TOTILA
© Gregorius Vatis Advena 2017, Record E 6, engl. Totila, Hampshire, heterometres, 6087 lines, epic poetry, epography, Portuguese.
© Gregorius Vatis Advena 2017, Record E 6, engl. Totila, Hampshire, heterometres, 6087 lines, epic poetry, epography, Portuguese.
Rei dos ostrogodos, Totila (lt. Tótila, gr. Τουτίλας, Tutílas) luta pela reconquista da Itália após herdar uma custosa guerra contra os bizantinos. Justiniano, o novo Imperador, sonha em revigorar o Império Romano. Roma porém está cercada. A fome e a destruição se espalham pela Itália. O Imperador, enfim, decide enviar Narses a cabo de imensas coortes. A guerra dos godos (535-554) é um dos momentos mais traumáticos da história ocidental.
Imagem: Imperador Justiniano (centro) e séquito (Belisário à esquerda, Narses atrás à direita), Basílica de São Vital, Ravena, ft. de Roger Culos, CC BY-SA 3.0.
Poema épico, Totila retrata a guerra como condição íntima do ser na angústia dum mundo irracional ou racionalizado arbitrariamente. O fogo, o conflito, a destruição exteriorizam tanto o animal indomável quanto o anjo perdido em sua luta por sentido, numa contenda invisível que arrasa e fortifica. O poema discute, entre outros temas, o conceito da boa guerra e seus paradoxos.
Sinfonia No. 9 em ré menor op. 125, primeiro movt., Beethoven, regência de Herbert von Karajan, Filarmônica de Berlim, 1962, PD [União Europeia].
As formas orgânicas do idioma são autônomas, livres de realidade. Não há um padrão morfossintático fixo. A composição reúne práticas medievais e medievalizantes, contemporâneas e experimentais. O mundo que o poema retrata é caracterizado por plurilinguismo e diglossia, sem uma norma coercitiva. O português serve apenas de língua-base para um idioma fluídico.
Em sua guerra de estilos inconciliáveis e escandalosos, é um poema moderno: Traduz o postulado de Rimbaud por uma arte progressiva onde os métodos mais avançados e diferenciados se mesclam às experiências mais avançadas e diferenciadas, também como crítica social.
Em métrica, o poema alterna episódios em hexâmetros longos e breves, por vezes irregulares – seis ou cinco tônicas separadas por uma ou duas átonas, ou por pausa. Em geral, o verso começa em tônica e termina em diérese bucólica – o ritmo tátata-táta. As alternações são frequentemente quebradas por quadros em verso livre.
O uso das formas épicas é tratado no quadro das conjugações épicas e no ensaio Prosódia e Grafia, notadamente os subtítulos [3] e [4]. Certas formas também são ilustradas neste excerto anotado, no Carolíngio.
Há dois grupos de formas épicas em Totila, as históricas e as avangardistas. No primeiro grupo, ocorrem tanto (a) formas arcaicas, documentadas no português antigo e que se pode consultar no Glossário da Poesia Medieval, quanto (b) formas arcaizantes, isto é, licenças épicas eufônicas ou latinizantes, composições sem documentação histórica, ainda que verossímeis. Dentre os termos documentados, sejam assinalados:
al, pron. [aliud]: algo, outra coisa
atender, verbo: esperar
ca, conj. [quia]: que, já que, porque
camanho, pron.: tal, tamanho
chus, adv. comp. [plus]: mais
eire, adv. [heri]: ontem
elo [ê], pron. [illud]: aquilo
ende, adv. [inde]: daí, de lá, disto
esto, pron. [istud]: isto
er, adv: ~ de fato (enfatisa o verbo)
home, pron. indef.: ~ alguém (~ “se” apassivador)
i, adv. [ibi]: aí
ja-quando, adv.: em algum momento
medês, pron.: mesmo
mentre, adv.: enquanto
mi, pron. dat. [mihi]: a mim
nimigalha, pron.: nada
nulhome, pron.: ninguém
nulho, pron. [nullus]: nenhum
ogano, adv. [hoc anno]: este ano
pero, adv.: mas (geralm. átono)
pero que, conj.: ainda que
pois (que), conj. [post]: depois que (com fut. subj., pret. perf. ou pret. ant.)
quejendo / quejando, pron.: qualquer que seja
quis, pron.: cada um; mais raro: alguém
rem, pron.: nada
sou, pron.: seu (altern.)
tou, pron.: teu (altern.)
u, adv. int. [ubi]: onde
vegada, subst.: vez
As conjugações épicas são tratadas neste quadro completo. Dentre as desinências mais recorrentes, assinalem-se as do quadro abaixo. A cruz pátea ( ✠ ) indica formas históricas documentadas, como o pretérito anterior (houve amado) e o particípio regular da segunda conjugação (perdudo, temudo, cf. fr. perdu, it. perduto):
| |
PADRÃO | FORMAS ÉPICAS |
| |
perco | – |
perdes | – |
perde | perdet |
perdemos | perdemus |
perdeis | perdedes ✠ |
perdem | perdent |
| |
perdi | – |
perdeste | – |
perdeu | perdeut |
perdemos | perdeumos |
perdestes | – |
perderam | perderom ✠ |
| |
– | houve perdudo ✠ |
– | houveste perdudo ✠ |
– | houve perdudo ✠ |
– | houvemos perdudo ✠ |
– | houvestes perdudo ✠ |
– | houverom perdudo ✠ |
| |
perderei | perdeia |
perderás | perdeias |
perderá | perdeia |
perderemos | – |
perdereis | – |
perderão | perdeiam |
| |
perde | – |
perdei | perdede ✠ |
| |
perdido | perdudo ✠ |
| |
Poucas palavras do idioma gótico incorporaram-se ao português e castelhano. Em Totila, são reconstituídas algumas palavras em roupagem românica, indicadas no quadro abaixo. Indica-se em itálico o termo original e por vezes a correspondência no alto alemão antigo (AA) e no inglês antigo, ou anglo-saxão (AS).
