desafiando o viço das flores a carne
pela terra, clamando em vão socorro caídos. 5680


284




Ora que a seta dilacerava parcela do crânio
como entranhas, ora a multidão de estirados
ia buscando por entre pilhas pedaços e membros.
Os godos e os esgueirados pela beira gemiam
como o gado sem rumo e suplicando um pastor, 5685
enquanto irados gládios dilapidavam-se mútuos,
homens atracados caçando sangue e desgraça.
Mas Procêncio, o dedo inabalado e sem pausa,
fere quejendos mira de morte e cala clamores,
vai mudando de posição polo monte e buscando 5690
plus de cavalgantes ousados, em cujos peitos
abre um poço fundo e profundamente rubente.
Quanto mais a mão arrancava do tórax a ponta,
mais os contrafios da pua arrancavam do abismo
pele e carnem: Eram três os gumes metálicos, 5695
um pela frente e dois traiçoeiros por trás.
O jovem ouvia João de Vitaliano que ovava:
– Ah, Procêncio, teu futuro está garantido,
tu serás em breve o máximo nome do Império! –
Mas o jovem supõe: – Dever humilde, senhor, 5700


285




à mãe de minhas mães e ao general que me adota,
nada mais, porque de verdade tenho atè medo! –
Pero o mestre mílito impede: – Temor è certo
quando ensina amor à vida aspirante coragem.
Mas non temas não: O galardão que te atende 5705
vinhe das mãos do Dono Gêntio! – Assim ensinava
mais detalhes de mira e tiro, mesclando Procêncio
pelos muitos gépidas ora àquele monte chegados:
Eram competentes arqueiros! O filho do eunuco
vendo o modo novoro tutores mais se apurava 5710
e chus certeiras setas largava embora da corda.
Nada entretanto abalava e rem minava o guerreiro
godo que não demandara aquele campo de guerra
para fugir de inimigas armas ou al, pero antes
cair com honor. Ainda ajoelhados, quebravam 5715
eles da própria mão a flecha, tirando de dentro
a ponta, peito e vísceras que afloravam afora.
Eles fechavam os olhos plangendo pelo seu povo
mais que por si, sofrendo e terminando calados.
Longe e de perto, abutres pelejavam a guerra 5720


286




dentro da guerra: Dissecando o cor de cadáveres
frescos co bico, especial banquete o das tripas,
as aves dilaceram no afã da gana a si mesmas
como misturando o lor sangue à carni engolida.
Abutres ali se atacantes decepavam cabeças 5725
uns aos outros: Mentre rolavam vertiginosas
inda mastigavam co bico a moela de entranhas
numa fome de morte já maior do que o mundo.
Quanto mais a batalha alimentava a rapina
como as horas, mais distante andava a vitória 5730
d’ambas pártio ca’s partes ambas sorte arruinava.
Vendo tod’o estrago que ali flecheiros faziam
quase inalcançaturos no outeiro, Totila consulta
Vilas que impera muita cautela. Rigo pondera
risco maior, porquanto o sol ansiava esconder-se, 5735
triste riso, dum dia astroso de astroso destino.
Triste o sol? Mas quem non via, estrela ultrajada,
quanta imensa dor embarcava nel erto dos homens,
nave pesada e naufragatura quiçá pelas ondas!
Cujo froia portanto em vendo tanto suplício 5740


287




não se condói dum povo face a tal sacrifício?
Mal sabia o rei explicar, nos destinos da marcha,
como chegaram, andando que estavam perto de Roma,
neles abismos da l’Úmbria por onde agora lançavam.
Ora Totila na angústia dum desairoso suspiro 5745
reza a Rigo: – Por Gus bondoso, traz o cavalo!
Quero avançar à linha de frente como mi cabe,
rei que sou, e encorajar o braço bravoro
lança e bandeira às mãos! – Mas Vilas e Rigo:
– Fica, rei, por caridade vivor e de mortos! 5750
Pode não, non pode a pessoa expor suam vida
desse jeito quando è senhor! – Isto apelantes
ambos reprimindo a gota, Totila interrompe:
– Istu eo sei mas olha como o dies se apaga,
olha como vai cansano os nossos guerreiro. 5755
Rei què rei non pó deixar sou povu assinão,
non pode, tem que chega o rei tajunto alitudo,
tu’depend’essa luta aqui, essa guerra è vencenda.
Venha o cavalo! – De pouco adiäntarom os rogos
e veio o cavalo. Totila montava o bicho apressado 5760


