TOTILA
© Gregorius Vatis Advena 2017, Record E 6, engl. Totila, Hampshire, heterometres, 6087 lines, epic poetry, epography, Portuguese.
© Gregorius Vatis Advena 2017, Record E 6, engl. Totila, Hampshire, heterometres, 6087 lines, epic poetry, epography, Portuguese.
Rei dos ostrogodos, Totila luta pela reconquista da Itália após herdar uma custosa guerra contra os bizantinos. Justiniano, o novo Imperador, sonha em revigorar o Império Romano. Roma porém está cercada. A fome e a destruição se espalham pela Itália. O Imperador, enfim, decide enviar Narses a cabo de imensas coortes. A guerra dos godos (535-554) é um dos momentos mais traumáticos da história ocidental.
Imagem: Imperador Justiniano (centro) e séquito (Belisário à esquerda, Narses atrás à direita), Basílica de São Vital, Ravena, ft. de Roger Culos, CC BY-SA 3.0.
Poema épico, Totila retrata a guerra como condição íntima do ser na angústia dum mundo irracional ou racionalizado arbitrariamente. O fogo, o conflito, a destruição exteriorizam tanto o animal indomável quanto o anjo perdido em sua luta por sentido, numa contenda invisível que arrasa e fortifica. O poema discute, entre outros temas, o conceito da boa guerra e seus paradoxos.
Sinfonia No. 9 em ré menor op. 125, primeiro movt., Beethoven, regência de Herbert von Karajan, Filarmônica de Berlim, 1962, PD [União Europeia].
As formas orgânicas do idioma são autônomas, livres de realidade. Não há um padrão morfossintático fixo. A composição reúne práticas medievais e medievalizantes, contemporâneas e experimentais. O mundo que o poema retrata é caracterizado por plurilinguismo e diglossia, sem uma norma coercitiva. O português serve apenas de língua-base para um idioma fluídico.
Em sua guerra de estilos inconciliáveis e escandalosos, é um poema moderno: Traduz o postulado de Rimbaud por uma arte progressiva onde os métodos mais avançados e diferenciados se mesclam às experiências mais avançadas e diferenciadas, também como crítica social.
Em métrica, o poema alterna episódios em hexâmetros longos e breves, por vezes irregulares – seis ou cinco tônicas separadas por uma ou duas átonas, ou por pausa. Em geral, o verso começa em tônica e termina em diérese bucólica – o ritmo tátata-táta. As alternações são frequentemente quebradas por quadros em verso livre.
O uso das formas épicas é tratado no quadro das conjugações épicas e no ensaio Prosódia e Grafia, notadamente os subtítulos [3] e [4]. Certas formas também são ilustradas neste excerto anotado, no Carolíngio.
Há dois grupos de formas épicas em Totila, as históricas e as avangardistas. No primeiro grupo, ocorrem tanto (a) formas arcaicas, documentadas no português antigo e que se pode consultar no Glossário da Poesia Medieval, quanto (b) formas arcaizantes, isto é, licenças épicas eufônicas ou latinizantes, composições sem documentação histórica, ainda que verossímeis. Dentre os termos documentados, sejam assinalados:
al, pron. [aliud]: algo, outra coisa
atender, verbo: esperar
ca, conj. [quia]: que, já que, porque
camanho, pron.: tal, tamanho
chus, adv. comp. [plus]: mais
eire, adv. [heri]: ontem
elo [ê], pron. [illud]: aquilo
ende, adv. [inde]: daí, de lá, disto
esto, pron. [istud]: isto
er, adv: ~ de fato (enfatisa o verbo)
home, pron. indef.: ~ alguém (~ “se” apassivador)
i, adv. [ibi]: aí
ja-quando, adv.: em algum momento
medês, pron.: mesmo
mentre, adv.: enquanto
mi, pron. dat. [mihi]: a mim
nimigalha, pron.: nada
nulhome, pron.: ninguém
nulho, pron. [nullus]: nenhum
ogano, adv. [hoc anno]: este ano
pero, adv.: mas (geralm. átono)
pero que, conj.: ainda que
pois (que), conj. [post]: depois que (com fut. subj., pret. perf. ou pret. ant.)
quejendo / quejando, pron.: qualquer que seja
quis, pron.: cada um; mais raro: alguém
rem, pron.: nada
sou, pron.: seu (altern.)
tou, pron.: teu (altern.)
u, adv. int. [ubi]: onde
vegada, subst.: vez
As conjugações épicas são tratadas neste quadro completo. Dentre as desinências mais recorrentes, assinalem-se as do quadro abaixo. A cruz pátea ( ✠ ) indica formas históricas documentadas, como o pretérito anterior (houve amado) e o particípio regular da segunda conjugação (perdudo, temudo, cf. fr. perdu, it. perduto):
| |
PADRÃO | FORMAS ÉPICAS |
| |
perco | – |
perdes | – |
perde | perdet |
perdemos | perdemus |
perdeis | perdedes ✠ |
perdem | perdent |
| |
perdi | – |
perdeste | – |
perdeu | perdeut |
perdemos | perdeumos |
perdestes | – |
perderam | perderom ✠ |
| |
– | houve perdudo ✠ |
– | houveste perdudo ✠ |
– | houve perdudo ✠ |
– | houvemos perdudo ✠ |
– | houvestes perdudo ✠ |
– | houverom perdudo ✠ |
| |
perderei | perdeia |
perderás | perdeias |
perderá | perdeia |
perderemos | – |
perdereis | – |
perderão | perdeiam |
| |
perde | – |
perdei | perdede ✠ |
| |
perdido | perdudo ✠ |
| |
Poucas palavras do idioma gótico incorporaram-se ao português e castelhano. Em Totila, são reconstituídas algumas palavras em roupagem românica, indicadas no quadro abaixo. Indica-se em itálico o termo original e por vezes a correspondência no alto alemão antigo (AA) e no inglês antigo, ou anglo-saxão (AS).
Pronúncia: A letra ƕ (hwair) soa como uma junção acelerada de hw. A letra þ (thorn) é uma fricativa dental surda (/θ/, cf. th no inglês thick). A letra h final é uma fricativa velar surda (/x/, cf. ch no alemão Loch). A grafia gg soa ng. As grafias aí, ái e ai soam próximas de é, as grafias áu, aú e au próximas de ó.
acrão, subs. [akran]: fruto
aƕa, subs.: rio, água
anamantar, verbo [anamahtjan]: ofender, atacar, violentar
anguisa, subs. [aggwiþa]: angústia
ansa, subs. [hansa]: companhia, multidão
arbedar / abredar, verbo [arbáidjan]: trabalhar
arbel, subs. [arbáiþs]: trabalho
are, subs. [harjis, AS. here]: exército, coorte
armel, subs. [armaio]: piedade
aulear, verbo [aflētan]: perdoar
bandar, verbo [bandi: laço]: unir, juntar
barno, subs. [barn, AA. barn]: criança, jovem
berar, verbo [báiran, AA/AS. beran]: trazer, portar
blingar, verbo [bliggwan, AA. bliuwan]: bater, abater
bloa (m), subs. [blōþ]: sangue
bloma, subs.: flor
bor, subs. [baúr]: menino
brecar, verbo. [brikan, AS. brecan]: quebrar; lutar
brodo, subs. [brōþar]: irmão
dodra, subs. [daúhtar]: filha
eiþan (pron. /'iþan/), adv.: ora, portanto
ero, subs. [haírus]: espada
ersa, subs. [aírþa]: terra
erto, subs. [haírtō]: coração
escado, subs. [skadus]: sombra
escanda, subs. [skanda, AA. scanta]: vergonha
escão, subs. [skáuns, AA. scōni]: belo, bonito
escau, subs. [skatts]: dinheiro, custo
estau, subs. [staþs]: lugar, parte
estoa, subs. [staua]: conselheiro, juiz
éu, subs. [áiws]: vida, vitalidade, força, tempo (de vida), tempo, eternidade
fadro, subs. [fadar]: pai
fagro, adj. [fagrs]: belo, adequado, nobre
féror / fréu, subs. [faírƕs, AS. feorh]: mundo
flol / frol, subs. [þlaúhs]: luta, batalha, campanha
fragadar, verbo [frawardjan]: destruir, corromper
frial, subs. [frijaþwa]: amor
frião, subs. [frijōnds, AS. frēond, AA. friunt]: amigo
froia / frói, subs. [fráuja]: mestre, senhor; aqui: rei
gadrão, subs. [gadraúhts]: soldado, guerreiro
gaiúca, subs. [gajuka]: companheiro, camarada
gão, subs. [gaggs]: caminho, estrada, rumo
gardo, subs. [gards]: casa
gau, adj. [walis]: santo, escolhido
goia (m), subs. [gáuja]: conterrâneo
gor, adj. [gáurs]: triste, dolente
gorisa, subs. [gáuriþa]: tristeza, infortúnio, dor
greto, subs. [garaíhts]: justo, correto
gualdar, verbo [gawaldan]: governar, reinar
guem / guena (f), subs. [wēns]: esperança
guer, subs. [waír]: homem
guerso, subs. [gawaírþi]: paz
guês, subs. [wigs, AA. weg]: caminho, rumo
gueso, subs. [waíhts]: coisa
guma (m), subs. : homem
Gus, subs. [Guþ]: Deus
ƕa, adv. int.: quê?
ƕão, adv. int. [ƕan]: quando?
inufo, adj.: inglório, infame
lustar, verbo [lustōn]: desejar, cobiçar
ogo, subs. [áugō]: olho
suão, subs. [sunus, AS/AA. sunu]: filho
suim, adj. [swinþs]: forte, saudável
toer, verbo [táujan]: fazer (conj. como doer)
tringo, adj. [triggws]: fiel, verdadeiro, íntegro
ufão, subs. [wulþus]: glória
α. O povo de Roma fala a Pelágio.
δ. Totila busca Bento de Núrsia.
ε. Totila faz justiça ao camponês.
ζ. Guardas oferecem Roma a Totila.
θ. Os godos comemoram com Ruderico e Vilas.
κ. Pelágio intervém a Justiniano.
λ. Vilas perdoa e adota Ruderico.
ν. Um Romano morre nas flamas.
ξ. Belisário intervém a Totila.
ο. Belisário reconquista Roma.
ς. Os godos reconquistam Roma.
τ. Germano marcha a caminho da Itália.
χ. Totila fala ao povo no Circo Máximo.
ψ. Narses em marcha adota Procêncio.
α’. Os francos recusam Rodelinda a Totila.
β’. Godos e bizantinos travam batalha no mar.
δ’. Segisberto impede a marcha de Narses.
ε’. Rigo apela a Segisberto e Rodelinda.
η’. Ruderico retorna são e salvo.
θ’. Paulo conduz a Ravena as tropas de Narses.
ι’. Os godos conclamam à batalha em campo aberto.
κ’. Narses como Totila encorajam as tropas.
λ’. Paulo e Rigo aduzem façanhas de guerra.
μ’. Os godos e as tropas de Narses travam batalha.
ν’. João sobrinho de Vitaliano e Vilas travam combate.
Por quê, se a verdade
è bõa que luz, destino
quis o fim de todos
dias? Antes da aurora,
serenidade o rever
do escado eternidade,
cintilante fréu.
Como devotos de Iemanjá lançando prenda ao mar depus no entardecer, Apolo, ofrenda de flores sobre a pedra cantando pelo prado um nome renembrado. Terás talvez de teus éus esquistos inda um olhar sobre a sombra das vidas? Tutor de tringos, é somente um poema que dedico ao teu escudo maior, è dom menor que a beleza da bloma e que a força das armas. Acede não por mim, mas pela dor de Roma que o verso recorda e que outrora te honrou.
Naveguemos, Febo, pelas ondas desta Internet, abominável bênção por onde, agitados, caçadores de moda e divisores de tempo vão flutuando vagos, intrigados no facebook e no twitter comentando a temperatura do vento. É por esse deserto que um destino severo impôs viver e dividir o que somos, e desse palco improvável evoco, na flor e na voz e no html, a transcendência dum deus incompatível.
Eu, se puder pedir, pedirei, ò Febo, que a tua mão se abata pelo fréu como um raio escaldante, sol devorador que sês, e fragades as redes e os cabos, como um martelo esmagues no ferro uma impostura exterminadora de vida e verdade. Confunde, gadrão insaciável, a pretensão dos distraídos: Atira os seus filhos contra a rocha!
Muitos quiserom prantear a gorisa que canto e também pranteio tarde. É preciso evocar, Apolo, com toda a força do sopro e todo el erto o teu concurso: Não naufrague na indiferença brutor o esmero de longos anos! É preciso muitas flores depor a fim de que a bõa sorte vença, se assim quiseres, a inveja de tantos deuses e dum destino destruïdor de desígnios. Praza às tuas setas cruzando o peito de eleitos despertar amor ao belo, ao bom e ao vero. Em ti se acaba o que seja velho ou novo.
Feita a minha parte, Febo, faz a tua. Ordena à musa inebriar o sopro do fagro ledor e destruir, no flol de teu verso, a presunção de quem lê com pressa e má vontade. Tu que miraste, rei guerrar, o fundo das almas, prepara-me a palma no templo donde Platão aguarda, juiz de Homero e dos maus. Não ergui minha voz para cantar quimera e quero vênia se algum momento o verso for menor do que a vida. Redime, Apolo, um cantar imperfeito e contudo ansioso da verdade. Ave eleitor de fortíssimos, ave desarmado desarmador de armadíssimos!
© Gregorius Vatis Advena 2017, Nulla Dies Sine Linea.
Totila |
α | |
| |
– Já non sobra em Roma nem urtiga nem rato! | |
Pois o corpo, Pelágio, desmoronou de repente | |
sobre mim do nada! Caiu no meio da rua | |
morto e mastigando poeira. Sabes quem era? | |
Era gente dos Flávios, povo lá do Senado | 5 |
mês inteiro cozinhano urtiga e comeno | |
vento, Deus me livre, melhor morrer de fato! | |
Mas amigo, este cerco acaba quando, faltano | |
pão e carne? Tem romano comendo excremento, | |
tudo que cabe na boca põe que ali mastiga. | 10 |
Bessas lá guardano gado, escondeno comida! | |
Fala com ele! Tem ninguém aqui com dinheiro | |
não, Pelágio, mas cobrano cinquenta moeda | |
só por um pedacim de carne, aí non se vive! | |
Só de pensar a pessoa para e fica sem rumo. | 15 |
Pois eo quero viver, peregrino! Abre esse muro | |
pelo amor de Cristo e compaixão dum faminto. | |
Guerra è deles! Eu que vivo aqui no meu canto | |
quero o quê com guerra? Vitória de pobre è comida | |
farta no prato! Olha bem a que ponto chegamo, | 20 |
1
pois melhor que nós tà viveno escravo com dono, | |
claro, a vida ali tem mais sorte longe de è cada | |
casos que vou viveno e vendo. Quem escraviza | |
dá sustento ao menos! Mas coisa dessa no mundo | |
nunca vi, e digo mais: Ontem de tarde Terêncio | 25 |
vinha subino e carregando os cinco filhos | |
rumo à ponte ali, a prole inteirinha gemeno | |
dava dó, e Deus è que sabe como passaro | |
todo o mês sem nada. Adota um filho pequeno | |
pois aí se sabe a dor o que é: Terêncio | 30 |
lá com cinco andano sem poder, prometendo | |
leite e pão – ô meu Deus, na frente daquela | |
prole arruinada um pai se atira da ponte! | |
Ele desaparece e deixa os cinco sem rumo, | |
vivos só por força do Céu. E vi com meu olho | 35 |
como do nada umas mãe de empréstimo, osso vagano | |
semimorto, o choro pesando mais que o corpo, | |
dero braço aos renegados, enquanto naquela | |
marge buscavam caçano carne o corpo afogado. | |
É, meu amigo, a pessoa quer falar e se engasga, | 40 |
2
come a língua! Esta gente cansada e sem guerra | |
fez que mal no mundo quem merecia descanso? | |
Olha bem o caso! Nõ é favor que nos fazem, | |
foi Bizâncio com Belisário e Justiniano, | |
essa gente estranha aí que trancou todo mundo: | 45 |
Nem nascero perto nem nunca viero nem viro! | |
Caso contrário Roma inteira tava deserta e | |
nós correno pelo mundo, qualquer paradeiro | |
bênção já contanto que a vida caiba e comida. | |
Olha, se querem prender o povo feito escravo | 50 |
dentro dum muro do inferno, então alimentem! | |
Ou então que matem ca fome acaba coa morte. | |
Mas do jeito que vamo, nòr vamo tudo simbora, | |
cada qual fugindo como puder e sem medo e | |
quem vier punir que puna, contanto que mate! | 55 |
I, Pelágio, diz a Bessas que entregue a cidade | |
toda a Totila, o rei desalmado desses godos. | |
Coisa feia demais esconder comida do povo! | |
Já falamo duas vezes, já li imploraumo: | |
Ele mente! Vem reforço o quê de Bizâncio? | 60 |
3
Era fermento o melhor reforço! Tu que doaste | |
tanto, meu amigo, de prata e valor e bondade, | |
vê se intercede um pouco por piedade de muitos. | |
Só teu manto, Pelágio, protege o povo de Roma! | |
Pede ao general que as vidas vadamo embora | 65 |
cada qual de seu rumo e sem destino e demora. – | |
| |
| |
β | |
| |
Mal protestavam, pois a fome calava | |
a boca de audazes: Plebeus e senadores | |
iam dividindo caídos a terra e migalhas | |
levando areia à boca. Homem da Igreja, | 70 |
Pelágio promete ao povo o quanto pode | |
como aos grandes de Roma, ora meros | |
mendigos, ossos ambulantes apenas. | |
A mãe segurava um ressecado rebento | |
berrando como gado e concurso de gritos. | 75 |
Chegara ao termo, a multidão entendia, | |
o brio da idade eterna: Não adentrava | |
o soldado pelos arcos com prenda famosa, | |
portando forte a lança que outrora partia | |
os montes nem escudo. A seta punha-se | 80 |
4
como o sol: Ocaso de impérios raiava | |
cedendo espaço à treva. Onde os leões | |
leixando atrás Itália rumo aos extremos? | |
Passavam devastando em moções arrojadas | |
peritos no cerco. Formavam suas fileiras | 85 |
os braços imbatíveis de César, vencendo | |
valentes. Muitas vezes tropas ferozes | |
forom atravessadas a fundo por uma | |
única lança: Bastava a mão dum herói | |
impôr-li força e voo. Houve espessos | 90 |
broquéis suportando a queda do templo. | |
O cavaleiro cruzava a terra num dia | |
e triste a tropa usando marcha contrária. | |
Pisar os Alpes, passar o Reno e Danúbio | |
era a jornada da morte: Cães implacáveis | 95 |
e furiosas mãos dirigindo falanges | |
atropelavam bárbaros, homens e jovens | |
cavalgavam sobre o chão de cadáveres, | |
nadadores natos de sangue e de entranhas. | |
Vorazes carregavam troféus e cabeças | 100 |
5
de volta ao ninho das águias, pela via | |
a turba ingente dando salvas afoitas | |
em nome de César. Quando os estandartes | |
da tropa tremulavam trazendo vitória, | |
abriam-se as alas de Roma e Roma dançava | 105 |
em delírio as libações gloriar e de guerra. | |
O nome são do Senado e do Povo passava | |
de boca em boca como um vinho de amantes | |
por almas ébrias, lascivamente imortais. | |
U essora entretanto os leões agitados, | 110 |
u los homens de imoderados humores, | |
varões violentos? Era terra perduda | |
e campo aberto a toda espécie de gente | |
o traço destruído da Itália: Entrava | |
como o vento em popa o cavalo inimigo | 115 |
matando à toa. Bárbaros, homens novos | |
apareciam da treva lutando por terra. | |
Desnortearom cidades dantes floridas | |
vertendo muro ao mar. A beira da estrada | |
mostrava norte e sul a pilha de corpos, | 120 |
6
a terra fértil deflorada em batalhas. | |
O lavrador largava da mão la enxada, | |
pastores fugiam leixando o gado à deriva. | |
Quem se creu seguro em próspero abrigo | |
viu subir na aurora o soldado da morte. | 125 |
Quem buscou la cidade cercada por muros | |
foi cercado pelos muros e pelos soldados. | |
O pão era raro e pereciam os fracos | |
corpos de fome e sede. El home prudente | |
quando havia tempo e valor e tesouro | 130 |
zarpava em perigosíssimas naus a Bizâncio: | |
Muitas forom tomadas no mar ou na praia | |
de súbito assalto, vidas lançadas às ondas, | |
famílias desfeitas. Quem outrora soubera | |
o mal dos destinos de Itália cantara talvez | 135 |
com lira menos forte o delírio das armas. | |
Frequentador da corte em Constantinopla, | |
Pelágio chegara rico de trigo e de prata | |
mas expôs o seu caso a Bessas, o chefe | |
das tropas defendendo a muralha ferida, | 140 |
7
Bessas que enriquecera vendendo comida: | |
– Home non pode leixar esta gente sair! | |
Correndo morrem de fome e mão inimiga. | |
O mundo todo viu da sorte de Nápoles | |
como se dizimou sem dó fugitivos. | 145 |
Há perigo demais, Pelágio: Esperem! | |
Em breve Belisário vem com reforço. – | |
Porém a voz duma grei perdeu paciência: | |
– O povo, Bessas, somos nós e queremos | |
que acabe logo o cerco! – Alguns fugiam | 150 |
indiferentes à lei saltando de pontes, | |
caçando façanha contra incerta corrente: | |
Nem por isto se contentarom restantes: | |
Houve conselho e debate forte e tumulto. | |
No meio da noite, os senadores buscarom | 155 |
Pelágio, que pareciam tábuas andantes: | |
– Nunca se viu parar o comércio de Roma. | |
Parou! A gente quer obrar e non pode? | |
A vida humana jà não difere dos ratos | |
porém milagre, Pelágio, ainda existe | 160 |
8
que salva Roma e presta bem atenção: | |
Irás a Totila! – O nome caiu feito raio | |
sobre um fraco que recuou aterrado: | |
– Totila, rei dos godos? – Era impossível. | |
Tremendas narrações circulavam por Roma | 165 |
da iniquidade dum rei, detalhado o relato: | |
Cortava e decepava o braço de bispos, | |
lançando fora da boca a língua do audaz. | |
Homem irado e vário de humor e nervoso, | |
mudava de ideias. Dava ordens de morte e | 170 |
traía Deus e promessas. Envolto em sangue | |
ergueu la espada e Florença veio por terra. | |
Tratava como escravos romanos e godos | |
forte no punho: Destruiu monumentos | |
coas próprias mãos. Tesouros antiquíssimos | 175 |
forom roubados, herdeiros perderom a terra. | |
Bastava um ato, palavra errada ou depressa | |
custava a vida ao pedinte: Um rei implacável | |
reganhara uma guerra e rugiu lo tirano | |
amigo dos maus, seu nome causando tremor | 180 |
9
em Roma e toda Itália. Em Constantinopla | |
o medo perseguia os passantes na sombra | |
e Justiniano rolava as noites em branco | |
falando a sós no pavilhão de audiências. | |
Totila esvaziava as cidades e as almas | 185 |
no inferno, parece, temiam dardos do godo | |
mais que ao demônio. Juiz injusto, julgava | |
o seu juízo final e os pacatos tremiam. | |
Pelágio como que entorpisto em vertigem | |
meneava a cabeça, as mãos tremulavam: | 190 |
– Romanos, qual poder de mundo convence | |
um homem desta estirpe? Totila me mata! – | |
O veredito porém de anciãos moribundos | |
mal se deixa esperar: – Hesitas, Pelágio? – | |
Assim falando mostravam as multidões | 195 |
prostradas rente à morte. Ora o nobre, | |
envergonhado de pôr a própria vida | |
acima da salvação de seu povo, cedeu | |
temeroso. Pôs-se a sós ao caminho de fora | |
levando ao godo as embaixadas difíceis. | 200 |
10
Saiu sem ouvir o apelo extremo de Bessas, | |
saiu pedindo a Deus piedade e constância. | |
| |
| |
γ | |
| |
Ora, a boca de Roma assim rezou a Totila: | |
– Desconheço, froia, da lei e costume de godos | |
como tratam na guerra o mensageiro de estranhos. | 205 |
Mas em Roma como em terra de gregos sempre | |
foi ouvido com caridade l’homem sem armas, | |
boca oferecendo a paz. Ao gesto de trégua, | |
quando è justo o governante e bom, acede e | |
Deus o tenha. Eu, entretanto, fui enviado | 210 |
sem mi darem tempo ou preparar as palavras. | |
Venho aqui pedir por humilde gente e famintas | |
ordens venho cumprir. Deus ilumine o caminho | |
desde já dum rei que der ouvido ao pequeno. | |
Quero falar, se puder, e se aprouver falarei ou | 215 |
como ao rei convier. – Totila ouvindo responde: | |
– Podes falar! Inclui porém à paz a verdade e | |
diz o dia, Pelágio, onde o rei dum correto | |
povo castigou desarmados. Não me recordo e | |
tanta petulância me ofendes: Somente o covarde | 220 |
11
fere na guerra a boca buscando paz e concórdia. | |
Mas diácono, nem dum cão se soube de ofensa | |
como a que temes. Quero conhecer a proposta: | |
Hei la paciência de ouvi-lo que Roma deseja, | |
como anela a paz e quais os termos do acordo! – | 225 |
Isto dito, Pelágio rogou: – O povo se acaba e | |
vai caindo de fome e quase um ano de sítio. | |
Ó senhor, uma gente atormentada definha | |
sem maldade, sequiosa da vida e da morte. | |
Quem socorre, soberano, um destino arruinado? | 230 |
Vão morrendo sem saber a razão duma luta | |
já maior que a razão. Melhor è nem recordar | |
as bocas mastigando rato e catando formiga, | |
verme, urtiga. Forom inventadas comidas, | |
ai, que nem se pode dizer. Culpa do povo? | 235 |
Não! Os homens dessa resistência de Bessas | |
são apenas poucos: Reprimem no fraco o rouco | |
grito por paz. Será possível, rei dos godos, | |
certo amor ou piedade da vida inocente? | |
Como Teodorico, o rei de outrora e ditoso | 240 |
12
pai romanor e de godos, cumpre agir. Agiremos? – | |
Mas responde surpreso um novo rei aturdido: | |
– Nunca desdenhei de nenhuma imérita coita, | |
sempre ajudei ca protegi da morte inocentes: | |
Basta a rendição de Roma e seremos amigos! | 245 |
São apenas três as condições da concórdia: | |
Pelo próprio bem do povo a muralha de Roma | |
será destruída em primeiro lugar. O longo cerco | |
já teria acabado se os muros não impedissem. | |
Não devolvo, em segundo lugar, escravos fugidos | 250 |
dividindo a bandeira dos godos. Não quebrarei, | |
jamais, el hombridade a quem combate conosco. | |
Puno Sicília em terço lugar! A terra de ingratos | |
há de pagar seu mal, porque meu povo a poupou | |
mas ela abriu seus portus às tropas de Belisário: | 255 |
Sempre ajudei ca protegi da morte inocentes! – | |
Mal ouviu lo diácono e fraquejava perplexo: | |
– Que dureza de coração, Totila, e que raiva | |
contra um povo decente e quão injusto juízo! | |
Nem sabia a Sicília que Belisário aportava, | 260 |
13
nem se soubesse, coitada, que combate ousaria | |
contra tanta esquadra a triste grei desarmada? | |
Vão pesando já los meus olhos só de pensar | |
naquela gente agricultora que mal se mantém e | |
jamais erguerá no mundo espada contra uma vida. | 265 |
Este o crime, porém, de que acusais uma simples | |
grege tão somente abrigando quem foge de Roma? | |
Mas que digo e que esperança ainda mi resta? | |
Pois se contra um povo tão pequeno e pacato | |
tendes tanta raiva, quanto mais do de Roma, | 270 |
ai, que tanto tempo abriga as tropas de Bessas | |
pero que a contragosto? – Mas o rei sitiante | |
não concede e Pelágio reconhece a derrota, | |
fim do intento e breve intervenção por caídos. | |
Era melhor, talvez, perder os pés e a palavra? | 275 |
Antes porém de soluções e juízo acertado, | |
Pelágio viu-se a sós e transtornado e sem rumo. | |
| |
| |
δ | |
| |
Totila recordava o legado | |
todos os dias. Sob o sol e na sombra | |
o mal que descrevera, | 280 |
14
o fantasma perseguiu-o. Cismando | |
e contrito falava a sós. | |
– Rigo! – chamou no meio da noite | |
o mestre de escudos. Num surto de febre | |
o monarca buscava resposta. | 285 |
Andavam no escuro | |
debaixo das árvores quando o rei interrompe: | |
– Pelágio não mente. – | |
Mas o perito avisava: | |
– Ele torce por nossa desgraça, | 290 |
conspira contra nós. | |
Aguarda as tropas de Belisário | |
ca então verás a verdade. – | |
Totila escutava, | |
mas Rigo não o vira: Verdade era parte | 295 |
da voz de Pelágio. | |
Pensando além, ruminava as perdas | |
de guerra e tempo. Pesando os presságios | |
e muita dor | |
tomou pelo braço Rigo, depondo: | 300 |
15
– Irmão que és, | |
farás um favor que te peço: | |
Veste a roupa do rei godor e te apressa! – | |
Rigo não entendeu, mas Totila prossegue: | |
– Sabes do santo do Monte Cassino? | 305 |
Busca-o! Finge seres Totila, pergunta | |
por Deus e pelo guês e vitória. – | |
Nembrando imagens | |
como Pelágio pintara, o rei prescreve: | |
– Se o cerco è vão, | 310 |
nòs vamos embora! – | |
Falava aturdido | |
e repetindo palavras. Perdera o juízo? | |
Rigo partiu de manhã cavalgando por ermos, | |
no siso incerteza. | 315 |
Vindo ao monte recluso, | |
por onde ao sopé cuidavam dous de verduras, | |
Rigo saltou do cavalo – | |
os hortelãos se prostrarom | |
certos da morte. | 320 |
16
Mas o frião do rei | |
demanda: – É aqui | |
que Benedito se encontra? | |
Eo sou Totila, o Frói, eo quero vê-lo. | |
Chamai o gau! – | 325 |
Os dous assombrados subirom | |
mas logo Rigo avistou, que descia moroso, | |
Bento abrindo seus braços: | |
– Bem-vindo, Rigo, à nossa morada. – | |
Como se um raio o fulminasse, | 330 |
o servo do rei surpreso ardeu no seu pranto, | |
mas escondendo os soluços ouviu Benedito: | |
– Filhinho, será bem-vindo qualquer irmão | |
que visitar nossa escola de Deus! – | |
O cavaleiro subiu ao cavalo e | 335 |
foi-se embora. Entrou aos gritos na tenda | |
do godo: – Benedito è bom de verdade! | |
Os ogos seus pousarom em mim e souberom | |
meu nome e quem me mandara! – | |
O rei no mesmo momento | 340 |
17
leixou atrás o resto | |
subindo ao cavalo. Varou | |
os campos tristes dando ao Monte Cassino, | |
passou perante os mortos. | |
Quando a prima estrela raiava | 345 |
chegou, de longe como olor da terra molhada | |
subindo ao céu, e pediu: Chamassem o santo. | |
O qual acedeu, que descia e saudava: | |
– Ave rei, que buscas? – Um rei de joelhos | |
beijando-li a mão falou do fundo do peito: | 350 |
– Como foi isto, Bento? | |
Por que motivo | |
um homem ilustre e culto | |
abandonou seu nome? | |
Por que | 355 |
buscaste abrigo em cavernas | |
bebendo chuva e comendo terra? | |
És um santo e punirei | |
quem te mandou embora de Roma: | |
Diz o nome apenas! | 360 |
18
Diz quem te fez vagar pelo frio | |
abandonando a cidade! – | |
Mas Bento de Núrsia | |
põe a destra sobre el ombro do godo: | |
– A vida è constância | 365 |
quando o Cristo guia, fuga não. | |
Abandonei meu nome | |
pois o nome nunca existiu, nenhum existe. | |
Deus | |
mostrou-mi um rumo maior do que a glória. | 370 |
Non caibo num Fórum | |
que à vida verdadeira non cabe: | |
Foi Deus que me mandou embora! | |
Pois ouvi, entendi, retirei-me à caverna | |
pelo amor de Roma e de todos. | 375 |
Deus não se impressiona com Roma, | |
Deus, que è rumo, vida e verdade! | |
Foi Deus que fundou esta escola | |
donde a vida humilde pede por quem è grande, | |
e pede só piedade. – | 380 |
19
Olhos nos olhos, Totila | |
responde ardente: – Ai de mim, Benedito, | |
pois herdei um dever lastimoso, | |
eu, que nasci no reino tranquilo | |
na paz de Teodorico: | 385 |
Era uma bloma a Itália, Roma era amor! | |
Por que odiarom tanto o meu povo? | |
Quero saber de Deus: | |
A vitória è nossa ou de Justiniano? | |
Um ano se passou de cerco e de fome. | 390 |
Se Deus mandar embora eo vou, | |
reúno o meu povo e busco guês. | |
Mas Deus desdisse dos godos | |
depois de tanta guerra e sofrimento? – | |
O santo mostrando o céu emergiu: | 395 |
– O futuro a Deus pertence. | |
Talvez a vitória venha a ser de teu povo, | |
mas ah, filhinho, | |
como è breve o ganho do mundo: | |
Vitória e verdade se excluem. – | 400 |
20
Isto e muito mais el homem santo lis disse. | |
E um rei angustiado cavalgou pelo bosque | |
junto a Rigo et outros. | |
Não sabia, nembrando a grave sentença, | |
se Bento falava da sorte ingrata de todos | 405 |
ou predizia a ruína. | |
| |
| |
ε | |
| |
Veio a pé da Calábria gritando por dias inteiros | |
um home atravessando a terra, arfando cansado: | |
– Rei! A piëdade que rogo è somente a da morte, | |
sim, ordena ao soldado que desonrou minha filha | 410 |
crave fundo esta faca forte aqui no meu crânio. | |
Olha, senhor, o mundo nem me ensinou a falar: | |
A vida minh’è leite de vaca e vagar em cidade | |
onde Deur me ajuda e vou vendendo e viveno. | |
Era tão bonito quando a menina era alegre. | 415 |
Nunca fez um mal a ninguém, coitada que era, | |
só tocava em teta de vaca e cuidava de bode. | |
Dia e noite ela orava e preparava a comida, | |
tinha tristeza em minha vida não, soberano, | |
minha filha pensava mais em mim que na lida, | 420 |
21
eu, que vou ficando fraco e ficando caduco. | |
Ai, meu Deus, chegou de repente aquele soldado, | |
dei-li o gado inteiro e comida e leite e dinheiro | |
não li bastou, Totila! A minha filha gritava | |
feita louca implorando em vão mar nada ajudava. | 425 |
Maltratou demais a menina, desdisse de Deus! | |
Ela agora corre e grita e non sabe o que fala | |
nem reconhece pai nem mãe, sò fica chorano. | |
Isto n’è vida não. Se alguma cura eo soubesse | |
dava dinheiro mas ali, senhor, non se cura. | 430 |
Já que Deus non teve de nós piedade nem graça | |
vim morrer. Senão, eo vou viver de que jeito? | |
Era ela o sustento meu e da mãe perturbada | |
nem justiça ajeita mais uma vida quebrada: | |
Mata logo quem non tem nimigalha de nada! – | 435 |
Dito isto prostrou-se como curvado de cãibras | |
mas Totila estendeu-li a mão, o rei ao caído, | |
contendo como podia as impressões desregradas: | |
– Tem a bondade, ancião, de revelandi o nome | |
desse soldado. – Feito assim Totila alterou-se: | |
– Prendam! Tu porém, senhor, descansa por hoje e | 440 |
22
logo discutiremo-lo termo da morte que imploras. – | |
Mas aos soldados o rei ordenou li dessem abrigo, | |
pão e remédio: Fosse provudo bem e de tudo! | |
Quando aos conselheiros houve chegado o caso, | |
pela manhã demandarom transtornados Totila: | 445 |
– Este werreiro, rei, è forte herói de batalhas! | |
Veio do peso da sua lança, tremendo projétil e | |
míssil que como nulhome arremessa, nossa vitória | |
contra Nápoles: Veio de graça ofertar a vida! | |
Quando a morte era certa, cercado nunca fugia | 450 |
nem se viu nos éus valência maior entre godos; | |
antes corria enquanto a multidão de aliados | |
debandava em retirada escondendo-se em selvas, | |
todo a sós, al ombro a lança contra milhares | |
guer sem medo. Perdeu respeito à morte lutando. | 455 |
Pois o corpo carrega inteiro marcas de guerra | |
como um troféu de sacrifício por nossas ansas! | |
Não baixar ja-quando o viço dum tringo soldado: | |
Que pensavem ao verem preso, punido ou caído | |
raro exemplo, monumento à coragem de guerra? | 460 |
23
Toda guerra è feia, froia! Os crimes da carne | |
forom preço, nel ato extremo, de várias vitórias. | |
Algo de compaixão lo bom guerreiro merece, | |
doutro modo o gueso gótico nosso se perde e | |
vai-se embora na sua gorisa a massa dos bravos. | 465 |
Já se passarom tantos anos de morte na Itália, | |
Gus dos céus, e cada dia se assoma incerteza | |
pelas mentes. Não fragades a guena menor e | |
foco de fé que nos resta ainda: Tempo è verdugo. | |
Eiþan, cá conclama o bom conselho dos rainos: | 470 |
Seja solto, pelo amor da anguisa dos godos, | |
seja solto um tringo a quem se deve a vitória! – | |
Mas Totila responde: – Perdestes vossa memória? | |
Ik, estoas, selara acordo de paz com Bizâncio | |
pronto a render o forte e gumas meus de Treviso | 475 |
quando viestes suplicando ofertar-mi a coroa. | |
Fôramos lá deixados por Vítice, o rei dos vis | |
covarde abandonando as arma durante a batalha. | |
Fora morto o meu tio Idibaldo, Deus o tenha, | |
mas a vós pareceu prudente crer no impossível! | 480 |
24
Ora, desde o primeiro dia roguei mi dissésseis | |
contra quem imperava prosseguir esse flol. | |
Contra quem lutamos, godos, quem combatemos? – | |
Eles porém perplexos retrucarom de súbito: | |
– Contra Justiniano, Totila, e contra Bizâncio. | 485 |
Como não, se veio deles a guerra e ganância? – | |
Isto dito, o rei concatena: – Não mi rogastes, | |
goias, a luta contra romanos, contra inimigos | |
sim jurei guiar o meu povo, rei dos romanos | |
como dos godos. – Soldados recebendo o sinal | 490 |
trouxerom adentro o genitor duma vida sem honra: | |
– Diz um gueso, ancião – Totila assim começa – | |
tinha a menina alguma relação com Bizâncio? – | |
Mas o velho assustou-se: – Tinha como, Totila? | |
Nunca saiu de casa. – O rei porém continua: | 495 |
– U nasceu? – O velho disse: – Lá na Calábria. – | |
Nisto Totila apontando os conselheiros unidos | |
pede ao pai: – Explica por piedade aos juízes | |
qual a vida que tua filha levava em gardo. – | |
Mas o senhor ouvindo clara a palavra juízes | 500 |
25
teve medo e deformado por lágrimas trouxe: | |
– Só tocava em teta de vaca e cuidava de bode. – | |
Foi levado afora por onde esperava aturdido, | |
Totila dentro falando aos anciãos temerosos: | |
– Fui traído, godos, foi punida a inocência! | 505 |
Era aquele o soldado mais valente dos nossos, | |
ele que arremessou coa mão lo exército ao chão? | |
Foi de fato o mais covarde dos hômino aquele | |
que tanta força usou e contra a vida sem erro! – | |
Quando o guerreiro teve compareçudo na corte, | 510 |
vendo junto ao rei lo conselho, o pai da menina, | |
pôs a verdade: – Rei, o crime meu è sem cura. – | |
Totila retruca: – Cão! Algum soldado dos nossos | |
foi mandar unires-te sujo à nossa cohorte? | |
Ƕa? Por que pagaste em guisa tão grotesca | 515 |
tanto de guena depositado em ti pelo povo? | |
Para quê lo arbel de tantos gestos heroicos? | |
Não leixei passar um único dia em batalhas | |
sem avisando ao are que não tocasse castos | |
nem ferisse inocentes. U passavas, werreiro? | 520 |
26
Éramos vinte mil gadrãos no início da guerra | |
mas gana e presunções e gestos feios minarom | |
nossa força: Homens como tu, vergonhoso! | |
Raça melhor requer um rei de escasso recurso | |
quando a salvação de seu povo exige a vitória. – | 525 |
Mas o guerreiro sem medo agora calava-se, | |
vendo que nem defensores seus se alegravam, | |
antes balançavam baixa a cabeça confusos, | |
inda buscando pela mente fraca argumento. | |
Disse-lis pois o rei: – O pai daquela menina, | 530 |
já sabeis a graça que veio rogar de seu froia? | |
Veio pedir, estoas, a própria morte somente! | |
Que toer? Mostrave al idoso gor e minado | |
que neste reino a morte vale mais do que a vida? | |
Ou foi ufão maior mostrar por alguma atitude | 535 |
que neste fréu alguma coisa fagra è possível? – | |
Entra entonce o velho trato adentro na corte | |
donde Totila olhando os olhos seus explicou-se: | |
– Tenho torturado a mente em vão ruminando | |
como posso perante meu Deus, juiz de juízes, | 540 |
27
dar-te a mortem que firmemente pedes e imploras. | |
Diz algum dos crimes que perpetraste na vida, | |
dá-mi ajuda, ancião, porquanto rem encontrei. | |
Antes pesei na mente os atos teus e palavras | |
e como pude as comparei com juízes. Andante! | 545 |
Quanto mais a tua boca articula as palavras | |
mais se evidencia a mim que tou nome è justiça. | |
Como manchar de morte a vida que veio de longe | |
greta e caminhando por léguas a pé destemuda, | |
trazendo al erto apenas confiança em Totila? | 550 |
Desta corte o tringo vai-se embora com vida! – | |
Mas o velho não se leixou levar por palavras: | |
– Rei generoso, è mais amarga a minha verdade. | |
Tudo acabou: Levaro meu gado, leite, dinheiro. | |
Todo dia eo busco um lugar de andar pelo mundo | 555 |
mas no mundo acabou lugar ca meu gado acabou. | |
Sei viver sem rumo não, eo quero um descanso | |
e peço morte è para estar chus perto de Deus. – | |
Isto dito Totila estendeu la mão que calasse! | |
Junge-li o rei: – A tua morte non posso te dar | 560 |
28
mas posso dar justiça e dom maior do que a morte. | |
Para que tou pedido non fique em tudo incompleto | |
dar-te-ei de fato uma morte, a morte del ímpio | |
ser que anamantou la menina. E dou-te um ordem: | |
Leva contigo o gado, o leite, l’escau, lo remédio, | 565 |
leva el ouro que o rei te daremos e trata a menina, | |
trata como se fosse dodra dum rei que a protege | |
nem reclames: Maior justiça somente a de Gus! – | |
Totila, pois, ordenando a morte dum pravo soldado | |