Pronúncia: A letra ƕ (hwair) soa como uma junção acelerada de hw. A letra þ (thorn) é uma fricativa dental surda (/θ/, cf. th no inglês thick). A letra h final é uma fricativa velar surda (/x/, cf. ch no alemão Loch). A grafia gg soa ng. As grafias aí, ái e ai soam próximas de é, as grafias áu, aú e au próximas de ó.
acrão, subs. [akran]: fruto
aƕa, subs.: rio, água
anamantar, verbo [anamahtjan]: ofender, atacar, violentar
anguisa, subs. [aggwiþa]: angústia
ansa, subs. [hansa]: companhia, multidão
arbedar / abredar, verbo [arbáidjan]: trabalhar
arbel, subs. [arbáiþs]: trabalho
are, subs. [harjis, AS. here]: exército, coorte
armel, subs. [armaio]: piedade
aulear, verbo [aflētan]: perdoar
bandar, verbo [bandi: laço]: unir, juntar
barno, subs. [barn, AA. barn]: criança, jovem
berar, verbo [báiran, AA/AS. beran]: trazer, portar
blingar, verbo [bliggwan, AA. bliuwan]: bater, abater
bloa (m), subs. [blōþ]: sangue
bloma, subs.: flor
bor, subs. [baúr]: menino
brecar, verbo. [brikan, AS. brecan]: quebrar; lutar
brodo, subs. [brōþar]: irmão
dodra, subs. [daúhtar]: filha
eiþan (pron. /'iþan/), adv.: ora, portanto
ero, subs. [haírus]: espada
ersa, subs. [aírþa]: terra
erto, subs. [haírtō]: coração
escado, subs. [skadus]: sombra
escanda, subs. [skanda, AA. scanta]: vergonha
escão, subs. [skáuns, AA. scōni]: belo, bonito
escau, subs. [skatts]: dinheiro, custo
estau, subs. [staþs]: lugar, parte
estoa, subs. [staua]: conselheiro, juiz
éu, subs. [áiws]: vida, vitalidade, força, tempo (de vida), tempo, eternidade
fadro, subs. [fadar]: pai
fagro, adj. [fagrs]: belo, adequado, nobre
féror / fréu, subs. [faírƕs, AS. feorh]: mundo
flol / frol, subs. [þlaúhs]: luta, batalha, campanha
fragadar, verbo [frawardjan]: destruir, corromper
frial, subs. [frijaþwa]: amor
frião, subs. [frijōnds, AS. frēond, AA. friunt]: amigo
froia / frói, subs. [fráuja]: mestre, senhor; aqui: rei
gadrão, subs. [gadraúhts]: soldado, guerreiro
gaiúca, subs. [gajuka]: companheiro, camarada
gão, subs. [gaggs]: caminho, estrada, rumo
gardo, subs. [gards]: casa
gau, adj. [walis]: santo, escolhido
goia (m), subs. [gáuja]: conterrâneo
gor, adj. [gáurs]: triste, dolente
gorisa, subs. [gáuriþa]: tristeza, infortúnio, dor
greto, subs. [garaíhts]: justo, correto
gualdar, verbo [gawaldan]: governar, reinar
guem / guena (f), subs. [wēns]: esperança
guer, subs. [waír]: homem
guerso, subs. [gawaírþi]: paz
guês, subs. [wigs, AA. weg]: caminho, rumo
gueso, subs. [waíhts]: coisa
guma (m), subs. : homem
Gus, subs. [Guþ]: Deus
ƕa, adv. int.: quê?
ƕão, adv. int. [ƕan]: quando?
inufo, adj.: inglório, infame
lustar, verbo [lustōn]: desejar, cobiçar
ogo, subs. [áugō]: olho
suão, subs. [sunus, AS/AA. sunu]: filho
suim, adj. [swinþs]: forte, saudável
toer, verbo [táujan]: fazer (conj. como doer)
tringo, adj. [triggws]: fiel, verdadeiro, íntegro
ufão, subs. [wulþus]: glória
α. O povo de Roma fala a Pelágio.
δ. Totila busca Bento de Núrsia.
ε. Totila faz justiça ao camponês.
ζ. Guardas oferecem Roma a Totila.
θ. Os godos comemoram com Ruderico e Vilas.
κ. Pelágio intervém a Justiniano.
λ. Vilas perdoa e adota Ruderico.
ν. Um Romano morre nas flamas.
ξ. Belisário intervém a Totila.
ο. Belisário reconquista Roma.
ς. Os godos reconquistam Roma.
τ. Germano marcha a caminho da Itália.
χ. Totila fala ao povo no Circo Máximo.
ψ. Narses em marcha adota Procêncio.
α’. Os francos recusam Rodelinda a Totila.
β’. Godos e bizantinos travam batalha no mar.
δ’. Segisberto impede a marcha de Narses.
ε’. Rigo apela a Segisberto e Rodelinda.
η’. Ruderico retorna são e salvo.
θ’. Paulo conduz a Ravena as tropas de Narses.