288




mentre ao longe divisava o que enfim se passava.
Antes pero que o rei godoro desse as esporas
foi avistado pelo arqueiro: Procêncio mirou
atrás da linha Totila camuflado de guerra.
Pensando ver um mero soldado puxou intrigado 5765
o quanto pôde a corda, a flecha mais afiada.
Totila tomava da lança quando veio de encontro a
seta lacerando-lhe o peito em rajada de sangue:
– Rei alvejado! – ecoa o brado e Totila atingido
cai, amparado pelos braços de Rigo e de Vilas: 5770
– Fui ferido, amigos, Deus esteja a meu lado!
É ferida séria? Luta! Non pode parar! – E falando
mal continha a dor nas distorções de seu rosto.
Nisto porém Ruderico irrompe agitado buscando
Vilas e derramando uma forte afluência por terram: 5775
– Pois eo vi quem deu, meu pai, esse tiro covarde!
Pois eo vou, meu pai, vingar Totila e meu povo! –
Antes de ouvi-los tantos apelos de Vilas, dizente
’guerra non ganha com ódio, tem que ter paciência’,
ele partiu, que não julgou correto um valente 5780


289




vê-lo desaforo que vira e leixar que passasse.
Pois Ruderico marchou, com lança firme no braço
e passo firme atravessando a linha de frente.
Não se importou desafiando audaz o destino
pois o peito dum rei generoso fora ultrajado. 5785
Ele marchou, e demandando l’outeiro de arqueiros
viu fugi-los atentos: Sabiam que ali penetrava
bom lanceiro e certo o maior do exército godo.
Porém Procêncio desatento mirava adiante
quando o grito de Ruderico irou retumbante: 5790
– Não atires de novo pelas costas dum bravo,
verme, a flecha infame e vem lutar feito homem! –
Mas Procêncio no sobressalto dum gesto agitado,
ato contínuo volta-se a Ruderico e lhe aponta
contra a cabeça a seta que preparava na corda: 5795
– Sou guerreiro bravo e pela frente eo atiro
como atiro, atrevido, contra ti se quiseres! –
Que assim diziam lançarom destemudos olhares,
pois tomando impávido cada qual de petrechos
ambos correrom rumo ao irrevogável combate: 5800


290




Mas foi breve a contenda ca Ruderico arremessa,
como se fosse flecha, todo o peso da lança
contra o corpo vulnerável do filho de Narses.
Quando entretanto a lança dilacera Procêncio,
jogando fora o seu corpo e cravando na terra 5805
um juvenil cadáver – da corda avança uma seta
e míssil que penetrando Ruderico no crânio
derriba o filho de Vilas em violenta agonia.
Procêncio caído já perdera os seus movimentos
pelo derradeiro reflexo – l’outro guerreiro 5810
lembra porém lo seu dever et amor de seu povo:
Ergueu-se e como em desastroso milagre marchou
lo monte abaixo para expirar nos braços dum pai.
Contudo um corpo cambaleado recede e se nega:
Ele lança um grito inaudito e no meio da luta 5815
finda o passo; e as armas ressoam em torno de si.
Em torno de si, por dentro e por cima essa guerra
passa, pisa, deforma, enterra o que jaz duma vida.
Mas também Procêncio beirando as portas da morte
ainda um momento recorda a pobre mãe que leixava. 5820
Que destino infeliz e vergonha à vida de Narses
como guerreiros de quem a sua sombra abeirou-se!
Ora entendia, e como não, que um pequeno ladrão
furtante galinhas non cabe numa guerra bravoro:
cai por terra; e as armas ressoam em torno de si. 5825














Ode ao Sol


Por quê, se a verdade
è bõa que luz, destino
quis o fim de todos
dias? Certeza maior
è que, todos os dias,
da sombra da morte
estrela aurora nasceu.