deu los seus haveres todos, pilhagem de guerra | 570 |
ao pai, que retornava embora aos braços da filha | |
rico rezando a todos que encontrava na estrada | |
quão bondoso li fora o rei Totila dos godos. | |
| |
| |
ζ | |
| |
Na mesma noite aparecerom quatro | |
soldados bizantinos. Eram remotos | 575 |
da Isáuria, pois lugares ermos proviam | |
a tropa de combatentes. Quando Totila | |
os recebeu indagando o que ali buscavam, | |
os guardas apavorados se ajoelharom | |
trazendo: – A gentchi venh’aqui li falá | 580 |
29
da partchi dji Bessas mandô a gentchi não. | |
Sinhô, até daqui si consegui iscutá | |
gemidu i som dji todu jeitu i sufridu | |
qui mermu surdu ôvi. Inda tem gentchi | |
im Roma guentanu gemê na fomi, è milagri | 585 |
mermu du infernu! Maz ua coisè verdadji: | |
Vali nada essi Bessas guardanu cumida | |
du povu, coisa qui nenh’è deli, è du povu: | |
pedaçu dji grão i carni lá da Sicilha. | |
U qui eli gostè dji cachorrada, Totila. | 590 |
Semana passada li iscreveu Belisáriu: | |
Tomi vergonha na cara, so trastchi infeliz, | |
e dê dji cumê au povu. I Bessas s’importa? | |
Ficô foi ricu dji tantu vendê pa quem pódi | |
pagá, ou melhó, pudjia: Djinhêr acabô. | 595 |
Agora mi diga: Issè serviçu dji gentchi? | |
Até soudadu passanu fomi! Dji noitchi | |
u coru comi qui è bebedera i mulhé | |
i dança i só festança i lambança na torri. | |
Mar fora, meu Deur, dà dó djimair dji vê | 600 |
30
morrê mininu i velhu feitu cachorru: | |
È coisa du cão! – O rei porém produziu: | |
– Por várias vezes, soldados, propus a paz | |
e a fome, como se vê, è culpa de Bessas. | |
Esse tipo de gueso no’existe entre godos, | 605 |
quem veio viu. Que Bessas se renda e logo! | |
Comigo non cumpre falar, e sim com ele! – | |
Mas um dos quatro irrompeu desordenado: | |
– Nem quiu demôniu mi lev’eo falu cum Bessas, | |
gentchi rũi, qui si dependê dum cachorru | 610 |
feit’aqueli Roma si acaba dji fomi i | |
aaave Maria. – Forom pois revelando-li | |
o plano: – A troca da guard’o sei a ora | |
quó é. Eu, i us treis aqui, cumeçamu | |
dji madrugad’u nossu turnu, u restu | 615 |
durminu. Pelu amor dji Deus, soberanu, | |
entri dji veis im Roma, acabi cũ issu! | |
Nòis abri u portão laterau da muralha, | |
a trop’inter’invadji i termin’u suplíciu, | |
promessa nossa. Sò queru sabê ua coisa, | 620 |
31
sinhô: Si nóis abrí u portão-là pa godu, | |
será qui godu dexa a gentchi vivê? – | |
Totila foi tomado como dum raio e | |
faísca nos olhos, concedendo exaltado: | |
– Ah, soldados, se for verdade a promessa | 625 |
não somente vivêieis mas ricos sereis | |
e tereis de mim uma recompensa tremenda. – | |
Mostrava-lis pois o baú repleto de joias, | |
deliciosas as prendas de prata e d’ouro | |
e pedras delicadas, pulseiras, correntes. | 630 |
Erguendo uma recatada presilha dourada | |
na forma e na tez duma borboleta luzente, | |
el-rei lis disse: – Vale mais duma vida! – | |
Choravam quase em comoção los soldados | |
nembrando as toscas ocas donde saíram | 635 |
pelos ermos da Isáuria – eles, coitados, | |
que só buscavam pão de início, dinheiro, | |
leixado atrás em regiões desgraçadas | |
família grande na espera e mães e meninas. | |
Totila marcasse a data e logo abririam | 640 |
32
as portas da velha Roma ao rei dos godos – | |
e quis-cada-quem encontraria ao final | |
lo paraíso seu, dinheiro out império. | |
Mas o rei confabulando nos bosques | |
com Rigo, lo tringo amigo, rogava aviso | 645 |
e falava baixo: – Será verdade a promessa? | |
Sõ espiões mandados por Bessas, não? | |
È bom demais para ser verdade, meu caro. – | |
Mas Rigo ponderava em silêncio perplexo, | |
o queixo caindo. Vez et outra mirava | 650 |
adoidadamente as folhas dum árvore antigo, | |
entusiasmado na sua incerteza, e por fim | |
devolvia: – Melhor atender, melhor estudar | |
e ver porque gente simples non sabe mentir. | |
Investaga bem issaí porque gente da Isáuria, | 655 |
rei, dali non sai mentira. Os soldados | |
o quanto dizem pode esser emboscada, | |
sei, mas não parece. Totila, investiga | |
logo issaí que parece vitória, è verdade. – | |
Na mesmo instante forom mandados às pressas | 660 |
33
dous ou três ou quatro a rondar a muralha | |
de madrugada e compravar os relatos. | |
Nisto porém a notícia do plano iminente | |
chegou a Bessas: Veio da boca dum bom | |
soldado e fiel guerreiro de Belisário. | 665 |
Sim, Belisário sim amava e buscava | |
a salvação de Roma, contudo esperava | |
em Portus vendo o resto da Itália rendudo, | |
o comandante calado e de mãos abanando. | |
Quem não sabia da glória de Belisário, | 670 |
quem não temia o grande general de Bizâncio | |
que destruíra os vândalos? Era o maior dos | |
guerreiros! Bessas não: ouviu la notícia | |
no meio da noite embriagado, nos braços | |
da sua puta e no toque da cítara grega. | 675 |
Ouviu, bebeu, sorriu e nem sem importou: | |
Houve sim responso ao bravo informante | |
que a flecha forte dos hômino seus bastava | |
contra godo qualquer. No mesmo momento | |
quatro soldados transbordantes angústia | 680 |
34
buscavam Totila: – Pel’amor dji Jesuis, | |
sinhô, qui demor’è essa? Si Bessas soubé | |
dalgua coisa a gentchi morri linchadu. | |
O quer’è quium raiu cai na mha cabeça i | |
mi matchi agora nafrendji tuquè gentchi | 685 |
si fô mintchir’u c’o tô djizenu, qui Roma | |
tá qui implora invasão ’sa cidadji dji Roma, | |
sò faltè querê! – Totila enviava espiões, | |
e nesses lances de medo e tanta incerteza | |
o monarca buscava profundamente aprehenso | 690 |
de novo a tenda de Rigo: – Talvez Benedito | |
preveire, gaiúca, a grandiosa vitoriam! | |
Reza, amigo, roga que Deus se apiede | |
da nossa gente, a glória seja a verdade | |
e não tropeço e não começo de morte. – | 695 |
Quando ouvirom que já seguiam a Portus, | |
donde Belisário intentava o resgate, | |
muitos outros soldados, o peito na boca | |
querendo avisar o quanto antes o plano | |
ao comandante, aqueles quatro isáuricos | 700 |
35
forom aos godos cavalgando e tremendo: | |
– É agora ou nunca! – Ouvindo e pesando | |
os detalhes, Totila incerto e lívido incede, | |
a Rigo e poucos outros dos próximos seus, | |
que fossem ver de si mesmos no meio da noite | 705 |
o estado da rês. Em poucas horas voltarom | |
e disse-li Rigo medês: – Tudo em silêncio, | |
a guarda dorme e ronca e sonha tranquila. – | |
Deu-se assim que um rei, arfando exaltado, | |
mandasse a quatro soldados: – Podem abrir | 710 |
as portas de Roma! Podem abrir a cidade! – | |
| |
| |
η | |
| |
Quand’o aluvião de tropas entrou na cidade | |
Bessas e os seus soldados debandarom na hora. | |
Pela porta oposta e desordenados, perplexos | |
cães leixavam pelo chão escudos e lanças, | 715 |
pois um medo feral cambaleava a coragem. | |
Eles contudo fugirom duma fuga ligeira: | |
Quem não conseguia fugir era sim o povo | |
pelas ruas, na sarjeta, na vala cons mortos. | |
Que visão e triste sina aguardava Totila e | 720 |
36
quantos corpos apodrecendo à beira do Tibre: | |
Só sobravam quinhentas vidas naquela cidade. | |
Quem podia correr corria, no seu desespero, | |
rumo àlguma igreja de abrigo e não se enganava: | |
Era um ódio tremendo depois de meses em duro | 725 |
cerco et anos florescendo no peito dos godos, | |
era de pouco efeito o sermão dum rei moderado. | |
Home assistia a lança atravessando os corpos | |
pelas costas no meio da rua. As vidas idosas | |
iam caindo e lamentando o que não mereciam. | 730 |
Cada templo de Roma era um formigueiro de aflitos | |
dividindo a fome, os gritos e o medo do mundo. | |
Não havia plebeus e patrícios, e sim Romanos | |
terrivelmente irmãos. Os senadores de agora | |
vinham batendo de porta em porta pedindo comida, | 735 |
concorrendo com cães e moscas na caça por carne. | |
Uma coisa, parece, Totila ensinou aos soldados | |
pois que houverom trata os tempestuosos lanceiros | |
Rusticiana, que for’a esposa do antigo Boécio: | |
– Essa mulher do demônio pagou pra destruírem | 740 |
37
a estátua de Teodorico! Pois prendemo a cadela! | |
Froi, a vadia nem precisa morrer de verdade, | |
basta nós usar como quer, nòs acaba com ela. – | |
Mas a refém mirava o chão e negav’a palavra, | |
ela cuja dor, relatavam, matara de pena | 745 |
Teodorico, sim, num pesar desgostoso da vida. | |
Inda nembravam como outrora o rei da paz, | |
depois de trinta anos aclamado por todos, | |
fora imprudente em breve e desgraçado instante. | |
Dando ouvido à língua duma invejosa mentira | 750 |
veio a crer que Boécio, homem de prece e poemas | |
cuja causa era um pobre povo, tramav’o assassínio. | |
Antes que algum apelo forte pudesse movê-lo | |
forom mortos Boécio com Símaco, pai et esposo | |
dela que agora ali se calava perante Totila. | 755 |
Mas o rei da paz percebera tarde o seu erro: | |
Era em vão que perdia a noite inundado de pranto, | |
era em vão correr feito louco berrando orações. | |
Nem o perdão que requisera da esposa contrito | |
nem o perdão de Deus li bastava, antes sonhava: | 760 |
38
Via Boécio derramando seus olhos no claustro | |
e tendo às mãos a cabeça decepada e sangrando. | |
Essa visão do inocente seguiu lo rei da paz | |
na aurora e tarde da noite não havia sossego: | |
Meses depois, Teodorico enfermou-se e morreu. | 765 |
Mas também a matrona passara os últimos anos | |
presa dum pranto imorredouro e porém ajudando, | |
como outrora o marido, infortunados de Roma. | |
Totila entanto manda: – Fique em paz a mulher! – | |
Mas o clamor maior se ouviu de manhã nos famintos | 770 |
quando o monarca, tendo Roma inteira renduda, | |
veio rezar e agradecer a Deo por tremenda e | |
grandiosa vitória, dentro da igreja de Pedro. | |
Ora, la igreja de Pedro amanhecera lotada, | |
era uma densa massa o mar buscando refúgio: | 775 |
Desde a madrugada as mães escondendo menores | |
atrás de bancos gemiam baixo cobrindo o rosto. | |
Eram muitos que ali andavam dum lado ad outro, | |
eram muitos chorando os seus desaparecidos. | |
Outros ficavam deitados num canto escuro calados | 780 |
39
vendo a cruz e sem nenhuma esperança e consolo. | |
Quando Totila pôs os pés adentro da igreja | |
rumo al altar, o povo em desespero irrompeu. | |
Era uma gama de ajoelhados rogando clemência | |
como crianças balbuciando num pranto agitado, | 785 |
como quem nunca tivesse sentido o gosto do mundo. | |
Criam que o rei entrara para mandá-los embora | |
já que fora do templo a ponta da espada aguardava. | |
Veio contudo um distinto vulto de encontro a si, | |
curvado e carregando uma bíblia. Era Pelágio: | 790 |
– Pelo amor de Deus, piedade dos destitutos! | |
O pobre povo abandonado de tudo em Roma | |
fez o quê para merecer – pero não prosseguia | |
pois as suas palavras afogavam-se n’alma. | |
Mas Totila li acede: – Sai do chão, infeliz, | 795 |
agora! Eu devia è brecar a tua cara de infame, | |
eu devia mandar cortar-te a língua, falsário! | |
Quando me houveste visto fiz oferta de paz | |
e generoso acordo: O testemunho da vida | |
prova quem eo sou e quanto fiz pelo povo | 800 |
40
não dos godos, mais até por gente de Roma. | |
Ende rem impressiona as ambições de Bizâncio! | |
Tens a memória curta, cão! – Pelágio contudo | |
recomposto um pouco sussurra: – A minha ambição | |
de mundo, meu senhor, è pão pra Roma somente! | 805 |
Eu que servia Bizâncio sejo agora tou servo e | |
servo apenas teu: Ordena de mim o que queres e | |
minha vida è tua. El única prenda que imploro, | |
rei, è compaixão por estes que nada fizerom! | |
Tem paixão de nós estora que Roma se rende: | 810 |
Ordena por Deus aos invasôribos teus caridade | |
pois aqui se congregam não inimigos: escravos! – | |
Totila foi erguendo Pelágio et outros do chão e | |
proferiu aos seus leixar em paz moribundos, | |
mas voltou adrentro invocando: – Para, Pelágio, | 815 |
suportei ofensas demais por esta paróquia. | |
Não mi venhas dizer perante o povo que è minha | |
culpa a devastação desta terra. Quero justiça! | |
Quero falar aos senadores no Forum Romano! – | |
Forom rebandados às pressas caindo aos pedaços | 820 |
41
homens velhos e anamantados de fome farrapos. | |
Já também lo povo se aglomerava no Forum | |
para ver o que o rei diria e quanto ouviria. | |
Mas aqueles idosos de outrora império, calados, | |
forom despidos per ordem do rei perante o povo, | 825 |
para que dessem nus o testemunho da inglória: | |
– Raça infeliz – Totila acena –, desde o começo | |
tenho mandado apelos desesperados e cartas. | |
Não entendo donde vieire a vossa descrença e | |
vou buscando em vão resposta e me desiludo. | 830 |
Que de mal no mundo Teodorico vos fez, | |
senhor que dava à plebe pão e mão amistosa? | |
Era um protetor do Senado e do povo da Itália, | |
ele amava mais a Roma que a própria gente. | |
Inda dileto em toda parte, ele nunca interveio, | 835 |
antes vos dava a cada dia mais liberdade. | |
Mas que paga feia dades ao rei valeroso! | |
Muitos forom privados para dar ao Senado | |
nova glória, pero que efêmera como vemos. | |
Mas i se vê lo princípio que move o destino. | 840 |
42
Ele, que tudo fez, se pedisse algum favor | |
de vós seria rem comparado ao que dera e | |
deu de graça, pois è tal la guisa dos godos. | |
Eu, de minha parte, pedi que abrísseis a porta | |
para que o bem de Teodorico aqui prosseguisse! | 845 |
Quis evitar o caso gor em que agora vos vejo | |
mas foi tudo ilusão, foi tudo incauto juízo! – | |
Inda boquiaberto, o rei mirava os fantasmas: | |
Ossos encolhudos no frio perdiam olhares | |
pelo chão enquanto a gente tapava os olhos. | 850 |
Mas Totila em novo acesso incluía-lis inda: | |
– Er dizede perante a sombra de Teodorico | |
de qual bondade Justiniano usou per Itália, | |
homo que nem aqui nasceu! Peleja por Roma | |
como se Roma fora seu berço, mas eu vosso rei | 855 |
è nado na terra e na mesma terra cá me criei! | |
Não cheguei nem vim de alhures como soldados | |
gregos e os persas e constantinopolitanos, | |
mercenários sem causa e de toda causa paga! | |
Não saí por aí corrompendo no mundo inteiro | 860 |
43
jovens para lutarem comigo, nem combatemos | |
como aqueles no amor dalgum passado de ufão: | |
Nós lutamos è pela própria vida dos nossos, | |
vida que um homem decidiu arruinar sem remorso. | |
Quero ouvir um bem que lo Imperador vos confira | 865 |
fora a guerr’e a demolição de tantas cidades. | |
Neste ardor de passado e de brio foi retomada | |
já dos vândalos toda a costa d’África e Líbia: | |
Deus dos céus, acabou-se l’África e Justiniano | |
cada dia aument’o imposto, arruína as ruínas! | 870 |
Pois quereis que faça o mesmo da Itália? Fará! – | |
Mas nenhum senador aduz e Totila antefere | |
frente ao For’os quatro combatentes de Isáuria: | |
– Pois, Romanos, doravante serão senadores | |
estes quatro, estes sim los amigos do povo! | 875 |
Eles abrirom as portas para o fim da miséria! | |
Não julgarom bons os guerreiros de Justiniano | |
servos de tão ingrata gestão e fazenda de guerras. – | |
Como foi amargo desta vegada o silêncio | |
mentre Totila mirava aqueles homens nos olhos. | 880 |
44
Mas ergueu la voz por eles um vulto singelo: | |
– Poupa, Totila, tanta vehemência verboro | |
contra quem mostrou lealdade e ficou na cidade. | |
Não convém insultar um moribundo arruinado | |
quando a fome fez calar a verdade no ventre! | 885 |
Qual das tuas cartas alcançou senadores? | |
Eram todas retentas pela guarda de Bessas | |
ora que o bom Senado não dispõe de recursos. | |
Qual dos nus que vituperas foi responsável | |
pelas tropas de Belisário, por armas alheias? | 890 |
Pois non foi o Senado que as foi chamar a Roma! | |
Pois non foi Senado nem Povo que foi consultado! | |
Tanto nõ eram de Roma que nem lutarom por Roma, | |
saírom correndo co general e sous provimentos. | |
Estes que increpas sim, poderiam ter debandado | 895 |
mas melhor pareceu ficar conosco e servir-te! | |
Portanto não maltrates quem te implora tutela, | |
pois ficarom por confiança e não covardia! – | |
Foi talvez no efeito desse apelo que o godo | |
mandou vestir do frio los macerados aspectos | 900 |
45
mas intermitiu a Pelágio: – És o meu servo | |
como dizes? Ouvi direito o termo no templo? | |
Mas Pelágio, Roma quer a guerra ou lo guerso? – | |
Roma decerto queria paz e Totila arremata: | |
– Boca de Roma, tu que dantes iste falar-me | 905 |
agora irás falar a Constantinopla por Roma! – | |
Houve tremor e convulsão perante os caídos | |
quando a nova circulou pelas ruas: Pelágio | |
fique conosco! Totila entretanto não concedeu. | |
Na mesma noite forom acertados às pressas | 910 |
termos de paz: – Em tuas mãos – o rei avisa – | |
jaz o destino de Roma. – E não havia demora. | |
Zarparia a nave em breve et era de império | |
quanto antes retornar ca lo rei esperava. | |
Mas uma grave ameaça fora escrita e com ódio | 915 |
na carta al Imperador: Se não bastare a derrota, | |
caso a guerra prossiga um pior evento virá: | |
Roma será deleta no fogo e na ponta da espada, | |
mortos os senadores, províncias serão arrasadas. | |
Tendo em mãos a missiva Pelágio zarpa apressado e | 920 |
pelas ruas atrás vislumbrava um povo alarmado, | |
antecipando juntos o fim duma eterna cidade. |
Totila |
θ | |
| |
Em torno do fogo um forte coro de godos, | |
vitoriosos soldados, cantava serenas | |
canções, sorvendo em libações de alegria | 925 |
as notas e um gole, doce, do vinho de mel. | |
Os ânimos ébrios, entrevendo a muralha | |
envolta no inverno lunar, alçavam o cálice, | |
bebendo e dedicando as bênçãos ao froia. | |
Se algum momento o gor vislumbro surgia, | 930 |
amigos e fogo e vinho nembravam sorrisos. | |
Nessas noites tranquilas rolavam histórias | |
em torno às rodas de fogo e fatos heroicos. | |
Passadas horas e casos, contadas façanhas, | |
os ébrios mandarom buscar, do sono profundo, | 935 |
um jovem de glórias: – Ruderico, frijōnd, | |
a noite è longa! Drigk, fralusts ist slapan. | |
Conta aos homens aqui, mas conta a verdade, | |
como salveires a vida. – Um cálice pleno | |
esvaziava-se, aos poucos, na boca do jovem | 940 |
47
e Ruderico livrava da boca as palavras: | |
– Rapaz, a flecha entrou dum lado da cara | |
e foi sair del outro, aqui a marca, a bochecha. | |
No dia seguinte, só no final da batalha | |
foro ver de verdade. Passei que nem vi, | 945 |
lutando feito um morto-vivo e fantasma | |
apavorando Bizâncio. A flecha era imensa | |
mas cá ficou, atravessando a cabeça. – | |
Mostrava assim deformações elegantes | |
no rosto, exemplo extremo: – Só me livrei | 950 |
do pau porque pus eo mesmo sozim pafora. | |
Ninguém queria rancar e o povo dizeno | |
que a morte era certa, a carne acabada | |
todinha, bastava alguém tocar que doía. | |
Morrer? Eo tou è vivo e bem vivo demais! | 955 |
Depois de um mês tirei la flecha na marra, | |
melhor, tirei que não! Eo tocai, caiu. – | |
Mas Vilas, o bom lanceiro, deu-li a spada: | |
– Eiþan, menino, mostra a flecha na cara | |
como quebreires e como salvaste a cabeça. – | 960 |
48
Do fundo do fogo a gargalhada irrompia | |
mas Ruderico abafa os risos, galante: | |
– Amigo, mostro na tua cara e se queres | |
agora, gracioso! – Mas foi impedido: | |
– Ei, gadraúhtōs! – É que todos sabiam | 965 |
que Ruderico, coa mesma flecha arrancada, | |
noutra luta cortara a cabeça dum grego. | |
Foi buscar o crânio, nembrança de guerra | |
e prova de imensa força, valor de respeito. | |
Mas quando o próprio crânio de Ruderico | 970 |
navegava no vinho, o jovem guerreiro | |
ergueu perante o fogo o crânio do vinto, | |
prenúncio dum ritual temível, e a spada | |
partiu-o, rápida e leve, em duas metades, | |
uma vil, lançada embora entre os ratos, | 975 |
outra uma esbelta e rara circunferência: | |
Na sombra rememorava artefato sagrado e | |
Ruderico, num grito de guerra irascível, | |
bebeu daquele crânio pleno de vinho | |
a goles fartos, lambendo as últimas gotas. | 980 |
49
Dizia a crença: Quem bebesse do crânio | |
dum grande imigo sorvia-li toda a força, | |
o medês espíritu: Era a vitória cabal, | |
conquista da carne como d’alma roubadas. | |
O jovem d’armas tragava em ruído voraz | 985 |
o sopro daquele morto, dito valente | |
por entre os gregos bizantinos; as almas | |
de fato sobrevivem depois da desgraça? | |
Após um breve e cadavérico instante, | |
canções de outrora soarom perto do fogo | 990 |
e tornada a calma Vilas contou lo seu caso | |
prevendo a Ruderico: – Pois que cresceres | |
darás valor maior ao amor pelos outros. | |
Eu, por exemplo, não careço de crânios | |
nem me curei, menino, de estranhas feridas, | 995 |
salvei meu povo bom sem alarde e sozinho. | |
Alguns se esquecerom já pero não me importo: | |
Na memorável contenda aos pés de Verona, | |
enquanto os vinte, trinta mil de Bizâncio | |
covardes lutavam contra os nossos godos, | 1000 |
50
de quem restavam somente Deus e uma pars, | |
estava eu entre os poucos, a lança nas mãos, | |
a vara ocupada o tempo inteiro e cercada. | |
Amigos, a sorte era estar sitiado por quatro | |
ou cinco apenas: Vinham vinte e montados! | 1005 |
Caí diversas vezes. Pensaram-me morto. | |
Eu, porém, non piso num campo de flol | |
e fujo quando a morte parece iminente. | |
Uma coisa, queridos, meu fadro ensinou | |
no leito de morte: Não apanhes de excelsa | 1010 |
lança para lancá-la em fuga ao chão! | |
Caí, de fato, mas caí com grandeza, | |
erguendo a clava mesmo roto no abismo | |
e derrubando abaixo os vis do cavalo. | |
Aceito a derrota, a morte não me assusta. | 1015 |
Escanda fugir, consolo o viço dum povo: | |
Gaiúcas, os cameradas naquela travada | |
entraram a campo para ficar e ficarom | |
até lo fim, e quem caiu levantou-se e | |
quem morreu foi tringo. Eles fugirom, | 1020 |
51
vinte mil crepados rabo entre as pernas, | |
jogando por terra escudo e spada, cachorros | |
buscando covil. Mas Ruderico, menino, | |
não matei ninguém por busca de crânios | |
nem chutei caídos. Sperei que se erguessem! | 1025 |
A mia lança, porém, de tesouro guardado, | |
a ponta derribou guerreiro e cavalo, | |
lanceiro, flecheiro e poderosas espadas. | |
Atravessei sozinho o rio caudaloso | |
quebrando flecha swim no escudo certeiro | 1030 |
coas próprias mãos, nadando contra a corrente. | |
Cheguei primeiro de todos à margem oposta, | |
valente em meio ad inimigos: sem medo! | |
Vierom contra mim mas me subestimarom | |
e vacilando caírom, calarom, correrom. | 1035 |
Foi assim! – Os cameradas erguerom | |
o cálice pelo ufão invejado daquele | |
mestre de lanças e dele ninguém maior, | |
até que aduz um goia: – Homem de gestos, | |
a coragem tua è mais até de invejável: | 1040 |
52
Home non pode invejar e nem se tenta | |
de tão distante de nós, incomparável. | |
Direi porém meu caso tão curto e menor? – | |
Dissesse, foi unânime a voz dos ouvintes! | |
Ergueu portanto a voz Elerico de novo: | 1045 |
– Meu caso è nulha rem, bagatela meu caso. | |
Alguém renembra o cerco de Roma primeiro | |
da tropa de Belisário lutando com Vítice? | |
Foi no ataque: Dous soldados do Império | |
caírom nas minhas mãos e lá se prostrarom | 1050 |
sem gana, desarmados e desesperados | |
balbuciando frases em grego e latim. | |
Queriam viver e a decisão era minha! – | |
Um certo e sereníssimo olor do hidromel | |
tornava as palavras mais macias na boca: | 1055 |
– Leixei viver! – revelou enfim Elerico, | |
o modesto, dividindo os espíritus bravos: | |
– Homessa, Elerico, ès insano? Foi-te dado | |
juízo e leixaste viver, frião, que dizes? – | |
Porém o guerreiro mirando além revelava: | 1060 |
53
– Julgar a vida è fácil, difice è justiça. | |
Leixei viver. Eo não conheço a justiça | |
de Gus ca nem eo sejo o juiz, perdoei. – | |
E completou profundo: – Antes da werra, | |
minha gente, ik friyoda Rumanan meina, | 1065 |
iþ afar háifst fraláus ik friaþwa meina. | |
Destino è assim, separa quem nem se casou. | |
Foi cada um pra seu lado e será quinda vive, | |
coitada, será que nembra? Eo fico pensano, | |
pensano, mas de graça non mato ninguém, | 1070 |
perdoei. – E sorriu dum tristoroso sopro | |
enquanto o silêncio testemunhou-li respeito. | |
Mas seguiam na noite os casos e o brio | |
de poemas serenos num monumento perdudo: | |
O vento levava embora a língua dos godos | 1075 |
além dos muros de Roma e também do futuro. | |
O vento de fato è destruïdor de desígnios | |
nem se importa com nossas rodas de fogo. | |
O vento sopra, apaga e desfaz l’amizade: | |
Quando se houverom ereitos os cameradas | 1080 |
54
buscando lenha, no meio do bosque um gemer | |
abafado e desesperado subiu do inferno. | |
Um homem prostrado e macerado e faminto | |
ergueu los olhos do chão. Era um romano | |
e veio de Vilas a mágoa quando indagou: | 1085 |
– Algum pedaço de pão? – O cão vislumbrava | |
contudo vago e mordia os dedos doídos. | |
Perdera a voz e Vilas avisa ad amigos: | |
– Carece muito estomem e vou-li buscar | |
algum pedaço. – Mas Ruderico interveio: | 1090 |
– Cachorro merece è morte e carece de nada | |
e diabo de pão! – Assim proferindo estendeu | |
la espada, separando os passos de Vilas | |
e a roda de cinzas, confundindo guerreiros: | |
– Queísso, barno, fez-te o quê lo mendigo? – | 1095 |
Vilas demanda e lo jovem retruca: – Nasceu | |
romano! Por causa desses o cerco foi longo. – | |
Em vão nembrarom a Ruderico a clemência | |
do rei ca Vilas, num gesto grave e ligeiro, | |
tomout às mãos a própria espada antepondo: | 1100 |
55
– És um grande atrevudo, gadrão! Previno, | |
baixa a tua espada ou verás de meu ódio! – | |
Mas Ruderico, em libações embalantes, | |
rugiu como um louco: – Nim þana haíru! – | |
Ouvindo o grito de guerra, Vilas desbrava: | 1105 |
– Recebo ordens do Froia, pão para os pobres! – | |
O sopro mal terminara as palavras e a luta | |
abriu-se viva e repentina entre as armas. | |
Voavam os velhos caçadores de sangue | |
pelos céus e farejadeiros de morte. | 1110 |
Abaixo os gumes afiados cravavam | |
lâmina em lâmina e fulminantes rajadas | |
causavam tremor. Mas ai, la inveja do acaso | |
decide os casos na tirania do arbítrio, | |
jamais em causa de honor, jamais justiça. | 1115 |
Um gesto falso bastou, momento fugaz, | |
e Vilas viu descer a espada del outro | |
contra o próprio pulso: Um raio de ódio | |
bateu e la mão caiu ao chão decepada! | |
Às pressas forom apartados, tarde | 1120 |
56
demais, enquanto os cameradas choravam | |
pela morte iminente de Vilas, sangria, | |
e pela de Ruderico, já condenado | |
do rei como réu de libações assassinas. | |
| |
| |
ι | |
| |
Longe porém na barca incerta, Pelágio | 1125 |
aumentava em vão o tamanho do mar: | |
– Quanta mágоa, Deus, e quanta angústia | |
vai consumindo o meu peito e mi pesa | |
mais do que o mar e vai me engolindo | |
como um túmulo. Eo vou embora de Roma | 1130 |
nesta nave e na verdade busco o navio | |
que me levasse embora è do mundo. | |
Eo fico olhando esse céu estrelado | |
como um tolo e vou errando em mim mesmo | |
e perguntando mais e sabendo e conhecendo | 1135 |
sempre menos. Mas que mundo è este? | |
Desde cedo eo sabia, a vida è tormenta, | |
desde cedo eo fui buscando um caminho | |
longe de império e tentações ligeiras. | |
Do berço ouvi da voz dos meus pais | 1140 |
57
o destino arruinado dos hômino: | |
Eram rumores de conhecidos, parentes | |
que a mão dalgum partido inimigo punira. | |
Eram rumores de ódio, de fuga e de morte. | |
Eu passava pelas ruas de Roma e pelas | 1145 |
estradas vagas da Itália e nos traços | |
dos homens e das paisagens castigadas, | |
ai de mim, eo percebia bem que ruína | |
e que mundo sem futuro os pés andavam. | |
Usar de que modo a fortuna dos meus? | 1150 |
Ia embora um amigo todo dia e vizinho | |
ninguém sabia aonde. Era a cadência | |
de Roma ca mesmo com Teodorico, | |
aquel homem tão bom e tão generoso, | |
as pedras rudes das ruelas velhas | 1155 |
já diziam toda parte que Roma acabou, | |
que Roma morreu ca dali non sai futuro. | |
Eo nembro as almas da minha infância | |
e nulhome nado queria honor et ofício | |
amanhã se acabou ca governo è sem remo. | 1160 |
58
Meu pai, que Deus o tenha, graças a Deus | |
non vê o que Roma virou: Agora entendo | |
quando me mandava esquecer ambições. | |
Ainda naqueles tempos as estátuas | |
e venustas casas contavam histórias | 1165 |
e quão viva era a sua doce nembrança. | |
Mas ao lado das pedras estava a poeira | |
desde então e Roma já era uma sombra. | |
Que destino o meu e mal! Nascer na morte | |
dum povo e duma história, nascer sem razão. | 1170 |
Agora ninguém levanta a cidade do chão, | |
acabou, meus filhos, repito, acabou. | |
Eo vejo os pobres na ermida e nas ruas | |
e pela missa como andando entre o povo | |
eo queria gritar no topo monumentoro | 1175 |
como no altar das minhas lágrimas: | |
– I-te embora, infeliz, sai daquende, | |
sai pelo mundo afora, povo perdudo, | |
Roma desaba sobre a tua cabeça! – | |
Só muito amor de nem sei o quê retém | 1180 |
59
um homem naquele encontro de ratos. | |
Eu pensava porém que o serviço de Deus | |
seria uma vida mais grata e feliz, | |
pero não, coitado e condenado de mim: | |
Fortuna arrasa o ser em qualquer posição | 1185 |
e nem servindo a Deus o esser è seguro. | |
Em que vaga de perdimento me encontro, | |
eu, que quanto mais fugia a ruína | |
de Roma a ruína de Roma seguia | |
e vem comigo na terra e no inferno? | 1190 |
Ó, Senhor, eo preferia mil vegadas | |
o trato rude no extremo do mundo, | |
os homens sem cultura e fortunados. | |
Mas não, busquei la barca de Cristo | |
e as mãos dos homens vão me jogando | 1195 |
polo mundo e me vejo no meio do mundo, | |
eu, que queria rezar no meu canto | |
longe de tanta ruína e de mundo. | |
Eo perco o fôlego e falo sem fim: | |
Se ao menos no peito eo soubesse, | 1200 |
60
lá no fundo, que o dono das gentes, | |
o caro amigo que tanto me estima, | |
er pudesse ouvir e ver o impossível! | |
Mas non pode, non pode não, minha gente, | |
gente de dentro de mim, pode como? | 1205 |
A pessoa non viu lo estado de Roma, | |
non viu, e quando foi que palavra | |
tocou el alma dum homem tão distante | |
quando Roma è só banquete de ratos? | |
Que metáfora, imagem, qual retórica | 1210 |
nova ou velha convence uma pedra? | |
Ai! Eo queria è desaprender a pensar, | |
subir dessa nave nas asas dum ícaro | |
e me perder pelo mar e pelos céus | |
sair voando a lugar de menos guerra, | 1215 |
menos fome e menos ódio, qualquer lugar, | |
a caverna de Bento, dum homem sábio | |
sim, levar comigo um punhado de vento | |
e caminhar sozinho pela terra inteira | |
rezando pela estrada e falando coas feras. | 1220 |
61
Mas não, infeliz, essa nau me leva | |
não à liberdade duma escura caverna | |
nem aos ratos companheiros do pobre, | |
leva-me sim às portas de Constantinopla | |
e delicados palácios, à púrpura, al ouro, | 1225 |
ao sólio donde um homem assoberbado | |
governa Roma e nunca a viu nem verá | |
lo tamanho da sua inteira indigência. | |
È bom que nem veja e bom que se poupe | |
dos mastigadores de urtiga e de esterco, | 1230 |
ei lacerada existência, ei perdimento. | |
Era Roma a capital do mundo. – | |
Pelágio inclinando a cabeça | |
mirava, sentindo o frio das nuvens, | |
na superfície undar espelhos | 1235 |
incertos, fitando o líquido brilho | |
como se desvendasse, da treva, | |
verdade no embalo do abismo. | |
| |
| |
κ | |
| |
Quando porém Pelágio aporta em Constantinopla | |
pondo os pés no paço do Império, u do sólio | 1240 |
62
Justiniano recebe os enviados e os grandes | |
(como li reza o protocolo col ordem do dia), | |
vai correndo levar al Imperador a novi- | |
dade do rei: Os dedos tremulando coa carta. | |
Mas o dono do Império acena ao guarda doríforo | 1245 |
e num segundo os hipaspistas, levando consigo | |
para fora os legados e os súditos, deixam vazio | |
l’átrio das audiências. Justiniano se apressa: | |
– Fala, amigo, vejo que um caso urgente te move. | |
Que se passat e que mi diz Belisário da Itália? – | 1250 |
Foi-li explicando os acontecimentos recentes | |
tão marcante e tão profundamente que o rosto | |
como o cetro quase que empaleciam no sólio. | |
Antes porém que o mensageiro de Roma entregasse | |
a carta Justiniano estende a destra impedindo: | 1255 |
– É do rei? Non quero nem saber do que trata! | |
Rasga! Diz ao vil que a Belisário compete, | |
pois assim o quero, fazer a paz como a guerra. | |
Ele decida, pois o Imperador que procuram | |
não discutimus guerra e paz com usurpadôribos. | 1260 |
63
Já podemus voltar portanto al ordem do diei. – | |
Mas Pelágio, antes que Justiniano acenasse | |
para os doríforos reabrirem as portas, orando | |
como podia mostra a missiva: – Honrai, Senhor, | |
o diadema d’ouro que ilustra o crânio do justo, | 1265 |
esse que tendes! Pelo amor de Deus e de Roma | |
tende bondade e lede as ameaças dum godo! | |
Vim rogando aos céus durante a longa jornada | |
pelo mar que mi desse a letra e verbo correto: | |
Roma se acaba, Roma è como um túmulo aberto! | 1270 |
A fome castiga os inocentes, os párias padecem | |
pelo frio mas apenas começa a nossa desgraça: | |
Pois Totila avisou, perante o povo cansado e | |
frente aos senadôribos: Roma será destruída e | |
posta ao chão se não bastar o termo do acordo! | 1275 |
Venho cá na condição de escravo implorar-vos, | |
sim, que enfim me fiz escravo do rei e refém: | |
Basta um gesto e Roma inteira se perde no fogo. – | |
Justiniano lendo a carta pondera e reclama: | |
– Mas Totila non tem autoridade do Império! | 1280 |
64
São de pouco valor essas ameaças fingidas. | |
Todo-los monumentos, os muros e os templos, | |
casas de Romae restituídas erem, prometo, | |
cada pedra recolocada ao lugar de origem. – | |
Nisto l’outro estende a mão suada interpondo: | 1285 |
– As pedras sim, mas e las vidas? Que mão rëergue | |
tantas almas devastadas do chão que as acaba? – | |
Mas o Imperador reverbera: – A vida est amara, | |
vir, e não me tortures demais! Erat o início, | |
era o primeiro mês do meu governo somente | 1290 |
e já chegavam cartas e apelos de Roma e godos. | |
Não me venhas dizer que tenho rem, o que seja, | |
contra um povo que apenas protejo da tirania | |
e como não? Esqueceste aquela tristem mulher | |
e filha de Teodorico, Amalasunta, a regente? | 1295 |
Não mi implorava socorro a vida reta e valente? | |
Dês que o pai morrera foi leixada e guiava | |
Roma e seus godos já que Atalarico, o menino, | |
era herdeiro menor de idade. Foi perseguida, | |
Pelágio, foi condenada desde o primeiro momento! | 1300 |
65
Nunca ouvi falar em mais intrigas e ofensas | |
contra uma vida tão desinteressada e pacata: | |
Esto, meu caro, pois queria fazer do seu filho | |
rei decentem, vida amiga da nossa bandeira | |
como dantes Teodorico a serviço do Império. | 1305 |
Que fazer, indago, quando uma vida sem erro | |
como essa se lança a tous pés rogando socorro? | |
Ela perdeut o filho ca foi corrupto por vérmibos | |
como por homens torpes: Embriagado de morbo | |
não resistiu lo doente e despediu-se do mundo. | 1310 |
Ela cedeu, Pelágio, contra os nossos apelos | |
o próprio trono: Quis salvar apenas a vida! | |
Ela escreveut as cartas mais penosas que li, | |
die e noite implorando a proteção de Bizâncio. | |
Ela morreu! Assassinada per ordem daquele | 1315 |
Teodato que as suas mãos puseram ao trono! | |
Era um próximo! Aprisionou-a pois numa ilha | |
e contra os meus apelos et ameaças solenes | |
ordenou de soldados a trucidassem na jaula. | |
Não bastou! Negou ata la morte o seu crimen | 1320 |
66
contra muitas provas et evidências patentes. | |
Ela, coitada, teria leixado embora a cidadem | |
vindo pôr-se ao pé de Bizâncio donde um retiro | |
calmo e generoso aguardava. E ali morreria. | |
Não li foi permitido inofensivo silêncio? | 1325 |
Contra um ato inglório levantei mias armas | |
nem descanso ata que os impostores se rendam. | |
Luto per Roma de outrora e per Amalasunta: | |
Saiam da Itália pois ou sejam nossos súditos! – | |
Vendo a fúria fulminar dos olhos do augusto | 1330 |
Pelágio todavia devolve num gesto agitado: | |
– Deus dos Céus, se è Teodato a causa de tudo, | |
nisto existe consenso universal e concórdia: | |
Nem os godos duvidam, Domine, que Teodato | |
foi lo autor da fealdade maior deste século! | 1335 |
Mas o crápula foi degolado no meio da estrada | |
quando fugia para esconder do mundo a vergonha! | |
Ele morreu, o inferno è testemunha do alívio! | |
Nem se compara a Totila, Totila è rei generoso: | |
Pois ergueu do chão Rusticiana e Romanos! | 1340 |
67
Mas que dizer ao rei generoso quando reúne | |
todo-los senadores e o povo de Roma no Forum | |
orando: “Que maldade fiz, ingratos, ao povo?” | |
Ora, as bocas dos oradores então se calarom | |
frente ao rei ca frente ao rei calarom audazes. | 1345 |
Mas a resposta decerto somente Justiniano | |
sabe e somente a vossa boca prova e conhece: | |
Pois uma tal pergunta transtornada e pungente | |
Totila dirigia menos aos pobres que a Vós! – | |
O Imperador, a mão cobrindo a testa suada, | 1350 |
fala baixo al outro, quase tocando seu ombro: | |
– Est um caso de fato raro, ingrato e funesto. | |
Já se evidenciat às ruas o brio de Totilae. | |
Mas direi, Pelágio, todo o mal que tem feito. | |
Veio das suas próprias mãos a proposta de paz: | 1355 |
Pois que outrora Vítice houve rendudo Ravena | |
veio depois Totila, por carta, propondo render | |
as armas, os homens e a fortaleza sua em Treviso. | |
Pois! A pedido seu aceitaumus propensos à calma: | |