ι’. Os godos conclamam à batalha em campo aberto.
κ’. Narses como Totila encorajam as tropas.
λ’. Paulo e Rigo aduzem façanhas de guerra.
μ’. Os godos e as tropas de Narses travam batalha.
ν’. João sobrinho de Vitaliano e Vilas travam combate.
Por quê, se a verdade
è bõa que luz, destino
quis o fim de todos
dias? Antes da aurora,
serenidade o rever
do escado eternidade,
cintilante fréu.
Como devotos de Iemanjá lançando prenda ao mar depus no entardecer, Apolo, ofrenda de flores sobre a pedra cantando pelo prado um nome renembrado. Terás talvez de teus éus esquistos inda um olhar sobre a sombra das vidas? Tutor de tringos, é somente um poema que dedico ao teu escudo maior, è dom menor que a beleza da bloma e que a força das armas. Acede não por mim, mas pela dor de Roma que o verso recorda e que outrora te honrou.
Naveguemos, Febo, pelas ondas desta Internet, abominável bênção por onde, agitados, caçadores de moda e divisores de tempo vão flutuando vagos, intrigados no facebook e no twitter comentando a temperatura do vento. É por esse deserto que um destino severo impôs viver e dividir o que somos, e desse palco improvável evoco, na flor e na voz e no html, a transcendência dum deus incompatível.
Eu, se puder pedir, pedirei, ò Febo, que a tua mão se abata pelo fréu como um raio escaldante, sol devorador que sês, e fragades as redes e os cabos, como um martelo esmagues no ferro uma impostura exterminadora de vida e verdade. Confunde, gadrão insaciável, a pretensão dos distraídos: Atira os seus filhos contra a rocha!
Muitos quiserom prantear a gorisa que canto e também pranteio tarde. É preciso evocar, Apolo, com toda a força do sopro e todo el erto o teu concurso: Não naufrague na indiferença brutor o esmero de longos anos! É preciso muitas flores depor a fim de que a bõa sorte vença, se assim quiseres, a inveja de tantos deuses e dum destino destruïdor de desígnios. Praza às tuas setas cruzando o peito de eleitos despertar amor ao belo, ao bom e ao vero. Em ti se acaba o que seja velho ou novo.
Feita a minha parte, Febo, faz a tua. Ordena à musa inebriar o sopro do fagro ledor e destruir, no flol de teu verso, a presunção de quem lê com pressa e má vontade. Tu que miraste, rei guerrar, o fundo das almas, prepara-me a palma no templo donde Platão aguarda, juiz de Homero e dos maus. Não ergui minha voz para cantar quimera e quero vênia se algum momento o verso for menor do que a vida. Redime, Apolo, um cantar imperfeito e contudo ansioso da verdade. Ave eleitor de fortíssimos, ave desarmado desarmador de armadíssimos!
© Gregorius Vatis Advena 2017, Nulla Dies Sine Linea.
Totila |
α | |
| |
– Pois o corpo, Pelágio, desmoronou de repente | |
lá na fórum, mortinho e mastigando poeira, | |
gente do céu, non sobra nem urtiga nem rato, | |
Roma è isso aí que virou. Sabes quem era? | |
Era um home dos Flávio, povo lá do Senado | 5 |
mês inteirinho cozinhano urtiga e comeno | |
cada coisa a pessoa de longe ouvir n’acredita. | |
Mas senhor, este cerco acaba quando, faltano | |
pão e carne, romano vasculhando excremento? | |
Nós aqui inventano alimento que a boca mastiga, | 10 |
Bessas lá guardano gado, escondeno comida! | |
Fala com ele, assim non tem condições o negócio, | |
povo aqui sem dinheiro o cara cobrando cinquenta, | |
cem moeda por carne, peão, peraí, quequeísso? | |
Pó parar coessa história, è cachorrada issaí, | 15 |
avisa lá que romano quer comer de verdade, | |
caso contrário pode abris’se muro e simbora. | |
Guerra è deles! Eu que vivo aqui no meu canto | |
quero o quê com guerra? Vitória nossa è comida, | |
pão no prato alimenta, o resto è palhaçada. | 20 |
1
Pois melhor que nós tà viveno escravo com dono, | |
claro, a vida ali tem mais sorte longe de è cada | |
casos que vou viveno e vendo. Quem escraviza | |
dá sustento, ahissim! Agora do jeito que a coisa | |
vai non vai, e digo mais: Ontem de tarde Terêncio | 25 |
vinha que andava e carregando os seus filho | |
rumo à ponte ali, a prole inteirinha gemeno | |
dava dó, que Deus è que sabe como passaro | |
todo o mês sem nada. Adota um filho, meu filho, | |
pois aí que se sabe a dor o que é: Terêncio | 30 |
lá com cinco andano sem poder, prometendo | |
leite e pão – ô meu Deus, na frente daquela | |
prole arruinada um pai se atira da ponte! | |
Ele desaparece e deixa o resto sem rumo, | |
vivos só por força do Céu. E vi com meus olho | 35 |
tipo do nada uas mãe de improviso, os osso vagano | |
semimorto, o choro pesando mais que o corpo, | |
dero braço aos renegados, enquanto naquela | |
margem buscavam caçano carne o corpo afogado. | |
É, meu amigo, è cada coisa que a gente vai vendo | 40 |
2
fica louco! Esta gente cansada e sem guerra | |