ο’

Mas onde o paradeiro final de Totila?
Era verdadeira a notícia da flecha?
Caía a noite e lo desespero invadia
guerreiros, rumores circulando confusos
que o rei quiçá caíra, fugira, morrera. 5830
Assim começou la debandada e gadrãos
querendo em vão resposta lançavam embora
escudo e clava. Ajoelhados e exaustos
batiam ao peito reconhecendo a verdade,
livrando angustiados clamores. Perdudos 5835
por entre cadáveres divisavam no escuro
escado talvez de amigos, imigos quiçá.
Mas aonde fugir e por quê, e como agir,
de que modo viver? Desordenados lanceiros
corriam rumo à sombra abismal dum bosque 5840


292




caçando a própria vida por entre buracos,
o pranto como o medo guiando na treva.
As tropas de Narses, embebudas del ódio,
buscavam indassim desarmados seguindo
o passo e perseguindo àflição de caídos. 5845
Ó destino espedaçador de esperanças,
quanta vegada o bom guerreiro aturdido
lançou-se aos pés de vencedores irados
rogando clemência? Quanta vez vencedores
erguendo a spada decapitarom rendudos 5850
ajoelhados e mendigando e plangentes:
– Me mata não, seu filha da puta! Deixa
nós viver, respeita quem se rendeu. –
De pouco adiäntaro os apelos de Narses:
A caça a fugitivos agora era o novo 5855
lazer dos atrozes. Cá e lá combatiam
ainda isolados godos, talvez dessabendo
uma triste verdade os condenandos heróis.
Alguns unidos resgatavam-se em grupos
de dous ou três buscando abrigo na sorte. 5860


293




Pobre a vida em fuga porém que caísse
nas mãos de caçadores vis de caídos.
Feitores da treva e da violenta falange,
os hunos e os bizantinos matarom a esmo.
Passavam lombardos incendiando aldeias 5865
de perto e trucidando o quanto avistassem.
Assim perecerom juntos romanos e godos,
crianças, mulheres, inocentes pastores.
Quão diferente Tótila teve essa terra!
Mas os godos corriam, comprehendendo 5870
a cada passo que aquela batalha pusera
fim ao seu direito de esser uma gente.
A liberdade, a flor do futuro extirpanda
jazia sangrante, arrebatada a bandeira.
Clamarom! Amargamente choraro o desfecho 5875
da sua abortada esperança, recém-nascida,
num reino de amor e Deus e paz duratura
a ver um povo gozar dum bondoso banquete.
Mas Narses, angustiado na lenta certeza,
ainda atende a palavra final de peritos 5880


294




vinta a resistência nos últimos focos.
Qual non foi enfim la surpresa do eunuco
quando se houverom aproximado da tenda
dois legados vindo de opostas veredas:
Um lhe depôs ao braço esquerdo a bandeira 5885
em trapos do rei Totila atestando a vitória;
mas l’outro impôs ao destro um corpo ensan-
guentado, Procêncio testemunhando a verdade.
Narses – lançando pelo chão a bandeira,
Narses num grito ensurdecedor desmorona 5890
perante aquele cadáver qual se vivesse.
Ele para, ele cala, ele clama, ele fala:
– Mas que grosseira encenação, que mentira,
Procêncio vive, cadê Procêncio, guerreiros?
Non pode meu filho morrer, morrer nõ existe, 5895
Procêns è vitória, vai chamar que ele vive!
Procêns è isto o que resta? Acorda, acorda!
Ah, João, essa vida jamais me enganou:
Destino quando odeia a vida um homem
termina assim, non tem vitória que ganhe. 5900


295




Não, João, que triste ilusão de meu peito
pensar que o meu amor salvaria uma vida.
Eo sempre soube o fim do que fosse alegria
desde que vislumbrei a sombra do mundo.
Mas por que, de todo mundo, Procêncio? 5905
A vida tudo o que eo amo ela tira de mim,
meu coração è como ele toque de Midas:
eo passo pelo mundo e as vidas me tocam
mas quando as toco alguam coisa mas toma.
O meu sentido è passar sem amor e sem riso, 5910
porque, João, eo non tenho direito de ser
num mundo por onde nada jamais me sorriu.
Daí passou Procêncio, que vi, que pensei:
Procêncio non pode ser ladrão de galinha,
Procêncio merece amor de pai, que se educa 5915
Procêncio vira gente e guerreiro decente.
Ah, João, que maldade esta vida inocente
cruzar meu caminho: amando Procêncio matei,
destino o matou por mim porque me alegrei. –
Passados soluços, um general sem vitória 5920