fora já marcada a data da entrega das armas! | 1360 |
68
Mas agora pergunto: Que fazer, meu querido, | |
quando em toda Constantinopla irrompe um rumor | |
anunciando Totila o novíssimo rei dos godos? | |
Já li bastou dum pouco d’ouro e coroa de vis | |
e lá se foit infame revigorando os rancores? | 1365 |
Não me acuses! Deus è testemunha do acordo: | |
Quantas vezes depus de bõa fé mias armas? | |
Eu queria crer em Totila letra por letra | |
mas non posso: Fui iludido, fui enganado! | |
Quantas cartas recebi recitando promessas? | 1370 |
Não jurou Teodato que Amalasunta vivia? | |
Fui traído muitas vezes por muitos governos | |
mas, Pelágio, a confiança co tempo se acaba. | |
Não me comovem mais correspondências extensas | |
pois non sou palhaço, sou lo Dono das Gentes: | 1375 |
Quero pois, está decidido, que saiam da Itália! – | |
Lívida a boca de Roma transtornada recorda: | |
– Algo de alívio, Dom, è necessário dizer-lis | |
para acalmar os godos como o povo sem rumo. – | |
Justiniano li assere: – Digam toda a verdadem: | 1380 |
69
Cabe a Belisário nossa campanha de Itália! | |
Já podemus voltar portanto al ordem do diei: | |
Há questões iminentes da santa Igreja a tratar! – | |
Ainda falava lo Imperador pero l’outro entrevia | |
como um fastasma Roma devorada por flamas. | 1385 |
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| |
λ | |
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Mas aproximou-se do rei lo guerreiro | |
Vilas, el homem sem mão, a lança caída: | |
– Durante dias, andei perdudo por ermos | |
jurando a Gus e a Ruderico vingança. | |
Por onde meu corpo se arrastava doído | 1390 |
o movimento tranformava-se em bloa. | |
Era um rio que jorrava, um mar infinito | |
levando embora o brio, valor de meu éu. | |
Caí, senhor, às aƕas dalguma corrente, | |
sem força de alevantando, presa del ódio, | 1395 |
e quanto mais eo maldizia o destino, | |
o nome inufo de Ruderico e de infames, | |
mais o sangue fugia de dentro de entranhas, | |
mais aquele rio et as pedras e o guês | |
bebiam a minha vida, o vaso brecado. | 1400 |
70
Não me recordo como colhi memórias | |
abandonado perante as portas do inferno. | |
Mas percebi, por algum recurso divino, | |
descendo no escuro pela escada da morte, | |
que a mão que me empurrava abaixo, tirana, | 1405 |
menos que el ero de Ruderico atrevudo | |
era el ódio que propulsava o meu sangue | |
e derramava ao féror afora uma vida. | |
Ora, desde aquele momento e remorso | |
retive a derradeira gota que havia. | 1410 |
E derribando um peso mortal de meu erto | |
jurei de novo ao doador de destinos: | |
Dá-mi tão somente um pedaço de vida | |
e leixarei de mim, a meu rei e meu povo, | |
o testemunho dum coração sem rancor. | 1415 |
Venho pedindo, desde então, armel | |
pela vida errada dum jovem sem pai. | |
Andei pela estrada refletindo atitudes: | |
Totila! Antes que o barno pague coa vida | |
deixa-me consumar a sagrada promessa. | 1420 |
71
Eu guiarei Ruderico, eo ero seu froia! | |
O povo inteiro em pouco tempo verá | |
lo exemplo dum firme, valoroso na lança | |
como no flol escão gestor de vitórias. – | |
Contudo, um rei estupefato mirava | 1425 |
el homem que amigos acreditavam morto. | |
Viera como um raio a notícia dos wardas, | |
de Vilas ferido, moribundo e perdudo. | |
Totila passara sete noites sem sono | |
vagando pelo escuro em recintos vazios. | 1430 |
Ruderico detento em fuga e rendudo | |
sperava na jaula a spada pena de morte, | |
corpo ferido por toda espécie d’armas. | |
O rei, porém, imagens mistas na mente, | |
fitando el ar tenebroso induz a Vilas: | 1435 |
– Handus swinþista wast alláize gadraúhte, | |
eras el alma dum povo e blingarom tou viço. | |
Renegas, Vilas, o teu direito de guerra? | |
Tão grande se fez o medo teu dum covarde | |
que já nem queres punir, pretendes amá-lo? | 1440 |
72
Não, guerreiro, assim non será: Morrerá | |
ainda esta noite. Auleaste, infeliz? | |
Mas a mão que a spada ingrata abateu | |
non foi de Vilas somente, foi de Totila. | |
O céu conhece o tamanho do meu coração. | 1445 |
Perante o sofrimento e remorso do incauto | |
jamais hesitei: Estendi minha mão, perdoei. | |
Desci do cavalo et alevantei-o do chão, | |
ouvi confissões e ponderei argumentos. | |
Mas compaixão de iníquos, maus sem motivo, | 1450 |
não comparto e nunca coube em meu peito. | |
Este guer que queres salvar da justiça | |
merece morte apenas. Estirpe de pravos, | |
viveu sem virtude. Ébrio, chutava caídos. | |
Negava a vida como o pão a vençudos. | 1455 |
Vencendo, vilipendiava cadáveres | |
corpos sem defesa. Usava das armas | |
contra os goias como contra verdugos. | |
Desconhecia a mãe, o sou pai, os brodos. | |
Foi verdade, Vilas, que ergueu lo seu ero | 1460 |
73
contra ti a que um pária morresse de fome? | |
Este o suão que adotas, algoz de mendigos? – | |
A palavras exaustas somavam-se gestos | |
e o rei arfava. Ora, ainda que fosse | |
possível perdoar Ruderico da morte | 1465 |
fora um gesto de impunidade soltá-lo, | |
exemplo mau aos jovens, vinta a virtude. | |
Mas Vilas não se abala, insiste valente: | |
– Eu afianço a minha vida à promessa: | |
Se o filho meu cometer um gesto ingreto | 1470 |
mata-nos ambos cada qual no seu crime! – | |
Totila enfim desiludido e surpreso | |
mandou trazerem Ruderico ao recinto | |
donde anunciou, na frente de Vilas: | |
– O crime teu, menino, não se auleia | 1475 |
mas tua pena de morte será postergada. | |
Afiançarom a vida por tua conduta: | |
Mas Ruderico, non reconheces tou fadro? – | |
Assim mostrando o vulto de Vilas atrás, | |
Totila viu lo susto no rosto do jovem | 1480 |
74
ora prostrado, a rouca voz soluçando | |
enquanto o novo pai tocava-li a fronte. | |
| |
| |
μ | |
| |
Fora porém apareceut uma sombra apressada | |
pedindo ver o rei, misterioso o seu vulto. | |
Foi com muito esforço que os cavaleiros godos | 1485 |
enfim reconhecerom aquele aspecto assombrado: | |
Era Pelágio que demandava, um alma penada! | |
Tinha às mãos a mesma carta do rei devoluta | |
mas Totila entendeu sem carecer de delongas: | |
Esse Justiniano era mesmo um homem sem honra! | 1490 |
Mal se importara em ler (a dedução era óbvia) | |
lo apelo e julgara o remetente rei sem promessa. | |
Ora o rei cerrando os punhos num gesto irascível | |
foi secando em vão lo pranto farto e de ódio: | |
– Esse Império Romano não se importa com Roma? | 1495 |
Abre mão das construções, da paz e das vidas? – | |
Como tomado num riso atarantado e del asco | |
não se leixou impressionar e perder a palavra: | |
– Pois se Roma non vale nimigalha al Império | |
hei de mostrar o quanto menos mi vale Roma! – | 1500 |
75
Não assentia desrespeito à sua embaixada e | |
já cumpria gustar melhor o sabor da vitória! | |
Assim pensou, e firme perante os emissários | |
Totila sem mais demora e vacilo pronunciou: | |
– Quero que seja destruída a cidade de Roma! – | 1505 |
Ato contínuo, falanges sequiosas de fogo | |
forom embebendo em combustível as pedras: | |
Era em vão abandonados correrem aos gritos. | |
Nem bastava ainda al ira do rei lo incêndio | |
pois a história sabia de Nero, viço instável: | 1510 |
Roma sobrevivera à tempestade das flamas. | |
Ora cumpria, queimados edifícios ilustres, | |
pôr ao chão la derradeira pedra quebrada. | |
Cada gradrão carregava um martelo raivoso | |
prenhe de morte e destruïção, sinal violento. | 1515 |
Fora selada a sorte da capital dos leões: | |
– Roma doravante seja um pasto de gado! | |
Quem no futuro vir aqueste trato de terra | |
não verá la vila que os pés do boi apagarem. – | |
Quando o fogo irrompeu das antiquíssimas casas, | 1520 |
76
quando ao trom do martelo cambalearom pilastras | |
veio a massa às ruas, erguendo os olhos ao céu | |
por onde as flamas altas anunciavam verdade. | |
Fora permitido aos godos entrar pelos átrios | |
confiscando todo valor que non fosse alimento. | 1525 |
Não surtiram efeito os senadores em lágrima: | |
Rem se ouvia além de crepitar e tremores, | |
sons de escudos e espadas abafavam clamores. | |
Era debalde buscar apelo e moção de clemência | |
pois Totila fechara firme os olhos e ouvidos. | 1530 |
Era maior do mundo o grito infindo de Roma | |
mas o mundo ensurdecera esquisto de Roma. | |
Muita voz naquela noite clamou sem resposta | |
o nome do Imperador, angustiada esperança. | |
Veio pelo fogo l’ordem da boca dos wardas: | 1535 |
– Pode sair agora, quero Romano aqui não! | |
Sai, vagabundo, sai, se não sair nòs te mata! – | |
Nisto aqueles porém que nada tinham de seu | |
et eram muitos agarravam-se a pedras ao chão. | |
Nem a ruína lis removia amor ao passado | 1540 |
77
desses monumentos crepados e vida caída, | |
ora que a mão do rei desejava cortar a raiz | |
do velho afeto, despovoando toda a cidade. | |
Mas ouvirom contar que pelas flamas da noite, | |
quando Totila dormia na espera, vieire del alto | 1545 |
o clarão da caravana alada dos cem cavaleiros. | |
Eram luminosos heróis em quadrigas ligeiras | |
que descendendo ilustres envolverom Totila. | |
Foi levado na caravana por rodas de vento | |
rumo ao Forum donde um vulto escuro atendia. | 1550 |
Quando os dous se virom a sós, o rei estendeu | |
la mão ao pária debruçado perante uma estátua. | |
Mas el outro ajoelhado e beijando-li a mão | |
rogava ao godo: – Não destruas minha cidade! – | |
Tamanha dor entristeceu a Totila, pedindo: | 1555 |
– Sai do chão, responde, fala, como te chamas? – | |
Mas o pária chorando sangue aponta al estátua | |
em cujo rosto Totila vislumbra: Teodorico! | |
Súbito um raio fulmina e despedaça o patrono | |
quando Totila acorda imóvel sentindo o trovão: | 1560 |
78
O medo congelava os membros e a força do grito. | |
Entra Rigo no mesmo instante e transtornado | |
corre como vedor de fantasmas prorrompendo: | |
– Vem andando um vulto atrás de mim sem cabeça | |
e vem chorando e me perseguindo a noite inteira. | 1565 |
Era que nem um sonho, meu frião, no Forum: | |
Vinha vagando e carregando a própria cabeça | |
fora do corpo e vinha choramingando comigo. | |
Eu mandava sair pero o vulto parava e dizia: | |
Pede ao rei, meu amigo, piedade de Roma. | 1570 |
Vegada et outra descia um anjo querendo levar | |
mas ele recusava mostrando o fogo nas casas. | |
Eu andava adiante mas ele sentava-se perto: | |
Pede ao rei, meu querido, piedade de Roma. | |
Quanto mais eo olhava o seu aspecto amargo | 1575 |
mais eo via a multidão dos mil que o seguia. | |
Eu queria fugir pero estendia-mi as mãos | |
e balançava a cabeça angustiado e rogava: | |
Pede ao rei, meu amigo, piedade por Roma. | |
Era um aluvião sem guês pedindo socorro | 1580 |
79
mas vi de repente a transfiguração dum alma: | |
Quando o vulto se diluiu num etéreo vapor | |
um merencório chover de gotas irradiantes | |
cobriu los sofredores e a voz do céu ressoau: | |
Filhos de Roma, Boécio permanece entre vós. – | 1585 |
Totila rumina a sós a intervenção dos sonhos: | |
Como agir? Buscava resposta nos olhos de Rigo | |
mas o frião perdera a voz e Totila sugere: | |
– I buscar os cavalos, vamos a Monte Cassino! | |
Bento conhecerá lo sinal secreto dos sonhos. – | 1590 |
É que o monarca ainda não sabia que Bento | |
certa noite, quando alçava os braços em prece, | |
caíra morto em meio a seus amados discípulos: | |
Era o peso dum peito angustiado por Roma. | |
Mas o conquistador del Urbe não se arredava | 1595 |
nem cedeu à visão das assombrosas imagens. | |
Inda restava a destruir a muralha odiada | |
que tantas vezes houve repelido os ataques. | |
Já soava o bater de martelos e os muros tremiam | |
mentre o fogo passava atravessando vielas. | 1600 |
80
Irom minando primeiro os bastiões importantes | |
pela margem do Tibre e perfurando crateras. | |
Inda restava exposta e derribada a passagem | |
que apenas Pedro Apóstolo protegera do assalto: | |
Contam pois que durante a campanha de Belisário | 1605 |
grande parte do muro caiu mas nulhome invadeire | |
ca mão de Pedro e nada mais decerto impediu. | |
Ogano andavam longe Pedro e Bento e Boécio | |
ca longe andavam Teodorico e Justiniano. | |
Ogano passavam retirantes em tiras extensas | 1610 |
e pés senadoro e de párias unidos sem rumo. | |
Quem usou de prudência não pensou duas vezes, | |
foi embora às pressas e não se adirom sozinhos: | |
Levarom consigo os fracos e deserdados embora | |
e pouco antes da aurora Roma estava deserta. | 1615 |
Dentre fugientes que se adentravam ad ermos | |
pelos campos um corajoso porém retornou. | |
| |
| |
ν | |
| |
Entrou a sós pelo fogo o Romano sem nome | |
lançando o corpo gasto aos pés duma estátua. | |
Werreiros godos, maravilhados da imagem, | 1620 |
81
quiserom banir o afã pela força das armas – | |
mas ponderando a morte, iminente perigo, | |
miravam desnorteados um gesto inaudito. | |
Era tamanho o descabimento do estranho | |
mendigo, lançado ao monumento em fogo, | 1625 |
que mesmo osores se apiedavam da cena. | |
Ora, diziam, se o pária perdeu lo juízo | |
alguém se prontifique, por Deus, a salvar! | |
E não faltavam mãos e virtudes valentes | |
prontas à luta e desafiando calores. | 1630 |
Cumpria ousar, pois estavam cercados, | |
estátua e stranho, por edifícios em flamas | |
prestes a sucumbir soterrando esperança. | |
Ali se lançarom desrespeitando os temores | |
pela vida própria e prestando o socorro: | 1635 |
– Ainda è tempo, vem conosco, Romano! – | |
Mas qual non foi, Senhor dos Céus, a surpresa | |
pois que aquele estranho julgado sem ânimo | |
houve erguda a voz, lamentando del alto: | |
– Salvai melhor a vida vossa, guerreiros, | 1640 |
82
a minha se esconde dentro desta escultura! – | |
Assim falando mostrava pálido o mármore | |
enquanto os godos retrucavam-li abaixo: | |
– És insano? Vês a salvação que te ofertam | |
e queres a morte? Deixa embora a figura! – | 1645 |
Mas el homem sem nome num ato de angústia | |
e confusão e desespero responde-lis: | |
– Nem que um raio me parta eo saio daqui! – | |
Os godos porém concatenando resposta | |
e mais seguros da insanidade do estranho, | 1650 |
dobravam indagações, procurando argumento: | |
– Explica então por que te abraças a estátuas | |
quando o mundo se acaba em torno de ti! – | |
Mas o Romano tomando de fôlego assere: | |
– Não por estátuas mas por esta somente | 1655 |
eo retornai de meu rumo a Roma, guerreiros! – | |
Humores mais nervosos e o medo da morte | |
causavam perguntas mais impacientes: | |
– Mas esta estátua è tua e vale-te tanto? – | |
Ora o Romano, ouvindo a franca demanda | 1660 |
83
gritou e prorrompeu num pranto agitado: | |
– Este monumento da história que vedes, | |
esta estátua veio dos braços de Fídias! – | |
E assim lis recontava no meio do fogo | |
a vida dum grande escultor, exemplo sem par. | 1665 |
Mas não se contentavam os godos, arfando: | |
– Romano, as tuas mãos non vencem o peso | |
da estátua nem o fogo e rem a resgata! – | |
El outro qual se dessoubesse retruca: | |
– Éste l’alma de Roma que impera salvar! | 1670 |
Nela meus pais e meus avós se abraçarom, | |
suspiros de tantas gerações enterradas. | |
As alegrias da infância e nembrança da rua, | |
guerreiros, da rua de outrora apontam ad ela. | |
Era orgulho da praça e da vida dum povo | 1675 |
testemunhando que um século Roma foi bela. | |
Non quero, soldados, mal a nulhomem de vós: | |
Eo quero salvar em paz a história de Roma, | |
ai, leixai-me, sim, caridosos, por graça! | |
Eo peço tão pouco e quase nulha vos peço: | 1680 |
84
Ora que è todo vosso o presente e futuro | |
eo peço apenas o meu passado em pedaços. | |
Filhinhos meus contemplarão esta imagem! – | |
Decerto eles godos inda não se esqueceram | |
do quanto amor separa pedras e estátuas, | 1685 |
ca sol as pedras enxergarão nas estátuas | |
pedras apenas, apenas o amor monumento. | |
Era em vão que argumentassem lanceiros | |
enquanto o calor e o nervosismo aumentava. | |
Num ato extremo porém decidirom movê-lo | 1690 |
embora à força, e sob ameaças de lanças | |
tentavam pôr as mãos nel homem sem nome. | |
Ora o Romano, apagando o fogo co pranto | |
e protegendo o corpo del obra coa pele, | |
rugia contra as mãos de socorro e de ataque: | 1695 |
– Leixai-me em paz e rebaixai vossas arma! | |
Vale mais deste povo inteiro esta estátua! – | |
Soldados iam retirando-se às pressas | |
enquanto a morte remordia de perto. | |
Os gritos de salvação e paz mesclavam-se | 1700 |
85
aos impropérios, as preces a indagações. | |
Mas o incêndio interrompeu los diálogos: | |
Num lance alucinado e veloz, o Romano | |
tentou remover o monumento de Fídias | |
e carregar embora o tempo nas costas. | 1705 |
Mas as pilastras do edifício defronte | |
vierom abaixo, soterrando as histórias | |
em meio ao destemor e fumaça de flamas. | |
Caírom juntos l’homem e l’obra de Fídias, | |
despedaçados quis-cada-quem a seu modo. | 1710 |
| |
| |
ξ | |
| |
Pela manhã porém chegout às mãos de Totila | |
novo apelo, correspondência de Belisário: | |
“Rei de Roma, trata melhor a cidade que è tua! | |
Não condiz um gesto infame coa mão generosa | |
que tanta vez e sem rancor estendeste a caídos. | 1715 |
Não se passa um dia sem que ouçamos façanhas: | |
Ora retribuis o pai da mulher desonrada, | |
ora salvas da morte o fraco, poupas pequenos. | |
O nome teu se espalha pelas plagas da Itália | |
como doador de consolo e farol de esperança. | 1720 |
86
Mas, Totila, explica, por piedade aos amigos, | |
como entender um gesto feio num rei de proezas. | |
Por que vierom, rei, acordar-me no meio da noite | |
dizendo que a tua ira incendeia a cidade de Roma? | |
Tal menção entristece os amigos, confunde juízes. | 1725 |
Roma è tão formosa et abriga tantas famílias, | |
traz idosa la história de meio mundo no seio. | |
Pensa melhor! Se fores o vencedor desta guerra, | |
queres despedaçada a capital do teu reino? | |
Mas também è nobre saber perder a batalha. | 1730 |
Quão distinto tou nome será nembrado nas eras, | |
sim, se mesmo perdendo tiveres salvo a cidade | |
mãe de mundo. E quão funesta a nembrança será | |
dum rei que recusou la mão à cidade caída.” | |
Isto e muito mais Belisário escreveu-li. | 1735 |
Fora de fato acordado pela voz de Pelágio | |
junto a senadores mendigos no meio da noite. | |
Mas o general de Bizâncio, em meio a vertigens, | |
pôde apenas pedir que lo atendessem afora, | |
já perdudo rente ao chão ponderando palavras. | 1740 |
87
Quem o visse por vez primeira, naquele momento, | |
nunca pudera crer em quantas glórias de guerra | |
ele, recurvado e tremendo, trouxera a Bizâncio. | |
Fora o mentor de vitoriosas campanhas na Pérsia. | |
Fora o gestor de reconquistas vastas em Áfricas | 1745 |
onde triunfara contra o reino dos vândalos. | |
Sem saber direito em que porto ancorar os navios | |
veio a Cartago ao amanhecer e de noite imperava: | |
Comeu da ceia que fora posta ao rei inimigo. | |
Cônsul de Roma, desembarcou em Sicília, tomou-a. | 1750 |
Veio à Calábria, entrou vitorioso em Campânia, | |
teve Nápoles, Roma e Ravena em mãos joviais. | |
Homem de honor prezado em continentes diversos, | |
fora-li oferto um grande império, coroa de godos | |
quando rendendo Vítice, o rei, cativou inimigos. | 1755 |
Mas o destino invejou lo seu vigor inaudito | |
quando Justiniano, incomodado coa glória, | |
veio a suspeitar dum homem reto e sem gana. | |
Desde então procurava retê-lo perto inativo | |
mas o povo, quanto mais Belisário escondia-se, | 1760 |
88
mais o conclamava a mais vitórias no Império. | |
Lá porém se encontrava debruçado al opróbrio | |
dono de escassos homens e rarefeito recurso. | |
Fora pois o desígnio de Justiniano do trono | |
ver o general pela Itália porém diminuto: | 1765 |
Fora ordenado a Belisário, leal sem vacilo, | |
ir a custear a campanha cons próprios recursos. | |
Muito amor à causae comum o moveu. Aceitou. | |
Varava pela Itália aquelora um vulto sem brio, | |
por terra e mar um colecionador de desgostos, | 1770 |
el a quem se oferecera o reino dos godos. | |
Mas ogano um novo fato agravava o seu caso: | |
Era o destino o compelindo à vida mendiga, | |
pena às mãos implorando piedade a Totila. | |
Mas Totila ponderando o seu gesto extremo | 1775 |
leu e releu durante horas o apelo da carta. | |
Era de fato um caso desesperado e perdudo | |
para Bizâncio. Mas quando Rigo leu a missiva | |
pronto irrompeu, falando pelo próprio peito: | |
– Gus non quer que seja destruída a cidade! | 1780 |
89
Pelo amor deste povo, frião, ainda duvidas? | |
Quantos sinais ainda atendes da terra e do céu? | |
As almas transtornadas de Teodorico e Boécio | |
vagam de noite e de dia os inocentes lamentam. | |
Já se bandam vivos e mortos rogando clemência: | 1785 |
Para, Totila, a covardia ofende as estátuas! | |
Roma inteira implora aos olhos vistos por vida, | |
roga renduda um gesto mais bonito e decente. | |
Rei, apaga logo este incêndio, salva a cidade! – | |
Totila tomou lo amigo pelo braço e li disse: | 1790 |
– Rigo, trahirei las mias palavras de guerra? | |
Não se importou Justiniano, impostor de Bizâncio, | |
coa carta repropondo-li a paz, prefere o flagelo! – | |
Rigo redobra: – Prefere pois è homem sem honra! | |
Fosse de fato o pai deste povo a paz reinaria. | 1795 |
Quem abandona deste modo os súditos próprios | |
nem merece resposta nem a espada do greto. | |
Pune o pravo e não lo povo: O povo te serve. – | |
Isto dito, Totila considera o teor do problema | |
longas horas. Cede! Não porém por inteiro: | 1800 |
90
Foi de fato ordenado conter o fogo de Roma | |
pelas construções periféricas u lastrava. | |
Foi retento o martelo desmembrando a muralha, | |
ora que a sua força estratégica fora eversa. | |
Mas a cidade seguiria um deserto fantasma e | 1805 |
de quanto a isto nem um raio arredava Totila: | |
– Pena de morte a quem puser os pés em Roma! – | |
Antes, o godo levava a massa embora consigo, | |
pobres e senadores cruzando a pé por estradas | |
nem cessarom sofrendo ata chegar à Campânia. | 1810 |
Lá por fim lis permitiu lo senhor residência: | |
Mas que não intentassem fuga no meio da noite! | |
| |
| |
ο | |
| |
Quem buscava fuga da inglória e milagres | |
era Belisário conjunto a falanges | |
de desesperançosos que pouco alçavam: | 1815 |
Durante meses Roma esteve deserta | |
enquanto o General, ancorado no porto | |
e sem reforço, mirava em vão direções | |
por onde encadear certeiros ataques | |
em certa brecha et ousadores intentos. | 1820 |
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Mas onde quer que zarpasse ao horizonte | |
olhava o mundo e sabia: O mundo era godo. | |
Os montes escondiam fortes armados, | |
as armas eram fortes, subiant aos montes: | |
Cada estrada guardava pronta emboscada, | 1825 |
cercava la espada e tempestade de lanças. | |
Retenta fora Portus por pouco e lanterna | |
no meio da noite: Era pequena el única | |
célula viva de resistência, por milhas, | |
e cada movimento adentrando terrenos | 1830 |
longe do mar expunha Portus ao cerco. | |
Muita vegada a caminhada breve bastou | |
e norte e sul revigoravam-se os godos | |
em violenta vergasta, donos do ensejo. | |
No cerco a morte era certa, a fuga impossível: | 1835 |
Marchava muito além o socorro das armas | |
passando cansado e maltratado, distante | |
quase uma eternidade do leste e d’oeste. | |
Andava pelas margens do Pó desolado | |
e mantinha temeroso a guarda em Ravena | 1840 |
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ou prosseguia lento pela Calábria. | |
A causa de Belisário deitava arrasada | |
e Roma largada inalcançavel ao braço. | |
Mas Belisário na impaciência dos dias | |
não se conformava coa mão do destino, | 1845 |
antes tapava os olhos coas próprias mãos | |
repudiando o veredito e visão da verdade. | |
Pois rebelou-se! Reunindo os soldados, | |
ergueu a voz e pronunciou lo seu brado: | |
– Quem estiver ocupado coa salvação | 1850 |
duma vida covarde e desonrosa, retorne! | |
Eu porém seguirei coas minhas armas | |
a Roma, por Deus! E seguirei de repente | |
e contra o titubeio me impera marchar! – | |
Houve alarme dentre impávidos homens | 1855 |
ca Belisário não recorria a palavras | |
por mero prazer, jamais, de encher a boca | |
nem voltava atrás decisões e promessas. | |
Mas como entender a novidade da audácia? | |
Era gesto impensado, aventura de vidas! | 1860 |
93
Atordoados ouviant os planos e o risco | |
rogando em vão explicações e cautela, | |
sabendo apenas que novas lutas retinham | |
Totila alhur. Porém senhores da terra | |
como eram, ninguém garantia passagem | 1865 |
segura pela estrada e caminho de Roma: | |
Era caso de sorte, destino ou de Deus. | |
O general maior non concede e prossegue: | |
– Guerreiros, não me deslocarom de longe | |
no rumo de Roma para salvar-me medês | 1870 |
mas pela salvação de Roma e da Itália, | |
nem aceitei um dever maior do que a vida | |
para julgar mia vida maior que o dever. | |
El homem poderoso e gestor de vitórias | |
não dependeu de ocasiões favoráveis, | 1875 |
meninos, para alçar o nome que tenho. | |
Em meio à luta não pondero o tamanho | |
da chance para ficar se o ganho è certo | |
mas fugir se a queda parece iminente; | |
antes combato firme nem fujo nem temo | 1880 |
94
e quero cair com valor se o destino è cair. | |
Portanto: Marcharemos juntos a Roma e | |
lutemos como convém à virtude guerreira! – | |
Assim falout e assim se fez a jornada: | |
Pois houverom desperto na aurora soldados | 1885 |
pronto forom tomando escudos e espadas, | |
troféis de melhor manejo ali preperados. | |
Destemudos da morte abraçavam-se amigos | |
qual del último braço, jurando promessas | |
de lealdade eterna e recíproco auxílio. | 1890 |
Enfileirarom-se pela marcha e marcharom | |
homens sem esperança de vida e sem medo! | |
Os despreventos soldados godos sozinhos | |
eram rendudos, aprisionados ou mortos. | |
O arqueiro impedia a fuga de audazes | 1895 |
trânsitos pela flecha e caindo no campo. | |
A lança lançou ao chão inimigos de longe | |
e quem escapou pereceu na ponta da espada. | |
Nos flancos cavalaria franca avançava | |
impressionando incautos como o perito. | 1900 |
95
Ao fim do dia surgiu la cidade fantasma | |
coberta de musgo e grama, largada ruína. | |
Quem nos tempos de César, Augusto e Trajano | |
pintasse aquela imagem do Forum Romano, | |
ousasse profetizar uma astrosa verdade! | 1905 |
Ogano contudo nenhuma visão de abandono | |
lis parecia impossível, infinda a derrota. | |
Largados num sentimento de amor e de morte, | |
alívio na reconquista de Roma e tristeza, | |
soldados amparavam-se cheios de angústia, | 1910 |
os olhos confusos. Mas Belisário, na mágoa | |
de perceber remorso estampado nos rostos | |
como agora enxergassem quanto o descaso | |
das tropas regulares custara à cidade; | |
vencendo a comoção Belisário lis prega: | 1915 |
– I se vê, Romanos, a nossa desgraça | |
e cá mirai-lo preço do vosso vacilo | |
et anos de hesitação, a coragem incerta. | |
Mas se algum iluso de vós presumeire | |
que já bastava a reconquista de Roma | 1920 |
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para a nossa mãe retomar o seu brilho, | |
engana-se: Não vos enganeis, combatentes! | |
É trabalho demais e sem trégua trabalho | |
que as vossas mãos ainda têm pela frente! | |
As pedras, filhos, que a mão hostil derribou | 1925 |
a mão amiga levanta e restaura as ruínas, | |
devolve à pátria o brio, a vida, a vitória. | |
Reconquistar o passado è metade da meta | |
ca cumpre agora reter, defender a cidade: | |
Vamos tomar aos ombros as pedras de Roma | 1930 |
e reerguer, no cimento da nossa aflição, | |
a vida, a muralha, o monumento dum povo! – | |
Assim lis orou, e tomando a primeira pedra | |
a recolocou aos pés da muralha sem base. | |
Sem dormindo lançarom-se aqueles soldados | 1935 |
à lida perdendo a noite e ganhando firmeza. | |
Mas não se arriscarom sozinhos: Pela manhã, | |
quando a nova das tropas se teve espalhada, | |
correu de volta à cidade um povo plangente | |
turvando de longe a nitidez do horizonte. | 1940 |
97
Leixaram para trás os negócios que havia | |
e sem promessa de pão, de teto e de vida | |
pisarom ele chão que o rei prohibira | |
e terra que em vida já non creram pisar. | |
Jurarom carregando o peso dos sonhos | 1945 |
jamais abandonar a morada e morrer | |
se preciso fosse, mas cair coas ruínas | |
trabalhadores rudes e nobres sem nome | |
não porém sem amor e sacrifício no peito. | |
Quando Totila ouviu da vitória das tropas, | 1950 |
cercado de ansiëdade e combates acerbos, | |
leixou de lado a luta e subiut ao cavalo | |
zarpando inopinadamente, assombrado, | |
acompanhado do grosso do exército godo | |
e guerreiros acostumados a todo cenário. | 1955 |
Mas qual non foi lo sobressalto de Roma | |
quando se ouviu la cavalaria de longe | |
gritando maldições, impropérios irados. | |
No terremoto que fez tremer intrépidos | |
havia agravante: Que as portas de Roma | 1960 |
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ainda non foram repostas, lacunas abertas | |
em meio ao muro reergudo de súbito. | |
Gritos dos invasores eram mesclados | |
ao desespero ofegante correndo nas ruas: | |
Romanos que poucas horas antes plantavam | 1965 |
grãos pelas praças prevenindo escassez, | |
perdiam novamente esperança e fitavam | |
l’horizonte hostil, a muralha indefesa | |
ca manifesto estava: Fora preciso | |
obrar de dias a terminar os portões! | 1970 |
Soava naquelas mentes sinal de chacina | |
e jovens e velhos fabulando sem nexo | |
sentavam-se pelo chão esperando martírio. | |
Mas Belisário conclamando os soldados, | |
selecionando os mais audazes a dedo | 1975 |
mandou: – Seremos nós as portas de Roma! | |
Provade, honrados, de qual cimento se fez | |
o portão de vossos braços chave da vida. | |
Sabei uma coisa apenas: Se o braço cair | |
cairá co vosso braço la história dum povo. | 1980 |
99
Usai com gosto o vosso impávido escudo | |
porquanto muitos de vós ende erguerão | |
aqui pel última vez, e não os lanceis | |
ao chão sem antes leixardes pelo chão | |
a própria vida testemunhando quem sois! | 1985 |
Pensai nas mãos que se calejarom caladas | |
para vestir broquéis às portas de Roma! | |
Pensai na angustiada esperança deposta | |
por estes caídos em vós e apenas em vós | |
porque vos digo, filhos, se não lutardes | 1990 |
pelo povo honroso atrás destes muros | |
como se fossem vossos pais e famílias, | |
leixai las armas antes mesmo da luta | |
e poupai da vergonha a vossa vida infame: | |
Guerreiros mais credores desta vitória | 1995 |
dividirão elor sangue amargo conosco! – | |
O ataque irrompeu interrompendo junções. | |
Totila porém no seu avanço exaltado | |
mirou surpreso a ressurreição da muralha | |
e de escudos humanos que ali se puseram | 2000 |
100
desrespeitando as ameaças da morte. | |
Acumalavam-se corpos de nome indistinto | |
perante os muros: Sob assalto incessante | |
lanceiros cercados derrubavam cavalos, | |
escudos repelindo a clava dos godos. | 2005 |
Trocavam turno combatentes nas portas | |
aliviando feridos, mantendo esperanças | |
e os novos braços avançavam na linha | |
spada contra espada, broquéis de bravura. | |
Muita vez um soldado caiu atingido | 2010 |
e prevendo mortem deslocou-se, calado, | |
para que o corpo derrotado em batalha | |
não perturbasse o pelejar dum guerreiro. | |
A imagem do fim, despojo inadequado | |
tomando espaço à virtude, não molestasse | 2015 |
um sacrifício maior que a vida exige: | |
a morte oculta, não porém sem memória. | |
Mas outros num movimento mais embalante | |
lançarom-se repentinos contra inimigos, | |
e enquanto os invasores alçavam a lança | 2020 |
101
tremenda e míssil derrubador de gigantes | |
a espada atravessava rasgando as entranhas, | |
tolhendo o golpe. Forom vistos valentes | |
de Belisário tendo um braço arrancado | |
enquanto l’outro arremessava uma clava | 2025 |
certeira contra a cabeça dum desprovudo. | |
Os semimortos no chão perfuravam cavalos | |
e os corredores incautos caíam atônitos. | |
Do céu desciam vorazes corvos e abutres | |
e disputando a carne coas águias lutavam | 2030 |
a guerra dentro da guerra, ébrias de sangue. | |
Quando porém lo arqueiro subiut os muros | |
mirando facilmente a flecha à vontade, | |
Vilas, o professor maior dos lanceiros | |
tomando a Ruderico seu filho adotivo | 2035 |
correu a Totila. O dia inteiro passara | |
e já caíra a noite nas portas de Roma. | |
Totila, depois de recultos os combatentes | |
e mar de feridos ouviu la palavra de Vilas | |
que não insista no ataque! Os corajosos | 2040 |
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merecedores de morte mais proveitosa | |
seriam presa em campo aberto de flechas. | |
Fosse pois evitado um cenário penoso | |
e triste desperdício de vida e de povos. | |
Totila como um surdo manteve a campanha | 2045 |
e lo sol assitiut o segundo diem de sangue. | |
Mas Roma não se abalara! Novo utensílio | |
de guerra, durante a noite soldados cravaram | |
na terra estrepes e agudas pontas brilhavam | |
em torno de muros, parvo engenho de quedas. | 2050 |
Ai do cavalo que cavalgasse emboscadas | |
pois cavalgarom colecionando desastres! | |
Lanceiro ao chão lançado, flecha no peito, | |
fechava os olhos fitando o céu sem resposta. | |
Ainda assim lo rigor dos olhos atentos | 2055 |
muita vez enxergou Ruderico, o zeloso, | |
o braço versado derrubando os arqueiros. | |
Vilas notando agora o brio de seu filho | |
notava também Totila ciente dos feitos. | |
A morte contudo acumulava os seus ganhos | 2060 |
103
transformando o campo de guerra em planalto. | |
De noite Rigo, o warda do rei, se aproxima: | |
Era melhor escutar o conselho de Vilas! | |
Totila lívido em cólera não se impressiona, | |
trompeta de praga e percussor de impropérios | 2065 |
berrando a perda de Roma. Inopinado | |
nasceu lo raciocínio do ataque frontal, | |
e rompendo a luz de mais um diei desdito | |
Totila lançou los godos às portas de Roma. | |
Mas às portas de Roma o soldado esperava | 2070 |
mais valente de nunca e tropas impávidas | |
ora que a resistência, a força braçor | |
em repelindo revigorava os escudos | |
ca sorte das armas aumentava o moral. | |
O rei dos godos percebendo os vigores | 2075 |
mudou la meta e concentrou los soldados | |
quase todos aos pés dum única porta, | |
decerto presa fácil com menos escudos. | |
E flutuavam num mar espadar e de lanças, | |
cavalos e clavas intimidando os guardas. | 2080 |
104
Destino contudo provou correto o conselho | |
de Vilas como depois a palavra de Rigo | |
porquanto um fato ominoso se deu repentino: | |
Num lance agitado veio ao chão co cavalo | |
o grande porta-bandeira do rei, atingido | 2085 |
ao mesmo tempo por flecha e lança: Morreu! | |
Quando enfim circulou pelas tropas a nova | |
que el estandarte do rei, a briosa bandeira | |
caíra ao chão pisada por patas equéstribos, | |
lábaro violado por barro e por sangue, | 2090 |
houve medo e tumulto no exército godo. | |
Vilas e Rigo e todos os grandes dum povo | |
correrom ao rei: – Termina agora o combate! – | |
Logo Totila recebendo em mãos o estandartem | |
dourado e recuperado e contudo ultrajado | 2095 |
mandou soar a trombeta do fim da batalha, | |
batendo em retirada co grosso dos homens. | |
E o povo de Roma vendo um novu milagre | |
ergueu las mãos aos céus e beijou Belisário, | |
enquanto os combatentes trocavam abraços | 2100 |
105
e lágrimas e sentimentos mistos, cansados, | |
contando façanhas ganhas e amigos idos. | |
Coubera ao General caído em desgraça | |
porém fiel al Império, patrono de Roma, | |
colher em Roma dum última vez a vitória | 2105 |
antes de retornar sem recurso a Bizâncio. | |
Leixava a Roma assim esperança e soldados | |
que não se atrevesse um outro rei poderoso, | |
jamais, a despovoar a matrona dos povos. |
Totila |
π | |
| |
Qual non foi naquela noite o peso do peito | 2110 |
quando o rei deitou lo seu ero por terra. | |
Fora derrubada a bandeira, fora ultrajada! | |
Era em vão Totila abraçar o trapo no escado | |
como se angústia diluísse das horas memória. | |
Cedo aproximarom-se Rigo, Vilas e estoas: | 2115 |
Era preciso dizer alguma palavra aos soldados | |
pois o viço inconstante os abatera calados. | |
Iam leixando pelo chão os olhos e as armas | |
antes fortes, ora ansiosos e tristes e amargos. | |
Ora espalhou-se no coro desanimado das almas | 2120 |
106
nova crença: Totila os conduzira à derrota! | |
E os cabisbaixos recusavam dever e hesitavam. | |
Mas o rei avançando e vencendo o próprio receio | |
reza ao rol de gadrãos entristos: – Corja ingrator, | |
em qual escola infeliz aprendestes ofício de guerra? | 2125 |
Não sabeis que o sangue irmana derrota e vitória? | |
Pois a vida è esta, werreiros, a vida è vitória | |
como a vida è derrota e cada dia um destino. | |
Fui esculto o rei de meu povo e não hesitei, | |
tomei às mãos o meu ero testemunha de méritos | 2130 |
mas jamais prometi a ninguém ca ninguém enganei: | |
Vitória vem de Deus e Deus desdenha de méritos! | |
Quantas vezes se viu lo robusto cair do cavalo, | |
quantas vezes caídos colecionando façanhas? | |
Não perdeumo-lo ataque por covardia ou fraqueza | 2135 |
pois non foi um tolo que a vós se impôs no prélio, | |
foi o maior general de Roma e perito em contenda! | |
Mas, soldados, não nos venceu por sermos menores, | |
antes contrariou la prudência, a razão, a decência | |
vindo a lançar soldados seus à clemência da sorte! | 2140 |
107
Eiþan! A sorte apenas, não Belisário venceu-nos. | |