fez que mal no mundo quem merecia descanso? | |
Olha a situação ca né favor que nos fazem, | |
foi Bizâncio com Belisário e Justiniano, | |
essa gente doida aí que trancou todo mundo: | 45 |
Nem nascero perto nem nunca viero nem viro! | |
Caso contrário Roma inteira tava deserta e | |
nós correno pelo mundo, qualquer paradeiro | |
bênção já contanto que caiba vida e comida. | |
Mas se querem prender o povo feito escravo | 50 |
den’do muro, peão, peraí, então alimentem! | |
Ou então que matem ca morte mata essa fome. | |
Só que do jeito que vamo nòr vamo tudo simbora, | |
cada qual fugindo como puder que sem medo e | |
quem vier punir que puna, contanto que mate! | 55 |
I, Pelágio, fala pa Bessa entreg’â cidade | |
toda a Tótila, o rei dessa godaida danada. | |
Coisa feia demais esconder comida do povo! | |
Já falamo duas vez e já li imploraumo: | |
Ele mente! Vem reforço o quê de Bizâncio? | 60 |
3
Era fermento, ahissim, o reforço! Tu que doaste | |
tanto, meu senhor, dinheiro e valor de bondade, | |
vê se intercede um pouco por piedade muitoro. | |
Só teu manto, Pelágio, protege o povo de Roma! | |
Pede ao general que as vidas vadamo embora | 65 |
cada qual de seu rumo e sem destino e demora. – | |
| |
| |
β | |
| |
Mal protestavam, pois a fome calava | |
a boca de audazes: Plebeus e senadores | |
iam dividindo caídos a terra e migalhas | |
levando areia à boca. Homem da Igreja, | 70 |
Pelágio promete ao povo o quanto pode | |
como aos grandes de Roma, ora meros | |
mendigos, ossos ambulantes apenas. | |
A mãe segurava um ressecado rebento | |
berrando como gado e concurso de gritos. | 75 |
Chegara ao termo, a multidão entendia, | |
o brio da idade eterna: Não adentrava | |
o soldado pelos arcos com prenda famosa, | |
portando forte a lança que outrora partia | |
os montes nem escudo. A seta punha-se | 80 |
4
como o sol: Ocaso de impérios raiava | |
cedendo espaço à treva. Onde os leões | |
leixando atrás Itália rumo aos extremos? | |
Passavam devastando em moções arrojadas | |
peritos no cerco. Formavam suas fileiras | 85 |
os braços imbatíveis de César, vencendo | |
valentes. Muitas vezes tropas ferozes | |
forom atravessadas a fundo por uma | |
única lança: Bastava a mão dum herói | |
impôr-li força e voo. Houve espessos | 90 |
broquéis suportando a queda do templo. | |
O cavaleiro cruzava a terra num dia | |
e triste a tropa usando marcha contrária. | |
Pisar os Alpes, passar o Reno e Danúbio | |
era a jornada da morte: Cães implacáveis | 95 |
e furiosas mãos dirigindo falanges | |
atropelavam bárbaros, homens e jovens | |
cavalgavam sobre o chão de cadáveres, | |
nadadores natos de sangue e de entranhas. | |
Vorazes carregavam troféus e cabeças | 100 |
5
de volta ao ninho das águias, pela via | |
a turba ingente dando salvas afoitas | |
em nome de César. Quando os estandartes | |
da tropa tremulavam trazendo vitória, | |
abriam-se as alas de Roma e Roma dançava | 105 |
em delírio as libações gloriar e de guerra. | |
O nome são do Senado e do Povo passava | |
de boca em boca como um vinho de amantes | |
por almas ébrias, lascivamente imortais. | |
U essora entretanto os leões agitados, | 110 |
u los homens de imoderados humores, | |
varões violentos? Era terra perduda | |
e campo aberto a toda espécie de gente | |
o traço destruído da Itália: Entrava | |
como o vento em popa o cavalo inimigo | 115 |
matando à toa. Bárbaros, homens novos | |
apareciam da treva lutando por terra. | |
Desnortearom cidades dantes floridas | |
vertend’o muro ao mar. A beira da estrada | |
mostrava norte e sul a pilha de corpos, | 120 |
6
a terra fértil deflorada em batalhas. | |
O lavrador largava da mão la enxada, | |
pastores fugiam leixando o gado à deriva. | |
Quem se creu seguro em próspero abrigo | |
viu subir na aurora o soldado da morte. | 125 |
Quem buscou la cidade cercada por muros | |
foi cercado pelos muros e pelos soldados. | |
O pão era raro e pereciam os fracos | |
corpos de fome e sede. El home prudente | |
quando havia tempo e valor e tesouro | 130 |
zarpava em perigosíssimas naus a Bizâncio: | |
Muitas forom tomadas no mar ou na praia | |
de súbito assalto, vidas lançadas às ondas, | |
famílias desfeitas. Quem outrora soubera | |
o mal dos destinos de Itália cantara talvez | 135 |
com lira menos forte o delírio das armas. | |
Frequentador da corte em Constantinopla, | |
Pelágio chegara rico de trigo e de prata | |
mas expôs o seu caso a Bessas, o chefe | |
das tropas defendendo a muralha ferida, | 140 |
7
Bessas que enriquecera vendendo comida: | |
– Home non pode leixar esta gente sair! | |
Correndo morrem de fome e mão inimiga. | |
O mundo todo viu da sorte de Nápoles | |