296




prostrou-se caladamente ao lado dum corpo.
Mas mirando estrelas, tornando à verdade
e secando os olhos, a voz de Narses clamou
de novo e levantando-se chama um soldado
e desarmado desarmador de armadíssimos: 5925
– U se encontra Paulo? Paulo, guerreiro
que bem te vejo, sai de perto de mim!
Destino arrasa quem se aflige por mim.
Ainda procuras, menino, o gesto correto
de guerra e gesto redentor da existência? 5930
Ah, meu caro, eo conheço o fim dessa busca!
Toma aos ombros teus o meu filho Procêncio,
sê meu amigo! Vai devolvê-lo aos braços
da mãe, de quem num movimento infeliz
sequestrei, selando a desventura de três 5935
desafortunados! Cruza por mim a distância
por terra ou mar e tem coragem, prossegue
ata lo fim da jornada! Procuras ainda,
Paulo, o gesto excelso? – Paulo escudeiro
inesitante assente e tomando Procêncio 5940


297




monta o primeiro equino que lá se mostrava,
cônscio que foi de inquebrantável dever.
Mas Narses, retirando do peito um anel,
dourada e valiosa prenda que entrega
ao bom guerreiro, roga: – Pois chegares 5945
entrega àquela mãe meu tesouro singelo.
Ela que venda e com fé em Deus encontre
algum abrigo por este mundo e seu pão.
Mas diz que descobriste no chão este anel
e não que vem das mãos dum eunuco odioso, 5950
porque matei seu filho mais do que meu.
Reporta somente, Paulo, uma breve mensagem:
Procêncio caiu porque o destino invejou.
Não contudo como um ladrão de galinhas
Procêncio caiu: Procêncio caiu como homem, 5955
como um guerreiro digno do nome de Roma
Procêncio caiu, porque Procêncio venceu. –
Assim partiu a cavalo um fiel escudeiro,
na madrugada um misto de treva e de luto.
Estava determinado a varar como um raio 5960


298




e como um relampo em poucos dias tornar.
O eunuco entretanto segurava o seu pranto
buscando ainda notícia do fim de Totila.


π’

Pelas escuridões a cavalgada avançava,
Rigo perto, os escudeiros, 5965
Totila retorto por dentro.
Iam varando a tempestade em galopes
e defendendo o rei de armadilhas.
Era possível remover, do fundo de entranhas,
a flecha? 5970
Totila comprimia os gemidos,
a dor, o incêndio no peito,
quando mais um ataque irrompeu:
Lombardos perseguindo
vinham mirando as suas lanças. 5975
Mas Rigo crendo ali desertores
reprime: – Alçais a spada contra Tótila,
cães, o vosso rei? – Alçarom, e atirando
cegos pelos ermos uma lança
acertou, assim o quis o destino, 5980


299




uma adentrou, por acaso e pelas costas, o rei,
que lançava um novu golfo de sangue
boca afora, o galope cortando seu ventre.
Mas a busca dalgum retiro os impeliu
por horas pelos bosques e estradas. 5985
Quando enfim Totila em seu tormento
lançou do cavalo um grito,
Rigo parou, o bicho parou, os escudeiros pararom
ouvindo: – Pode parar por aqui mesmo,
acabou meu fôlego. – 5990
Rigo mandou buscarem água e desceu
lo rei do cavalo: Deitou-o
pela beira da estrada. Tótila
olhando muito além ponderava:
– Rasgou demais a ferida, 5995
foi muita cavalgada, Rigo, essa vida.
Pode ir embora,
salva a tua vida, vai, pensa em mim não.
Deus non quer saber de godo não. –
Mas o amigo: – Fala assim não, Totila, 6000