Ora, bastando um foco de resistência na estrada | |
já teriam perdudo a meta, as vitórias e as vidas. | |
Mas a estrada, meu povo, a estrada estava vazia | |
pois um outra estrada assistia a vossa coragem, | 2145 |
um outra estrada testemunhava o mérito vosso! | |
Não vos esqueçais do bem que vos torna maiores: | |
Não a sorte e sim a virtude vos trouxe vitórias! | |
Quando o ganho è maior será vergonha uma perda? | |
Peço e peço não por mim, è por Gus o que peço: | 2150 |
Não erguestes tanta vegada os braços aos céus | |
agradecendo a Deus por proezas? Não afirmastes | |
tanto que vezes a força foi menor que o milagre? | |
Eire Deus dispôs que as mãos de Roma vencessem | |
mas se tanta vez foi Deus que vos fez vencedores, | 2155 |
basta uma perda e vos esqueceis de quem ajuda? | |
Eu, guerreiros, confio sobretudo nos méritos | |
mas eo sei que sem Deus nõ há vitória no mundo. | |
Peço apenas que não vos revistais de tristeza, | |
não demais, a fim de que baste o combate perdudo e | 2160 |
108
não percais também respeito por Gus! – E calarom. | |
Vinha porém de Totila a voz maior da tristeza | |
gritando inaudível a dor dum coração alquebrado. | |
Home viu lo froia vagar e cavalgar pelos ermos | |
como falando a sós e sussurrando a fantasmas. | 2165 |
Pouco importava o rumor de reconquistas menores. | |
Outras vezes lançava olhar piedoso aos soldados | |
godos e balançava a cabeça, a cabeça nas mãos. | |
Mirava e tinha inveja dos animais e das coisas: | |
Era decerto o cavalo o seu amigo impossível. | 2170 |
Ora fitavant um al outro, ambos os seres | |
como se conversassem, tão vizinhos e surdos | |
um al outro; afeto estranho irmana os estranhos. | |
Indassim o rei olhando os olhos do equestre | |
certo emulava tanta casta essência e bondade: | 2175 |
Era cavalo seu de desde o tempo da infância. | |
Como os homens corria pela terra e lutava | |
mas estava ali no herói menor o guerreiro | |
mais fiel: o sacrifício daquele indivíduo | |
fora sempre puro, coitado, sempre inocente. | 2180 |
109
Não sabia a causa da guerra e sofria sem causa | |
não porém sem aquela secreta amizade dos bichos. | |
Quão injusta amizade, pensava Totila sisudo: | |
Ora o cavalo leixava a liberdade dos campos | |
u corria outrora e contemplava o seu mundo | 2185 |
para servir o amigo mau na batalha da morte. | |
Certo merecia um destino melhor o consorte | |
mudo e confiante de tanta coita e maldade. | |
Era insuportável ao ver um cavalo caído | |
olhar os olhos do bicho agonizante e varado. | 2190 |
Sempre havia nos movimentos loucos del íris, | |
sempre a dor sem resposta e desespero do escravo | |
como clamando ao fado: Que fizerom de mim? | |
De mim, que apenas cavalgava livre nos pastos | |
sem cobiça e sem ódio, que fizerom de mim? | 2195 |
Mas assim pensando o rei se nembrava dos godos | |
como do povo romano lançados ao meio do sangue. | |
Era decerto Deus que o punia coa perda de Roma: | |
Fora maltratada demais uma grei desarmada! | |
Nesse merencório momento Rigo avançou-se, | 2200 |
110
warda leal: – Amigo, qual tortura te assoma | |
e faz um rei prudente falar a pedras e bichos? – | |
O rei demite: – Rigo, como ainda perguntas? – | |
Antes porém de prosseguindo entrou pela noite | |
quase correndo pelo campo e buscando distâncias. | 2205 |
Não se importava co vento castigando-li o rosto | |
nem o frio li importava, apenas corria sem rumo. | |
Mas o frião lo seguia mantendo às custas o passo | |
mais e mais ansioso e temendo perdê-lo de vista, | |
inda clamando: – Totila! – Mas Totila deitou-se | 2210 |
sobre um vasto feixe de feno mirando as estrelas | |
como se procurando resposta e tesouro intocado: | |
– Rigo! O mal que as minhas mãos toerom a Roma | |
não se tói! – Balbuciava as palavras perdendo. | |
Rigo entendeu. E reatou, ponderando na calma: | 2215 |
– Não te faltara outrora o meu conselho de amigo. | |
Muito sangue eo derramai e perdi pelos nossos | |
e muita luta ingrata eo lutei ca sei do que digo. | |
Mas senhor, por amor dum povo inteiro que abraças | |
dá-mi as mãos, levanta-te agora e deixa a poeira! – | 2220 |
111
O rei porém condena: – Era a mensagem de Bento! | |
Inda nembras o gau que vimos? Ganho de mundo | |
passa e Gus deitou por terra o gueso dos godos! – | |
Rigo interveio: – Nunca repitas tamanha mentira! | |
Deus jamais abandona o pobre, o fraco e tementes | 2225 |
homens como os nossos godos: Ei-lo teu povo, | |
este o povo cuja vitória o céu confiou-te! | |
Sim, e confiou-te pois conhece os teus passos, | |
sabe que em tuas mãos se ergueu la clava do greto! – | |
Mas Totila estendeu-li a mão a fim que calasse: | 2230 |
– Como te enganas, amigo, quão tristior a verdade. – | |
Rigo falou pero um rei doído irrompeu explicando: | |
– Crês de fato que Deus me pôs ao trono dos godos? | |
Ouve pois o meu mérito e julgarás com juízo: | |
Já me rendera, Rigo, eu e meu forte em Treviso | 2235 |
de muitos gumas e já selara a paz com Bizâncio | |
quando uma tira infeliz de dissidentes mi atira: | |
Toma a coroa! Em vão falei da paz contratada | |
como em vão pedi respeito ao rei que os reinava. | |
Não te ocorre mais à mente o fim de Erarico, | 2240 |
112
froia sem feito? A sua morte nasceu em Treviso, | |
Rigo, nasceu da mesma língua que cá se confessa! | |
Como não? No mesmo instante da minha recusa | |
disse a grei lustosa confabulando desgraça: | |
Mas Totila, se o rei morrer, estamos sem rei! | 2245 |
Eu contudo no afã de consolando uma gentem | |
disse-lis, ó juízo infeliz, palavra impensada: | |
Grandes, se o rei morrer, eo aceitave a coroa! | |
Pois pronunciei, meu Deus, um ordem de morte | |
e quando tive atinado co efeito da minha palavra | 2250 |
já mi trouxerom unidas num casamento de anguisa | |
como tesouro a cabeça do rei, a coroa dos godos! | |
Diz porém, meu amigo, mi diz um gueso somente: | |
Quando um reino se funda sob auspício dum crime | |
como o meu por u se encontra Deus neste reino? – | 2255 |
E Rigo transtornado coa confissão sem remédio, | |
tonto e procurando ao chão equilíbrio remoto, | |
disse apenas: – Que gesto mau, frião, engendraste! – | |
Não prosseguiu, calado e desolado e surpreso | |
ainda pensando: Tantas vezes ergui meu escudo, | 2260 |
113
Deus, na bõa fé de servindo um rei verdadeiro. | |
Ora que o rei errou, Senhor, e rei de meu povo, | |
será perdudo meu povo como è perdudo meu rei? | |
Mas Rigo tomando alguma força avisa ao amigo: | |
– Foi Teodorico o frói que me fez escudeiro... – | 2265 |
Certo Totila entendeu do sopro amargo do guarda | |
como usurpara recursos que reis maiores li deram. | |
Deram? Totila meneando envergonhado a cabeça | |
pede: – Se alguma piedade couber em teu erto, | |
Rigo, não me queiras mal per amor deste povo! – | 2270 |
Antes porém que o portador de escudos falasse | |
súbito ergueu-se o rei emaranhando-se ao campo | |
e foi sumindo em meio ao feno e correndo sozinho. | |
| |
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ρ | |
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Longe e rodeado de angústias | |
um rei deitado ao chão plangeu: | 2275 |
– Eu me perco de mim pelo fréu | |
dividindo a vala cons mortos! | |
Ai, me retorturo e mi pergunto | |
por que, no mais infame dos dias, | |
eirem tão longe iludir minha gente! | 2280 |
114
Meu povo andava livre pelo mundo, | |
sem maldade o meu povo arbedava, | |
meu povo conclamado de tão longe | |
para entrar nesta terra tão danada. | |
Veio o meu povo num gesto inocente | 2285 |
ca prometeram que el ersa era sua. | |
No furor dum desditoso instante | |
leixarom para trás o que sabiam, | |
montaro elor cavalo e zarparom, | |
levando além das esperanças | 2290 |
mães e dodras e bodes e arado. | |
Ó palavras, mentira e desengano, | |
foi per amor de Gus que Teodorico | |
morreu sem vendo o que somos ora, | |
meu povo fragadado e perseguido, | 2295 |
meu povo sem rumo e sem amigo. | |
Tantas vezes roguei dos inimigos | |
guerso e mandei-lis dizer e jurar | |
por tantas bocas: Escolhe apenas, | |
Justiniano, escolhe o diem da paz | 2300 |
115
e serei de todo o coração teu filho | |
e pai dum povo serás: Estes godos | |
seguir-te-ão a todo canto do féror | |
por onde a guerra chamar o Império! | |
Ai, estrelas, ai, aprouve a Deus | 2305 |
anamantar e castigar minha gente: | |
Mas a que estau abençoado e grato | |
eu levarei desta terra enganadora | |
a multidão dum povo inconsolado? | |
Mi mostrem por bom frial no norte | 2310 |
e no sul apontem à fuga o portu | |
em que l’home maior deste mundo | |
não encontre meu povo nem persiga! | |
Mi mostrem por caridade as estrelas! | |
Eo passo os dies mirando distâncias | 2315 |
mas l’horizonte se perde no espaço: | |
O mundo è pequeno ca sempre soube | |
e decidirom, meu povo não li cabe! | |
Sei que pela grande grei que aduzo | |
respiram vidas maiores da minha! | 2320 |
116
Sou assassino et ímpio sem nome: | |
Pune, Senhor, o meu gesto grotesco, | |
salva somente este povo que è teu! | |
Eo vejo quem eo sejo e porque sou | |
me odeio e quero gritar somente: | 2325 |
Eu me arrependo, errei, desdigo | |
o dia em que usurpei um cetro maior | |
do que as minhas mãos forom dignas. | |
Olho os meus caminhos para trás | |
e não me reencontro em meus díebos | 2330 |
ca nenhum desses dias foi correto. | |
O desgraçado instante em que fui nado | |
me persegue e me entristece e mata: | |
Eo sei que a minha vida è derrota | |
e minha morte è vontade de Dei – | 2335 |
ca não se viu ja-quando um danado | |
manter-se no die del ira e da verdade. | |
Mas antes que minha vida se entregue | |
ao inferno tormentoso que mi cabe | |
eo quero, ai, leixar frial ao povo, | 2340 |
117
ai, reparar a desgraça desta Itália. | |
Que digo porém e que mi imploro? | |
O mal que fiz será que se repara, | |
será que a morte nos devolve a vida? | |
Peço perdão de meu erto e d’alma | 2345 |
mas enquanto peço rejeito a verdade. | |
Dai-mi força, Céus, o povo me espera, | |
meu povo inocente merece a vitória! | |
Mais que perdão eo quero a bõa hora: | |
Ere possível de além algum bondoso | 2350 |
gesto e gesto frião dos homens? | |
Concede ao criminoso o bom ensejo, | |
Deus, concede menos já por mim | |
que pela guarnição desta gente: | |
Ergue por piedade o justu do chão! | 2355 |
Hei de reconstruir a ruína de Roma! | |
Se pelas estrelas dum mundo melhor | |
Teodorico me escuta então escute: | |
Abre-mi a porta daquela cidade apenas | |
uma vez e seremos dignos de Roma. | 2360 |
118
Roga pelos teus suãos desvalidos, | |
rei verdadeiro que sês de meus godos. | |
Intercede pelos que hão de calar | |
nos antros desolados desta Itália. | |
Não permitas que migo se perca | 2365 |
uma grei valerosa e maior de mim: | |
Amor de Deus vencerá meus inimigos! | |
Dai-mi força, Céus, o povo me espera, | |
o povo tão valente que me inspira: | |
Esconde do mundo as minhas lágrimas! | 2370 |
Mas aqui me vejo falando a fantasmas? | |
Ó fantasmas, ai da verdade que vedes, | |
vede, fantasmas, vede o meu coração! – | |
Totila falou entregando-se à sombra | |
e transformando as noites em mar. | 2375 |
| |
| |
ς | |
| |
Mas Ruderico explicout astuto a seu pai: | |
Durante a warda noturna fora atacado! | |
No fervor da refrega apoderou-se da clava | |
e contra quatro romanos, mancebos rudes, | |
lançou-se, derrubando os elmos intrépidos. | 2380 |
119
Terminarom aos socos. Medida a valência | |
e vendo-se os quatro desarmados de súbito, | |
houve pânico e pela noite adentro correrom. | |
O filho de Vilas, um pertinaz na batalha, | |
não se satisfez com vitória sem ganho. | 2385 |
Emaranhou-se no bosque buscando fugidos | |
e em diro golpe bateu-os, um contra quatro. | |
Mas levantarom-se atordoados da lama, | |
cada qual tateando um caminho no escuro. | |
O primeiro caiu, partido em dous pela lança | 2390 |
afiada do jovem. Os três restantes, irados, | |
vendo Ruderico sem arma e sem medo, | |
tentarom ataque, mas o golpe certeiro | |
do punho fez cair de pronto o segundo. | |
Como um leão atirando-se à fera indefesa, | 2395 |
pulou sobre o morto que a sua lança partira | |
e retirou da carcaça a lâmina em sangue, | |
sedento de mais e maior mistura de fluidos. | |
Os sitiados gradrãos, porém, no transtorno, | |
julgando a vida maior do que a causa de Roma, | 2400 |
120
ajoelharom-se, flentes, aos pés dum herói | |
pedindo clemência e sussurrando promessas: | |
– Nóis si rendji, mata não qui nòis fala, | |
tudu quiu frói quisé qui nòis faz obedeci! | |
Mar non dexa nóir morrê não, Ruderico, | 2405 |
nòis tem familh’i fi pa criá, nòis ajuda! – | |
Houve barganha, pois o filho de Vilas, | |
pero que foi lo bastante pedirem clemência | |
(pois recordava ainda o próprio destino), | |
fora excitado ao prometerem proveito: | 2410 |
Ora explicassem a proporção da vantagem! | |
Foi-lis arrancando os detalhes da jura: | |
Abrir de novo aos godos as portas de Roma! | |
Era promessa de emocionar a defuntos. | |
Como penhor, leixaront um dos gadrãos | 2415 |
sob a guarda de Ruderico, o temível, | |
enquanto os outros retornariam a Roma | |
a preparar melhor o plano – partirom! | |
Quando pois Ruderico abeirou-se de Vilas | |
levando sigo o refém, a fatal garantia, | 2420 |
121
Vilas reprehendeu: – Corrompeste soldados? – | |
Mas ouvindo melhor o caso e contexto | |
não li desagradou la coragem do filho. | |
Foi-se apressado ouvir o sereno conselho | |
dum portador de escudos e mestre da warda. | 2425 |
Antes porém que Rigo dissesse ao lanceiro | |
o novu desespero a que o rei se lançava, | |
Vilas e Ruderico e refém prorromperom | |
palavras, descrevendo em detalhe as imagens. | |
Rigo entonce num sobressalto exaltante | 2430 |
saiu pelos ermos procurando Totila, | |
seguido pelos hômibos: Totila correu-lis | |
como por acaso de encontro aos passos | |
e ouvido o longo relato deu-lis el ordem: | |
– Quero ver e ouvir o tamanho da jura! – | 2435 |
Aproximavam-se já na noite seguinte, | |
ainda feridos e atordoados da luta, | |
desertores: – Somos homes de Isáuria | |
e vimos claro, Totila, como se paga | |
um bom serviço a conterrâneos nossos! – | 2440 |
122
Nisto se referiant aos quatro que outrora | |
abriram as portas de Roma, ogano opulentos. | |
O rei, mandando vi-lo tesoureiro do reino, | |
mostrou no instante medês o talho do agrado | |
esclarecendo: – Jamais faltou recompensa | 2445 |
a serviço bem prestado e jamais faltará! | |
Se abrirdes novamente as portas de Roma | |
as vossas vidas terminareis em fartura! – | |
Assim falando, entregava joias briosas | |
prometendo mais depois de feito o serviço. | 2450 |
Pois de imediato acertou-se o momento! | |
Mas horas antes do ataque, Totila interveio | |
reunindo perante si lo grosso das tropas: | |
– Desta vegada, heróis, entraremos em Roma | |
como convém à grandeza dum povo amistoso! – | 2455 |
E deu-lis a instrução: Usar de bondade, | |
poupar os desarmados, mulheres e velhos. | |
Quando, porém, abertas as portas, entrarom | |
de noite e repentinos na antiga cidade, | |
descarregau-se nos fracos ódio sem nome, | 2460 |
123
veneno destilado por anos, e forom batudos, | |
trucidados quem lis caísse nas mãos | |
ou mesmo nos olhos: Gadrãos e destitutos, | |
homens de toda origem forom unidos | |
na mira e congregados na morte sedenta. | 2465 |
O sangue relavava as pedras e as casas | |
e as ruas se revestiam do medo da sorte. | |
Totila, porém, erguendo os olhos aos céus | |
perante o sacrifício dum povo inocente, | |
vendo talvez renegados favores de Deus, | 2470 |
agiu ligeiro: Mandou que fossem tratos | |
dous ou três de violências notórias, | |
e frente a romanos e godos forom punidos | |
de morte, antes que Roma inteira caísse. | |
O froia portanto irou: – Assim se repaga | 2475 |
quem ultraja, contra os ordens expressos, | |
o guerso dos inocentes e a vida mansor! – | |
E recolhendo-se, pasmos, à própria razão, | |
os godos deitarom temerosos a espada. | |
Assim reconquistaront a sombra de Roma. | 2480 |
| |
| |
τ | |
| |
Não durou demais o regozijo dos godos | |
pois aproximava-se já da Itália Germano! | |
Primo do Imperador e general violento | |
desde sempre vastou, impávido, bárbaros. | |
Era herdeiro imperial do trono e do cetro! | 2485 |
Cedo nomeado mestre do exército em Trácia, | |
cedo impôs um golpe irado às armis eslavas. | |
Foi Germano que, como de intervenção divina, | |
frente a milháribos repelira o rol de invasores | |
pouco longe das portas magistrais de Bizâncio. | 2490 |
Foi ataque de monstros raro lido em relatos: | |
Seres animalescos andavam leixando terror | |
em toda a terra de Ilíria. Sedentos de império | |
fácil, dividiram, na sorte dos dados, o mundo. | |
Iam, pois, levando aos ombros a morte certeira | 2495 |
rumo à casa alheia. Não lis tocava inocência. | |
Punham ao chão pontiagudas estacas de lenho | |
lá cravando o lombo de quem a vista alcançasse: | |
Eram assassinados os velhos e mães e pequenos. | |
Mentre o lenho lis adentrava fundo as entranhas | 2500 |
125
grito em sinfonia de sangue ecoava no incêndio, | |
nem as casas nem lavouras poupadas de flamas. | |
Antes entravam pela fresta procurando pertences, | |
todo valor humano ou bruto. Passada a derrama | |
eram entregues cada qual a destino arbitrário | 2505 |
(palha ao fogo e vida às espadas), eram lançados | |
contra a rocha recém-nascidos, aos pés de cavalos | |
vinha terminar o labor de pastores tranquilos. | |
Não havia em todo oriente uma terra segura, | |
medo levantava o sol do horizonte e depunha | 2510 |
toda vila e família em renitente incerteza. | |
Ora, Germano, carregando sigo falanges, | |
homens abissais e feras de todo inferno, | |
foi vencendo os invasores em cenas inglórias | |
ante as portas da capital e vãos de províncias. | 2515 |
Pois pagou-lis o dobro de escandalosas chacinas! | |
Forom dizimadas tropas num paraíso de abutres, | |
sangue e carnificina o testemunho da pena e | |
pus e maldições por u los olhos caíssem. | |
Deste modo e de modo pior a razão conhecia, | 2520 |
126
certa, por quais horripilantes estâncias vastaram | |
mãos de Germano, vencedor de invictos severo. | |
Herói temível, fora mandado às bordas da Líbia | |
para debandar, sem dó, resistência de vândalos, | |
logo reduzindo a poeira o reino de Estozas, | 2525 |
ora deserto desordenado e morada de najas. | |
Indo à Pérsia, impôs temor a leões irascíveis! | |
Viço leal, recusou concurso a conspiradôribos | |
quando houverom tentado oferecer-li a coroa. | |
Quando a rumo de Itália nova incursão ocorreu | 2530 |
de grupações vehementes cruzando o Danúbio, | |
não hesitou: Mudou de rumo e modo e contenda | |
já recrutando, além de romanos, homens alheios | |
como impetuosos lombardos, gépidas, érulos – | |
fortes, unidos no desamor do inimigo comum. | 2535 |
Lá fundarom, em vilarejo e por entre lavouras, | |
largas charcuterias de corpos a céu aberto e | |
diro albergue de redivivas aves carnívoras, | |
víboras monstruosas, de rara estirpe elápidas. | |
Não os impressionou la multidão de invasores | 2540 |
127
nem moções de iniquidade, sevícia sem nome: | |
Quis-cada-quem impôs a força máxima à firme | |
lança derribadora insaciável de equestres! | |
Forom ali descobertas destruïções de inimigos | |
inda não narradas em prestimosos cronistas. | 2545 |
Tal teor e grau de incubações vingativas, | |
tal vigor exterminou la campanha de eslavos, | |
fez do oriente o cemitério aberto dos povos. | |
Falanges vencedoras gozavam amor à vitória | |
mais visceral e desumanemente possível. | 2550 |
Ora, Germano, a cabo de similares cohortes, | |
pôs-se em cavalgada veloz a caminho da Itália! | |
Dentre trunfos terríveis que carregava consigo, | |
foi temuda por godos menos a lança certeira, | |
menos a espada e coleção maldita de arqueiros. | 2555 |
Era la esposa, sim, a força maior de Germano! | |
Filha de Amalasunta e neta de Teodorico, | |
Matasunta, forçada ao matrimônio com Vítice, | |
rei de vis, migrara junto ao monarca rendudo | |
rumo a Constantinopla, donde foi cobiçada, | 2560 |
128
logo após a desgostosa morte do cônjuge, | |
pela corte inteira e, notadamente, Germano. | |
Certo, o primo do Imperador, medindo os efeitos, | |
viu na viúva a clave para o domínio da Itália. | |
Ora, casou-se! E Matasunta, infeliz nos amores, | 2565 |
pouco pôde interpor ao cortejador influente, | |
ela, que ainda chorava a sós a desgraça da mãe | |
Amalasunta. Não esquecera insistentes promessas, | |
cartas do Imperador assegurando-li a vida. | |
Não esquecera imagens daquela amada regente | 2570 |
feita prisioneira e trucidada na jaula! | |
Sabia, como não, que a causa de Justiniano | |
era menos el honra da mãe, ardiloso pretexto, | |
menos que a reconquista a todo custo da Itália. | |
Inda assim, sem escolha, cedeut à mão de Germano. | 2575 |
Deu-li um filho! Constelação de vitória perfeita | |
já se vislumbrava, conspícua, Constantinopla: | |
Era o signo da legitimidade do Império, | |
chave-mor de união pessoal em único herdeiro. | |
Mundo irônico! Como outrora anseio esperava, | 2580 |
129
pelo casório de Amalusunta co nobre Eutarico, | |
ver unificados os godos de Itália e de Espanha! | |
Via-se agora os de Itália subjugados no Império? | |
Tais moções de pensamento turvavam as tristes | |
noites de Matasunta ao renembrar esperanças. | 2585 |
Como não? O nobre Eutarico, herdeiro do reino, | |
pai do povo e pai somente seu, falecera | |
jovem, enbranquecendo cabelos de Teodorico, | |
rei que, batudo deste e doutros males do acaso, | |
morreu sem gosto, pressentindo o fim de seu povo. | 2590 |
Não por menos, Matasunta implorava a Germano | |
quando à noite tomava-li o braço: – Tem piedade | |
desse povo de meus e não o destruas sem causa! | |
Nembra, Germano, pelo amor sem fim que mi nutres: | |
Provém de godos, também, o filho que te ofereço! – | 2595 |
Isto dito, ajoelhava-se aos pés do marido | |
grávida e sem palavra e rebeijando-li dedos. | |
Mas Germano, arrebatado em paixões e desejos | |
ante aquele raro troféu e despólio de guerra, | |
dentro ouvindo, porém, uma emoção de justiça, | 2600 |
130
disse-li enquanto as mãos a reërguiam suaves: | |
– Minha amada, l’ódio meu nõ é de tou povo, | |
são impostores os meus inimigos. Todos o sabem: | |
Pois que Germano demandare a terra da Itália, | |
quem dos godos de bõa fé dupuser suas armas | 2605 |
ere aceito como um filho fiel nos meus braços. – | |
Como porém Matasunta, inconsolável, chorasse, | |
Germano recolhia em beijo lágrimas da esposa: | |
– Ouve, minha amada velida, razão do meu sopro: | |
Junto a meu sangue o sangue teu adentra Itália! | 2610 |
Ama-me um pouco, Matasunta, crê no que digo | |
como o teu aba, teu frói e frião sem limite. | |
Não nas minhas mãos perecerá lo teu povo | |
pois em nosso filho è povo meu e de amigos. – | |
Ela porém ouvindo e meditanto intervinha: | 2615 |
– Não me enganes, senhor, ca não mereço mentira. | |
É tão pouco (ou será demais?) o que peço de ti. – | |
Mas Germano invertendo os papéis e até cenário, | |
ele medês ajoelha-se e faz a promessa solene: | |
– É por ti somente e não por mim que combato. | 2620 |
131
Tu, e somente tu, serás a rainha legítima! | |
Faço favor a teu povo em devolvendo a coroa: | |
Tomo dos impostores o nobre cetro de amigos | |
para retrazê-lo ao sangue de Teodorico! – | |
Não mentia! No amor sincero verdade se impõe. | 2625 |
Mas terá controle um home apenas, valente, | |
sobre amálgama tão brutal de tropas unidas? | |
Era difícil crer. E dentre os godos na Itália | |
rondavam casos, histórias e narrações abissais | |
de quem destrói num misto raro de ofício e prazer. | 2630 |
Medo, mas alguma esperança encontrava soldados | |
pelos sentimentos novos que a causa evocava. | |
Era de fato inimigo ou companheiro do povo? | |
Era um alarme! Totila reconheceu, num segundo, | |
toda l’astúcia, malícia que mascarava o projeto: | 2635 |
Rigo, Vilas e os conselheiros li derom razão. | |
O rei, reunindo aliados no meio do breu, ansiava: | |
– Claro está: Se Germano pusere os pés nesta terra, | |
homens, acabou-se a vida, este reino acabou-se! – | |
Desde então, buscavam convencer os soldados | 2640 |
132
como os nobres do risco iminente. Uns resistiam: | |
Como erguer as armas de guerra contra o sagrado | |
sangue de Teodorico? Era coisa impensável! | |
Foi em tal desespero de vagações solitárias | |
pela noite que o rei, confuso, viu-se abordado: | 2645 |
– Não adianta, Totila, buscar abrigo no escuro. – | |
Era Rigo! Antes que o rei porém respondesse, | |
inda envergonhado da confissão que fizera, | |
Rigo prossegue: – Jurei fidelidade a meu rei! | |
O gesto teu de outrora foi errado, Totila, | 2650 |
mas è greta a fé que puseste na mia hombridade. | |
Não te percas no teu remorso ca Roma te atende | |
mais urgentemente que nunca, o caso è grave! – | |
Que fazer, porém, se o tempo medês era imigo? | |
Rem obstante, o mestre dos escudeiros sugere: | 2655 |
– Manda emissários! – Já no die seguinte partiam | |
rumo a Germano representantes do rei e de Roma, | |
homens de todo sangue unidos na causa dos godos. | |
Fossem claros: Era oferta de paz a embaixada! | |
Ora, falassem a Matasunta se fosse preciso, | 2660 |
133
todo recurso fosse usado e todo milagre. | |
Não tornassem, contudo, sem a paz acertada: | |
paz, se fosse o caso, até nos termos do Império. | |
Quase ninguém discordava do froia. Era sabudo | |
já que a vida em si seria até de vantagem | 2665 |
quando nem a certeza havia, ali, de retendo! | |
Dias depois, seguiu-se ainda outra missiva: | |
Totila entregaria a Matasunta a coroa, | |
sob a condição de que fossem feitos súditos | |
novos os seus guerreiros, asseguradas as vidas | 2670 |
como pertences: Nulho soldado fosse punido! | |
Mas também se organizava em meio a temores | |
graves a resistência antecipando o combate. | |
Deste modo, fortificavam os muros de burgos, | |
eram mandados corredores rumo à Dalmácia | 2675 |
para saber a que ponto cavalgava o inimigo. | |
Nada garantia, porém, a chegada por terra: | |
Era preciso entender se passariam por Vêneto | |
ou zarpariam do mar, desbaratando preparos. | |
Uma vez demandando os litorais de Salones, | 2680 |
134
vila maior de Dalmácia, eram donos do acaso: | |
Basta um vento suim, em poucos dias alcança- | |
riam Piceno desembarcando perto de Ancona. | |
Era cenário forte: Em sobressalto ansiosos | |
gadrãos repetiant os exercícios de guerra. | 2685 |
Flecha, escudo, espada e sobretudo lanceiros | |
não dormiam, a todo instante esperando ataque. | |
Fato inquiëtante, Germano chegara a Salones! | |
Cada nova aurora, Totila entrevia o retorno | |
triste dos emissários seus, prenúncio de anguisa. | 2690 |
Qual non foi, porém, o estupefato e surpresa | |
quando correu dum lado ad outro do mar Superno | |
boca a boca uma fulminante notícia: Germano | |
pondo os pés na velha capital de Dalmácia, | |
mundo irônico, contraiu doença e morreu. | 2695 |
| |
| |
υ | |
| |
Totila tinha por certo: Augúrio divino | |
mudara o curso do acaso pelos godos! | |
Mandou buscar um senadorem distinto | |
de rara gente e Leôncio, junto ad outros | |
velhos da Cúria, pôs-se a caminho de Roma. | 2700 |
135
Atravessarom cavalgando estradas e corpos | |
querendo se ao fim a vida ou morte atendesse. | |
Totila os recebeut às pressas e andarom | |
passando além por construções arruinadas. | |
Os olhos pousavam atordoados por antros | 2705 |
testemunhando outrora espírito urbano. | |
Notando triste as impressões de Leôncio, | |
que vez et outra balançava a cabeça | |
e suspirava apurado, o rei li propunha: | |
– Levanta do chão, Leôncio, nossas ruínas, | 2710 |
repara por poderoso que sês o flagelo! | |
O rei que outrora ria agora lamenta | |
mas ouve: Roma já caminhava abalada | |
dês que outrora saquearom os vândalos, | |
desde o reino de Vítice o fogo tortura | 2715 |
as pedras veneráveis e o rosto do tempo. | |
Por piëdade e discernimento correto | |
não mi imputes a mim a causa, Leôncio, | |
deste mar de escombros pois te equivocas. | |
Eo conclamai-te sabendo da tua virtude, | 2720 |
136
do teu amor: o gueso de Roma è de todos. | |
Reúne reforços! De quais recursos carece | |
a ressurreição da matrona dos povos? | |
Abrirei las portas da Cúria et unidos | |
os senadores decidireis, finalmente, | 2725 |
como se apraz o renascer da Cidade. | |
Porém, se tu medês te recusas a Roma, | |
quem terá clemência do povo e das pedras? – | |
O velho senador, cabisbaixo entretanto | |
de avermelhados olhos, a voz tremulante | 2730 |
e cambaleando no passo, para um momento. | |
Retendo um rei que prosseguia na estrada | |
frente a danificadas pilastras, pondera: | |
– Rei de Roma, tantas vezes pedi piedade | |
desses escombros desolados por terra | 2735 |
nembrando: Poupa, frói, o passado inocente! | |
As pilastras arrebentadas ao meio da rua | |
forom perdudas, se aqui se permite a verdade. | |
Eram da Grécia e da Itália, eram de raro | |
mármore as obras caídas e mármore caro. | 2740 |
137
Vierom das mãos de inimitáveis artistas! | |
Mas eu, que perdi família, nome e sustento, | |
non tenho nenhum recurso, nada me sobra. | |
Enxergas mal a condição dum coitado – | |
é desilusão e desgraça o destino: | 2745 |
Outrora a minha gente ainda abarcava | |
em toda parte império, terras e servos. | |
Daí chegarom os federados e os bárbaros: | |
forom tomando a terra em toda província, | |
tanto que ogano vivo só de migalhas. | 2750 |
Eles vândalos, pero que não tomarom | |
a nossa propriedade aos pés de Cartago, | |
já non permitiam que o fruto fluísse | |
como dantes, quando vinham d’África | |
o mar, os homens e todos os provimentos, | 2755 |
quando Roma era farta. A fonte secou. | |
A fonte foi secando aos poucos, secando | |
tanto que agora è toda seca e deserto | |
e somos ora à mercê do acaso somente! | |
Erguer ruínas? Os mármores u buscar, | 2760 |
138
pagar com cujo dinheiro? Onde artesãos | |
imitadores de momumentos antigos? | |
São intentos mais custosos que o peso | |
do mundo e construções de Constantinopla: | |
Sabes do templo que Justiniano constrói | 2765 |
às custas do nosso escombro e da vida? | |
Rei de Roma! Tantas vezes pedi piedade | |
de nós e das nossas pedras maiores de nós! | |
Levanta do chão, Totila, nossas ruínas, | |
repara por poderoso que és o flagelo! | 2770 |
A vida minha è sombra, o nome è vazio: | |
No cerco, de porta em porta eo passava | |
pedindo pão e recusando a verdade. | |
Estou de fato vivo? O pão que me derom | |
veio de salvadores que outrora servos! | 2775 |
Veio de vidas mais fiéis do que honor | |
permite cogitar, e contudo eram servos. | |
Estou de fato vivo? No amor desse nome | |
que nem sequer mereço eles vão dividindo | |
migo um pão impossive, uma escassa seara. – | 2780 |
139
Mas Totila no impulso da pena reteve-o: | |
– Entendo bem, Senador, as tuas palavras? | |
Disseste mesmo que partirás da cidade | |
e não li renderás um gesto de ajuda? – | |
Atarantado, um rei mirava as estátuas, | 2785 |
baixando o rosto como se visse fantasma. | |
Considerando as vertiginosas pilastras, | |
Totila escorou-se aos galhos duma oliveira | |
por u la sombra o retrazia à verdade. | |
Leôncio, contudo, continuout o relato | 2790 |
alheio ao quadro desolador do monarca. | |
O velho dum povo a muito custo somente | |
leixou-se convencer ao cuidado romano. | |
Talvez, de fato, algum auxílio minuto | |
o tempo inspirasse, o tempo revelasse. | 2795 |
Naquela tarde porém de ocaso imaturo | |
nada mais li restava senão avisar: | |
– Se cá me quer o froia, cá me acomodo. | |
Mas o gesto maior que mi vem a juízo, | |
rei de Roma, è benefício pequeno, | 2800 |
140
pequeno o benefício, serviço pequeno: | |
Pão, Totila, pão e circo somente! – | |
| |
| |
φ | |
| |
Quando Justiniano pareceu confortado, | |
como um trovão arrasador a mors ecoau. | |
Correu alada no paço imperial e nas ruas | 2805 |
tendo à boca assustadora o trunfo: Germano! | |
Pasmo leixou cair o cetro o dono do Império | |
pelo mármore frio do pavilhão de audiências. | |
Vagava mudo de madrugada os átrios escuros | |
horas inteiras, louca aparição sem cabeça. | 2810 |
Uma circunstância em particular agravava | |
tanto luto, pois non fora a spada inimiga, | |
lança ou flecha el aniquilador de seu primo, | |
não humana: flecha sim do acaso implacável! | |
Era correto um herói morrer daquela maneira? | 2815 |
Não se encaixava o fato atroz no plano divino. | |
Forom consultos pela madrugada os profetas | |
e fez-se claro o caso: Intervenção do demônio! | |
Deus, assim pareceu, em tais desastres pune | |
a presunção de potestades e reis ociosos. | 2820 |
141
Manda a morte castigar com Satã la nociva | |
preguiça arrebatando toda a força do Império. | |
Pois agissem! Arrebentassem de vez inimigos | |
nem atendessem pior evento das mãos do diabo. | |
Vinham reunir-se ao coro irado de prestes | 2825 |
vates senatoriais de opulentos rancores. | |
Lá se congregaram desdo começo da guerra | |
donde suntuosos formavam partido influente. | |
Die e noite se acumulavam missivas, visitas | |
longas ditando a Justiniano moções e destinos. | 2830 |
Pois nõ eram meros pedintes que ali demandavam: | |
Fortes no verbo não los impressionava Bizâncio; | |
antes, conhecendo bem las próprias origens | |
punham repentinos os pés no Paço e bradavam: | |
– Age, César, tira de Roma a cambada de abutres! | 2835 |
U se viut uma eterna gente entregue a cadelos? | |
Limpa a mãe do Império da bacanal de bandidos | |
nem consintas jamais Império Romano sem Roma! – | |
Era em vão renembrar desordenadas finanças | |
e verba escassa à temerosa empresa de tropas. | 2840 |
142
Inda grassava em toda parte o medo de Pérsia | |
ca velho algoz oriental devastava inocentes. | |
Mas os senadores vociferavam sem medo: | |
– Éste persa império teu out Império Romano? | |
Inda hesitas? Não mi importa esforço nem preço! | 2845 |
Morra se assim preciso for o coveiro do mundo | |
nem se salve o derradeiro abutre na Itália: | |
Mas seja destruído enfim o domínio dos godos! – | |
Foi ali deciso, sem mais, o fato dum povo | |
nem pungentes termos de paz seriam releitos. | 2850 |
Quem contudo encarregar dum gravíssimo ofício? | |
Era a prioridade manter Belisário por perto | |
tanto pelo risco de Pérsia quanto por fama: | |
Fama demais ameaça a consistência de tronos. | |
Inda aguardava em Salones João de Vitaliano, | 2855 |
genro até de Germano, estrategista de astúcia, | |
mas li faltava o carisma condutor da vitória. | |
Indo por nomes, apenas um general erigiu-se | |
digno da perigosa empresa: Narses, o eunuco. | |
Foi chamado às pressas al átrio das audiências | 2860 |
143
onde o dono dos povos transtornado rezou-li: | |
– Narses, pende apenas de ti lo futuro de Romae. | |
És, amigo, a derradeira esperança do Império! – | |
Foi-li mastigando o plano oneroso do prélio, | |
foi-li pouco a pouco revelando os detalhes | 2865 |
vivos e tortuosos de delicadas campanhas. | |
Narses, porém, concatenando bem la extensão | |
de tal fazenda e belicosíssimos riscos recua. | |
Pede tempo. Assiste o pôr das horas calado | |
frente ao Bósporo mas adentra enfim o palácio | 2870 |
donde, reverente amigo, responde ao supremo: | |
– Desde que jovem vislumbrei la sombra do mundo, | |
César, o mundo me perseguiu, indústria de ultrajes. | |
Não se passou sem abatimento um dia, um momento. | |
Vítima grátis, fui castrado, privado e vexado. | 2875 |
Ó destino impossível, desanimada existência! | |
Quem me vê pequeno e percorrendo ruelas, | |
quem se ri dum condenado eunuco à tristeza | |
não conhece, céus (e como alguém o pudera?), | |
não conhece a dor do sentimento sem meio! | 2880 |
144
Não aprehende o mar por u lo amor naufraga: | |
Não paixão, amor! Saber que a cura do mundo | |
cabe no próprio peito e passa perto a mulher | |
amada e fonte dalgum feliz instante incabível! | |
Saber que no abraço meu floresceria uma vida, | 2885 |
alma desejada e velida, mas que naufrago | |
perto da cura e sem remédio... Ai miserável | |
pária que sou ca nimigalha val o infinito | |
dentro de mim! Meu coração è poço tapado. | |
Não abusarei, porém, os ouvidos do Império | 2890 |
co drama infindo e corriqueira vida de eunuco. | |
Peço apenas, César, imploro à vossa bondade | |
não aumenteis em vão la humilhação duma vida! | |
Antes, quando cabia esperança no meu coração, | |
rogava a Deo, ao ver passando perto uma bela, | 2895 |
morte em breve e fim da dor! Aqui me encontro, | |
ai de mim, setenta primaveras de angústia. | |
Não, Senhor, vergai soldado mais vigoroso e | |
mais carente de coita! A vossa causa è perduda | |
e sem futuro: Quem non vê la ruína da Itália? | 2900 |
145
Quem duvida que a derrocada certa me atende? | |
Basta olhar por alto os instrumentos escassos | |
dessas tropas largadas e claro está lo caso. | |
Não, Augusto, não al Itália, eo eia ao jazigo | |
donde alguma paz aguarda uma vida arrasada. | 2905 |
Sei que jamais pedi favor, diminuto que fosse, | |
antes me desloquei por Vós em cohortes e armadas. | |
Inda me tremo a renembrar revoltas no Hipódromo, | |
quando a sós e desarmado enfrentei multidões | |
no amor do vosso nome: Carreguei um tesouro e | 2910 |
prata aos ombros no afã de demovendi inimigos | |
não na Itália mas ali, nas portas do paço, | |
homens desta cidade unidos contra a cidade! | |
Pois vos salvei sem medo trono, cetro, coroa, | |
nem jamais ofendi requerendo presentes e pagas | 2915 |
para um gesto parvo e grátis, dever de lacaios. | |
Dai-mi apenas ela paz de morrer sem nembrança: | |