como se dizimou sem dó fugitivos. | 145 |
Há perigo demais, Pelágio: Esperem! | |
Em breve Belisário vem com reforço. – | |
Porém a voz duma grei perdeu paciência: | |
– O povo, Bessas, somos nós e queremos | |
que acabe logo o cerco! – Alguns fugiam | 150 |
indiferentes à lei saltando de pontes, | |
caçando façanha contr’a incerta corrente. | |
Nem por isto se contentar’os restantes: | |
Houve conselho e debate forte e tumulto. | |
No meio da noite, os senadores buscarom | 155 |
Pelágio, que pareciam tábuas andantes: | |
– Nunca se viu parar o comércio de Roma. | |
Parou! A gente quer obrar e non pode? | |
A vida humana jà não difere dos ratos | |
porém milagre, Pelágio, ainda existe | 160 |
8
que salva Roma e presta bem atenção: | |
Irás a Totila! – O nome caiu feito raio | |
sobre um fraco que recuou aterrado: | |
– Totila, rei dos godos? – Era impossível. | |
Tremendas narrações circulavam por Roma | 165 |
da iniquidade dum rei, detalhado o relato: | |
Cortava e decepava o braço de bispos, | |
lançando fora da boca a língua do audaz. | |
Homem irado e vário de humor e nervoso, | |
mudava de ideias. Dava ordens de morte e | 170 |
traía Deus e promessas. Envolto em sangue | |
ergueu la espada e Florença veio por terra. | |
Tratava como escravos romanos e godos | |
forte no punho: Destruiu monumentos | |
coas próprias mãos. Tesouros antiquíssimos | 175 |
forom roubados, herdeiros perderom a terra. | |
Bastava um ato, palavra errada ou depressa | |
custava a vida ao pedinte: Um rei implacável | |
reganhara uma guerra e rugiu lo tirano | |
amigo dos maus, seu nome causando tremor | 180 |
9
em Roma e toda Itália. Em Constantinopla | |
o medo perseguia os passantes na sombra | |
e Justiniano rolava as noites em branco | |
falando a sós no pavilhão de audiências. | |
Totila esvaziava as cidades e as almas | 185 |
no inferno, parece, temiam dardos do godo | |
mais que ao demônio. Juiz injusto, julgava | |
o seu juízo final e os pacatos tremiam. | |
Pelágio como que entorpisto em vertigem | |
meneava a cabeça, as mãos tremulavam: | 190 |
– Romanos, qual poder de mundo convence | |
um homem desta estirpe? Totila me mata! – | |
O veredito porém de anciãos morredouros | |
mal se deixa esperar: – Hesitas, Pelágio? – | |
Assim falando mostravam as multidões | 195 |
prostradas rente à morte. Ora o nobre, | |
envergonhado de pôr a própria vida | |
acima da salvação de seu povo, cedeu | |
temeroso. Pôs-se a sós ao caminho de fora | |
levando ao godo as embaixadas difíceis. | 200 |
10
Saiu sem ouvir o apelo extremo de Bessas, | |
saiu pedindo a Deus piedade e constância. | |
| |
| |
γ | |
| |
Ora, a boca de Roma assim rezou a Totila: | |
– Desconheço, froia, da lei e costume de godos | |
como tratam na guerra o mensageiro de estranhos. | 205 |
Mas em Roma como em terra de gregos sempre | |
foi ouvido com caridade l’homem sem armas, | |
boca oferecendo a paz. Ao gesto de trégua, | |
quando è justo o governante e bom, acede e | |
Deus o tenha. Eu, entretanto, fui enviado | 210 |
sem mi darem tempo ou preparar as palavras. | |
Venho aqui pedir por humilde gente e famintas | |
ordens venho cumprir. Deus ilumine o caminho | |
desde já dum rei que der ouvido ao pequeno. | |
Quero falar, se puder, e se aprouver falarei ou | 215 |
como ao rei convier. – Tótila ouvindo responde: | |
– Podes falar! Inclui porém à paz a verdade e | |
diz o dia, Pelágio, onde o rei dum correto | |
povo castigou desarmados. Não me recordo e | |
tanta petulância me ofendes: Somente o covarde | 220 |
11
fere na guerra a boca buscando paz e concórdia. | |
Mas diácono, nem dum cão se soube de ofensa | |
como a que temes. Quero conhecer a proposta: | |
Hei la paciência de ouvi-lo que Roma deseja, | |
como anela a paz e quais os termos do acordo! – | 225 |
Isto dito, Pelágio rogou: – O povo se acaba e | |
vai caindo de fome e quase um ano de sítio. | |
Ó senhor, uma gente atormentada definha | |
sem maldade, sequiosa da vida e da morte. | |
Quem socorre, soberano, um destino arruinado? | 230 |
Vão morrendo sem saber a razão duma luta | |
já maior que a razão. Melhor è nem recordar | |
as bocas mastigando rato e catando formiga, | |
verme, urtiga. Forom inventadas comidas, | |
ave, que nem se pode dizer. Culpa do povo? | 235 |
Não! Os homens dessa resistência de Bessas | |
são apenas poucos: Reprimem no fraco o rouco | |
grito por paz. Será possível, rei dos godos, | |
certo amor ou piedade da vida inocente? | |
Como Teodorico, o rei de outrora e ditoso | 240 |
12
pai romanor e de godos, cumpre agir. Agiremos? – | |
Mas responde surpreso um novo rei aturdido: | |
– Nunca desdenhei de nenhuma imérita coita, | |