300




ferida cura e Gus protege inocente.
Daqui vai sair todo mundo vivo,
calma que a flecha sai. – O rei retruca:
– Né assinão, meu amigo, tem jeito não,
non cabe mais vida aquinão, 6005
me destruírom, corage è ver a verdade. –
A mão que erguera caídos ora mal se levanta,
aponta para uma pedra e trêmula a voz o rei sorri:
– Toma aquela pedra e por piedade de amigo
apaga o meu nome da história. – 6010
Mas um fiel escudeiro tomando aos braços o froia
falava e consolava que a chuva parou.
Um homem ferido, fechando seus olhos
perante o céu que se abria,
mirando muito longe sentiu: 6015
– Hoje está bonita la estrela do norte. –
Totila morreu.
Rigo na inundação dos olhos viveu:
– Está bonita mesmo,
Rei, e peço a Deus que teu nome 6020


301




fique guardado nela e marcado para sempre,
porque teu povo inteiro te amou,
godo que è godo sabe. – Depondo sobre
os restos do froia seu escudo que não se quebrara,
falando a sós e soluçando e gritando 6025
Rigo correu, e nem se sabe por qual abismo
ou estrela Rigo passou.
Quando Narses ouviu do paradeiro final
pelas escuridões, mandou
buscarem uns fios de cabelo e pedaços 6030
do vestuário real em sangue,
a prova da morte que desejava o l’Imperador.
Mas aproximou-se do eunuco uma certa mulher,
delicada e distinta, rogando baixo:
– Que bonita esta tua vitória, Narses, 6035
como alçaste maior o nome dos Céus e do Império.
Estás contente?
Então revela, por caridade a quem migrou
de ermida em ermida, onde encontro
a paz que se acercou de Totila. Se posso pedir, 6040


302




rogo non vilipendiar um despojo mortal.
Chamo covarde o guerreiro que vendo um cadáver
nega-lhe a paz, atormenta um jazer derradeiro. –
Narses defende: – Tem isso aquinão, Senhora,
non cabe esse gesto não na mha bandeira. – 6045
Mas vendo Segisberto et altos legados, Narses
reconhece a princesa francor, que lamenta:
– Quando ouvi da batalha iminente, uni
meus home e vim propô-la paz e mediar,
que Deus quando chama a pessoa 6050
tenhora que ouve, então quem ama insiste:
Mas olha o que me custa um dia de atraso,
Narses, Narses, que guerra foi esta?
Olha a Itália! Todo mundo era amigo! –
Narses, pai sem filho, revelou-lhe o jazigo 6055
e Rodelinda partiu levando a lembrança,
olhando paisagens que um dia testemunharam
laços e as juras do amor que foi puro.
Ó tormentosa noite,
quantos olhos se erguerom pela treva 6060


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pedindo a salvação de Roma e consolo da Itália.
Quanta gente ali perdeu seu caminho:
O senador pensava que a guerra acabara,
que Roma estava livre, e pondo a família na estrada
rumo à cidade amada perdia a vida e família. 6065
Pois os godos em fuga, ouvindo que o vencedor
assassinava rendidos, rasgarom pela estrada
a garganta dos inocentes
num misto de desespero pelos seus
e vingança. È devastante lembrar, mas a vida 6070
è esta: quando Teia viu los filhos do patriciado
na escola que o rei erguera num die melhor,
mandou destruir –
e forom degoladas trezentas crianças.
Ô Senhor de longe, pede pro sol atrasar 6075
seu nascer, non deixa ver a desgraça infinita
questa noite, inesquecível, lançou sobre nós:
Nada rëergue desta treva ruínas Italiae.
Ô Senhor de longe, salva as crianças ao menos!
O resto da multidão se arranja e se enterra: 6080
Olha ali como vai passando um homem sem mão,
remexendo despojos pelo escombro, chorando,
chamando: – Ruderico, meu filho! –
Mas na madrugada o corpo non tinha rosto,
o rosto non tinha corpo: Senhor, o que è isto? 6085
Caídos e misturados pelo destino
jaziam, calados, unidos, irmãos, inimigos, amigos.





FIM