Quero estrebuchar a sós abraçando-me à sombra! | |
Quero entregar a Deo minh’alma em sopro modesto | |
e não na ponta da espada numa guerra perduda. – | 2920 |
146
Antes porém que prosseguisse a voz suplicante | |
foi sublata. Justiniano li emitiu de seu sólio: | |
– Nesta idade, Narses, que mi enbranquece cabelos | |
vi demais peritos em desrespeito e calúnias. | |
Mas que um homo de vida e valentia ilibada | 2925 |
fosse capaz de tão desconcertante ultraje | |
contra simesmo, Céus, inda não me nembrava. | |
Outra boca a falar de ti num desdém semelhante | |
já teria encontrado vexame ou castigo de mortis. | |
Mas nem a ti permitirei que te ofendas impune: | 2930 |
Reza assi lo dever que me rege e falo por muitos. | |
Esse comércio estranho e desonroso de eunucos | |
já mandei banir dos hemisférios do Império | |
pois a Deus nõ apraz, e nem o pode, suplício | |
como o teu: Amando e mutilado no amore! | 2935 |
Em homens de teu destino Deus porém manifesta | |
muita vez a grandeza verdadeira das almas, | |
sim, porquanto tendo menos de todo-los homens | |
a vida reta faz-te já maior do que os outros. – | |
Isto dito, Justiniano ergueu-se do grave | 2940 |
147
trono: Retirando da própria cabeça a coroa, | |
súbito estende al amigo o diadema dourado: | |
– Toma, Narses, põe sobre ti lo peso do Império | |
fardo sem par, e diz e decide o caso da Italiae! | |
Eu, porém, perdi demais as noites e as poucas | 2945 |
forças ruminando em vão lo fim desta guerra. | |
Eras tu, eunuco, na tua eunuca estranheza | |
meu consolo e derradeira esperança de gloriae. | |
Eras tu com tua dor incurável a cura! | |
Mas se tão vehemente e valentissimamente | 2950 |
já recusas ao trono a salvação de teu povo, | |
que mi vale agora a coroa? Leva contigo. – | |
Narses, tocado na sua reticência tristonha, | |
toma novam força: – O caso, Dom, è diverso: | |
Não renego o dever de servitude e de luta | 2955 |
mas convém alguma compaixão por soldados; | |
pois macar a morte sê lo preço do ganho | |
muita vez, o herói que leva al ombro a lança | |
luta não pela morte, mas luta pela vitória. | |
É preciso viver quem quer cumprir um dever! | 2960 |
148
Não chamei decente a vida que entrou numa guerra | |
vendo já perduda a vida e perduda a batalha, | |
como se combatesse na pura intenção de morrendo. | |
Não, amigo, lo herói de verdadeira valência | |
entra em guerra sempre certo de certa vitória. | 2965 |
Morto, sabe que a morte patefaz o seu ganho, | |
nunca derrota. Pois porém a razão e prudência | |
já de longe apontam constelação de desgraça, | |
que proveito nos traz um sacrifício supéfluo? | |
Ora, em tal situação se consomem as tropas | 2970 |
pela Itália, certos da morte em vão e morrendo! | |
Tanto apreço mi tendes, Dom, e quereis um idoso | |
como o que sejo a cabo de similares destinos? | |
É preciso pesar melhor o valor de soldados! | |
Homens desta terra como povos de alhures | 2975 |
lá se congregam no amor do diadema do Império! | |
Que direi, Senhor, do triste povo dos érulos, | |
grei leal que a cada noite enterra centenas? | |
Não contestam, dão à morti o que têm de melhor | |
ca já caírom mortos dous ou três de sous reis | 2980 |
149
e muitos bravos no decorrer de batalhas inúteis. | |
Não renego o dever, ao desperdício renego | |
pois se consentides verdade, verdade direi: | |
Esses recursos novos que tenho visto agregardes | |
bastam para a morte, para vitória non bastam. – | 3985 |
Inda concatenando a confusão das ideias e | |
quase constraído enfim nel imo do orgulho, | |
Justiniano pondera longamente e profere: | |
– Não por elo, Narses, perderemo-la guerra, | |
pois se fore recurso a carência recursu terás! – | 2990 |
Era agora questão de honor e amor à promessa: | |
César mandou parar a construção do seu Templo! | |
Foi esvaziado o tesouro erário do Estado e | |
verba amarga reunindo a fazenda dos anos. | |
Foi alocado o que havia e não havia de rico | 2995 |
d’ouro e grãos de pobres e sortimentos de couro | |
seco e cavalos et abundância de lanças e espadas. | |
Quem vislumbrava as movimentações em Bizâncio | |
mal atinava coa proporção de divícias e largas | |
forças, ininvenjáveis, acumuladas às pressas: | 3000 |
150
Narses enfim munido de provisões indescritas. | |
Era simples o plano do Imperador: Destruir | |
Totila! Pelo caminho, recrutar combatentes, | |
ir unir-se a João de Vitaliano em Salones | |
frente a poderosa armada co resto das muitas | 3005 |
tropas que lá Germano leixara. Pronta a partida, | |
Justiniano porém adverte, olhos nos olhos: | |
– Pus-te al ombro o sacrifício maior deste tempo | |
pois o Império parou no mero afã de prover-te! | |
Servido estás, amigo, de tais recursos que pagam | 3010 |
já, se não as vitórias, pelo menos as mortes. | |
Mas herói, se for perduda a campanha da Italiae | |
tem piedade da infâmia que abaterá meu governo, | |
pois o Império parou no mero afã de prover-te! | |
Se forem inúteis camanhas privações e renúncias | 3015 |
não retornes. Morre por lá! – E Narses partiu. |
Totila |
χ | |
| |
Totila, porém, no medês instante adentrava | |
o Circo Máximo donde a massa aguardava | |
ansiosa a corrida bigar. O ensejo festivo | |
que o próprio rei custeara marcava nova | 3020 |
151
amizade e reconciliações entre os povos: | |
Era um mínimo agrado aos desesperados. | |
Prenunciando os ludos, a pompa circense | |
marchava pela arena, plebeus e soldados. | |
Romanos e godos carregando a bandeira | 3025 |
toavam os cânticos pela parada solene. | |
Já se perdera a memória dos últimos jogos | |
a reunir multitudes, e mais memoravel- | |
mente saltava aos olhos um raro evento, | |
um caso caríssimo e sobretudo ao froia! | 3030 |
Totila plantara a semente no coração: | |
Ganhar a guerra ganhando apreço do povo; | |
curar, tratar ao menos, feridas antigas. | |
Forom restaurados alguns monumentos | |
e construções e foi proviso alimento | 3035 |
al ânimo e certo alívio, mesmo se breve. | |
Quando chegou ao fim a pompa de praxe | |
o rei ergueu-se frente à massa, propondo: | |
– Povo de Roma! Nem as pedras ignoram | |
o nome do vosso labor e da vossa tristeza. | 3040 |
152
Pequenos pagarom pelo vício dos grandes | |
um preço que não convém al homi sereno. | |
Não creais que me desloquei de distâncias | |
berando pela Itália as armas e os homens | |
para erguer o meu ero contra caídos! | 3045 |
Dês que Gus mi trouxe a coroa dos godos | |
e o fardo angustiado da guerra e do sangue, | |
julguei correto e consoante à decência | |
buscar em campo aberto os meus inimigos; | |
poupando longe das vilas a vida inocente | 3050 |
merecedora de morte honrada e tranquila. | |
Segui portanto (os homens meus testemunham!) | |
pelos ermos do Vêneto e pela Toscana, | |
segui buscando e desafiando oponentes | |
e preparando em campo aberto o meu are. | 3055 |
E no entanto os inimigos fugiam ligeiros | |
quando as ocasiões de batalha arribavam, | |
leixando o campo e transtornando sensatos! | |
Corriam querendo abrigo em cidades e gãos, | |
atrás de muralhas, cada qual da primeira | 3060 |
153
que via, para que, perdedores, morressem | |
não sozinhos, mas levando inocentes | |
sigo! Em tal valor vos medirom, Romanos, | |
que rem lis importou la vossa existência! | |
Antes aglomerarom-se atrás desses muros | 3065 |
por u la fome veio punir vossos filhos | |
mentre comiam a sós do grão que colhêreis. | |
Entristeçudos dum modo ingrato de guerra, | |
muita vez apelaumos em vão, repetindo: | |
Covardes, não vos escondais pelos burgos | 3070 |
mas vinde medir a vossa força coas nossas | |
como convém ao bom guerreiro o seu flol! | |
Mas não vierom, e bem sabemos do resto. | |
Romanos! Foi por amor da vossa firmeza | |
e vida reta que despovoei la cidade | 3075 |
e fiz trazer ao chão a muralha maldita | |
para que não custasse, mais uma vez, | |
as vossas vidas como a vida dos vossos! | |
Se dano indébito a minha ira abalada | |
causou à cidade, vão-se já reparando | 3080 |
154
estragos e mais remédios serão ministrados. – | |
Houve pausa, porquanto a voz de Totila, | |
enquanto o rei nembrava imagens, tremia | |
e os olhos seus avermelhavam-se fartos. | |
A massa silenciosa atendia entretanto | 3085 |
e lo rei, tomando fôlego novu, rezou-li: | |
– Não, Romanos, nõ é silêncio de morte | |
como este que um home de bem deseja, | |
lustando sim o riso do irmão e do amigo. | |
Mas inda vos provarei valor que vos dou | 3090 |
e ganherei por fim a fé de indecisos. | |
Agora consolai vossos filhos e ouvi-me! | |
Começa nova ordem na história de Roma: | |
Não se levanta em meu domínio clava | |
contra a mão inerme que apenas arbeda. | 3095 |
El home toma al ombro martelo out enxada | |
e vai obrar e nulhomem pune ou molesta, | |
porquanto sacrifica a vida por todos. | |
E seguet al o seu comércio de espécias, | |
provém quejandas vidas, conforto devudo. | 3100 |
155
Inda um outro deixa atrás os parentes | |
e amigos, toma às mãos as arma do reino; | |
defende firme a liberdade dos fracos. | |
Num reino meu, e vosso mais do que meu, | |
o juíz nõ esquece quem oprime o trabalho | 3105 |
pois è reino, Romanos, è reino livror! | |
O velho comércio e desgostoso de escravos | |
não condiz com respeito a Deus poderoso | |
nem se viu jamais, no reino dos godos, | |
el home bom querer guiar o seu éu | 3110 |
pero o mau senhor li tolher o direito: | |
O nome de Roma è doravante Justiça | |
e protejudos estão los braços do obreiro! | |
Se algum de vós arbeda acrãos pela terra | |
ou leva gado, siga sereno o seu rumo. | 3115 |
Porção que noutro tempo dáveis a ingratis | |
senhores dareis ao froia que a deve ao povo! | |
E não vos intimideis co’ameaças de longe | |
porquanto já non tendes libertos senhor | |
ou mestre, dono, patrão ca ninguém è cliente | 3120 |
156
senão de simesmo e senadores sois vós! | |
Pensai na liberdade que aqui vos oferto, | |
meus friãos, e julgai se quis no passado | |
acaso vos deu de melhor ou parte ou al. | |
Que Deus permita a guarnição desta Itália, | 3125 |
bondoso e generoso quem é de milagres, | |
pois além de Deus ninguém nos acode! | |
Acode? Já se maquina morte em Bizâncio, | |
Quirites, donde acorrem diários imigos | |
osores da nossa liberdade inocente. | 3130 |
São sedentos de bloa, homens comprados | |
marchando violentamente em campanhas | |
no afã de nos destruindo a todo escau! | |
Tampouco impressionam apelos prudentes. | |
Imoderados, recusam acordos e cartas | 3135 |
pois non querem guerso, desgraça procuram: | |
Virão talvez em breve às portas de Roma! | |
Quereis de pagamento ao penoso trabalho | |
justiça ainda? Ou já vos basta a derrama | |
levando embora o fruto de ingrata labuta | 3140 |
157
para o sustento de suntuosos tiranos? | |
Deixo a vós decidir em paz o partido! | |
Conjuntos venceremo-las arma da morte | |
se apenas quiserdes como já vos prometo. | |
Respeitarei lo que a vossa fé decidir! | 3145 |
Totila, como singelo signo de afeto | |
e gratidão sem fim a serenos, oferto | |
a filhos meus aquestes jogos festivos! | |
Praza a Deus que um dia algum de vós | |
me queira e perdone como bem vos quero. – | 3150 |
Houve aplauso. Houve ardor prolongado | |
e profundos brados e comoção pela prole. | |
O nome do rei dos godos soava espontâneo | |
por entre as bocas como o Frói Romanor! | |
Num gesto raro, os cujo ouvido sentira | 3155 |
levadas pela brisa palavras dum rei | |
estendiam os olhos, mãos e toda angústia | |
na direção de Totila. Speravam socorro | |
e que lis importavam, coitados, bandeiras | |
e nomes de reis? Estava clara uma coisa | 3160 |
158
somente: Era decerto um senhor generoso | |
que erguera a voz à plebi em tal gravidade | |
e tão patente arrebatamento de espírito! | |
Era de fato um tutor, escudo justor | |
e protetor perpétuo de vidas perdudas. | 3165 |
Aproximou-se porém receoso Leôncio, | |
impressionado e repetindo os apelos: | |
– Aduz verdade, rei, a tantas palavras! | |
Inclui verdade se podes, pois iludir | |
um povo generoso e crédulo e simples | 3170 |
è crime pior que impiedade na guerra. | |
Era melhor matar todo mundo de vez, | |
Totila, que prometer, mentir, enganar | |
uma gente condenada, aflita, arrasada! – | |
Passavam no embalo bigas, cavalos afoitos | 3175 |
dobrando perigosas curvas e esbeltos | |
enquanto a morte suplicava por carne. | |
Bastava a queda em velocidade voraz | |
e os éguos sem freno arrastavam o corpo | |
agonizante em desgraçados trajetos, | 3180 |
159
a biga vazia e descontrolada e tombada. | |
Muita vez, um guia de carros perdia | |
controle de rédeas e parecia ceder, | |
e pero ressurgia pleno em comando | |
quando a massa o cria morto na arena. | 3185 |
Mas quem atinava coas emoções esportivas | |
quando ainda soavam dentro do peito | |
as graves orações, a promessa de alívio? | |
Quanta vez os olhos voltarom-se ao céu | |
calados nalguma espera de paz duradoura. | 3190 |
Totila ganhara a massa. A massa contudo | |
descendo os olhos do céu mirava o chão | |
e questionava do acaso a verdade do tempo. | |
Será que algum Apolo ou Cristo Jesus | |
ainda recorda por alto o povo romano? | 3195 |
Terá piëdade enfim de quejendo destino? | |
Mas as vozes se erguerom amargas pedindo | |
a Deus amor. Assistirom, sem o saber, | |
os derradeiros jogos do circo de Roma. | |
| |
| |
ψ | |
| |
Narses, o general, passava por entre pobres | 3200 |
vilas balançando joias douradas no braço, | |
mar de prendas comovendo ambições de mancebos. | |
Como esperado, jovens de todo modo e talento | |
já largavam a vida velha juntando-se às tropas. | |
Era de confundir os olhos a grei de guerreiros | 3205 |
cada dia a crescer e desafiando contagens. | |
Quem demandava cohortes abandonando familiam | |
era menos a mágoa dos seus do que certa alegria: | |
Era pois a guerra esperança de vida bastante! | |
Mas julgout enganado quem julgou nesses homens | 3210 |
prole de desafortunados que a prata comprara. | |
Quando soau nas abissais estâncias de Trácia | |
como pelas montanhas e em litorais de Dalmácia | |
que Narses aglomerava cohortes no rumo da Itália, | |
veio ao seu encontro o povo inteiro dos érulos, | 3215 |
grêmio distinto. Irom às arma sem que soubessem | |
bem de recompensas pagas, de como e de quanto. | |
Antes lis importava apenas servir um vetusto | |
amigo e protetor e companheiro firme no prélio, | |
pois honravam, em tudo, a retidão do aliado: | 3220 |
161
Não existia Narses voltar atrás em palavras | |
como quem fala primeiro e só reflete depois. | |
Promessas vãs passavam longe da sua amargura. | |
Foi de fato um claro e raro exemplar de destinos | |
onde a frustração conduziu la vida a virtudes. | 3225 |
Pouco antes porém que demandassem Salones, | |
houve, num vilarejo perto, um certo episódio. | |
É que circulava livre um ladrão de galinhas! | |
Ágil, furtava de madrugada, na aurora e no die, | |
inda impune e despertando a raiva das tropas. | 3230 |
Pois se fez questão de ficando mais uma noite | |
para armar emboscada: Foi detento em flagrante! | |
Quando contudo o carrasco alevantara o machado | |
contro ladro, a mãe correu carregando crianças. | |
Ela ajoelhou-se em frente ao primeiro que viut | 3235 |
e derramava inquiëtante afluência de gotas: | |
– Mata Procêncio não, guerreiro, mata a mãe, | |
mata eu que foi eu que fez Procêncio ladrão, | |
mandei roubar pra nós comer ca comida acabou! | |
Sei quessa vidè vida suja de gente feia | 3240 |
162
e vida feia, mas vida fei è mió que morrer. | |
Vida fei è vida que fez mou filho viver. | |
Mata Procêncio não, coitado, que nem queria | |
viver, viveu foi só porque mandei pa roubar. | |
Ô guerreiro, Procens acabou! O pai de Procêncio | 3245 |
morreu por Belisário na Itália, Procens acabou! | |
Pode matar mas se matar matè todo mundo | |
logo que morre tudo junto e morre com gosto! – | |
Era pois a Narses que aquela mulher suplicava! | |
Quando porém ergueu lo rosto cons olhos molhados, | 3250 |
Narses amou-a como nunca se amou neste mundo. | |
Era a nembrança viva de desventuras antigas, | |
faces que o coração guardout em vão pelos anos. | |
Ó desencantos, ó, reerguer as almas que amava | |
como se fosse possível amor e afagos e beijos! | 3255 |
Mas a mulher, entendendo desdém em tal silêncio, | |
não se contentava mais e abraçava-se aos pés | |
de Narses inda suplicando, tocando-li entranhas: | |
– Manda ele soltar meu fi, coitá de Procêncio! | |
Procens è menino de coração, fez mal pa ninguém, | 3260 |
163
meu fi sò quer comida, vida e pai de verdade. | |
Ô guerreiro, non tem lugar pa Procêncio na tropa? | |
Leva Procêncio, leva, pra ser escravo e ser filho! | |
Leva, que aqui vai ser ladrão de galinha e quem sabe | |
Procêncio na guerra junto cocê vira um home de bem. | 3265 |
Mas leva embora pelo amor de Jesus porque aqui, | |
soldado, a vidè fei e non tenho nem como criar. | |
Ensina tudo o què de bom pro meu fi que meu fi | |
vão ter orgulho dele e muito! – Faltava-li a fala. | |
Mas o eunuco, amando em silêncio e sem esperança | 3270 |
como escondendo a dor dos próprios olhos, responde: | |
– Por que me tocas, mulher, e que me lavas de pranto | |
como só se toca e se chora no amor verdadeiro? | |
Inda non sabes quem eo sou e da vida que sofro? | |
Não mi dissimules e não mi beijes os dedos! | 3275 |
Choras não por mim mas pelo ladrão de galinhas. | |
I falar a teu filho, vai, teu filho te espera! | |
Pois essas lágrimas tuas se esgotarem por ele, | |
quero ver no teu rosto o desdém que convém ao meu. – | |
Narses entrou na tenda, onde, cabeça entre as mãos, | 3280 |
164
pensava, deliberando o destino de dous infratores. | |
Mas a mulher, chegando a saber a quem suplicara, | |
veio de novo ao general, trazendo Procêncio. | |
Foi contendo como podia emoções e dizendo-li: | |
– Ô senhor, mim desculpe, eu non sabia quem era, | 3285 |
eu tava atormentada, eu precisava implorar. | |
Desculpa quem non sabe nem falar nem viver! | |
Eu me arrependo do dia em que nasci, general! | |
Procêncio vai morrer mas quer pedir perdão | |
porque Procens errou sem querer, errou nascendo! – | 3290 |
Antes porém que o filho erguesse a voz remoída | |
Narses pergunta: – É de fato verdade, ladrão, | |
que a mando desta mulher furtavas grão e galinha? | |
Veio mesmo da tua mãe o comando? Responde! – | |
Mas Procêncio, pesando a consequência funesta | 3295 |
de tal confissão, gemia e balançava a cabeça. | |
Ela contudo reafirmava a verdade da culpa | |
tão vehemente e destemuda que o filho cedeu. | |
E Narses, o coração diviso no amor e na fúria, | |
disse-li: – Eu devia matar-te agora ou ao menos | 3300 |
165
cortar a tua língua destruïdora de incautos. – | |
Isto dito, fez entrar o carrasco, aduzindo: | |
– Ele fique conosco! Esses dedos do furto | |
são de bom manejo aos arcos e arqueiro será. | |
Procêncio! Ouvindo um tormentoso apelo de mãe, | 3305 |
quero levar-te embora como filho e guerreiro! | |
Quero mostrar-te o laborar que edifica uma vida | |
e pois voltares tomarás as funções de tou pai | |
que, como ouvi, caiu valente e por causa correta. – | |
Antes entretanto que a mãe li beijasse os pés, | 3310 |
o eunuco, mostrando-li a direção da rua, pedia: | |
– I-te embora e não mi digas jamais o tou nome! | |
Esconde para sempre, flor, o tou rosto de mim. – | |
| |
| |
ω | |
| |
Reconhecendo ainda o fim de Germano, | |
Totila dispunha em sobressalto gadrãos | 3315 |
e parecia contar coa bondade da sorte: | |
Escravos aliavam-se às tropas buscando | |
a vida livre e bizantinos guerreiros | |
largavam postos para unir-se a Totila, | |
migrando em massa abandonando bandeira. | 3320 |
166
E pois o rei gozasse o domínio da Itália | |
quase inteiro, cumpria cortar o sustento | |
que alimentava inimigos, tolhendo a raiz. | |
Navios de werra pelas águas de Nápoles | |
forom arrebatados chus ao norte | 3325 |
mentre navegavant incautos, súbito | |
os marinheiros arremessados de bordo. | |
Em pouco tempo os godos usavam de frota: | |
A mando do rei, zarpavam em rumo diverso | |
desafiando a fúria do mar, cobiçando | 3330 |
saques e ataques em litorais adversos. | |
Inopinados, desembarcarom na Córsega | |
para ficar, e não pouparom Sardenha. | |
Correu la nova como um alarme em Cartago | |
a comando das ilhas, incapaz de resposta. | 3335 |
Rumavam no mesmo instante agitadas galeras | |
sedentas de Grécia: Devastavam a costa | |
tomando embora opulentos envios de Bizâncio | |
como os provimentos expostos nas praias. | |
Justiniano ouvia os relatos tremendos | 3340 |
167
e balançava lento a cabeça cansada. | |
Concatenava a custo o vigor das imagens | |
deliberando em vão repentinas medidas. | |
Totila assomara uma abundância de naves | |
a dar inveja quase à gana dos vândalos. | 3345 |
Decerto Genserico, o rei das esquadras | |
que se apossaram d’África como de Roma, | |
desafiando em frota sem par o destino | |
e derradeiros dies do Império d’Oeste, | |
decerto invejaria as galeras de godos; | 3350 |
o rei, que incendiando o grosso da esquadra | |
romana em litorais espanhóis, destruiu | |
de Majoriano, lo Imperador humilhado | |
e derradeiro patrício capaz de defesa, | |
poder, esperança, nome e desejo de vida. | 3355 |
Os serviços de Genserico a Majoriano | |
Totila ansiava prestar ao dono gêntio. | |
Não hesitou! Vencendo o forte de Régio | |
zarpou sem mais na direção de Messana | |
cruzando irado o mar, arribando apressado. | 3360 |
168
Desembarcou em Sicília stilando rancor | |
e vivo afã de exaurindi o celeiro da Itália. | |
A terram percorrerom sem pena, pilhando | |
gado e grãos e o quanto os olhos mirassem. | |
Que não leixassem atrás diminuta migalha! | 3365 |
O godo acompanhava os passos e as arma | |
ditando à tropa insaciáveis derramas. | |
Iniciou pilhando somente os patrícios | |
como das vilas de Gordiano, lo Anício, | |
enquanto Gregório, filho menor, meditava | 3370 |
tristonho, bem convicto já de que vida | |
segura no mundo fora a vida dos monges | |
como a de Bento demandando cavernas – | |
Gregório que dedicout a Deus o seu sopro. | |
Mas não bastava o confiscar de patrícios. | 3375 |
Famílias remotas lamentavam caladas | |
a mão levando além animais e frumento. | |
El home de bois que duvidara tranquilo | |
do desembraque dormia agora com medo. | |
O plantador de sementes mirava a lavoura | 3380 |
169
e derribava arado chorando presságios. | |
O rei, porém, perambulando nos campos | |
veio a dar enfim no prenúncio da aurora. | |
Como num breve instante parasse a mirar, | |
ouviu das ribanceiras um berro de bodes. | 3385 |
Acompanhavam pastor que passava ansioso | |
enquanto ovelhas mudas seguiam de longe. | |
Vinha correndo de godos buscando seu gado! | |
Totila notou la inquirição dos ovinos | |
e quis: – Aonde foges, pastor, de gadrãos? – | 3390 |
El outro, contudo, sabendo a quem se avançava, | |
falou de voz temerosa e caçando palavras | |
enquanto a talha berrante cercava Totila: | |
– Perdoa, rei, a intervenção de meus bodes | |
pela minha vida e menor do que a deles. | 3395 |
Matei ninguém, roubei de ninguém dinheiro! | |
A minha vidè de andar por aí sem caminho | |
e bode veio atrás e lhi dei de comida. | |
Agora, rei, meu bode non vive sem mim | |
nem eu sem bode, què bode feito família, | 3400 |
170
filho meu que tirei da barriga da cabra. | |
Apareceu soldado caçano o meu gado! | |
Se aquele home levar embora meu bode | |
e cabra de leite, leite de cabra roubada | |
è leite amargo e boca de gente non bebe! | 3405 |
Cabra levada embora sente desgosto. | |
Deixa ficar, Totila, meu bode comigo! – | |
Ao redor amedrontadas ovelhas pastavam, | |
os olhos inteiramente voltados ao rei, | |
rebanho mastigando o pasto e fitando | 3410 |
calado, prestes à fuga desordenada: | |
Bastava um violento passo e corriam. | |
Pastor tomou de nova força e seguiut | |
enquanto os gadrãos atendiam resposta: | |
– A vida tua, Totila, è de gesto bonito | 3415 |
e bonito que nem ao meu irmão abonado. | |
Veio o soldado maltratano a menina, | |
Totila matou soldado e cuidou da menina | |
e deu dinheiro e gado e cuidou da menina! | |
Quando voltou meu irmão e contou da jornada, | 3420 |
171
o povo entendeu que o rei è bom, esse novo. | |
Agora chega o rei quiè este quiès tu | |
e vem tomar meu gado no meio do nada? | |
Ô meu Deus, explica essa coisa de novo, | |
rei què bom roubano embora meu bode! – | 3425 |
Os bodes, percebendo aflição do pastor, | |
berravam inquisitivos dum berro agitado. | |
Totila, porém, nembrando o caso longínquo, | |
mirou melhor el homem de ovinos e disse: | |
– Este home, gadrãos, retenha seu gado! | 3430 |
Ladrão, pastor, ladrão Totila non foi. | |
Explica aos conterrâneos teus de Sicília | |
que o rei sentiu la ingratidão do teu povo | |
quando alegre e de braços abertos abriut | |
os portus e as portas del ilha a Belisário, | 3435 |
sabendo que guerreava contro meu povo! | |
Desde esse tempo, carrego muito entristo | |
a nembraça dum gesto apagador de amizades | |
porque, pastor, a vida próspera vossa | |
também se deve a Teodorico, o bondoso | 3440 |
que nunca pôs a mão no pão de seus pobres. |
172
Diz aos teus, porém, que o gado que embora | |
levo non levo nem para mim: para Roma! | |
Se fosse para mim bastava o que è meu | |
e não precisava empobrecer o teu povo. | 3455 |
Vai para Roma contudo o gado e frumento | |
como sempre se fez e como è preciso. | |
Ora, ancião, as bocas e a fome de Roma | |
são ainda as bocas e a fome de Roma | |
que alimentáveis como a própria familiam | 3450 |
quando os Imperadores fartos gualdavam. | |
Serão agora inimigos quem eram irmãos? – | |
O pastor, entonce, escolhendo de bodes, | |
cedeu parcela a Roma e Totila se foi. | |
| |
| |
α’ | |
| |
Mas em Roma o rei sofreu numa triste missiva: | 3455 |
– Foi-mi negada, Rigo, a mulher que mais amei! | |
Como se não bastasse a paz, agora quem foge | |
minha vida è l’amor. Minha esperança | |
foi em vão. – Totila renembrava | |
as juras da juventude, | 3460 |
173
quando trocavam confissões | |
pelo jardim que dava ao vale. | |
Quantas noites perdera repassando | |
a cena inesquecível: O abraço | |
guardado pelos anos, o presságio do paraíso. | 3465 |
De repente o coração se transforma! | |
Décadas de ausência. Totila atendia | |
certo da promessa e do mundo. | |
Ela perdera amor? O tempo vencera? | |
Olhos molhados, o rei relia a carta, buscando | 3470 |
brechas dalguma afeição. | |
Rigo reconheceu o destino do pranto: | |
Rodelinda, inalcançável dos francos, | |
ganhara o seu coração. | |
Eram melhores, na florescência do tempo, os termos | 3475 |
entre os francos e os godos. | |
Vinham legados transportando presentes, | |
provas de duradoura amizade. | |
Viu-se a flor populoro se unir no futuro | |
como já se casara o rei coa princesa. | 3480 |
174
Mas as juras de amor | |
iludirom amantes. | |
Bem pensando, o rei não se assustava: | |
Causas diversas moviam os francos. | |
Volúveis, no meio da luta mudavam partido, | 3485 |
ora um acordo aqui, ora uma jura ali. | |
Não se contentando co norte, | |
vinham lustando a Gália visigótica. | |
Era agora o mar somente a ponte dos povos | |
entre os reinos godos. | 3490 |
Foi difice amansar maiores cobiças. | |
Quando a guerra eclodiu, fecharom acordo | |
dum lado como doutro, buscando vantagem | |
como terra na Itália. Prevendo o perigo, | |
Vítice deu embora a costa da Gália, | 3495 |
Marselha, e nem por isto forom detentos: | |
Já pintavam na mente mais conquistas. | |
Irom tomando o norte da Itália | |
pelos Alpes, entrando soltos no Vêneto. | |
Totila e Justiniano miravam as incursões, | 3500 |
175
reclamando a si lo domínio da terra | |
mas incapazes de agir: | |
Era imperioso manter os francos | |
se não aliados ao menos neutros! | |
Num quesito, porém, Totila teve êxito: | 3505 |
Que os francos retivessem as terras no Vêneto | |
para ficarem neutros ata lo fim da guerra. | |
Home acertasse depois o novu acordo. | |
Mas Totila atinava coa triste | |
carta do rei negando a filha. | 3510 |
Rei, dizia, Totila nunca foi: | |
Nem o reconheceu lo Imperador em Bizâncio | |
nem Totila, tomando Roma, pôde mantê-la, | |
visto que Belisário reconquistou. | |
Era difícil crer na frieza das frases. | 3515 |
Uma flama, ao menos, Totila reteve: | |
Talvez a sua amada sofresse também, | |
talvez se recordasse da sombra do abraço, | |
talvez não consetisse a dureza do pai. | |
Mas nõ há certeza em palavras, | 3520 |
176
só lo amor impossive è que sabe. | |
Totila conclui tomando fôlego: | |
– Era desses francos, Rigo, a promessa da vida. | |
Deles eu esperava a paz, o amor, a concórdia, | |
deles apenas! E são agora o concurso do nada. – | 3525 |
| |
| |
β’ | |
| |
Contudo um outra carta abordou, navegando | |
da Itália e caçando João, cabeça de tropas: | |
“Valeriano, a comando em Ravena, saúda. | |
Estás a pensar que ventre vive de vento? | |
Rezei em vão a todos homens do Império | 3530 |
a fome, o cerco, a provação de Ravena? | |
Ancona está cercada, el único porto | |
ainda para o socorro do mar e frumento. | |
Os homens ende se Ancona cair cairemos! | |
Somo-los últimos. Pois então, se morrermos | 3535 |
já podeis preparar o sepulcro de Narses. | |
Se houvesse força seria longo o relato, | |
contudo força só quem come è que tem. | |
Estamos cercados e sitiados, cadeias | |
impedem nossos pés e lacuna no estômago. | 3540 |
177
Por amor de Jesus compassivo ou de Apolo, | |
novo deus ou de velhos – ajuda-nos, home! | |
Zarpa agora coas naves e os teus de Salones | |
ou põe às mãos do soldado, em vez da espada, | |
somente a pá que aos abandonados enterra.” | 3545 |
João de Vitaliano, balançando a cabeça | |
e mirando longe o mar, pondera o dilema. | |
Não guardava ainda, nas mãos e no peito, | |
a carta imperativa e missão de Bizâncio? | |
Não te movas! Atende Narses e segue-o! | 3550 |
Vinham de Justiniano as ordens escritas! | |
Chegara pois o momento, num lance infeliz, | |
dum desdenhoso gesto e menor del honor? | |
João lo sabia: Na vida sem erro a decência | |
impera rogar, de a quem se deve, anuência. | 3555 |
Mas o tempo escasso interpunha-se ao caso: | |
Mandando al Imperador apressada missiva, a | |
resposta levava semanas. A morte iminente | |
espera menos. Quem diria, João ruminava, | |
o amargo dom que li preparava o destino! | 3560 |
178
Vivendo leal, desrespeitar lealdade: | |
O futuro de Ancona e juramento a Bizâncio | |
surgiam, gladiantes, na arena da morte. | |
Ele, a quem notáveis em nada notavam, | |
quantas mágoas de Belisário guardava, | 3565 |
quantas de Narses quando em meio a batalhas | |
a voz de generais abafava os conselhos? | |
Ele, que tanto ansiava a sós o comando | |
que enfim li vissem bom valor e destreza; | |
a sós entendia em desencanto o seu fato, | 3570 |
e como ansiou, além, o concurso d’al! | |
Ali se calou, porém, na escolha dos males, | |
curvado ao peso do dessaber e das horas. | |
Mas não havia ensejo a delonga e lamentos | |
ante a lição do acaso e destino incautoro. | 3575 |
João, num surto inordenado e na pressa, | |
conclama, ordena e grita à massa: – Prepara | |
navios! – E sem sabendo futuro e jornada, | |
tropas embarcam de súbito naves adentro, | |
João escolhendo a dedo heróis de valor. | 3580 |
179
Zarpou! Ao bafo de frientíssimos ventos | |
e mar violento, cruzou na tempestade | |
em virações tenebrosas garganta adriática. | |
Trinta e oito navios avançarom impávidos. | |
O remo que a mão impôs à boca das ondas | 3585 |
não se quebrou: Por breve instante a vida | |
venceu – o vaso frágil – a fúria do eterno. | |
Passarom fortes, humilhando nos braços | |
a força de temporais e l’orgulho do mar. | |
Exaustos, não porém vençudos, pisarom, | 3590 |
atrás de escuridões flutuantes, o margem, | |
vistando nas nuvens o sitiado penhasco | |
donde se erguia firme o forte de Ancona. | |
Desembarcavam prevendo pois o inglório | |
tamanho da luta, João apontando claro | 3595 |
a sorte. Em terra e mar, o frio hibernal | |
mesclava-se al arrepio e temores das almas | |
subiam, em contemplando o perigo da morte, | |
alturas maiores que a ribanceira cercada. | |
João mirava mãos e as mãos de seus homens | 3600 |
180
titubeavam perante o prospecto da treva. | |
Qual non foi contudo o suspiro de susto | |
quando do fim de angustiantes praias | |
surgiu, em derradeiras brumas, moção | |
de horizonte, véu, revelando do incerto | 3605 |
a bandeira inabalada de Roma e broquéis | |
de guerreiros: Valeriano e Ravena abordavam! | |
Ossada ambulante, um general concorria | |
a João, derramando dos olhos o seu alívio. | |
João, porém, percebeu la causa da empresa: | 3610 |
Valeriano o julgara guerreiro sem honra | |
como os homens vis que, vendo o companha | |
clamando, passarom reto. Não esperava | |
encontrar naquela costa navios de Salones: | |
Se confiasse, teria ficado em Ravena! | 3615 |
Astuto! Pedira ajuda alegando fraqueza | |
e pero aparecia em pessoa ao combate? | |
O caso e diversos outros João ruminava | |
do quão pequeno apreço amigos li davam. | |
Valeriano, enfim, entrevendo a tristeza, | 3620 |
181
envergonhou-se um pouco da própria alegria: | |
– Perdoa de mim, João, um juízo incorreto! | |
Começo a ver, conquanto tarde, o tamanho | |
das tuas palavras e tua verdade me humilha. | |
Agora sei, guerreiro, quem sês e quem foires! – | 3625 |
Agora? João, vislumbrando o perder-se do mar | |
um segundo, baixou a fundo os olhos na areia: | |
– Traí, general, o Imperador em Bizâncio, | |
perdi meu honor no socorrer de teus homens. – | |
Valeriano, mordudo por dentro, entendeu | 3630 |
melhor o candor e a raridade dum homem | |
a quem jamais convém hesitar confiança. | |
Erguendo a voz contrita responde: – João, | |
juntei meus homens para que todos vissem | |
em ti la grandeza dum gesto firme e correto, | 3635 |
homens nossos, antes teus do que meus. | |
Marchei, João, somente para entregá-los | |
a quem merece mais do que eu la vitória: | |
Traíste não, a ninguém, ganhaste valor! | |
Aceita, somente, o sacrifício pequeno | 3640 |
182
dum grato e vou-me embora a sós a Ravena. – | |
João num gesto súbito roga-li: – Fica, | |
guerreiro! È generoso o pendão da vitória, | |
paira sereno et abriga o nome de muitos. – | |
Num momento amargor e remorso abraçarom-se. | 3645 |
Mas não havia tempo a maiores palavras | |
que já chegava de longe a notícia: Totila | |
mandara, sabendo do desembarque arrojado, | |
possante armada em quarenta e sete navios! | |
Chamando cedo os conselheiros do reino | 3650 |
o reinante explicara: – Basta Ravena cair | |
e teremos toda Itália. A guerra termina | |
se Ancona se rende, por onde cópia perene | |
de provimentos adentra sustendo inimigos. – | |
Quando contudo expôs o plano em detalhes | 3655 |
de como a frota avançasse buscando batalha, | |
erguerom-se vozes: – Totila! Werra de mar | |
e guerra d’água difere do prélio de terra, | |
manejo bom de barcas arte de expertos. | |
Sucesso impera o bom governo de remos! – | 3660 |
183
Assim falara Vilas, e Rigo assentira | |
cons outros. O rei retrucava alarmado: | |
– Mas duvidais, estoas, do extremo do caso? | |
E qual escolha teremos senão de coragem? | |
Nenhum auxílio de terra reforça o gadrão: | 3665 |
Importa-nos ora bater no mar o perigo! – | |
Os homens grandes vislumbravam os anos | |
ansiando aquela destreza d’água dos vândalos, | |
como outrora em pouca frota apossaram | |
o mar e do mar a cidade de Roma e milhares. | 3670 |
O sangue irmão dos godos, comum germanor, | |
decerto fervia como nos vândalos antes | |
robusto e prometendo proeza nas ondas. | |
O rei, atenuados os grandes, adverte: | |
– Tenhamos sorte e sorte esteja conosco! | 3675 |
Se o forte de Ancona resistir à bravura | |
do assalto, amigos, nada mais interrompe | |
os pés de Narses, fecho incerto do tempo. – | |
Irom zarpando afoitas de toda a costa | |
galeras largas. Carregadas de guerra, | 3680 |
184
bandarom-se embora em perdições adriáticas | |
u remavam depressa a destino sem medo. | |
E flutuando o mar como o fogo do inferno, | |
sofriam no corpo os elementos em fúria. | |
Ao cabo da grande armada estavam capazes | 3685 |
dominadores de remo. Provindos do Império, | |
buscavam do novo rei la paga e prestígio | |
que longe Bizâncio negara. Traziam consigo | |
perícia de naves e perspicácia de ardis. | |
Arqueiros eleitos se exercitavam na popa | 3690 |
e na proa, donde afiavam flechas, e cópia | |
de lanças passava pelas mãos de gardrãos, | |
notadamente dum jovem: Tenaz, Ruderico | |
desdo começo pediu a seu pai, insistiu | |
em seguir e mostrar, aos inimigos de além, | 3695 |
o temor da sua lança e valor de seu nome. | |
Não se menospreze o poder do arremesso! | |
E contros avisos insistentes de Vilas | |
nembrando que mar carece mais de arqueria, | |
embora embarcou desafiando incertezas. | 3700 |
185
Quando detrás dos horizontes de Ancona | |
e de brumas despontarom navios apressados, | |
João e los marinheiros zarparom. Da nave | |
o general de Salones orou-lis: – Guardai | |
no peito, soldados, o nome desta jornada, | 3705 |
porquanto dela apenas depende o futuro | |
do Império, Roma e vossas vidas. Coragem | |
mostrade e valor e bom manejo de flechas, | |
porque demais ensejos a vida vos nega: | |
Se aquela frota vencer, o destino acabou! | 3710 |
As armas que ao vosso braço tiverem abrigo | |
usai com destreza e como pel última vez, | |
porquanto além, varões, amanhana è milagre! – | |
Entrarom pois a bruma do além, inimigos | |
remando de encontro. Não porém hesitarom | 3715 |