sempre ajudei ca protegi da morte inocentes: | |
Basta a rendição de Roma e seremos amigos! | 245 |
São apenas três as condições da concórdia: | |
Pelo próprio bem do povo a muralha de Roma | |
será destruída em primeiro lugar. O longo cerco | |
já teria acabado se os muros não impedissem. | |
Não devolvo, em segundo lugar, escravos fugidos | 250 |
dividindo a bandeira dos godos. Não quebrarei, | |
jamais, el hombridade a quem combate conosco. | |
Puno Sicília em terço lugar! A terra de ingratos | |
há de pagar seu mal, porque meu povo a poupou | |
mas ela abriu seus portus às tropas de Belisário: | 255 |
Sempre ajudei ca protegi da morte inocentes! – | |
Mal ouviu lo diácono e fraquejava perplexo: | |
– Que dureza de coração, Totila, e que raiva | |
contra um povo decente e quão injusto juízo! | |
Nem sabia a Sicília que Belisário aportava, | 260 |
13
nem se soubesse, coitada, que combate ousaria | |
contra tanta esquadra a triste grei desarmada? | |
Vão pesando já los meus olhos só de pensar | |
naquela gente agricultora que mal se mantém e | |
jamais erguerá no mundo espada contra uma vida. | 265 |
Este o crime, porém, de que acusais uma simples | |
grege tão somente abrigando quem foge de Roma? | |
Mas que digo e que esperança ainda mi resta? | |
Pois se contra um povo tão pequeno e pacato | |
tendes tanta raiva, quanto mais do de Roma, | 270 |
ai, que tanto tempo abriga as tropas de Bessas | |
pero que a contragosto? – Mas o rei sitiante | |
não concede e Pelágio reconhece a derrota, | |
fim do intento e breve intervenção por caídos. | |
Era melhor, talvez, perder os pés e a palavra? | 275 |
Antes porém de soluções e juízo acertado, | |
Pelágio viu-se a sós e transtornado e sem rumo. | |
| |
| |
δ | |
| |
Tótila recordava o legado | |
todos os dias. Sob o sol e na sombra | |
o mal que descrevera, | 280 |
14
o fantasma perseguiu-o. Cismando | |
e contrito falava a sós. | |
– Rigo! – chamou no meio da noite | |
o mestre de escudos. Num surto de febre | |
o monarca buscava resposta. | 285 |
Andavam no escuro | |
debaixo das árvores quando o rei interrompe: | |
– Pelágio não mente. – | |
Mas o perito avisava: | |
– Ele torce por nossa desgraça, | 290 |
conspira contra nós. | |
Aguarda as tropas de Belisário | |
ca então verás a verdade. – | |
Totila escutava, | |
mas Rigo não o vira: Verdade era parte | 295 |
da voz de Pelágio. | |
Pensando além, ruminava as perdas | |
de guerra e tempo. Pesando os presságios | |
e muita dor | |
tomou pelo braço Rigo, depondo: | 300 |
15
– Irmão que és, | |
farás um favor que te peço: | |
Veste a roupa do rei godor e te apressa! – | |
Rigo não entendeu, mas Tótila segue: | |
– Sabes do santo do Monte Cassino? | 305 |
Busca-o! Finge seres Totila, pergunta | |
por Deus e pelo guês e vitória. – | |
Nembrando imagens | |
como Pelágio pintara, o rei prescreve: | |
– Se o cerco è vão, | 310 |
nòs vamos embora! – | |
Falava aturdido | |
e repetindo palavras. Perdera o juízo? | |
Rigo partiu de manhã cavalgando por ermos, | |
no siso incerteza. | 315 |
Vindo ao monte recluso, | |
por onde ao sopé cuidavam dous de verduras, | |
Rigo saltou do cavalo – | |
os hortelãos se prostrarom | |
certos da morte. | 320 |
16
Mas o frião do rei | |
demanda: – É aqui | |
que Benedito se encontra? | |
Eo sou Totila, o Frói, eo quero vê-lo. | |
Chamai o gau! – | 325 |
Os dous assombrados subirom | |
mas logo Rigo avistou, que descia moroso, | |
Bento abrindo seus braços: | |
– Bem-vindo, Rigo, à nossa morada. – | |
Como se um raio o fulminasse, | 330 |
o servo do rei surpreso ardeu no seu pranto, | |
mas escondendo os soluços ouviu Benedito: | |
– Filhinho, será benvindo qualquer irmão | |
que visitar nossa escola de Deus! – | |
O cavaleiro subiu ao cavalo e | 335 |
foi-se embora. Entrou aos gritos na tenda | |
do godo: – Benedito è bom de verdade! | |
Os ogos seus pousarom em mim e souberom | |
meu nome e quem me mandara! – | |
O rei no mesmo momento | 340 |
17
leixou atrás o resto | |
subindo ao cavalo. Varou | |
os campos tristes dando ao Monte Cassino, | |
passou perante os mortos. | |
Quando a prima estrela raiava | 345 |
chegou, de longe como olor da terra molhada | |
subindo ao céu, e pediu: Chamassem o santo. | |
O qual acedeu, que descia e saudava: | |
– Ave rei, que buscas? – Um rei de joelhos | |
beijando-li a mão falou do fundo do peito: | 350 |
– Como foi isto, Bento? | |
Por que motivo | |
um homem ilustre e culto | |
abandonou seu nome? | |
Por que | 355 |
buscaste abrigo em cavernas | |
bebendo chuva e comendo terra? | |
És um santo e punirei | |
quem te mandou embora de Roma: | |
Diz o nome apenas! | 360 |
18
Diz quem te fez vagar pelo frio | |