quando pronto irromperom perto as galeras. | |
Resposta de guerra, a tempestade de setas | |
cruzava do abismo al horizonte os vazios, | |
e mãos de Romanos largando flecha d’arco | |
caçavam pelo véu a cabeça de incautos. | 3720 |
186
Puxado o míssil co viço maior do braço, | |
ao feroz na mira milagre algum socorria | |
contudo caía, cravada a perda no peito | |
e carregado em vermelhantes ondas embora. | |
Os godos, então, aproximando as barcas | 3725 |
e as naves atracando, lançavam os corpos | |
contra os corpos, atacando com clavas, | |
saltando e penetrando a popa de hostis | |
por onde arremessavam lança e cortavam | |
co gume a carne, amedrontando os audazes. | 3730 |
Julgarom já maior a coragem que a vida. | |
Cantout errado cujo canto de guerra | |
bradou vitória cedo e tarde a verdade, | |
porquanto longe e destemudo assomava, | |
do braço de Ruderico, a lança certeira. | 3735 |
Desafiando arqueiros, o filho de Vilas | |
coa mera força da mão catava dos ares | |
pujante pontiagudos projéteis, impondo | |
a palma como escudo frustrante de setas. | |
O peito exposto e provocando invejoso | 3740 |
187
destino, bom lanceiro tomava da proa | |
as armas em cuidadoso arsenal, coletas | |
por anos setas que todo dia afiava. | |
Alimentava a sangrenta sede dos fios | |
de gumes et haste, cinco pés de madeira. | 3745 |
Troféu tremendo, rumava a lança de ponta | |
a ponta banhada em sangue de vísceras | |
quando atravessando o corpo varava | |
além, buscando vidas outras no incerto. | |
O brado, o mar e a morte pouco importavam | 3750 |
e pouco impressionavam afoitos ataques, | |
o herói da lança cercado e gerindo vitória. | |
Ereito o braço, o jovem lançava arremessos | |
que em repetidos golpes cortavam escudos, | |
quebrando a sós o peito armado de intrépidos. | 3755 |
Tamanha força li propulsava de entranhas | |
que vezes a fúria da lança levava consigo | |
a longe troncos, cravando no fundo do mar. | |
E quanto mais pelejavam contra a perícia | |
de Ruderico em tanto mais perecessem, | 3760 |
188
porquanto o braço contro qual se lançavam | |
braço inquebrantável no amor de seu povo. | |
A frota pois de João aturdida, vitória | |
surgia descendendo do sonho à verdade, | |
nutridos ora godos, o viço em coragem | 3765 |
de luta vastando pelo mar e quebrando. | |
De pouco vale entretanto d’armas valência | |
quando acaso se opõe, inimigo de esforços. | |
Ora, Fortuna, invejando a vitória do forte, | |
beirando o ventu que ali passava raivoso | 3770 |
ordena ao elemento: “Confunde esses homens!” | |
Súbito o caos se alastra em góticas frotas, | |
desordem desbaratando o governo de remos. | |
Enquanto o bom lanceiro atirava petrechos, | |
o engano flutuante levava exaltadas | 3775 |
galeras a rumo invocador de desgraça. | |
Ilusas, ora se aproximavam demais | |
atrapalhando caminhos umas das outras, | |
conglomeradas naus e naus atracadas, | |
ora no afã de desvencilhar-se contudo | 3780 |
189
demais se afastavam perdendo contato. | |
Assim unidos no caos e de todo isolados | |
bradavam-se apenas antagônicas ordens | |
e não lutavam, Romanos tomando proveito | |
e arrebatando embora as barcas e as vidas. | 3785 |
Industriosos na espreita, pronto cercavam | |
galera à deriva, saltando a bordo e matando. | |
Cruzando grupos de duas vel três atracadas | |
naves de godos, aproximavam-se arqueiros | |
enquanto incautos debatiam aos gritos | 3790 |
governo de rumo, e miradas as flechas | |
o peito alvejado frente ao mar tropeçava, | |
desgovernadas feridas, carcaças tragadas. | |
Em vão a barca assaltada lançava de bordo | |
as armas, ajoelhados rogando clemência, | 3795 |
rendudos todos e todos porém degolados. | |
Caíra a noite e desesperadas galeras | |
cuidavam fuga apenas, remando sem rumo | |
e cada qual por si dispersa, perdudas | |
no medo e vagas pela gartanta adriática. | 3800 |
190
Pobre a nau que se deparasse no azar | |
pequena ou grã perante naves em fúria, | |
assomo das ondas como se pouco bastasse. | |
João general, reconhecendo a verdade | |
no escuro, atribuindo pois uma estranha | 3805 |
vitória ao acaso, conclamou marinheiros | |
e desdenhando, cônscio de si, galardões | |
de corriqueira fama e troféus, navegou | |
embora a Salones, o coração humilhado: | |
Ora, em certa altura perdera a batalha. | 3810 |
Assim pensando e ruminando por brumas, | |
rumava além com vitoriosos incautos | |
e preparava desde pronto pungente | |
missiva, rogando a Justiniano perdão | |
por gesto intempestivo, dever arriscado. | 3815 |
Em meio à tormenta navagavam os poucos | |
godos que, sobrevivendo por certo milagre, | |
buscavam nas ondas a direção duma costa. | |
E Ruderico, lançado em fúria de bordo, | |
tomara da tábua e flutuava em distâncias, | 3820 |
191
oculto na treva em perdições impossíveis. | |
Decerto Netuno ali vingava ultrajado | |
honor divino que um povo inteiro traíra | |
quando, inopinado e deitando por terra | |
antigos ídolos, novu deus e de longe | 3825 |
tomou por seu contrariando avoengos. | |
Assim coligado à rancorosa fortuna, | |
soprava assustadoras vagas e abismos | |
tragavam as desesperações dum guerreiro, | |
porquanto o filho de Vilas, longe lançando | 3830 |
embora as armas ora inúteis, pregava-se | |
ao carcomudo escombro que acaso li dera. | |
Acaso, porém, erguendo altíssimas crestas | |
altíssimo alçava quase às nuvens o náufrago | |
e súbito, o mar cessante, abismo se abria | 3835 |
por onde em vertigem Ruderico varava | |
em queda livre. Muita vez a madeira | |
perdeu-se fraca daquelas mãos e da vista | |
e Ruderico nadando e buscando e clamando | |
tomava como do nada e que quase afundava | 3840 |
192
o pedaço de tábua, pau que o deus maldizia. | |
A voz, abafada no vão das vagas mas alta, | |
bradava tragando fúria, ventu e rajadas: | |
– Cresci na fé de Cristo, remo de náufragos! | |
Não morri de guerra mas morro de mar? | 3845 |
Em tantos feitos eu buscai de meu erto, | |
Jesus, os dons daquele gesto correto | |
e sacrifício pelos godos que abraço! | |
Quanto mais façanhas meu braço toía | |
menos lusto o meu coração lis gozava. | 3850 |
Mas antes, mar, de aqui beberes a vida, | |
permite ao destituto uma vida melhor! | |
Que me vale esta mão que abateu inimigos? | |
Conheço bem a causa do fim que me espera: | |
Desde que ousei num desgraçado momento | 3855 |
erguer-te, mão infeliz, diante do greto | |
que frente a meu juiz adotou-me por filho, | |
desde então notei lo teor do teu crime, | |
mal que nem com pena de morte reparo. | |
Coitado de mim ca mal percebo quem sejo: | 3860 |
193
Vivo por graça e sigo querendo coragem | |
de vida e vida merecedora de vênia. | |
Contudo a cada passo esta vida revela | |
o tamanho do erro, a vergonhosa verdade. | |
Andei ganhando guerras? Não, me perdi | 3865 |
num crime sem nome e vi, entendi, percebi | |
que minha vida è pequena e vida pequena | |
não compete ao verdadeiro guerreiro. – | |
Assim chorando a Deus e rogando impossível | |
passava o filho de Vilas o abismo de crestas. | 3870 |
Desembarcarom os poucos que a sorte trouxera | |
em colisão a rochedos e a bancos de areia, | |
nadando como andando e distante do porto. | |
Corriam na madrugada em demandando socorro, | |
restantes da formidável armada que a fúria | 3875 |
e muita inveja do acaso soprara à ruína. | |
Ela derrota de mar quebrou-lis espírito. | |
Partirom, pois, confusos no meio da noite, | |
levando a Totila a desastrosa notícia. | |
E longe de praias, escuridões carregavam | 3880 |
a triste tábua de Ruderico à deriva. | |
| |
| |
γ’ | |
| |
Narses porém marchava longe daqueles eventos, | |
tendo em mente o novu filho, a mãe que assombrava | |
firme ainda na imagem, die e noite, a memória. | |
Gradualmente, o peito li arfava mais vigoroso | 3885 |
quando se comentava o bem de Procêncio nos arcos. | |
Era uma rara destreza calando a boca dos mestres. | |
Narses não poupova esforços: Procêncio crescia, | |
manejava os seus petrechos e muito aprendia: | |
– Cuida bem do menino! – Narses repetia | 3890 |
vendo ali, no mancebo, novu sentido à vida. | |
Pois o ladrão galinar, refletindo a bondade, | |
ora se dedicava coa vida inteira ao manejo. | |
Doradiante buscava apenas o afeto de Narses, | |
o protetor, nembrando a dor da mãe que leixara. | 3895 |
Como o filho no pai, o pai indagava no filho, | |
ambos dous, a mulher que os irmanara no espírito. | |
Por muito tempo a conversa aproximava as idades, | |
falas de amor e brios de guerra pelas estradas. | |
Narses contudo percebia-li o tépido aspecto: | 3900 |
195
– Que te abate, filho? Por que te vejo atristado | |
frente à corda sussurrando medo em teus sonhos? | |
Não te contenta ainda a perfeição de teus alvos | |
ora que atiras melhor e mais veloz que o perito? | |
Bom sucesso aguarda, Procêncio! – Procêncio atende: | 3905 |
– Pai! Percebo sim os dons e a rapidez dessas mãos | |
e como è destro o meu tiro e caçador de inimigos. | |
Forom porém, senhor, somente as aves e as árvores, | |
nada mais, que o meu punhado de flechas feriu, | |
e vão passando os dias e vou pensando de mim | 3910 |
se a guerra me quer: Erguendo l’arma vou atinando | |
mais e mais que non sou violento, vergonha marchando | |
junto e perseguindo os pés dum ladrão de galinhas. | |
Ero eu, que non sou violento, um home de guerra? – | |
Mas o filho baixou la cabeça e Narses li disse: | 3915 |
– Vêm da vida correta as tuas palavras, Procêncio, | |
entram no peito como alívio, dote de orgulho. | |
Uma coisa contudo aprendi de soldados sinceros: | |
Há diferença de ser violento e de usar violência. | |
Filho! O bom guerreiro alevantou suas armas | 3920 |
196
como gesto de amor primeiro e depois violência. | |
Quando el home vil, destruïdor de pequenos, | |
põe a lança aos ombros querendo como presa a | |
vida sem erro, cumpre à mão decente resgate: | |
Cumpre erguer a bandeira justa e co peso da vida | 3925 |
como das armas lutar, impedir um gesto indevudo | |
contra nossas mães e companhas. L’home de guerra | |
sabe usar violência quando o prélio conclama, | |
mas el home de guerra, filho, foi home primeiro | |
e só depois è de guerra o guerreiro que è home. – | 3930 |
Dito isto, o perito mirava nos olhos o jovem | |
calado e boquiaberto, mentre l’outro assistia | |
Narses como por dentro e ruminando na mente: | |
Frente a poderosas tropas marchava um eunuco, | |
ora idoso e de pouco endorso no corpo e valência. | 3935 |
Donde, pois, atender em Narses o afã violento? | |
Ali conheceu, do seu pai, lo virtuoso valente. | |
Não porém contente arremata: – A guerra castiga | |
tanta vez, meu pai, quem não merece a vergasta. | |
Tanta vez, el home bom e correto guerreiro | 3940 |
197
foi abusado pela fealdade das ordens | |
más e desordeiras, seu coração generoso | |
coberto de crime como um missionário da dor. – | |
Narses contudo impôs-li a mão, seguro da luta: | |
– Filho, a fealdade maior duma vida que vale | 3945 |
foi erguer a espada contra a mão que te implora! | |
Quando o tou inimigo se rende rendudo está: | |
Quem se lança a tous pés te confiou sua vida. | |
É preciso prezar quem decidiu se humilhar. – | |
O novo filho entonce entendeu, da boca de Narses, | 3950 |
fato: Da boca de Narses non vem el ordem covarde, | |
mal que tanto ultraja a retidão de quem serve. | |
Mas o pai completa: – Quando el ordem ofende | |
a consciência do lutador e o peso das armas, | |
sê primeiro home e salva a verdade das armas: | 3955 |
Pois o nome da bõa guerra è virtude, mentira | |
a guerra que ofende a vida desarmada e caída. – | |
Mas do termo del orbe a silhueta surgiu de | |
Salones, interrompendo verbo, tempo e verdade, | |
donde correu de encontro João falando apressado: | 3960 |
198
– Perdoa, Narses, a intrepidez dum ato impensado! – | |
Foi-lis pois narrando em cena forte os detalhes, | |
cônscio de si, atribuindo ao acaso a vitória. | |
Era preciso saber se, descumprido o desejo | |
de Justiniano, Narses o eunuco ainda o julgava | 3965 |
digno de luta. João de fato escrevera a Bizâncio | |
já rogando atônito ao dono do Império clemência. | |
Ora, o pai de Procêncio considerando relatos | |
disse apenas: – Prepara logo as tropas e vamos! – | |
Forom! A nova marcha unia aos homens de Narses | 3970 |
restos da belicosa grei que seguia a Germano | |
quando a morte o sequestrou, e leais de João | |
ogano redobravam a vida e la cópia das armas. | |
Mas enquanto l’outro perambulava aturdido, | |
Narses pensava o caso inusitado dum grande | 3975 |
pedindo vênia ao mundo pela própria vitória. | |
Antes porém de mais o general se aproxima: | |
– Foi decerto fiel, João, o tou gesto valente. | |
Ensina algo desta tua hombridade a Procêncio, | |
filho de meus, e morrerei feliz de meus dias! – | 3980 |
199
Pôs ao peito o bom sucesso do filho de Narses | |
como a vida própria João, e lições prosseguirom | |
desde então, Procêncio aprimorando-se em flecha | |
tanto quanto em razão de combate: – Foi covardia | |
então fugir – perguntout ao general moderado – | 3985 |
quando em vã batalha a vitória se fez impossível? – | |
Mas João era aluno de ingrata lida e concede: | |
– Muitas vezes, prudência recomenda o retiro | |
quando o bom guerreiro em recuando se avança | |
rumo a novo ataque, levando as arma consigo. | 3990 |
Feio, porém, deitar ao chão espada e broquel | |
no amor à vida desonrosa e por medo da morte! | |
Uma coisa è certa, Procêncio: Quando a batalha | |
não se ganha, estás cercado e contudo lutaste, | |
rende-te: Sabe honrar um inimigo chus forte! | 3995 |
Lança-li aos pés as tuas armas e pede bondade | |
pois guerreiro que è forte em verdade sabe usar. | |
Não as lances porém ao chão escondudo de amigos | |
mentre ainda for incerto o percurso do prélio; | |
mas enquanto houver um bem a ganhar no combate, | 4000 |
200
pero que pouco, luta ainda e morrendo venceste. – | |
Esto et al e mais debatiam detalhes de flechas | |
e tiro justu e gesto correto pela Dalmácia. | |
Logo entanto lombardos engrossarom as tropas, | |
homens irascíveis, mancebos de humor variado. | 4005 |
Povo errante em desafeto aberto dos povos, | |
guerra constante os governantes seus agitavam | |
contra os gépidas, érulos, francos e contra Bizâncio. | |
Mãos violentas incendiavam os corpos e aldeias | |
mas o Imperador, no afã da conquista de Itália | 4010 |
como sedento de amigos, retecera cons bárbaros | |
nova causam, forjando-se a dubiosa aliança, | |
dote desastroso e dor hedionda na história. | |
Inda assim, ao amori de sangue esperdiçado | |
o povo rude mesclava afeto ao nome de Narses. | 4015 |
Lá marchavam pois impávidos juntos do Império | |
os povos, carregando consigo em sede diversa | |
pela via incerta os homens, as armas e as aves, | |
o sangue despertando à menti temor e apetite. | |
Já se aproximavam quase as paisagens del Ístria | 4020 |
quando João general recebeu missiva da corte. | |
Era decerto l’ordem de retornar a Bizâncio, | |
voz punitiva do trono. Mas o astuto enganou-se: | |
“Tomamos ora nota, João, do tou gesto impensado. | |
Segue, destrói Totila e trataremos do resto.” | 4025 |
Totila |
δ’ | |
| |
Mas qual non foi surpresa a Deus milagroso | |
pois que demandando as portas do Vêneto | |
um forte francoro interrompeu-lis o rumo, | |
donde Segisberto marchava de encontro: | |
– Em nome da vossa bõa guerra, aliados, | 4030 |
ide embora daquesta terra e salvai-vos! | |
Ousaves, Narses, ultrajar este solo e | |
sujeitar a Itália à mercê de lombardos? | |
Muito me entristece a que ponto chegaste! – | |
Narses, porém, surpreso da audácia, retruca: | 4035 |
– Pois me espanta, Segisberto, que os francos, | |
a quem o Dono dos povos chamava aliados, | |
num gesto menor se apoderassem de terras | |
propriedade de Roma e das leis de Bizâncio! | |
Como não lis bastasse a reis sem nobreza | 4040 |
202
usar ovantes a partem que o Dom concedera, | |
vierom farejando o que nunca lis coube! | |
Ora, a que ponto em desdenhosa indústria | |
os cobiçantes reis se arrogueirem, declara | |
mais da palavra a triste cena que assisto. | 4045 |
Ignoro em cujo desígnio um povo franco | |
migrou, desabonado, das Gálias ao Vêneto | |
mas desejo avisar em que terra te encontras: | |
Propriedade de Roma e das leis de Bizâncio! – | |
O comandante do forte contudo interpõe: | 4050 |
– A profusão de imoderadas palavras | |
menos me ofende que apenas entristece, | |
vindo que vêm do de quem melhor se atendia. | |
L’home que vê primeiro e que julga depois | |
jamais desabusou deste modo a meu povo. | 4055 |
A terra do Vêneto, Narses, foi concessa | |
de fato pelos godos à nossa tutela. | |
Propriedade de Roma, Roma a cedera | |
a Teodorico e los sucessores do godo. | |
Foi Totila, o consolador de oprimidos, | 4060 |
203
que cá nos deu lo patamar em que estamos: | |
Pois a nós, aliados de Roma e dos godos, | |
compete defender de impostores a Itália | |
tão relegada à barbaridade das armas: | |
Tão exposta que nem hesitas de intro- | 4065 |
duzir aqui, audaz, um rol de lombardos | |
et homens vis que recrutaste em cadeias, | |
comprando com prata l’afeição de ladrões! – | |
João de Vitaliano ergueu sua espada em | |
protesto contudo Narses tranquilo provoca: | 4070 |
– Ladrão, meu caro, è povo que invade país | |
alheio sem convite nem permissão adequada. | |
È tudo pretexto: Teodebaldo, o teu rei, | |
uniu-se a Valdrada lá do trono lombardo! | |
A diferença que sei de lombardos e francos, | 4075 |
Segisberto, è esta: O lombardo se agrega | |
à causa do Império quando nós conclamamos. | |
Quando adentram país alheio, forom chamados | |
não por falsário, mas pelo Dono dos povos | |
cuja vontade questionas e desobedeces. | 4080 |
204
Pois aí se vê lealdade o que seja, | |
pois aí se vê sacrifício de vida. | |
Eu, contudo, vejo bem desses francos | |
como prometem primeiro e decidem depois. | |
Foi deste modo que o mundo testemunhou | 4085 |
la profusão de tantas juras traídas. | |
Chamados para provar o valor da hombridade, | |
não viestes, ficastes, calastes, fugistes: | |
Vivestes somente deliberando malícia! | |
E no entanto mi cumpre revelar a verdade | 4090 |
desta terra e doutras que tanto usarpades: | |
Propriedade de Roma e das leis de Bizâncio! – | |
Mas Segisberto crava o seu ero na terra | |
enquanto em torno os impropérios irrompem | |
pelas tropas na troca de olhares irados, | 4095 |
e realçando a voz em flama interrompe: | |
– Não se assente em meu domínio mentira: | |
Estuda nossa história e verás o que somos! | |
O povo dos francos è federado do Império | |
porquanto o trono do Imperador a que serves | 4100 |
205
reconheceu. Governamos de fato e gualdamos | |
num território concesso e nunca roubado. | |
E digo mais: Adotamo-la fé de Bizâncio, | |
aí se vê lealdade, enquanto te abraças | |
a hereges, um povo desordeiro e sem rumo | 4105 |
e transmissor de desgraça por donde se apossa. | |
Não se assente em meu domínio lombardos! – | |
Mas Narses não se impressionando comanda: | |
– Abre alas, Segisberto, a meus homens: | |
lombardos, érulos, gregos, persas, Romanos | 4110 |
que os francos em vergonhosa mente traírom. | |
Abre alas ca os homens todos que adentram | |
adentram contra godos e não contra francos. | |
As ordens vêm do Imperador, obedeçam! – | |
E como Segisberto negasse a passagem, | 4115 |
Narses ouvia calado a resposta do franco: | |
– É direito meu decidir os que adentram | |
a parte que o rei mi confiou de defesa. | |
E para que não repitas de modo indevudo | |
ofensas contra um povo correto, amigo | 4120 |
206
não de impostores mas de Deus e da paz, | |
discutiremos aquesta causam que invocas | |
não com tipos da tua estirpe e soldados. | |
Ainda hoje a delegação dos legados | |
ere enviada a caminho de Constantinopla | 4125 |
para tratar, com a quem compete em pessoa, | |
propriedade de Roma e domínio francor! – | |
E não mentiu, porquanto os altos legados | |
leixavam a fortaleza remota, seguindo | |
viagem planejada em visita de estado. | 4130 |
E que fazer? Entrar por força das armas? | |
Era demais arriscado atacar uma gente | |
de jure aliada, expor o grosso das forças | |
à guerra contra dous inimigos unidos, | |
quando em verdade estava incerto o caso | 4135 |
contra um único apenas. Francos e godos | |
unidos contro Imperador? Desastroso! | |
E Narses calado e consternado nas portas | |
do Vêneto consultava em vão conselheiros. | |
| |
| |
ε’ | |
| |
Apareceu um mendigo buscando Segisberto, | 4140 |
todo pálido, coberto com pele de carneiro. | |
Dentro do forte foi que reconhecerom: | |
Era Rigo, o escudeiro do rei | |
gemendo, rogando | |
ver Teodebaldo, o rei francoro. | 4145 |
Mas ali se encontrava em caravana de acaso | |
uma taciturna mulher, | |
e Rodelinda bem percebeu lo traço gótico, | |
dizendo a Rigo: – Queres o quê de meu brodo? | |
Está de cama, está doente! – | 4150 |
Rigo duvida: – Doente o jovem rei, | |
o filho de Teodeberto doente? Mas como? – | |
Antes de mais a princesa interrompe: | |
– Ah, eu sei quem te mandou! | |
Totila não me engana apesar do tempo e da guerra. | 4155 |
Quem o viu durante a paz o que as horas fizeirem | |
quase desacredita, e tudo se perde. – | |
Rigo não permite a tristeza: – Não se perde! | |
Ele ora por vós como amigos. | |
Ele sofre ao ver | 4160 |
208
como son vãs as palavras que prometemos por aí. | |
Mas o coração è tringo, o tempo non fere! | |
Só Totila sabe o que teria a dizer | |
à mulher que sempre amou. | |
Ao rei porém digamos | 4165 |
a verdade: Totila ainda espera, meu Deus, | |
um gesto à altura deste povo. | |
Não o gesto de tou pai, que chegou invadindo | |
nossos castelos. Mas Totila auleia | |
porque o passado è maior. | 4170 |
Aqueles laços que unirom dous povos, | |
francos e godos, foi tudo em vão, foi tudo mentira? | |
Totila sò quer sinceridade, sò isso! – | |
Ela sentau-se perante a janela | |
donde mirava, tristonha e sonhadora, o curso dum rio: | 4175 |
– Rigo, responde: | |
Totila quer o quê? – Rigo responde: – Vitória, | |
vida, a salvação dum povo | |
que o mundo inteiro persegue sem motivo. | |
Totila quer o quê? Um mundo melhor! | 4180 |
209
Longe dum peso repressor querendo o passado, | |
ele pesa à mente o porvir duma Itália liberta. | |
Nosso povo veio dum estau sem escravos, | |
sem pobres, sem gente caída pela estrada. | |
Roma è assim que deve ser! | 4185 |
Nós abrimo-los braços sem medo, | |
nós dividimos do próprio pão. | |
Como è justo, gente, o reino dos godos, | |
como defende o fraco da truculência do forte! | |
Como salva da morte o faminto, o moribundo | 4190 |
nesta terra farta e provedora de muitos. | |
Ah, que feliz o reino cujo rei nunca pôs | |
a mão no trabalho e no pão de ninguém! | |
Ide pela estrada querendo verdade do povo | |
pois dirão quem foi Totila e quem é. | 4195 |
Totila? Totila não, Teodorico, | |
porque Totila só imita. | |
Vamos viver juntos, amigos, vamos! Vamos | |
construir esse mundo novu, livre, bonito | |
onde toda palavra, toda amizade è verdadeira! | 4200 |
210
Não vamos partir cada qual no seu rumo não: | |
Nós os godos não temos muita gente | |
e quanto a vós, a vossa paz não vai durar muito. | |
Não pensem os francos que essa terra | |
serà lor, onde estão porque Totila quis. | 4205 |
Não pensem que um home como Justianiano | |
vai querer alguma coisa cons francos | |
quando formos destruídos! – Rodelinda | |
apenas interpõe: – Mas Rigo, Rigo, Rigo, | |
por que tudo isto, esta desgraça, esta guerra, | 4210 |
donde saiu isso? Meu coração não se esqueceu | |
de Totila, mas Totila era tão diferente. | |
Como foi isto, Rigo? Eram tão friãos | |
o rei dos godos, o Imperador, os povos! | |
Eu vou pensando e vendo que o mundo não cabe | 4215 |
na minha cabeça, eu não entendo este mundo. | |
Nesses anos de tanta confusão e de dor, | |
em vão me perguntei e pergunto ao céu | |
mas non vejo nesta guerra o partido de Deus. – | |
Mas Rigo, os olhos avermelhados, contesta: | 4220 |
211
– Ah, Rodelinda, o partido de Deus | |
está num povo caído, abusado e ferido. | |
Num povo que vivia em paz numa terra distante | |
quando um falso amigo disse: Vai pra Itália, | |
vai, vai que a terra è tua, toma què tua! | 4225 |
A nossa gente implorou: Senhor, não faça isso, | |
a nossa gente è simples, não caçoe da gente! | |
Insistirom: Pode ir, pode ir! E vierom, | |
ah, com tudo o que tinham, vida, amor, esperança | |
maior do que o mundo. Agora è isso, | 4230 |
agora è assim, agora tem que sair todo mundo | |
feito cachorro com rabo entre as pernas. | |
Agora è fugir ou morrer, mas não, lutaremos, | |
não temos escolha, nós que plantamos, cuidamos, | |
lubamos esta terra como nunca se amou, | 4235 |
nós que morremos perguntando a Gus: | |
Por quê? Fizemos o quê para merecer isto? | |
Mas quanto mais el erto se desespera | |
mais sabemos que Deus è compaixão de pequenos, | |
Deus è partido, meus friãos, duma grei sem amigos! – | 4240 |
212
Rigo falou. Do silêncio que tudo preënchia | |
ela ergueu lo rosto, limpando a lágrima lenta: | |
– Cala a boca, Rigo, porque não sabes de nada, nada, | |
cala a boca e non sês ingrato, cala a boca | |
e me escuta, infeliz: Ouvi que uma certa mulher, | 4245 |
sabendo que Narses se aproximava da Itália, | |
pediu a Segisberto, implorou: | |
Non deixes, impede a passagem de Narses. | |
Ouvi que uma certa mulher, | |
sabendo que o seu frião estava em perigo, | 4250 |
abandonou lo próprio irmão doente na cama | |
para pedir: Segisberto, impede a passagem! | |
Isto ouvi, e ouvi que nada mais se pode toer | |
contra quem nunca fez nada contra nosso povo. | |
Meu pai jurou lealdade a Justiniano: | 4255 |
Não posso, Rigo, erguer a espada contra | |
meu fadro! – | |
Uma flecha forte entrou, devastando | |
a mente, el erto, as entranhas do mensageiro dos godos: | |
– Wê, Rodelinda, quão sinceras palavras e tristes | 4260 |
213
à gente que depus a teus pés. | |
Ergo do chão a sós as migalhas dum povo | |
generoso, sem crime e sem paz! | |
Deus assim escolheut e destino desdisse dos godos. – | |
Mas Rodelinda, erguendo o rosto ardente, murmura: | 4265 |
– Rigo! Rigo! Fala a teu amigo: | |
Sai, meu amigo, sai desta terra ingrata! | |
Rigo! Conheço uma certa mulher | |
que saberá de abrigo a teu rei | |
werreiro e generoso! | 4270 |
Abandone a guerra e tenha dó dos amigos! | |
Diz que uma certa mulher li implora, | |
um vivo cadáver: Foge, salva a tua vida! | |
Salva, porque se morreres | |
tua morte matará também quem te amou! – | 4275 |
Ela afogou-se em soluços, perdendo | |
lenta e desesperadamente a voz e os sentidos. | |
Segisberto, calado, olhava Rigo | |
e balançava a cabeça. | |
Mentre Rodelinda era carregada às pressas, | 4280 |
214
Rigo abordou Segisberto: – Por dó desta mulher, | |
obedece, impede Narses, impede! – | |
Olharom-se longamente. Rigo: | |
– Vem chegando a primavera e cultores | |
precisam de paz. Se Narses trouxere a guerra | 4285 |
nada se planta nem colhe. | |
Franco que és, Segisberto, que fomos friãos outrora | |
mais que agora os nossos povos, por favor, | |
resiste ata lo estio e ganhamo-la guerram: | |
È sò isto que te pede meu povo e meu rei. | 4290 |
Totila è bom, Segisberto! – Segisberto anuiu | |
auxílio. E Rigo partiut | |
orando alto, rogando a Deus piedade dum povo. | |
| |
| |
ζ’ | |
| |
Mas pelas folhas dalgum jardim | |
ouviu-se a voz duma certa mulher: | 4295 |
– Eo ando pelas trilhas e quanto | |
mais o meu passo as marca mais | |
mi dou conta da vida e triste sina | |
e vejo e sei que nunca mais eo verei | |
quem amo e mais que ninguém amei. | 4300 |
215
E no entanto quanto mais eu ando | |
a derramar de meus ogos verdade | |
e fôlego mais me perco e mais | |
mi dói lo peso de ser e esconder | |
de todos homens o que me sinto | 4305 |
e sejo: Ca dês que vejo este mundo | |
vejo que o mundo me fez mulher | |
e nem se viu jamais neste mundo | |
o mundo ouvir ou sentir a dor | |
dum ser que chamarom mulher; | 4310 |
que sendo já maior do que mundo | |
o mundo menospreza e toda parte | |
ofende, qual se fosse menor | |
e pior do que o mundo el erto | |
redentor e sereno e que sofre. | 4315 |
Por quê, se meu coração è maior | |
e mais verdadeiro que a vida | |
que Deus mi deu este mundo | |
me ofende e despreza meu ser? | |
A minha vida è barganha somente | 4320 |
216
nas mãos do império dos homens, | |
que nem na vida e na morte | |
saberão lo que cabe e carrego | |
num coração maior do que a vida | |
e da morte, ai, meu fôlego, ai, | 4325 |
morrer, se esses homens soubessem | |
o que è de fato uma guerra | |
e como luta contro mundo | |
e contra si uma vida sem erro | |
mas que sendo vida e mulher | 4330 |
non tem estau em que seja livre, | |
livre sem que uma espada ou braço | |
interrompa o candor de seu passo | |
por entre as aves e as árvores, | |
inda que apenas procurando, | 4335 |
como busco, Deus que me alenta | |
e sabe, talvez, de melhor morada | |
por u la vida è livre e verdade | |
pode andar sem grilhões e sem medo | |
cantar por entre toda-las aves | 4340 |
217
e as árvores sem a tristeza | |
da morte! Mas Deus è grande | |
e mundo com Deus non se acaba | |
nem vida em Deus è pequena. | |
O mundo me ultraja mas vivo | 4345 |
e vou vivendo como o guerreiro | |
a quem recusarom as armas | |
e adentrando o campo de guerra | |
eleva os olhos ao céu, erguendo | |
a spada da prece como el única | 4350 |
arma que tem porque Deus li deu | |
e ninguém desarma e que peço | |
às avibos, aves, levade a Deus | |
minha prece que è prece apenas | |
e não espada e prece da vida | 4355 |
sem rumo e que non sabe orar | |
mas ora e por quem padece! | |
Clotilde, mãe de meus francos, | |
desce um momento da excelsa | |
esfera que Deus te abonou além: | 4360 |
218
Ensina à vida que só è livre | |
na prece a rezar, como a vida | |
que ao menos merece o que tem | |
e que sendo pouco tem que ser | |
o melhor que puder. Tu que outrora | 4365 |
inspiraste a conversão de Clóvis, | |
inspira menores e dá-mi forças | |
de erguer a Deus um pranto melhor | |
e não de murmúrio, mas de busca, | |
para que firme um grande Rei | 4370 |
estenda do firmamento a sua mão | |
de misericórdia ad um homem, | |
ai, que tanto padece e que tanto | |
e por tão grande tempo eo amai | |
sem medo e sem permissão do mundo. | 4375 |
Gus è testemunha que não de mero | |
carnal desejo me movo, mas amor | |
de meu peito maior do que a carne | |
e maior do mundo me impele que peço: | |
Piedade, Céus, dum homem que grandes | 4380 |
219
odeiam mas cujo coração conheço | |
apenas eu, que peço amor e peço | |
compaixão e peço a Deus o ensejo, | |
se ensejo aprouver, de ajudar | |
o meu frião maior e meu homem | 4385 |
como a Deus meu Pai convier: | |
Levai, andorinhas, levai a Deus! – | |
| |
| |
η’ | |
| |
Mas no meio da estrada que Rigo varava | |
surgiu, por entre pilha de corpos esparsos, | |
confuso vulto depondo: – Socorre-me, godo, | 4390 |
e diz, por amor dum caído outrora firme, | |
por onde encontro o paradeiro de Vilas | |
em Roma e rei Totila! – Mas Rigo, estendendo | |
a mão ao faminto que mal em pé se mantinha, | |
persegue: – Donde conheces a gente distinta, | 4395 |
filho, que buscas e pedes, e que desejas? – | |
Mas o perambulante erguendo o seu pálido | |
rosto revela ao senhor uma mesta verdade: | |
– O mar mudou deveras, Rigo, as feições | |
de meu ser e muita fome perdeu minha força. – | 4400 |
220
Rigo percebe num susto de dor e de angústia | |
a voz, a cor e al duma vida que falam, | |
testemunhando o que ali restava dum náufrago: | |
– Sus, Ruderico! – acede e logo se abraçam, | |
Rigo amparando os passos do filho de Vilas | 4405 |
e Ruderico explicando o que o mar ensinara. | |
– Por qual milagre, bor, salvaste a vida? – | |
O jovem, porém, que já non mais se plangia, | |
os olhos secos e deprivados de prantos, | |
narrava em voz tremente de como passara. | 4410 |
Perduda por culpa do acaso uma luta vençuda | |
migrara tempo incerto na noite e nas ondas, | |
levado de abismo em abismo por entre gigantes | |
crestas de mar engolindo altíssimas naves, | |
penoso brinquedo às maldições de Netuno. | 4415 |
Lançado cá e lá, renegando esperanças, | |
pegava-se presa da morte à triste tábua | |
que muita vez o azar li tomava das garras. | |
Jurou, no tumulto das águas, doar sua vida | |
a Deus apenas se apenas Deus se abeirasse | 4420 |
221
do seu naufrágio, guiando a tábua sem rumo | |
rumo a milagre dalgum socorro de praia. | |
Lavando quiçá semanas, o mar se cansara | |
enfim de Ruderico e lançara o seu trapo | |
de corpo em meio a tortuosos rochedos, | 4425 |
donde a custo e perdendo sangue salvou-se. | |
Pesqueiros dividiram de peixes, passantes | |
largando, rara vegada, um pedaço de pano | |
e carne escassa. Assim andou, demandando | |
de campo em campo e vila em vila destino, | 4430 |
cônscio do engenho de Deus e devudo dever | |
a seu pai generoso. Estava entanto deciso: | |
Vencer primeiro a guerra a que o povo chamara | |
pera não leixar este mundo de modo covarde, | |
depois servir a Deus, procurando caverna | 4435 |
e retiro como os homens de Bento e de prece. | |
Mas Rigo, ouvindo a confissão remorduda, | |
remete: – Filho, teu fadro pensava co povo | |
que o mar te bebeu! Correu pedindo a Totila | |
como a Gus poderoso milagre e chorando | 4440 |
222
de dia e de noite debateu-se de luto, | |
julgando a vida amena e de menos valia. | |
Soubesses, Ruderico, de quantos conteirem | |
de volta ao rei lo tamanho de tuas façanhas | |
e como institueires exemplo de impávidos, | 4445 |
bravo herói que ata morrendo se afirma | |
e lança firme o poder da lança que apossa, | |
tiveras sabudo que não a sós te salveires, | |
menino, mas contigo o teu povo e teu pai! | |
Nasceu co teu resgate uma nova esperança | 4450 |
de godos desesperados de guerra e de mares. | |
Sigamos pois que o galardão que te aguarda, | |
werreiro, curave a vida, a fome e feridas! – | |
Mas Ruderico ouvindo em calma interpõe: | |
– O mar, frião, ensinou virtude e verdade. | 4455 |
Agora eo sei que o gesto bom que distingue | |
o parvo do tringo guerreiro è justeza de vida | |
primeiro e depois apenas ganância de prêmio. | |
O galardão que merece uma vida sem graça | |
e que vive por graça de Gus è de nulho valor. | 4460 |
223
Sigamos sim ca quero ver meu pai jubiloso, | |
meu povo fagro de heróis e maiores de mim! – | |
Seguirom, e demandando a visão de Totila | |
e Vilas, novo coro de pranto e de alegre | |
clamor ecoau, lo pai ajoelhando-se ao jovem: | 4465 |
– Sabia, meu filho, que o céu non permitiria | |
morreres quando somente começo a cumprir | |
dever de guerra e de amor que a Deus ofertei. – | |
Totila tomando ao lado o mestre de lanças | |
explica, emitindo-li a sós: – Herói educaste! | 4470 |
Fizeste dum ímpio, Vilas, exímio de godos. | |
Non fora pela mão que amputou do teu braço | |
fizera eo já de teu filho cabeça de tropas. – | |
Mas antes que Vilas reponha Rigo se avança | |
lançando: – Foi sinal distinto, werreiros! | 4475 |
Ende assente está que Deus non desdisse | |
de godos, descendo a nós um olhar piedoso. | |
Honremos sempre a confiança do altíssimo: | |
Cumpre agirmos graça a presente sem par | |
e como reza a quem colhe o dever de doar! | 4480 |
224
Governa, froia, rendendo ao mundo de volta | |
os bens que Deus distribuiu sobre nós. – | |
Ação de louvor, o rei mandou que levassem | |
rumo a Roma abundância de grãos e de gado, | |
dispondo: – Dai, gadrãos, a quem merece | 4485 |
melhor e mais que nós e padece pior! – | |
Gozando viço novu, cansados se erguerom | |
e dando por terra desespero e tristeza | |
correrom além, fortificando defesas | |
e preparando-se para a sorte das armas: | 4490 |
Assim convém, sabiam, à lida bravor! | |
Em pouco tempo abastecerom-se os fortes | |
e novas linhas de guerra formarom-se norte. | |
Totila mandara um revolto cabeça de tropas | |
e Teia, assim chamado, seguiu apressado, | 4495 |
temudo a meio mundo e varão violento | |
no rumo francoro! Ora Narses, quebrando | |
talvez o valor de Segisberto avançando | |
além, seria surpreso nos braços de Teia | |
e multitude tremenda. Tal ouvindo irascível | 4500 |
225
partiu, armando por toda a terra emboscada. | |
Mas Rigo, acompanhado de Vilas e muitos, | |
insiste: – Importa, rei, além de guerreiros | |
a causa verdadeira que è causa de amigos. – | |
Totila entonce ruminando por noites extensas | 4505 |
reúne os seus e profere: – Antes que Narses | |
intente, a mando de iníquos, werra covarde | |
e mentira contra um povo de cor valeroso, | |
forjai nos jovens, homens, espíritu amigo! | |
Bandai nas mesmas cortes romanos e godos, | 4510 |
que godos desde cedo conheçam cultura | |
de Roma e Roma saiba os valores de godos. | |
Selai serena mente entre povos distintos | |
e duas gentes que a Gus reunidas aprouve | |
nesta Itália mãe de heróis e de eleitos! – | 4515 |
Irom-se pois colhendo, em todas províncias, | |
a fresca infância de centenárias famílias | |
por casas de senatoriais e patrícios. | |
Unido enfim o rol de trezentas crianças, | |
fundarom escola expondo o modo dos godos. | 4520 |
226
Apenas Vilas, l’home sem mão, avisava: | |
– Cuida de Teia, Totila, e sê cauteloso! | |
A mão agastada desdenha de leis e caídos. – | |
Mas qual escolha restava em tal gravidade, | |
sina incerta e cópia de hostis a caminho? | 4525 |
Ainda doía nel imo dos homens derrota | |
em alto mar, incubadora de angústias. | |
Ora que Deus impedira a tomada de Ancona | |
impondo às armas o abandono do cerco, | |
Ravena respirando altiva e tranquila, | 4530 |