abandonando a cidade! – | |
Mas Bento de Núrsia | |
põe a destra sobre el ombro do godo: | |
– A vida è constância | 365 |
quando o Cristo guia, fuga não. | |
Abandonei meu nome | |
pois o nome nunca existiu, nenhum existe. | |
Deus | |
mostrou-mi um rumo maior do que a glória. | 370 |
Non caibo num Fórum | |
que à vida verdadeira non cabe: | |
Foi Deus que me mandou embora! | |
Pois ouvi, entendi, retirei-me à caverna | |
pelo amor de Roma e de todos. | 375 |
Deus não se impressiona com Roma, | |
Deus, que è rumo, vida e verdade! | |
Foi Deus que fundou esta escola | |
donde a vida humilde pede por quem è grande, | |
e pede só piedade. – | 380 |
19
Olhos nos olhos, Totila | |
responde ardente: – Ai de mim, Benedito, | |
pois herdei um dever lastimoso, | |
eu, que nasci no reino tranquilo | |
na paz de Teodorico: | 385 |
Era uma bloma a Itália, Roma era amor! | |
Por que odiarom tanto o meu povo? | |
Quero saber de Deus: | |
A vitória è nossa ou de Justiniano? | |
Um ano se passou de cerco e de fome. | 390 |
Se Deus mandar embora eo vou, | |
reúno o meu povo e busco guês. | |
Mas Deus desdisse dos godos | |
depois de tanta guerra e sofrimento? – | |
O santo mostrando o céu emergiu: | 395 |
– O futuro a Deus pertence. | |
Talvez a vitória venha a ser de teu povo, | |
mas ah, filhinho, | |
como è breve o ganho do mundo: | |
Vitória e verdade se excluem. – | 400 |
20
Isto e muito mais el homem santo lis disse. | |
E um rei angustiado cavalgou pelo bosque | |
junto a Rigo et outros. | |
Não sabia, nembrando a grave sentença, | |
se Bento falava da sorte ingrata de todos | 405 |
ou predizia a ruína. | |
| |
| |
ε | |
| |
Veio a pé da Calábria gritando por dias inteiros | |
um home atravessando a terra, arfando cansado: | |
– Rei! A piëdade que rogo è somente a da morte, | |
sim, ordena ao soldado que desonrou minha filha | 410 |
crave fundo esta faca forte aqui no meu crânio. | |
Olha, senhor, o mundo nem me ensinou a falar: | |
A vida minh’è leite de vaca e vagar em cidade | |
onde Deur me ajuda e vou vendendo e viveno. | |
Era tão bonito quando a menina era alegre. | 415 |
Nunca fez um mal a ninguém, coitada que era, | |
só tocava em teta de vaca e cuidava de bode. | |
Dia e noite ela orava e preparava a comida, | |
tinha tristeza em minha vida não, soberano, | |
minha filha pensava mais em mim que na lida, | 420 |
21
eu, que vou ficando fraco e ficando caduco. | |
Ai, meu Deus, chegou de repente aquele soldado, | |
dei-li o gado inteiro e comida e leite e dinheiro | |
não li bastou, Totila! A minha filha gritava | |
feita louca implorando em vão mar nada ajudava. | 425 |
Maltratou demais a menina, desdisse de Deus! | |
Ela agora corre e grita e non sabe o que fala | |
nem reconhece pai nem mãe, sò fica chorano. | |
Isto nè vida não. Se alguma cura eo soubesse | |
dava dinheiro mas ali, senhor, non se cura. | 430 |
Já que Deus non teve de nós piedade nem graça | |
vim morrer. Senão, eo vou viver de que jeito? | |
Era ela o sustento meu e da mãe perturbada | |
nem justiça ajeita mais uma vida quebrada: | |
Mata logo quem non tem nimigalha de nada! – | 435 |
Dito isto prostrou-se como curvado de cãibras | |
mas Totila estendeu-li a mão, o rei ao caído, | |
contendo como podia as impressões desregradas: | |
– Tem a bondade, ancião, de revelandi o nome | |
desse soldado. – Feito assim Totila alterou-se: | |
– Prendam! Tu porém, senhor, descansa por hoje e | 440 |
22
logo discutiremo-lo termo da morte que imploras. – | |
Mas aos soldados o rei ordenou li dessem abrigo, | |
pão e remédio: Fosse provudo bem e de tudo! | |
Quando aos conselheiros houve chegado o caso, | |
pela manhã demandarom transtornados Totila: | 445 |
– Este werreiro, rei, è forte herói de batalhas! | |
Veio do peso da sua lança, tremendo projétil e | |
míssil que como nulhome arremessa, nossa vitória | |
contra Nápoles: Veio de graça ofertar a vida! | |
Quando a morte era certa, cercado nunca fugia | 450 |
nem se viu nos éus valência maior entre godos; | |
antes corria enquanto a multidão de aliados | |
debandava em retirada escondendo-se em selvas, | |
todo a sós, al ombro a lança contra milhares | |
guer sem medo. Perdeu respeito à morte lutando. | 455 |
Pois o corpo carrega inteiro marcas de guerra | |
como um troféu de sacrifício por nossas ansas! | |
Não baixar ja-quando o viço dum tringo soldado: | |
Que pensavem ao verem preso, punido ou caído | |
raro exemplo, monumento à coragem de guerra? | 460 |
23
Toda guerra è feia, froia! Os crimes da carne | |
forom preço, nel ato extremo, de várias vitórias. | |
Algo de compaixão lo bom guerreiro merece, | |
doutro modo o gueso gótico nosso se perde e | |