cumpria a todo custo a desgraça de Narses! | |
Ad isto assentiam todos. Mas era forçoso, | |
Vilas inclui, tomar a todo custo Ravena | |
e Valeriano e banir que avançasse o reforço. | |
E desde o momento confabulavam assaltos. | 4535 |
Mas quem non via perito o perigo da empresa? | |
Num gesto veloz e repentino Totila cavalga | |
a Roma, e querendo na quiëtude volúvel | |
Leôncio, dita-li novam carta a Bizâncio | |
que em bom latim a Justiniano traduza: | 4540 |
227
“Dono das gentes, inglória guerra desune | |
irmãos que Deus destina iguais ao eterno | |
banquete, na Itália, na terra como no céu, | |
e quanto mais a guerra se afasta de alturas, | |
a vida mais ensina que a causa dos homens | 4545 |
em Cristo è paz conciliando amarguras. | |
Rogando pois aos céus um juízo correto | |
Totila ansia, renunciando de glórias | |
e vahidade e vitórias, o fim dum conflito | |
que Deus desabonou e confunde juízes. | 4550 |
Pródigo filho, depõe aos pés de seu Dono | |
oferta que apenas a vida iníqua recusa: | |
O norte da Itália conquistado por francos, | |
restando em flor do antigo reino godor | |
somente Sicília, Dalmácia somente, governa | 4555 |
as terras essas como o bem entenderes! | |
Os godos, retendo a destituta desgraça | |
e relevando do abismo a ruína que resta, | |
serão teus filhos dando ao trono o tributo | |
que o Dono quiser em ouro e prata e labor. | 4560 |
228
Aponta pois a terra onde a guerra te chama | |
e lá te segue uma gente aliada nel erto, | |
lutando e morrendo pelo amor de teu nome.” | |
Porém, o Imperador, recebendo legados | |
rasgava missivas, mandava embora calados, | 4565 |
Totila ouvindo o caso, em vão insistindo. | |
| |
| |
θ’ | |
| |
Quando se ouviu porém na tropa a nova de Teia, | |
ora forte em Verona obstando estrada e cavando | |
fundo fosso ao longo do Pó, eversa a passagem | |
rumo a todo o resto da Itália, Narses vacila. | 4570 |
Ora, mesmo em Segisberto abrindo o caminho | |
nada mais servia o favor, e soldados à espera | |
viam aflitos consternação calando constantes. | |
Mas João de Vitaliano alarmado se avança: | |
– De Segisberto, Narses, não se espera socorro! | 4575 |
Que fazer então? Sentados à margem das ondas | |
somos presa do tempo e tempo foge e nos urge, | |
pois de Valeriano quase se exaurem recursos. – | |
Isto ouvindo, Narses conduz: – João conselheiro, | |
sei tampouco a solução deste caso assombroso e | 4580 |
229
passo as noites em vão concatenando conatos. | |
Fala aos teus! Pergunta a conterrâneos da Itália | |
como agir e que via andar lis ocorre na mente. – | |
Esto acertando e pronto demandados nativos, | |
rompe da multidão atônita Paulo, escudeiro | 4585 |
rumo a João: – O povo de pescadores da costa | |
povo de amigos e costa desabitada de godos. – | |
Narses, porém, que ruminava a marcha morosa | |
diz apenas: – Já perdeste, Paulo, a prudência? | |
Como impor a milhares ingrato passo por tratos | 4590 |
onde rios e lagunas tributo ao mar desembocam? | |
Home contorna dificilmente estuários e deltas | |
nem ajuda o palude pés de guerreiros em pressa. | |
Passam em tais empresas primaveras inteiras! – | |
Paulo, filho daquele trato e perito de escolhos, | 4595 |
vendo unidas naus de João redentoras de Ancona, | |
nembra: – Com naves se vence a vahidade das águas! – | |
Narses mais desenganado: – Com naves se vence | |
quando bastam naus, pero Paulo, a tropa ultrapassa | |
já de muito l’armada escassa, e cônscios do avanço | 4600 |
230
fácil seria aos godos desbaratar desembarques. – | |
Mas a voz do escudeiro consiste: – Não de galeras, | |
Narses, carece a travessia dos rios delicados, | |
tão somente carece de pontes. – João dubitoso: | |
– Quem constrói porém, e como, cópia de pontes | 4605 |
quando escasseia lenho, pedra e tempo e diversos | |
braços d’água requerem a cada passo um milagre? – | |
Paulo compõe: – E que quereis de pedras e lenho? | |
Bastam barcos apenas e já teremos as pontes. | |
Ora, explico-me: Tiras enfileiradas de barcas | 4610 |
erem a strada que os pés de guerreiros passavem, | |
calmos, a cada qual seu tempo, margens ad outras. | |
Imos pelas praias de marcha e seguimos de perto | |
lenhos flutuantes, que andemos sobre as águas | |
quando os rios interpuserem termo e lagunas. – | 4615 |
Pois no meio da noite alevantarom-se as tropas! | |
Rumo à costa marchava lento o passo nascosto, | |
buscando a si pequenos barcos que desde Salones | |
vinham consortes e recrutando ainda em reforços, | |
u preciso, aventureiras naus de pesqueiros. | 4620 |
231
Como Paulo aconselhara, assim praticarom: | |
Qual non foi beleza enfim à vida do ingênuo | |
ver de longe cruzar as caudalosas correntes | |
fila de amigos, equilibrando a toscas madeiras | |
corpos e os pés na inusitada baila das ondas. | 4625 |
Quando porém Procêncio depondo os arcos olhava | |
a sós o poente endourecendo a cor da laguna, | |
Narses, sentando-se ao lado: – Respeita, menino, | |
tanto mar! O valente menosprezando insídias | |
fora presa fácil das intempéries de vagas. | 4630 |
Ora quïetas contudo nunca certas, ondinas | |
basta um sopro, chuva e logo avançam tragando | |
barca e vida. Ama se apraz a beleza oscilante, | |
não porém osciles, meu filho! – Assim apontava | |
longe a luz que naufragava rubra no incerto. | 4635 |
Mesmo o pai, contudo, cruzando um braço do Pó | |
no meio do nada, andando pelas barcas, saltando, | |
alça os olhos ao céu clamando: – Casório feliz, | |
Procêncio, foi casório de rios e mares e noivos | |
como estes que a mão de Deus uniu para sempre. | 4640 |
232
Vê! No medês instante se funde o fluxo diverso | |
salso e doce: Estamos no rio out estamos no mar? | |
Estamos em toda parte e porque vivemos estamos, | |
pois as ondas, porquanto revelem onde passamos, | |
calam ainda o que somos e somos em toda parte | 4645 |
como agora, pequenos e salteando por barcas | |
sem sabendo se estamos e como no rio ou no mar. – | |
Procêncio vislumbrando ainda mar no horizonte | |
volta a si: – Entendo bem que o mundo decide | |
muita vez por nós na terra como nas ondas | 4650 |
u estamos, por onde andamos e como passamos; | |
não contudo, nem na terra e no mar, o que somos: | |
Sou guerreiro! Sou guerreiro da guerra que è bõa | |
como a verdade que em toda parte está lo que é. | |
Prossigo sim, meu pai, levando migo a flecha | 4655 |
d’arco forte! Caço em campo o peito de inglórios | |
pelo amor de teu nome e do nome dos meus e de Roma! | |
Narses, terás orgulho de mim! – O pai arremata: | |
– Sabe pois, Procêncio, que orgulho tive de vendo | |
amor de como honreires a tua mãe no infortúnio. | 4660 |
233
Honra agora Roma também que padece e que sangra, | |
mãe de nossas mães! – Seguiam assim travessias | |
quando uma carta arrebatou los olhos do eunuco: | |
“Narses! Soldados outrora abondonando bandeira | |
vêm pedir-te perdão, e aumentaremo-lo império | 4665 |
já de poderosas cohortes se apenas mandares!” | |
Isto lendo, Narses manda que venham sem medo, | |
conquanto promete: Receberão enfim pagamento | |
todos que outrora lutaram, a quem Bizâncio devia | |
muita prata, porquanto a prata agora chegara! | 4670 |
Como um raio a notícia varou excitando guerreiros. | |
Nova carta porém, e peior, arribava de Roma: | |
“Narses! Por piedade do pó que resta de outrora | |
deixa em paz a cidade de Roma! Gera essa guerra | |
longe dos párias que um generoso rei protegeu! | 4675 |
Caídos, pouco importa a quem se abriga em ruínas | |
rei de perto ou de longe imperadores; caídos, | |
sim, Totila ergueu do chão meninos e estátuas | |
priscas e não derrubes, Narses, mais uma vez | |
depois de tantas o reergudo escombro das vidas.” | 4680 |
234
Narses releu por diversas vezes o apelo mendigo, | |
carta anônima, já que lo autor temeu represália. | |
Quem duvidava, de fato, da intervenção de Pelágio | |
como a voz esconduda sob a sombra de escombros? | |
Quem non via naquela missiva a mão de Leôncio, | 4685 |
Rusticiana e senadores e irmãos na aflição? | |
O eunuco, porém, aproximou-se inquedo dum poço | |
para beber, e deliberava o destino das almas | |
quando uma velha atordoada abordou-o de longe: | |
– Beba não, senhor, que desse poço se morre, | 4690 |
só eo sei, e como, que desse poço se morre: | |
Eu, se me nembro, produzia vaso de argila | |
bem bonito e meu filho, o viajeiro de vila, | |
ia vendeno. Chegou, coitado já de meu filho, | |
bebeu do poço e morreu, coitado já de meu filho, | 4695 |
filho meu sem rancor e sem maldade no mundo. | |
Foi depois que dissero da má verdade do poço: | |
Dissero que Belisário jogou carniça no poço, | |
foi, que aquele forte ali pracima do monte, | |
forte de godo usava dele e bebeno vivia. | 4700 |
235
Quando depois o godo soube disso, rendeu-se | |
pois sem água l’home non tem sustento na vida. | |
Mas coitado chegava com sede depois e bebia | |
sem saber desse poço e do poço coitado morria. | |
Ai, senhor, è vida não essa vida que è nossa. | 4705 |
Eu que sei o que é porque que o mundo se acaba, | |
pois escute: Novo deus que trouxero de longe | |
gosta da gente não. Deus que gosta da gente, | |
deus que sempre amou foi deus Apolo e Netuno. | |
Quando a gente punha fé nesse Apolo e Netuno | 4710 |
coisa ruim assim que nem de agora non tinha. | |
Esse deus de longe è deus que desdisse da gente! | |
Mas atrás daquele monte encontrei uma gruta | |
bem bonita, e vou botano uma flor e pedindo | |
junto àquela estátua de Jano por dó de Romano, | 4715 |
gente nossa que è maltratada e coitada demais. | |
Era tão jeitoso o meu vaso que a gente comprava. | |
Leve consigo um desses aqui, e leve de graça, | |
leve, que é pesado comigo de andar pelo mundo | |
e sei que já ninguém passano aqui nesse poço | 4720 |
236
tem dinheiro, mas leve mesmo assim que precisa. | |
Leve, que noutro poço a boca bebe e guarda | |
mais o resto d’água de muita estrada no vaso. | |
Custava caro quando tinha dinheiro no mundo! – | |
E lá depondo aos pés do general um ânfora | 4725 |
foi-se embora errando e titubeante nos passos. | |
Era petrecho benfeito e de mui custoso labor | |
que lá deixara, rara e formosíssima prenda. | |
Mas a João que se aproximava Narses ordena: | |
Issem comprar daquela velha as ânforas todas, | 4730 |
pagando muito ouro para que não carecesse | |
a bõa vida que a sua vida salvara sem preço. | |
Ora, tapando o poço da morte, seguirom viagem | |
inda e sempre e burlando as emboscadas de Teia. | |
Foi na aurora que as almas vislumbrarom de ameias | 4735 |
cores patenteando de longe a bandeira de Roma. | |
Vinham já de encontro Valeriano e famintos | |
pelas ruas saudando como a César o eunuco. | |
Narses cavalgando calmo e seguido de amigos | |
via à beira da estrada centenas de ajoelhados. | 4740 |
237
Clamavam como o pai da liberdade o seu nome | |
quando lançavam aos paralelepípedos flores. | |
O pranto mesclou-se à comovida salva de palmas | |
testemunhando a redenção que chegava a Ravena. | |
| |
| |
ι’ | |
| |
Da porta oposta contudo adentra Ravena | 4745 |
o repto a Valeriano, a missiva dos godos | |
contendo: “Covarde! Toma um quê de corage | |
e sai do vergonhoso covil que te esconde | |
e por onde vacilas vendendo a vida al ócio. | |
Honra os combatentes teus e petrechos | 4750 |
ao menos uma vez e meçamo-la força | |
de nossas armas como compete à virtude! | |
Se ainda te contas àquele rol de valentes | |
que desdenhando a vida em revés combatem | |
sem mora, vem, maldito, lutemos agora | 4755 |
a luta que a sorte impôs aos nossos povos! | |
Lutemos no extremo a derradeira batalha | |
como impávido prélio de tudo ou de nada! | |
Nenhum dos godos consente maior espera | |
nem te convém la fuga barata que encenas, | 4760 |
238
armado porém temendo e pedindo socorro. | |
Será de ratos a grei guerreira que imperas? | |
Não envergonhes mais as próprias tropas | |
leixando imaginar que lis falta o valor | |
ou pior: que sendo suins ès tu que duvidas | 4765 |
de braços em tudo fortiores que o teu! | |
Mostra-te pois em campo aberto, comprova | |
a Roma a valência das tropas. Ora, se Narses | |
vier, chegave decerto amanhana e depois: | |
Tu crês que atenderemos a sina de Narses | 4770 |
quando a fome dum povo implora governo? | |
Se tens, Valeriano, um quinhão de devuda | |
decência, ouve o nosso brado de guerra, | |
porquanto em decidida mente injungimos: | |
Vem! Traz contigo as armas e os homens | 4775 |
todos que houver, porquanto lutam a luta | |
final e para nunca mais!” Provocarom. | |
Mas caiu la carta nos dedos do eunuco | |
que inopinado mandou legado a Totila. | |
Os godos maquinavam naquela astúcia | 4780 |
239
recursu arriscado: Antes de Narses Ravena | |
e Valeriano e los restos fossem rendudos! | |
Quando se houverom acumulado de longe | |
rumores que Narses demandara a cidade | |
em tremenda cohorte e quantidades dignas | 4785 |
do Império Romano, tumulto e pavor abalaro | |
o moral de pequenos e grandes. Refletiam: | |
Nem com quase toda la Itália nas mãos | |
ganharo a batalha contra o mar e João. | |
Agora que Narses trazia uma grege sedenta | 4790 |
de morte e mais numerosa, como ganhar? | |
Totila, reunindo o conselho dos grandes, | |
buscava às pressas discernimento correto | |
quando de Roma não missiva arribout | |
e sim Leôncio que prorrompia agitado: | 4795 |
– Ouvimos, rei de Roma, a nova do eunuco | |
e derribamos ao chão uma indébita espês. | |
Terás desdito dum antro de condenados? | |
Queres trazer, Totila, o teatro de guerra | |
adentro Roma e muro adentro as ruínas? | 4800 |
240
As obras da vida e reërguidas estátuas | |
ora cairão de novo no estrondo dos atos? | |
Avisa, rei, somente avisa e nos eimos | |
embora pelo mundo sem paz e sem rumo! | |
Mas ah, Totila, cabem tantas histórias | 4805 |
em Roma e tantas vidas! Não reëntregues | |
à guerra os alicerces que mal se rëeguem | |
do cerco, incêndio e derribada de pedras. | |
Mas que faremos e como, aonde iremos | |
e quando chega Narses e quando morremos | 4810 |
desgraçados de Roma? – Totila prorrompe: | |
– Não me ofendas, por caridade, Leôncio! | |
O povo de Roma conhece o meu coração | |
que nunca neste mundo negou-se a caídos. | |
O cerco foi num tempo e num caso diverso | 4815 |
como um caso diverso a tristeza do incêndio. | |
Percebo bem que nutro em vão esperança | |
ca nunca perdoarom de mim um momento, | |
um gesto infeliz que tantas vezes chorei | |
e, como vejo, em vão intentei reparar. | 4820 |
241
Percebo tarde, Leôncio, das tuas palavras | |
o medo e pouco apreço que Roma mi warda, | |
percebo triste e contudo alegre te peço: | |
Retorna em paz, frião, que a mão violenta | |
que porventura abata os menores de Roma | 4825 |
jamais no mundo, jamais será de Totila. | |
Paguei demais o preço amargo dum erro | |
e decerto degustei da lição do remorso. | |
Mas seja sim se assim requer o destino: | |
L’home virtuoso jamais se equivoca | 4830 |
e Totila, tendo errado apenas um die, | |
errou demais, errou para a vida inteira: | |
Todo acerto do resto è resto somente. | |
A guerra nova porém, e se a nova vier, | |
será distante, meu amigo, de Roma: | 4835 |
Ere num campo mais conforme à desgraça | |
que atende o nosso povo sincero ou Narses | |
ou todos ambos. Conforta Roma, entretanto, | |
e quem souber orar que interceda por nós! – | |
Assim falando Totila pôs o exército godo | 4840 |
242
em marcha rumo a Ravena destino de guerra. | |
Mas pouco andout em campo e veio de encontro | |
cultor de terra depondo aos pés do monarca | |
verdura e pranto, armado de muitas rugas: | |
– Bonito è ver a florescência dum prado, | 4845 |
Totila, quando se deixa em paz a semente. | |
Bonito era o tempo de Teodorico, que o rei | |
mi deu de terra e vim plantano e vivendo. | |
Chegava a colheita, eo vinha a pé entregar | |
com gosto a verdejância do mundo ao rei. | 4850 |
Mas passa a guerra e guerra vai pisano | |
no grão e mata quem nem consegue brotar. | |
Pois, senhor, se non brota, morre a semente | |
que quer nascer e morre o que espera brotar. | |
Destino è assim: Parece que vem a colheita | 4855 |
coa folha verde saindo, e passa uma tropa | |
e pisa e guerreia e vem morrer no meu campo. | |
A mão condenada quer colher e non pode, | |
passa a primavera enterrano esse mundo | |
que meu arado plantou e que a guerra abortou. | 4860 |
243
Passava gente sem rumo na estrada e parava | |
et eu parano dizia: “Filho, sai dessa vida | |
que esse rumo è de nada e non passa por nada.” | |
E passando-li a enxada e didivino da mesa | |
aumentei sem medo a família, que Deus abençoe. | 4865 |
Mas rei, o trabalho valia de quê, se na hora | |
do grão nascer passava a guerra e pisava? | |
Quando a lida è de bode o home na luta | |
sai correndo no meio do mundo co bode. | |
Mas o home que planta aonde que corre | 4870 |
e corre como a semente que nem desabrocha? | |
Amor demais de Deus que me deixa viver | |
e só, que de grão nulhome nado consegue. | |
Mas olha só que milagre e que coisa bonita: | |
Bandei família e sustento e me vim semeano | 4875 |
e já non sei se por certa ilusão de meu Deus | |
ou que coisa que for parece ogano que brota! | |
Será que brota, meu Deus? Passa por longe, | |
rei, e marcha além de meu prado arruinado. | |
Pensei que dessa vida eo ainda colhesse | 4880 |
244
alguma coisa depois de tanto e sem fruto. | |
Contudo já me canso de vida e de angústia | |
que è desespero o fim de tanta esperança. | |
Percebo já que a guerra precisa dum campo | |
e de todos os campos ela gosta è do meu. | 4885 |
Mas desse estio, Totila, a vida non passa | |
e ninguém de casa conseguirá suportar | |
um ano a mais de fome e de aborto de terra. | |
Toma então, meu rei, toma aí da verdura | |
que muita vida perdida te traz e perdoa, | 4890 |
se podes, quem plantou e non pôde colher. – | |
Totila, porém, estende a destra ao cultor | |
e controlando a cor de sous olhos suspira, | |
querendo: – Como aceitar a prenda bondosa, | |
frião, se a mim doando te privas de vida? | 4895 |
A tua prenda maior forom tuas palavras! | |
Posso morrer em paz enfim, que na Itália | |
ao menos um se recorda de Teodorico. | |
Planta mais, cultor, e levanta os caídos | |
da estrada a que unidos cultiveis amizade. | 4900 |
245
Era de paz o intento outrora dos godos, | |
somente amor dos povos que cultivava | |
o benfeitor que te concedeu esta gleba. | |
Perdão te peço eu que viajo de guerra | |
e muito mais te dera se Deus permitira. | 4905 |
Mas ouve! Meu povo inteiro marcha comigo | |
e vamos já de encontro ao fim desta luta, | |
fim qualquer que seja: O povo dos meus, | |
cultor, non mais suporta o destino dos teus. | |
Se algum apreço porém te resta de antanho, | 4910 |
o tributo que rogo è rogares a Deus piedade. – | |
Assim orando, um triste rei reërgueu-se | |
e devolvendo a verdura partiu de seu rumo, | |
nenhum dos pés desbaratando as sementes. | |
Andou contudo pouco e missiva secreta | 4915 |
arribava: “Ainda è tempo! Se lubas a vida | |
apenas cruza o Pó que estaremos unidos.” | |
E bem sabia o rei de que mãos delicadas | |
e peito generoso as palavras brotavam. | |
Cruzando qual dos rios porém e que ponte | 4920 |
246
salvasse as multidões que Totila aduzia? | |
Wardando pois ao cor uma carta querida | |
o rei seguia avante no amor de seu povo. | |
E pouco menos andou e legados de Narses | |
chegavam, o qual leixara embora Ravena | 4925 |
no rumo de Roma junto à tropa universa. | |
Intrépidos pois os enviados avançam: | |
– Estamos acampados por perto, Totila, | |
munidos de tudo. Queres ouvir a proposta? | |
Narses propõe a paz em nome do Império | 4930 |
se apenas o povo teu abandone la Itália. – | |
Totila demite: – A paz è decerto benvinda | |
quando espelha justiça. O povo a que falas, | |
legado, nada roubou que te deva entregar! | |
Chamou-nos Zenão, o Imperador, ao domínio | 4935 |
da Itália e cá viemos, toendo-li agrado | |
e fiéis amigos. Só los cadelos da estirpe | |
que serves quebram elor palavra de honra. | |
Mas não trates meu povo como sem terra | |
ou como ladrão ou fugitivo em delito. | 4940 |
247
Aqui ficamos de jus! – Legados contudo: | |
– A condição de paz è somente que vades! – | |
Totila proclama: – Pois na sorte das armas | |
home então decida quem vai e quem fica! – | |
Os núncios retrucam: – Marca logo a data! | 4945 |
Marca e cá viremos e o resto veremos! – | |
O rei, enfim, reconhecendo o tamanho | |
del ódio que produzia à boca palavras, | |
recua aterrado, entretanto pouco li resta | |
e responde pausado: – Em sete dias veremos | 4950 |
pois de Deus o destino e duelo dos povos. – | |
Assim partirom levando a Narses a novam. | |
Totila em valentíssimo incêndio de fúria | |
manda logo marchar, seguindo de encontro. | |
Nel ato, a multidão de soldados ergueu-se | 4955 |
e pôs aos ombros a lança, espadas e flecha, | |
legados correndo à cavaleria dispersa | |
de Teia que, congregada, viesse a combate. | |
Mas Rigo reconhecendo o risco iminente | |
e correndo ao amigo em transtornados saltos | 4960 |
248
impõe: – A repentina marcha que imperas, | |
rei, surprehendendo guerreiros afraca-os: | |
O viço exausto è mau gestor de batalhas | |
e luta mal a mão que carece de tempo, | |
preparo d’armas como perícia de campo. | 4965 |
Calma, Totila! Reflete melhor nosso caso | |
e deixa Narses chegar, que chegando Narses | |
ere dos seus o fardo da marcha e do pouco | |
tempo e preparo escasso. Aqui atendamos! | |
Intentas de fato destruir o teu povo? – | 4970 |
Totila sucede: – O caso inteiro reflito: | |
És insano? Marcharom a pé da Dalmácia | |
e não los cansa a pouca estrada que resta. | |
O trunfo nosso, Rigo, è chegar de surpresa | |
e vê-los não exaustos, contudo confusos. – | 4975 |
Assim lançou por terra, ainda uma vez, | |
o conselho de Rigo e Vilas porém interveio: | |
– Totila, o moral dos homens meus titubeia: | |
Cuidado requer indústria! Basta uma falha | |
e veremos nossos godos mais confundidos | 4980 |
249
que aquela grei de vis. A derrota nas ondas | |
ainda mal se tragou e temores afogam | |
anseio de força. Ouve, Totila, por Deus, | |
esperemos a Narses! – Quanto mais a fala | |
ofegava mais o rei balançava a cabeça, | 4985 |
limpando a profusão vermelha dos olhos, | |
repondo: – Bem conheço o temor de derrota | |
e para menos temer que se lute sem mora! | |
O desgostoso estado em que vejo meu povo, | |
amigo, não mi permite maior incerteza: | 4990 |
Perda de tempo, Vilas, è perda de guerra. | |
Tenha fim, portanto, aflição de guerreiros! | |
Corramos logo, ergamos o véu do destino | |
sem medo e desespero de vida e de morte, | |
pois além da vida e da morte se avança | 4995 |
a retidão dum povo! – E assim refletindo | |
os godos marcharom, temor no peito e coragem. |
Totila |
κ’ | |
| |
Quando Narses ouve a narração dos legados | |
manda prepararem os braços e toda-las armas | |
par’a aurora, já prevendo ataque iminente. | 5000 |
250
Não se engana, pois o primo raio do leste | |
longe revelout a bandeira em marcha dos godos, | |
grave e retumbante o brado ecoando nos montes. | |
Vendo enfim moções dum formigante horizonte, | |
homens de guerra em sobressalto pedem palavra | 5005 |
quando Narses, interrompendo angústias, explica | |
o plano, a formação da batalha. Os homens paravam | |
mirando quis-cada-quem amigos, sentindo nas clavas | |
o peso salvador da vida, esperança no extremo. | |
Medo porém falava altior ao cor de bastantes | 5010 |
e Narses, reconhecendo o desassossego de tantos | |
como até de Procêncio, conclama os combatentes! | |
Tendo perante si, aflitos e ouvindo calados | |
grei de regulares soldados e bárbaras gentes | |
(eram hunos, lombardos, érulos junto a romanos | 5015 |
em multidão sequiosa), a voz do eunuco ressoa: | |
– Quanto orgulho escorre destes olhos, meninos, | |
ao ver gregada sob a sombra de excelsa bandeira | |
grei de amigos, povos tão distantes de mundo | |
lado a lado erguendo ao ombro amor à justiça. | 5020 |
251
Será milagre divino a concordância das gentes? | |
Pois humano, filhos, e muito humano o milagre | |
mas milagre que apenas este pendão oferece, | |
largo e generoso e já maior do que os séculos. | |
Não vos enganeis na aflição porquanto a verdade | 5025 |
pela qual erguemo-las arma desfaz-se da prata, | |
d’ouro que paga e não porém sacia a virtude. | |
É por bem maior que lutamos! O bem que elegendo | |
pelo ardor defendemos è bem de Roma que herdamos. | |
Vede pois o que somos e quão distinta amizade | 5030 |
colhem povos unidos no amor do Estado e del ordem, | |
o rol de moderados poderes e harmônicos órgãos, | |
o foro das instituições e das leis protetoras. | |
Tal tesouro os antepassados suores leixarom | |
não a Roma apenas, porquanto ao braço decente | 5035 |
Roma abraça e não pergunta ao amigo da lei, | |
jamais, se seja grego ou persa ou donde provenha, | |
antes estende sobre todos um nobre estandartem, | |
abre as portas do Estado protegendo perdudos | |
homens como ao general humilde que vedes. | 5040 |
252
Eu, meninos, nasci sem prata e fama e distante | |
pelos vãos de Armênia, u nimigalha è destino. | |
Desde cedo, porém, no amor das leis e del ordem | |
Narses reneguei minha vida servindo a maióribos | |
homens e causa maior. E desprovudo de mérito | 5045 |
mesmo assim gozei da confiança do justo | |
como do Imperador que aconselhei pela vida, | |
eu, que vim servir apenas e agora comando. | |
Não, heróis, em povo alheio nenhum o pequeno | |
pede amando a lei refúgio e vive sem medo, | 5050 |
Roma apenas ama lo amor renegado dos retos, | |
e a quem duvida rogo examinar minha vida. | |
Credes mesmo que essa nova estirpe de godos | |
possa gerir sem lei correta o destino da Itália | |
tanto tempo acostumada à constância das leis? | 5055 |
Vede o que foi outrora e donde veio la Itália, | |
vede se a tal porção do Império cabe a desordem! | |
Digo porção? Eo disse errado, direi genitora | |
deste Império Romano cuja bandeira elevamos | |
e cuja bandeira tanta vez elevou nossas vidas. | 5060 |
253
Tão distante por este mundo andaumos, guerreiros, | |
e agora titubeais que è já patente a vitória? | |
Semos ora dignos da longa marcha que agimos! | |
Ora que Deus nos concedeu chegar à batalha | |
como compete ao viço que não vacila no prélio | 5065 |
para alçar maior o nome dos Céus e do Império, | |
ora lutemos como cabe ao fiel combatente, | |
ora lutemos, filhos, a derradeira das lutas, | |
luta derradeira talvez das vossas vidas | |
como talvez a derradeira luta de Roma. | 5070 |
Usai de vossas armas como quem se despede | |
já da vida e das armas, não porém da vitória. | |
Homes de guerra! Nõ é derrota que apaga virtude, | |
vício somente e covardia. Se acaso cairdes | |
como muitos de vós cairão que sei e que aviso, | 5075 |
sabei cair a queda de quem entrou em batalha | |
para ficar e não fugir, servir sua causa, | |
pois caindo o bom herói è maior do que a vida, | |
vida sem honra e sacrifício è morte somente. | |
Ora vivei, guerreiros, a verdadeira das vidas, | 5080 |
254
eia, regai de vosso sangue o grão da vitória! | |
Uma coisa apenas, apenas uma eo vos peço: | |
Ide à luta orando a Deus piedade a pequenos, | |
pois a força das armas e o sacrifício perito | |
quando Deus non quer non desabrocha vitória, | 5085 |
mas vitória que vem è graça apenas de além. | |
Rogai de Deus um generoso olhar sobre nós | |
e a guerra venceremos como a nossa miséria! | |
Basta tão somente lutar coa virtude de sempre | |
como cabe à bandeira da bõa guerra que erguemos! – | 5090 |
Totila, contudo, alheio às orações dum eunuco | |
como à causa de tal clamor, espera na angústia. | |
Ora, Teia e sous cavaleiros por onde passavam? | |
Inda chegave a tempo da luta? Mirando medrosos, | |
o rei dos godos manda a todo instante legados | 5095 |
a Narses a ver se ganha tempo. Mas os soldados, | |
vendo lo atraso de Teia e presumindo o peior, | |
corriam atordoados contendo prantos et uivos | |
(como pois travar sem cavalos camanha batalha?) | |
quando a carta arribava anunciando a chegada | 5100 |
255
em meio dia ou menos de cavaleiros sem medo. | |
Totila, erguendo caídos e confortando abalados, | |
nesse instante alçou-se pelo relevo do monte | |
frente às multidões que preparavam os eros | |
como escudos e lanças. Conclamados os homens, | 5105 |
eles ora voltavam os olhos sedentos de alívio | |
rumo ao rei, que pronunciava forte a verdade: | |
– Povo dos godos! Aguarda o galardão da vitória, | |
pois vencendo Narses nòs venceremos a guerra. | |
Essa grei de vis que congrega e moções do inimigo | 5110 |
são menores que o nome e nossa história revela: | |
Não existe no mundo o viço, a virtude do tringo | |
sofrer derrota verdadeira na vida ou na morte. | |
Pois na vida como na morte nòs fomos maiores! | |
Esses vis que se aglomeram a velhas bandeiras, | 5115 |
que princípio de bem e que justiça professam? | |
É bonita a glória, a fortuna à custa de escravos? | |
Erguei melhor a cabeça ao renembrar o que somos: | |
Quando em tempos ancestrais nosso povo de godos | |
inda vivia em paz na floresta como na estepe, | 5120 |
256
quem jamais morreu sem pão relegado à miséria, | |
ƕão jamais foi recusado um braço ao caído? | |
Pois erguemos na piedade o nosso estandartem: | |
Nosso povo não conhece nem rico nem pobre. | |
Vossas mães estão aí, perguntai que dizeiam | 5125 |
quando na história lo godo padeceu sem amparo! | |
Tal virtude nos fez e tal virtude nos trouxe | |
co froia querido ad esta nossa Itália querida. | |
Cumpre lutar, meus amigos, Teodorico nos olha | |
triste e receoso do céu que Deus li concede. | 5130 |
Eles, que ao peito depuserom a nossa derrota, | |
vivem no mero amor dum miserável passado! | |
Não bastando o mal que os opressores trouxerom | |
pelos séculos inda atentam danada campanha. | |
Lutam pelo bem de poucos, descaso a pequenos, | 5135 |
nem lis importa a fome se esgueirando na estrada: | |
Tomam a terra dos pobres e a liberdade se esgota | |
frente à gana de Imperadores, amantes del ócio | |
como del ouro, usurpadores de todo trabalho. | |
Essa grei, werreiros, não se conforma conosco | 5140 |
257
pelo bem que como amigos trouxemos à Italiae. | |
Vem lo escravo arrebentando grilhões e descobre | |
em nosso erto abrigo, pois o fraco è frião | |
que levantamos do chão. Vem o filho da fome, | |
pária que Imperadores de longe abandonarom, | 5145 |
e damos à fome pão impondo fim à vergonha. | |
Vem a vida erma e sem gão e recebe de nossos | |
braços éu, amizade, amor de Deus e trabalho: | |
Pois assim nos formamos povo, assim prosperamos | |
juntos, crescendo e dividindo a vida em verdade. | 5150 |
É preciso dizer a muitos homens a história | |
dum povo reto e que essendo reto o fréu odiou, | |
destino invejou. Cá portanto estamos, amigos, | |
frente ao futuro, ao novo ordem que cabe melhor | |
à tristi e destituta terra que herdaumos e amamos. | 5155 |
Isto sabendo, suãos, lutai com toda-las armas, | |
homens merecedores que somos de guerso e de vida. | |
Lutai no amor de nossa história e de nosso futuro, | |
pois perdendo que nos resta em passado e futuro? | |
Não, werreiros, non seja este o fim duma gente | 5160 |
258
tão generosa! Não leixemos que a mão de impostores | |
apague da história o nome do povo dos godos. | |
Já sofremos demais em desengano, injustiça | |
seguindo e perseguindo nossos passos serenos. | |
Tenha fim a dor! Ergamos altíssimo as clavas | 5165 |
para enfrentar a derradeira luta que atende. | |
Inda temeis, meninos? Que temer, generosos? | |
Credes que os vis ali gregados lutam por honra, | |
homens comprados sem nenhum amore à bandeira? | |
Credes que algum lombardo vel outro povo distante | 5170 |
venha dar a própria vida em frial de Bizâncio? | |
Quando a batalha lis impuser o peso del honra, | |
filhos, o sacrifício de vida e morte a comprados, | |
bem sabei que mercenários debandam embora! | |
Não porém na ganância de impreciosos metais | 5175 |
entraumos destemudos neste campo de guerra, | |
mas salvando a própria vida e vida dos nossos. | |
Nada obstante, quanto orgulho corre dos ogos | |
meus ao ver a multidão que aqui se congrega | |
como as ondas do mar maior, sabendo com Deus | 5180 |
259
que nunca nulho guerreiro foi preciso comprar | |
e lutam pelo amor apenas, jamais por moeda. | |
Salvam o nosso povo amigo que longe inimigos | |
tantos quiserom fragadar, apagando de mapas. | |
Nós jamais buscaumos a guerra, o guerso anelamos! | 5185 |
Quantas, quantas vezes em meio a quantos apelos | |
forom feitas propostas de paz? Os melhores intentos | |
rem encontrarom além da indiferença do Império, | |
pois nõ é la paz que desejam, procurant o fim | |
do nosso povo, do rei ao peão: Portanto às armas! | 5190 |
Lutemos como quem luta não por mera contenda, | |
pela sobrevivência do próprio povo e dos últimos | |
nomes que restam, e não titubëeis na batalha! | |
Não carece de grande arbel a certeira vitória | |
contras multidões de mercenários confusos. | 5195 |
Esta nos basta, werreiros, esta vitória basta | |
ca nunca mais rëerguerei-la bandeira de guerra. | |
Rogai a Deus armel e nossas armas venceiem: | |
Regai de vosso amor, suor e sangue guerreiro | |
nossa semente e terra abençoada da Itália! – | 5200 |
260
Pois assim falou Totila, o rei de seu povo, | |
e assim rejubilou-se novo o viço dos godos | |
pronto para a sorte das armas, o cor confiante. | |
Ora o monarca, montando repentino o cavalo, | |
passava frente aos seus em dourecente armadura, | 5205 |
destra lançando alto lanças que a mão esquerda | |
calma pegava del ar em queda franca e velozes. | |
Homens de toda grei, impressionados miravam | |
quanta perícia o rei atestava. Lançava sem medo | |
como em desafiando inimigos, erguendo o moral | 5210 |
de muitos combatentes. Ora, Narses, o eunuco, | |
certo non fora capaz da façanha. O rei cavalgava | |
como cavalga quem passou la vida a cavalo. | |
Era uma imagem sem par a luz do céu refletindo | |
nítido o rosto amado a refratárias distâncias: | 5215 |
olhos claros mirando as almas em cada soldado, | |
pálida a tez e cabelo balançando ao vento, | |
barba envelheçuda, nariz e boca delgados, | |
mãos delicadas nem por isto alheias à clava. | |
Ele dançava! Firme em dirigindo o cavalo, | 5220 |
261
dava aos olhos mil dos encantados werreiros | |
rara prenda, lição de vida heroica nas armis. | |
Como uma estrela irradiando o sol que reflete | |
brio da verdade, Totila cavalgava e bradava | |
como a trompeta final anunciando vitória. | 5225 |
| |
| |
λ’ | |
| |
Antes que os grandes cavaleiros chegassem | |
àquelas regiões tortuosas del Úmbria | |
dava-se já contenda aos pés dum outeiro, | |
porquanto os ambos openentes o vendo | |
virom vantagem para a mira do arqueiro. | 5230 |
Totila num sobressalto enviout em velozes | |
cavalos guerreiros, já porém se abrigavam | |
peritos escudeiros a mando de Narses | |
obstando estrada. Eram menos em número | |
mas o tamanho da audácia de fato se infere | 5235 |
dum raro episódio: Quando houvero arribado | |
aos pés do monte e vislumbraront escudos, | |
os godos prepararo os cavalos e eloro | |
clavas ameaçando e mostrando o tamanho | |
da morte, mas como os escudeiros do Império | 5240 |
262
não lis cedessem, cavalgarom de encontro, | |
a mão armada caçando o peito incautor | |
e a pata de violentos equestres cabeça. | |
Romanos então se ajoelharom às pressas: | |
– Já se rendem! – ouviro o coro de godos | 5245 |
em prematura emoção, porquanto inimigos | |
tomando da terra o quanto vissem de pedras, | |
roçavam-nas contra a superfície do escudo, | |
criando no atrito os acutíssimos guinchos | |
e sons que transtornavam éguas, medrosas | 5250 |
ora em desordenados relinches e saltos | |
enquanto os escudeiros nel ódio gritavam: | |
– Ô vagabundo, vamo medir nossas arma e | |
bora ver quem è mais! – Mas se avançavam | |
os godos titubeava o galope dos bichos | 5255 |
ouvindo os guinhos. Inda não conformados | |
coa cena desgastante, os homens do froia | |
largando a rédea desciam trazendo espadas, | |
lançando-se contros detestados broquéis. | |
Porém os Romanos, peritos de antigo modo | 5260 |
263
depondo cabeça e corpo atrás de escudos | |
e lado a lado, desbaratavant o ataque, | |
espada pronta à mão esquerda esperando | |
a brecha do imigo et al: Um gesto impensado | |
expunha o braço ou peito ao gume afiado. | 5265 |
Delibarando melhor a incerteza do acaso | |
os combatentes mandam legado a Totila | |
pedindo reforço. Não porém debandarom, | |
antes lançavam assaltos notando melhor | |
a cada movimento o preparo de guerra | 5270 |
dos escudeiros de Narses. Estava claro, | |
patente estava: Prosseguindo a contenda | |
conquanto nada perdessem nada ganhavam. | |
Mas com muita astúcia os lanceiros irom | |
aos poucos se adequando ao novo cenário: | 5275 |
Agora evitavam contato, caçando lacunas | |
de gesto e falhas que vez e vez sucediam. | |
Ganhando tempo exasperaro openentes | |
e pouco a pouco o bom moral oscilava, | |
fortes acumulando respeito e vitórias. | 5280 |
264
Foi então que da formação dos escudos | |
alevantou-se firme um home, clamando: | |
– Eia, godos, vejamos qual dos vossos | |
guerreiros luta à minha altura e lutemos! – | |
Assim falando, avançou perante os broquéis | 5285 |
chamando imigos à sorte e guerra de corpo. | |
E com certeza sabiam que sol um perito | |
faria um tal desafio. Mas como os godos | |
contavam com muitos agastados, perdiam | |
a paciência primeiro, depois a contenda. | 5290 |
Ora, o valente, quando não derrotava | |
armado muitas vezes tomava a lanceiros | |
espada e lança coas próprias mãos, lançando | |
ao chão perante as testemunhas atônitas, | |
um gesto desonroso à virtude de incautos: | 5295 |
– Desarmo mas non mato! Verme e covarde | |
eo deixo viver! – E provocava aos poucos | |
incêndio nel imo dos cavaleiros, bradando | |
sem medo e desarmando as mãos de peritos. | |
Quando contudo a multidão ultrajada | 5300 |
265
veio toda de encontro ao peito do herói, | |
os outros homens levantando os joelhos | |
e escudos encorajados pel alma do sangue, | |
gritarom guerra e, defedendo do ataque | |
o bom valente, ainda uma vez impedirom | 5305 |
fortíssimo prélio. Mas o caso notório | |
vindo ad ouvidos de Narses, Narses indaga | |
os detalhes, ouvindo impressionado o relato. | |
Quando pois se li avança l’homem sem medo, | |
em qual surpresa os olhos do eunuco desvendam | 5310 |
de tal semblante um nome estimado: Paulo | |
que outrora guiara as tropas pelas lagunas, | |
os pés enfileirados passando por barcas, | |
Paulo fizera-se herói maior do que fora. | |
Ao desarmado desarmador de armadíssimos | 5315 |
e como animado dalgum divino elemento | |
Narses, o eunuco, orou: – Doravante serás | |
o guarda, herói, do general que te fala | |
e doríforo como os hipaspistas exímios! – | |
Assim falando, Narses tomou-se de Paulo | 5320 |
266
como de amigo fiel no peito, retendo-o | |
todo instante perto de si na batalha. | |
Do monte contudo aproximava-se Rigo | |
a mando do rei, averiguando o terreno. | |
Mal vislumbra os escudeiros do Império | 5325 |
contendo ataque e remata: – Bons de guerra, | |
aqui perdemos tempo que o caso è perdudo | |
e não me espanta. Conheço bem la façanha | |
de escudos, escudeiro que sou, e de fato | |
em vão roguei do rei enviasse broquéis | 5330 |
e não cavalos. Sabia já que um escudo | |
se atento vale mais do que vida e cavalo | |
jamais derruba e nem espada a constância. – | |
Dito isto, guiava embora do outeiro os | |
desiludidos guerreiros quando romanos, | 5335 |
ora embebudos de si, cercaro os equestres | |
e a marcha de godos, provocando iracúndia. | |
No mesmo instante alevantarom-se espadas | |
das ambas partes e corpo a corpo o combate | |
tingiu lo chão. Seguindo lo aviso de Rigo, | 5340 |
267
porém, de guardando as armas par’a batalha | |
em campo aberto, os godos se contentavam | |
na defensiva e na retirada ligeira | |
ao sopé, recuando sim, fugindo jamais. | |
Mas Rigo, acompanhado apenas de escudos, | 5345 |
num súbito lance foi cercado de lanças | |
e gumes, hostis interrompendo-li o passo. | |
Num gesto inusitado, interpôs o seu braço | |
em frente aos violentos que ali marcharom | |
e deu-se o prélio: Os poucos homens seus, | 5350 |
peritos no escudo e desprovudos d’al | |
obstavam. Na força de suas égides largas | |
a ponta e desavisada espada crepava-se | |
contra as placas. O peso de tantos metais | |
condidos em arma rem impedia que Rigo | 5355 |
erguesse como pluma apenas, levíssima | |
prenda que o braço alçava e rabiscava | |
nel ar e cá e lá, confundindo os expertos. | |
Vindo dous ou três em fortíssimo ataque | |
o braço de Rigo entanto sabia o momento | 5360 |
268
de cada espada e rumo de gume e de punho, | |
a mão esquerda livre esperando vacilos. | |
Como girasse a toda parte e sem tempo | |
o metal que a vida inteira passara lidando, | |
impunha contro corte o peso nel ângulo | 5365 |
certo e deturpador de intrépidos fios, | |
como um destino destruïdor de desígnios. | |
Quebrando as lanças, exasperava os incautos | |
e incautos no desespero e nel ódio lutavam | |
com menos perícia. Menosprezaro o talento | 5370 |
da vida dedicada ao emprego correto | |
dum certo petrecho! Quanto mais perdiam | |
a ponta afiada mais se lançavam a Rigo, | |
irados ao ver o fio cortante do rasgo | |
retento na superfície firme e rugosa. | 5375 |
Era como se o ferro gostasse dos golpes | |
que quanto mais apanhava mais o poliam. | |
Incrédulos frente às milagrosas proezas | |
lutarom até lis cair el última espada, | |
ponta quebrada ou torta, a força humilhada; | 5380 |
269
brados insanos, Rigo entretanto calado. | |
Notaront enfim lo viço de quem se impôs, | |
e deles quis entendeu que aquele petrecho | |
de lidas era inquebrantável. Partirom. | |
Souberom apenas depois, no meio da noite, | 5385 |
que o portador de escudos era o maior | |
escudeiro dos godos e protetor de Totila. | |
Estava completamente apagada a vitória | |
de poucas horas antes e escudos menores. | |
| |
| |
μ’ | |
| |
Mas l’aurora trouxe nova força al Império | 5390 |
quando arqueiros forom deslocados ao monte: | |
Erant olhos sutis a la espera da mira certeira. | |
Dentre os atiradores daquela estirpe distinta | |
stava Procêncio, a pontaria melhor que existia: | |
Não existia o seu dedo equivocar-se nos arcos. | 5395 |
Subira o monte enfim no entusiasmo da guerra, | |
pronto à proeza. O pai porém chamando João | |
ainda roga: – Anda perto e defende da perda | |
Procêncio, cuida bem do menino como puderes! – | |
João de Vitaliano tampouco hesitou, e durante | 5400 |
270
toda a manhã manteve a vista perto do monte. | |
Pois houvero arribado os cavaleiros de Teia, | |
Totila já non carecia de espera e dispôs os | |
godos em posição de batalha, o exército inteiro. | |
Narses contudo concatenando os riscos ordena: | 5405 |
Frente a todos e face a face perante inimigos | |
fosse exposto o povo lombardo, a grei violenta | |
cercada em toda parte por cavaleiros do Império. | |
Não lis fosse possível reconhecendo o perigo | |
mudar de ideia e desertar, repentinos na fuga. | 5410 |
Hunos dispôs atrás de lombados. O povo contudo | |
dos érulos, grei fiel de palavra, houve consigo, | |
cônscios eles dum erro grave e gratos em tudo: | |
É que durante a guerra contras armas de Vítice | |
d’anos antes houvera de fato um certo episódio – | 5415 |
quando se houveram dispersos pelo norte do Pó, | |
los érulos forom passando e saqueando cidades | |
pondo fogo e roubando inocentes, seguindo adiante. | |
Perto porém de Milão buscando chus, a nembrança | |
doutro mundo arribout a frear ela grei cobiçosa: | 5420 |
271
Pois o próprio rei Fanisteu morrera na guerra | |
pelo Império ca sucumbira ao lado de Narses. | |
Mas se ata lo rei doau sua vida, atinarom, | |
os aliados seus mereciam melhor atitude. | |
Súbito pois se arrependerom cruzando embora, | 5425 |
morte no peito, regando toda a Itália de pranto. | |
Eles mandarom missiva confessando o lor crime, | |
carta contendo dentre mais: “Concede perdão, | |
Senhor, ad um povo ingrato em desditoso delito | |
e decide, por caridade, a qual deserto do mundo | 5430 |
iremos além, escondendo sob as mãos a vergonha, | |
a sina infeliz dum gesto apagador de amizades.” | |
Mas o Imperador, conquistado dalguma emoção | |
melhor e mais generosa que a brevidade da vida, | |
deu-lis perdão e permitiu e pediu que voltassem | 5435 |
pronto, para lutar ao lado de Narses campanha | |
nova em novíssimo gesto apagador da vergonha. | |
Isto ouvindo, mudaro o rumo e vierom de encontro, | |
firme no cor o intento de reparando uma falta. | |
Quão diverso entretanto o peito de Justiniano | 5440 |
272
julgara um povo rem pior do povo dos érulos; | |
quão diversa atitude frente aos legados godos | |
portando em vão desesperadas missivas e apelos! | |
Fato somente e mistério maior explicant o vário | |
modo dum peito protetor e verdugo de iguais. | 5445 |
Mas ali se juntava aquelora o povo dos érulos | |
grande e grato, Narses o pai. E Narses dispondo | |
mais dispôs nos flancos laterais os lanceiros | |
junto ao mar de espadas bradejando coas vozes. | |
Totila enfim notando as posições de inimigos | 5450 |
pôs o grosso das lanças na prima linha de guerra, | |
para atrás apenas a espada, arqueiros ao lado. | |
Rigo ainda assim e Vilas ouvindo as ordens | |
não hesitarom: – Mistura mais espadas ao campo | |
para que a força da lança esteja menos exausta | 5455 |
pois vier ajuda do flanco. – Totila discorda: | |
Quer ativos na linha frontal lanceiros somente | |
e pouco atina com Vilas balançando a cabeça. | |
Já se avança Ruderico na frente do exército, | |
braço intimorato em carregando o petrecho | 5460 |
273
junto à grupação de clavas, forte dos godos. | |
Ó destino incerto, será possível vencerem | |
ambos os lados, merecedores ambos de prêmio? | |
Mas fortuna è surda a preces e avançam as armas | |
e súbito vida contra vida em fortíssimo impacto, | 5465 |
dous imigos mesclando morte ao rubro da aurora: | |
O sangue ao chão impôs ao raio nascente ocaso. | |
Firmes em tanto embate as armaduras colidem | |
contras outras, umas contras outras lutando | |
lança e spada. Fortuna viu la mão de lombardos | 5470 |
longe arremessar ao chão oponentes sem viço, | |
godos no mesmo instante atravessando armadura | |
como o corpo hostil na fúria louca de lanças, | |
muitas vezes uma apenas quebrando a coragem. | |
Raro guerreiro a tropeçar ergueu-se de novo | 5475 |
mentre os milhares de pés pisoteavam a carne. | |
Passo desordenado passava contra o primeiro, | |
braço cravante ao peito ou pelas costas espada. | |
Os godos peritos ora mirando longe perdudos | |
davam rumo forte à clava: Deitaront à terrae | 5480 |
274
gama incautor arrancando sem dó suas arma | |
da carne furada, agonizante a carcaça jorrando | |
puro sangue. Vinha porém destemudo o lombardo | |
contra os pouco atentos: Segurando os cabelos, | |
súbito o golpe dissociava do tronco a cabeça, | 5485 |
novu troféu ereito ao céu. Passava ao rosto | |
fel em ritual tenebroso quando de encontro | |
gótica espada ou clava terminava-li o gozo. | |
Doutra vegada o guerreiro, crepitados ousados, | |
vendo além amigo em perigo corria de auxílio, | 5490 |
pronto dilacerada a carne atacante por duas | |
lanças fortemente enterradas, caindo sem alma. | |
Doutras almas ainda arqueiros cortaront o grito | |
quando a flecha no coração calava impropérios. | |
Ora atacando marchavam, marchavam ora em defesa: | 5495 |
Marchavam pelo campo e pelas pilhas de corpos, | |
em todo andar tegumentos ofendendo a semente. | |
Quando enfim dos godos se aglomeraront espadas | |
nem esperavam mais o gume dalgum dos érulos, | |
nova batalha ecoava pelos metais de armaduras. | 5500 |
275
Pois do trom atroz que trovões invejarom dilúvio | |
d’ondas cobriu a gleba de fluidos atros purpúreos. | |
Rem de mais impedia façanhas que a mão inventava | |
como os passos de Ruderico cercado e sem medo. | |
Ele, atacado, jogava a sós de ribas ciclopes, | 5505 |
a lança deitada ainda à terra. A lança, se erguia | |
rumo ao peito dum certo atrevudo, a vida fugia | |
já do corpo amedrontada evitando arremesso. | |
Mas ao filho de Vilas não ferirom feridas | |
quando li houverom deformado o rosto ligeiras | 5510 |
como o corpo. Rasgarom fendas que pouco notava | |
pois sabia: O bom guerreiro adentra o combate | |
para exibir na ferida o troféu de sacrifícios | |
pelo amor de maiores. Sangra e luta contente: | |
– Vinde, malditos! – repetiu lo jovem lanceiro | 5515 |
frente a muitas levas. Impressionados lombardos | |
vinham à luta menos nel ódio que pelo respeito | |
franco e fascinante a tão impávido apelo. | |
Certo a morte pelas mãos dum tal corajoso | |
viço a desprezar sem medo a vida e sem mora, | 5520 |
276
tal derrota lis era quase motivo de orgulho. | |
Não existia Ruderico enganar-se na mira | |
nem mirado jamais recuar evitando projéteis, | |
não, a palma da mão que muita lida adestrara | |
já se fizera quase pedra. E calmo estendia | 5525 |
contra flecha e lança escudo aberto de carne, | |
calos imperfurados derrubadores de mísseis. | |
Muita vez, o herói tomou la espada de imigos | |
como clavas, partindo em dous metal e madeira | |
quando os batia a toda força contra o joelho. | 5530 |
Numa coisa, entretanto, Ruderico cedia: | |
Quando hostis oferecendo-li a vida deitavam | |
armas ao chão, ajoelhados rogando clemência, | |
mão de honor ergueu rendudos. Issem embora | |
como friãos leixando atrás as arma perdudas! | 5535 |
Não se esquecera jamais da própria vida caída | |
quando aos pés de Totila após o crime implorava, | |
Vilas e Rigo reerguendo abalada hombridade. | |
Mas o rei se concentrava em assuntos diversos: | |
Vinha camuflado por entre comuns e guiando | 5540 |
277
como ouvindo ansioso o parecer de peritos. | |
Prélio sem rumo passava adiantado o farol | |
do dia e pouco ganho os ambos lados contavam. | |
Que toer? Chamando Vilas e Rigo e rogando | |
Totila ouviu: – Agora, amigo, cabe ao destino | 5545 |
curso de guerra e piedade de nós pequeninos. – | |
Rigo mandaut a campo os escudeiros melhores | |
e novas espadas arribaront à foz do combate | |
mas l’angústia penetrava o rei que escutava: | |
Deus redentor terá desdito do povo dos godos? | 5550 |
| |
| |
ν’ | |
| |
Narses não se via em melhor conjuntura, | |
guerreiros sacrificando em vão openentes | |
porquanto a linha de guerra pouco moviam. | |
Mas ao ver a moção dos arqueiros ordena: | |
Atirem contra os cavalos! E assim atacando | 5555 |
projéteis dilacerarom a carnem de equinos | |
causando alarde e perturbando projetos. | |
Corria dele outeiro aos ouvidos do eunuco | |
o milagre d’arco pelas mãos dum herói: | |
A mira infalível derrubava os impávidos | 5560 |
278
como animais, e presto Procêncio trocava | |
os alvos marcando imperturbado no tiro. | |
Soltas as cordas, sous dedos inopinados | |
puxavam a sua próxima flecha, deitando | |
às cordas uma atrás das outras, perito | 5565 |
diminuindo aos poucos o exército godo. | |
Em tal fortuna Vilas, l’home sem destra, | |
andava atrás da linha ajudando caídos | |
e removendo as setas de peitos feridos | |
coa mão esquerda apenas. Veio contudo | 5570 |
num turbilhão desordenado de marchas | |
a guerra, pois a linha mudara de rumo e | |
surprehendeu em campo o varão desarmado, | |
perdudo agora no vero seio do prélio. | |
Pois alevantando da terra a primeira | 5575 |
lança que ali divisara, Vilas impede | |
como pode lo assalto do gume dos érulos. | |
Quando porém recua buscando os sentidos, | |
guerreiro hostil que vislumbrava de longe | |
obstou num sobressalto o passo do velho: | 5580 |
279
– De mim non fujas, godo, a fuga covarde! – | |
João de Vitaliano indali se expusera, | |
alçando a spada e desferindo ataques | |
que a mão de Vilas a todo custo parava, | |
porquanto o gládio minuto não alcançava | 5585 |
o corpo ancião devudo à lança comprida. | |
– Desiste, gadrão, à tua espada compete | |
espada apenas e contra lança ere inútil – | |
avisa o mestre de godos. João todavia | |
peleja, fiel à bõa guerra que abraça, | 5590 |
quando num gesto de titubeio do imigo | |
derruba pelo chão lo que resta de Vilas. | |
Erguendo porém a espada ao golpe final, | |
João, ouvindo o brado exausto dum velho | |
divisa no corpo de Vilas verdade: A destra | 5595 |
outrora dissociada feria os sous olhos | |
como o fio da espada. Em triste vertigem | |
João generoso e tomado de angústia recua. | |
O godo contudo crendo a morte iminentem | |
tira do chão la primeira adaga que atende | 5600 |
280
e de súbito fere em desespero por vida | |
a mão et as faces do general, que no susto | |
tombou, enquanto Vilas erguendo-se presto | |
tomou da sua lança e com força enterrou-a, | |
profundo, na terra e por um triz de João, | 5605 |
roçando-li quase o crânio. Olharom-se ambos | |
num longo e desgracioso silêncio de morte, | |
que Vilas enfim interrompeu, rematando: | |
– Aí se vê, werreiro, a vida que engana, | |
assim se aprende o que a vida tói da gente. | 5610 |
El home vão comemora fugaz as vitórias | |
e passa um vento e já li mostra a verdade. | |
Verdade porém se descobre com vida no chão, | |
ca l’home de pé non comemora a verdade | |
e verdade derriba e quem caiu testemunha. | 5615 |
Levanta-te desse chão, inimigo, levanta | |
e leva embora de mim tua vida, que vida | |
nulha è minha e não adentro uma guerra | |
buscando vida que nimigalha mi serve. – | |
Vilas estende al outro a mão que li resta. | 5620 |
281
João, porém, ouvindo do chão penitente | |
reflete ainda e dedica: – Notei de começo, | |
inimigo, que a tua estirpe era rara e distinta. | |
Talvez por esto vim correndo a deter-te, | |
prevendo que certo aprenderia verdade | 5625 |
na luta contigo. Disseste mal uma coisam: | |
Caí ao chão que me enterra não por fugaz | |
amor e vislumbro de corriqueira vitória. | |
Caí porque perdi moções de meu peito. | |
Perdi porque te vi sem mão e lutando, | 5630 |
varão a quem somente a vida covarde | |
derruba e vence. Mas no ataque atestaste | |
a verdade que já supunha: El home correto | |
em luta mesmo sem mão è gestor de vitoria. | |
Elo e mais por nosso encontro entendi, | 5635 |
e no entanto ignoro como seja possível | |
lo excelso guerreiro perder a destra perita: | |
Não se encaixa o quadro em meu raciocínio. | |
Aclara, portanto, o entendimento e revela | |
o verdugo que desonrou tua mão e tou braço. | 5640 |
282
Revela apenas para que a mão que mi resta | |
procure e vingue a dor que impôs a tou nome. – | |
Mas Vilas contendo os olhos e os membros | |
opõe a João: – Eo er percebo, inimigo, | |
quão distinta grei por aqui representas, | 5645 |
e foi sabendo da piedade que abraças | |
que vim olhar a profundez de tous ogos | |
e ouvir tua voz e dizer de nós a verdade: | |
Da luta nossa aprendi que uma ponte nos une, | |
um laço invisível maior que vitória de guerra. | 5650 |
El homem porém que arrebatou minha destra | |
foi lo que mi ensinou da vida a verdade | |
e fez o bom guerreiro que sejo e prossigo. | |
Meu filho e professor apagou lo seu erro | |
e não me vingues pois éste Gus a vingança. | 5655 |
A vida que agora levas a deves àquele | |
que tanto tem chorado um momento infeliz. | |
Werreiro porém me fiz depois de a perdendo | |
pois, estranho, non fosse a mão que mi falta | |
eo não me comportara perante tous ogos | 5660 |
283
como compete ao verdadeiro guerreiro. | |
De ti contudo rogo: Quando me vires | |
caído em campo e se novamente eo caíro | |
em tuas mãos, recorda de como tratei-te. | |
Levanta já do chão, inimigo, levanta-te | 5665 |
e segue embora! – Mas João que se erguia | |
tomando a mão de Vilas assente responde: | |
– Viveste bem, disseste bem, uma ponte | |
se abriu entre nós, inquebrantável certeza: | |
Jamais ergueia contra ti, e nem permito | 5670 |
a meus amigos, a mão de guerra e de morte! – | |
E assim falando e misturando promessas | |
partirom, cada qual na incerteza do rumo, | |
olhando vez e vez para trás e querendo. | |
| |
| |
ξ’ | |
| |
O novo estrondo contudo interrompia o juízo | 5675 |
pois a guerra avançava cá e lá demandando. | |
Ó visões de transtornadas gentes parindo | |
morte e desassossego e tormentoso estupor! | |
Jazia desafiando o viço das flores a carne | |
pela terra, clamando em vão socorro caídos. | 5680 |
284
Ora que a seta dilacerava parcela do crânio | |
como entranhas, ora a multidão de estirados | |
ia buscando por entre pilhas pedaços e membros. | |
Os godos e os esgueirados pela beira gemiam | |
como o gado sem rumo e suplicando um pastor, | 5685 |
enquanto irados gládios dilapidavam-se mútuos, | |
homens atracados caçando sangue e desgraça. | |
Mas Procêncio, o dedo inabalado e sem pausa, | |
fere quejendos mira de morte e cala clamores, | |
vai mudando de posição polo monte e buscando | 5690 |
plus de cavalgantes ousados, em cujos peitos | |
abre um poço fundo e profundamente rubente. | |
Quanto mais a mão arrancava do tórax a ponta, | |
mais os contrafios da pua arrancavam do abismo | |
pele e carne: Eram três os gumes metálicos, | 5695 |
um pela frente e dois traiçoeiros por trás. | |
O filho de Narses ora ouvia o mestre flecheiro: | |
– Cuja força és, Procêncio? Manejo perfeito! | |
Que pontaria, menino, parabéns, è milagre! – | |
Mas o jovem supõe: – Dever humilde, senhor, | 5700 |
285
à mãe de minhas mães e ao general que me adota, | |
nada mais, porquanto em verdade temo o combate! – | |
Pero o mestre não li permite: – Temor è certo | |
quando ensina amor à vida que almeja coragem. | |
Nada temas porém: O galardão que te atende, | 5705 |
bom gestor, è paga de heróis! – Assim ensinava | |
mais detalhes de mira e tiro, mesclando Procêncio | |
pelos muitos gépidas que àquele monte chegavam: | |
Eram competentes arqueiros! O filho do eunuco | |
vendo o modo dos novos tutores plus se apurava | 5710 |
e chus certeiras setas largava embora da corda. | |
Nada entanto abalava e rem minava o guerreiro | |
godo que não demandara aquele campo de guerra | |
para fugir de inimigas setas ou al, pero antes | |
cair com honor. Ainda ajoelhados, quebravam | 5715 |
pois da própria mão a flecha, tirando de dentro | |
a ponta, peito e vísceras que afloravam afora. | |
Lá fechavam os olhos plangendo pelo seu povo | |
mais que por si, sofrendo e terminando calados. | |
Longe e de perto, abutres pelejavam a guerra | 5720 |
286
dentro da guerra: Dissecando o cor de cadáveres | |
frescos co bico, especial banquete o das tripas, | |
as aves dilaceram no afã da gana a si mesmas | |
como misturando o lor sangue à carni engolida. | |
Abutres que se atacavam decepavam cabeças | 5725 |
uns aos outros: Mentre rolavam vertiginosas | |
inda mastigavam co bico a moela de entranhas, | |
numa fome de morte já maior do que a morte. | |
Quanto mais a batalha alimentava a rapina | |
como as horas, mais distante andava a vitória | 5730 |
d’ambas pártio ca partes ambas sorte arruinava. | |
Vendo pois o estrago que ali flecheiros faziam | |
quase inalcançáveis no outeiro, Totila consulta | |
Vilas que impera apenas cautela. Rigo pondera | |
risco maior, porquanto o sol ansiava esconder-se, | 5735 |
triste riso, dum dia astroso de astroso destino. | |
Triste o sol? Mas quem non via, estrela ultrajada, | |
quanta imensa dor embarcava nel erto dos homens, | |
nave pesada e naufragatura quiçá pelas ondas! | |
Cujo froia portanto em vendo tanto suplício | 5740 |
287
não se condói dum povo face a tal sacrifício? | |
Mal sabia o rei explicar, nos destinos da marcha, | |
como chegaram, andando que estavam perto de Roma, | |
neles abismos del Úmbria por onde agora lançavam. | |
Ora Totila na angústia dum desairoso suspiro | 5745 |
reza a Rigo: – Por Gus bondoso, traz o cavalo! | |
Quero avançar à linha de frente como mi cabe, | |
rei que sou, e encorajar o braço bravoro | |
lança e bandeira às mãos! – Mas Vilas e Rigo: | |
– Fica, rei, por caridade a caídos e vivos! | 5750 |
Queres expor tua vida e terminar a batalha | |
para a derrocada dum povo? – Isto apelantes | |
ambos reprimindo a gota, Totila interrompe: | |
– Vejo que titubeiam, grandes, nossos guerreiros, | |
vejo que cedem já los primeiros e o dies se apaga. | 5755 |
É preciso impedir a desdita sem medo nem mora: | |
Não sabeis que deste prélio depende o futuro? | |
Não sabeis que buscamo-la derradeira esperança? | |
Venha o cavalo! – De pouco adiatarom os rogos | |
e veio o cavalo. Totila montava o bicho apressado | 5760 |
288
mentre ao longe divisava o que enfim se passava. | |
Antes pero que o rei dos godos desse as esporas | |
foi avistado pelo arqueiro: Procêncio mirou | |
atrás da linha Totila camuflado de guerra. | |
Pensando ver um mero soldado puxou intrigado | 5765 |
o quanto pôde a corda, a flecha mais afiada. | |
Totila tomava da lança quando veio de encontro | |
a seta lacerando-li o peito em rajada de sangue: | |
– Rei alvejado! – ecoa o brado e Totila atingido | |
cai, amparado pelos braços de Rigo e de Vilas: | 5770 |
– Deus è grande, amigos, e o curador de feridas | |
não desampara o peito sereno! – Isto dizendo | |
mal continha a dor nas distorções de seu rosto | |
como li ardesse fundo a carne. Antes porém | |
de mais irrompe Ruderico, buscando o patrono | 5775 |
Vilas e derramando forte afluência por terram: | |
– Eo vi, meu pai, eo vi lo autor dum tiro covarde! | |
Eo vou, meu pai, vingar meu bom Totila e meu povo! – | |
Antes que ouvisse os moderados apelos de Vilas | |
ele partiu, ca não julgou correto o valente | 5780 |
289
guerreiro ver o quanto vira e leixar impune. | |
E Ruderico marchou, com lança forte no braço | |
e passo firme atravessando a linha de frente. | |
Não se importou desafiando em tudo o destino | |
pois o peito dum rei generoso fora ultrajado. | 5785 |
Ele marchou, e demandando l’outeiro de arqueiros | |
viu fugir os atentos: Sabiam que ali penetrava | |
bom lanceiro e certo o maior do exército godo. | |
Porém Procêncio desatento mirava adiante | |
quando o grito de Ruderico irou retumbando: | 5790 |
– Não de novo atires pelas costas dum bravo, | |
covarde, a flecha infame e vem lutar de verdade! – | |
Mas Procêncio no sobressalto dum gesto agitado, | |
ato contínuo volta-se a Ruderico e li aponta | |
contra a cabeça a seta que preparava na corda: | 5795 |
– Sou guerreiro bravo e pela frente eo atiro | |
como atiro, atrevido, contra ti se quiseres! – | |
Isto dizendo lançarom destemudos olhares, | |
mas tomando firmes cada qual de petrechos | |
ambos correrom rumo al irrevogável combate: | 5800 |
290
Foi combate curto ca Ruderico arremessa, | |
qual se fora flecha, todo o peso da lança | |
contro corpo vulnerável do filho de Narses. | |
Quando entretanto a lança dilacera Procêncio, | |
jogando fora o seu corpo e cravando na terra | 5805 |
um juvenil cadáver – da corda avança uma seta | |
e míssil que penetrando Ruderico no crânio | |
derriba o filho de Vilas em violenta agonia. | |
Procêncio caído mal parece ainda mover-se | |
pelo derradeiro reflexo – l’outro guerreiro | 5810 |
nembra porém lo seu dever et amor de seu povo: | |
Ergueu-se e como em desastroso milagre marchou | |
lo monte abaixo para expirar no braço do pai. | |
Contudo um corpo cambaleado recede e se nega: | |
Em meio à linha de guerra lança um grito inaudito | 5815 |
e finda no meio do rumo; assim morreu Ruderico. | |
O prematuro fim duma busca revela-se ao mundo, | |
leixando ao chão entranhas e pranto petrificado. | |
Mas também Procêncio beirando a porta da morte | |
ainda um momento recorda a pobre mãe que leixava. | 5820 |
Que destino infeliz e vergonha à vida de Narses | |
como guerreiros de quem a sua sombra abeirou-se! | |
Ora entendia, e como não, que um pequeno ladrão | |
furtando galinhas non cabe numa guerra bravor: | |
E pois assim pensando assim leixou de pensar. | 5825 |
Por quê, se a verdade
è bõa que luz, destino
quis o fim de todos
dias? Certeza maior
è que, todos os dias,
da sombra da morte
estrela aurora nasceu.
ο’ | |
| |
U lo paradeiro porém de Totila? | |
Era verdadeira a notícia da flecha? | |
Caía a noite e lo desespero invadia | |
guerreiros, rumores circulando confusos | |
que o rei quiçá caíra, fugira, morrera. | 5830 |
Assim começou la debandada e gadrãos | |
querendo em vão resposta lançavam embora | |
escudo e clava. Ajoelhados e exaustos | |
batiam ao peito reconhecendo a derrota, | |
livrando angustiados clamores. Perdudos | 5835 |
por entre cadáveres divisavam no escuro | |
escado talvez de amigos, imigos quiçá. | |
Mas aonde fugir e por quê, e como agir, | |
de que modo viver? Desordenados lanceiros | |
corriam rumo à sombra abismal do bosque, | 5840 |
292
caçando a própria vida por entre buracos, | |
o pranto como o medo guiando na treva. | |
As tropas de Narses, embebudas del ódio, | |
buscavam ainda assim desarmados seguindo | |
o passo e perseguindo aflição de caídos. | 5845 |
Ó destino espedaçador de esperanças, | |
quanta vegada o bom guerreiro aturdido | |
lançou-se aos pés de vencedores irados | |
rogando clemência? Quanta vez vencedores | |
erguendo a spada decapitarom rendudos | 5850 |
ajoelhados e mendigando e plangentes: | |
– Me mata não, seu filha da puta! Deixa | |
nós viver, respeita quem se rendeu. – | |
De pouco adiantaront apelos de Narses: | |
A caça a fugitivos tornara-se o novo | 5855 |
lazer dos atrozes. Cá e lá combatiam | |
ainda isolados godos, talvez dessabendo | |
uma triste verdade os derradeiros heróis. | |
Alguns unidos resgatavam-se em grupos | |
de dous ou três buscando abrigo na sorte. | 5860 |
293
Pobre a vida em fuga porém que caísse | |
nas mãos de caçadores vis de caídos. | |
Feitores da treva e da violenta falange, | |
os hunos e os bizantinos matarom a esmo. | |
Passavam lombardos incendiando aldeias | 5865 |
de perto e trucidando quanto avistassem. | |
Assim perecerom juntos romanos e godos, | |
crianças, mulheres, inocentes pastores. | |
Quão diferente Totila tratara essa terra! | |
Mas os godos corriam, comprehendendo | 5870 |
a cada passo que aquela batalha pusera | |
fim à florescência de todo-los anos: | |
às obras de Teodorico e viço dos povos, | |
às esperanças de paz e do bem de Totila. | |
Clamarom! Amargamente choraro o desfecho | 5875 |
dum reino mas fecho não dum reino somente, | |
dum povo inteiro exterminado num dia: | |
Jazia uma tumba aberta no meio do mundo. | |
Mas Narses, angustiado na incerta vitória, | |
ainda atende a palavra final de peritos | 5880 |
294
vinta a resistência nos últimos focos. | |
Qual non foi porém la surpresa do eunuco | |
quando se houverom aproximado da tenda | |
dous legados – vinham de opostas veredas: | |
Um li depôs ao braço esquerdo a bandeira | 5885 |
em sangue do rei Totila atestando a vitória; | |
l’outro li impôs ao destro o corpo ensan- | |
guentado do filho testemunhando a verdade. | |
Narses – lançando embora ao chão a bandeira, | |
Narses num grito ensurdecedor desmorona | 5890 |
perante um corpo sem vida qual se vivesse. | |
Ele para, ele cala, ele fala e confessa: | |
– É, meus amigos, uma coisa è verdade: | |
Quando destino odeia a vida dum homem, | |
quando o destino decide a derrota, | 5895 |
aí non tem vitória nem guerra | |
nem façanha nem milagre que salve. | |
É assim que se acaba mesmo essa | |
vida quando o destino inveja. | |
Como pude crer que meu amor | 5900 |
295
por Procêncio fosse maior? | |
Como pude crer que uma certa alegria | |
coubesse dentro do meu coração, aqui, | |
num mundo por onde nunca nada me amou? | |
Não existe, guerreiros, è tudo ilusão, | 5905 |
eo sempre soube, eo disse al Imperador: | |
Desde que vislumbrei la sombra do mundo, | |
indústria de ultrajes, o mundo me castigou. | |
Por que me abandonas, morte libertadora? | |
Eo passo pelo mundo lutando e marchando | 5910 |
pelos vãos de toda esperança frustrada. | |
Ai, Procêncio, meu filho era tão inocente! | |
Tiveste a desventura, filhinho, de um die | |
cruzar meu andar, e não se conformou | |
lo destino ao ver meu coração jubiloso. | 5915 |
Lançando a ti, menino, um olhar generoso, | |
matei-te! Lancei contra ti uma ingrata | |
fortuna e destruïdora de todos que amei: | |
É, meus amigos, uma coisa è verdade ... – | |
Perdendo a palavra, um general sem vitória | 5920 |
296
prostrou-se longamente ao lado dum corpo. | |
Mas mirando estrelas, tornando à verdade | |
e secando os olhos, a voz clamou resoluta: | |
– Paulo! – E levantando-se chama um soldado | |
e desarmado desarmador de armadíssimos: | 5925 |
– U se encontra Paulo? Paulo, guerreiro | |
que bem te vejo, sai de perto de mim! | |
Destino arrasa quem se aflige por mim. | |
Ainda procuras, menino, o gesto correto | |
de guerra e gesto redentor da existência? | 5930 |
Ai, meu caro, eo conheço o fim dessa busca! | |
Toma aos ombros teus o meu filho Procêncio, | |
sê meu amigo! Vai devolvê-lo aos braços | |
da mãe, de quem num movimento infeliz | |
sequestrei, selando a desventura de três | 5935 |
desafortunados! Cruza por mim a distância | |
por terra ou mar e tem coragem, prossegue | |
ata lo fim da jornada! Procuras ainda, | |
Paulo, o gesto excelso? – Paulo escudeiro | |
inesitante assente e tomando Procêncio | 5940 |
297
monta o primeiro equino que lá se mostrava, | |
cônscio que foi de inquebrantável dever. | |
Mas Narses, retirando do peito um anel, | |
dourada e valiosa prenda que entrega | |
ao bom guerreiro, roga: – Pois chegares | 5945 |
entrega àquela mãe meu tesouro singelo. | |
Ela que venda e com fé em Deus encontre | |
algum abrigo pelo mundo e seu pão. | |
Diz que descobriste no chão este anel | |
e não que vem das mãos do eunuco odioso, | 5950 |
porque matei seu filho mais do que meu. | |
Reporta somente, Paulo, uma breve mensagem: | |
Procêncio caiu porque o destino invejou. | |
Não contudo como um ladrão de galinhas | |
Procêncio caiu: Procêncio caiu como homem, | 5955 |
como um guerreiro digno do nome de Roma | |
Procêncio caiu, porque Procêncio venceu. – | |
Assim partiu a cavalo um fiel escudeiro, | |
na madrugada misto de treva e de luto. | |
Estava determinado a varar como raio | 5960 |
298
e como relampo em poucos dias tornar. | |
O eunuco entretanto balançava a cabeça | |
buscando ainda notícia do fim de Totila. | |
| |
| |
π’ | |
| |
Pelas escuridões a cavalgada avançava, | |
Rigo perto, os escudeiros, | 5965 |
Totila retorto por dentro. | |
Iam varando a treva em galopes | |
e defendendo o rei de armadilhas. | |
Era possível remover das entranhas | |
a flecha? | 5970 |
Totila comprimia os gemidos, | |
a dor, o incêndio no peito, | |
quando mais um ataque irrompeu: | |
Lombardos perseguindo | |
vinham mirando as suas lanças. | 5975 |
Mas Rigo crendo ali desertores | |
reprime: – Alçais a spada contra Totila, | |
cães, o vosso rei? – Alçarom, e atirando | |
cegos pelos ermos as lanças | |
uma acertou, assim o quis destino, | 5980 |
299
uma adentrou, por acaso e pelas costas, o rei, | |
que lançava um novu golfo de sangue | |
boca afora, o galope cortando seu ventre. | |
Mas a busca dalgum retiro os impeliu | |
por horas pelos bosques e estradas. | 5985 |
Quando enfim Totila em seu tormento | |
lançou do cavalo um grito, | |
Rigo parou, o rei parou, os escudeiros pararom, | |
ouvindo: – Findemo-la jornada, | |
vou perdendo as rédeas e o fôlego. – | 5990 |
Rigo mandou buscarem água e desceu | |
lo rei do cavalo: Deitou-o | |
pela beira da estrada. Totila | |
olhando muito além ponderava: | |
– Andei demais e demais cavalguei. | 5995 |
Minha ferida, Rigo, è maior do que a vida. – | |
Não permite resposta: | |
– Que será de meu povo? | |
Deus desdisse de mim e do povo dos godos. – | |
Mas o amigo: – Não, as feridas se curam | 6000 |
300
e Gus protege um povo inocente. | |
Calma! Tiraremos a flecha, amigo, | |
vamos embora vivos! – O rei retruca: | |
– Não percebes que aqui se acaba uma vida? | |
Deus non quer o nosso povo entre os povos. | 6005 |
Não li agradou meu sacrifício. – | |
A mão que mal se levanta aponta | |
para uma pedra, a voz implorando: | |
– Toma aquela pedra, apaga da história, | |
Rigo, apaga da história meu nome. – | 6010 |
Mas um fiel herói tomando aos braços o froia | |
falava e consolava. | |
Era em vão! Perdendo os olhos, | |
ele cuja mão alçara caídos | |
mira el outro e questiona: | 6015 |
– Onde està Deus, amigo? Rigo, onde está Deus? – | |
Totila morreu. | |
Rigo na escuridão plangeu: | |
– Por quê, destino e Deus? | |
Paga melhor mereci ca tanto arrisquei | 6020 |
301
no amor de meu povo e meu rei! | |
Falhei, Totila, falhei meu dever. | |
Antes morresse a minha vida errada, | |
vida sem rumo, vida menor! – | |
Falando e soluçando e gritando | 6025 |
Rigo correu, e nem se sabe por qual abismo | |
Rigo caiu. | |
Narses ouviu do paradeiro final | |
pelas escuridões, e mandou | |
buscarem um fio de cabelo e pedaços | 6030 |
do vestuário, | |
a prova que desejava lo Imperador. | |
Mas aproximou-se uma certa mulher | |
rogando baixo: | |
– Ouvi dizer que Maria, | 6035 |
mãe de Cristo, intervém pelos mortos. | |
Vim de longe fiando a Deus a viagem, | |
migrei de ermida em ermida: | |
Onde está meu amigo, Narses? | |
Onde está sua tumba? | 6040 |
302
Não viölentes | |
um corpo sem vida! – | |
Mas sentindo o destino e tantas perdas | |
Narses superou | |
sua dor: | 6045 |
– Chamo covarde o guerreiro que vendo um cadáver | |
nega-li a paz, atormenta um jazer derradeiro. | |
O gesto que temes, Senhora, não se inscreve | |
em minha bandeira. – | |
Mas el outra responde: | 6050 |
– Pois o gesto que ainda mi resta | |
è gesto simples, è só recordação. | |
A minha vida pequena non cabe em poemas: | |
Quero pedir a Deus piedade! – | |
Narses revelou-li o jazigo. | 6055 |
E Rodelinda partiu, levando uma prenda. | |
Rogando a sós a compaixão do impossível, | |
ela prestou l’homenagem da sua amizade. | |
Ó tormentosa noite, | |
quantos olhos se erguerom pela treva | 6060 |
303
cônscios da perdição de Roma e da morte da Itália. | |
Ó tormenta que tanta vida iludiste! | |
O senador se alegrava, pensando que a guerra | |
acabara e que Roma estava livre. | |
Levando pela estrada a vida e a família | 6065 |
caía nas mãos dos godos. | |
Pois os godos vingarom pela estrada a covardia | |
de quem decapitava rendudos. | |
Não se teve dó de quem ofertava a própria vida? | |
Pois responderom: | 6070 |
Quando Teia viu los filhos do patriciado, | |
na escola que o rei erguera num die melhor, | |
mandou destruir – | |
e forom degoladas trezentas crianças. | |
Fortuna decidiu: | 6075 |
Non cabe vitória neste mundo. | |
Não renasças, sol, esconde o teu lume: | |
Nada rëergue desta noite a ruína de Itália. | |
Já non passa pelo campo o guerreiro, | |
já ninguém enterra a multidão. | 6080 |
Apenas Vilas, o homem sem mão, procura | |
pelo escombro remexendo despojos, | |
clamando: – Ruderico, meu filho! – | |
Mas na madrugada os corpos eram sem rosto, | |
o rosto non tinha brilho. | 6085 |
Caídos e misturados pelo destino | |
jaziam calados, juntos, como se fossem irmãos. | |
|