vai-se embora na sua gorisa a massa dos bravos. | 465 |
Já se passarom tantos anos de morte na Itália, | |
Gus dos céus, e cada dia se assoma incerteza | |
pelas mentes. Não fragades a guena menor e | |
foco de fé que nos resta ainda: Tempo è verdugo. | |
Eiþan, cá conclama o bom conselho dos rainos: | 470 |
Seja solto, pelo amor da anguisa dos godos, | |
seja solto um tringo a quem se deve a vitória! – | |
Mas Totila responde: – Perdestes vossa memória? | |
Ik, estoas, selara acordo de paz com Bizâncio | |
pronto a render o forte e gumas meus de Treviso | 475 |
quando viestes suplicando ofertar-mi a coroa. | |
Fôramos lá deixados por Vítice, o rei dos vis | |
covarde abandonando as arma durante a batalha. | |
Fora morto o meu tio Idibaldo, Deus o tenha, | |
mas a vós pareceu prudente crer no impossível! | 480 |
24
Ora, desde o primeiro dia roguei mi dissésseis | |
contra quem imperava prosseguir esse flol. | |
Contra quem lutamos, godos, quem combatemos? – | |
Eles porém perplexos retrucarom de súbito: | |
– Contra Justiniano, Tótila, e contra Bizâncio. | 485 |
Como não, se veio deles a guerra e ganância? – | |
Isto dito, o rei concatena: – Não mi rogastes, | |
goias, a luta contra romanos, contra inimigos | |
sim jurei guiar o meu povo, rei dos romanos | |
como dos godos. – Soldados recebendo o sinal | 490 |
trouxerom adentro o genitor duma vida sem honra: | |
– Diz um gueso, ancião – Totila assim começa – | |
tinha a menina alguma relação com Bizâncio? – | |
Mas o velho assustou-se: – Tinha como, Totila? | |
Nunca saiu de casa. – O rei porém continua: | 495 |
– U nasceu? – O velho disse: – Lá na Calábria. – | |
Nisto Totila apontando os conselheiros unidos | |
pede ao pai: – Explica por piedade aos juízes | |
qual a vida que tua filha levava em gardo. – | |
Mas o senhor ouvindo clara a palavra juízes | 500 |
25
teve medo e deformado por lágrimas trouxe: | |
– Só tocava em teta de vaca e cuidava de bode. – | |
Foi levado afora por onde esperava aturdido, | |
Totila dentro falando aos anciãos temerosos: | |
– Fui traído, godos, foi punida a inocência! | 505 |
Era aquele o soldado mais valente dos nossos, | |
ele que arremessou coa mão lo exército ao chão? | |
Foi de fato o mais covarde dos hômino aquele | |
que tanta força usou e contra a vida sem erro! – | |
Quando o guerreiro teve compareçudo na corte, | 510 |
vendo junto ao rei lo conselho, o pai da menina, | |
pôs a verdade: – Rei, o crime meu è sem cura. – | |
Totila retruca: – Cão! Algum soldado dos nossos | |
foi mandar unires-te sujo à nossa cohorte? | |
Ƕa? Por que pagaste em guisa tão grotesca | 515 |
tanto de guena depositado em ti pelo povo? | |
Para quê lo arbel de tantos gestos heroicos? | |
Não leixei passar um único dia em batalhas | |
sem avisando ao are que não tocasse castos | |
nem ferisse inocentes. U passavas, werreiro? | 520 |
26
Éramos vinte mil gadrãos no início da guerra | |
mas gana e presunções e gestos feios minarom | |
nossa força: Homens como tu, vergonhoso! | |
Raça melhor requer um rei de escasso recurso | |
quando a salvação de seu povo exige a vitória. – | 525 |
Mas o guerreiro sem medo agora calava-se, | |
vendo que nem defensores seus se alegravam, | |
antes balançavam baixa a cabeça confusos, | |
inda buscando pela mente fraca argumento. | |
Disse-lis pois o rei: – O pai daquela menina, | 530 |
já sabeis a graça que veio rogar de seu froia? | |
Veio pedir, estoas, a própria morte somente! | |
Que toer? Mostrave al idoso gor e minado | |
que neste reino a morte vale mais do que a vida? | |
Ou foi ufão maior mostrar por alguma atitude | 535 |
que neste fréu alguma coisa fagra è possível? – | |
Entra entonce o velho trato adentro na corte | |
donde Totila olhando os olhos seus explicou-se: | |
– Tenho torturado a mente em vão ruminando | |
como posso perante meu Deus, juiz de juízes, | 540 |
27
dar-te a mortem que firmemente pedes e imploras. | |
Diz algum dos crimes que perpetraste na vida, | |
dá-mi ajuda, ancião, porquanto rem encontrei. | |
Antes pesei na mente os atos teus e palavras | |
e como pude as comparei com juízes. Andante! | 545 |
Quanto mais a tua boca articula as palavras | |
mais se evidencia a mim que tou nome è justiça. | |
Como manchar de morte a vida que veio de longe | |
greta e caminhando por léguas a pé destemuda, | |
trazendo al erto apenas confiança em Totila? | 550 |
Desta corte o tringo vai-se embora com vida! – | |
Mas o velho não se leixou levar por palavras: | |
– Rei generoso, è mais amarga a minha verdade. | |
Tudo acabou: Levaro meu gado, leite, dinheiro. | |
Todo dia eo busco um lugar de andar pelo mundo | 555 |
mas no mundo acabou lugar ca meu gado acabou. | |
Sei viver sem rumo não, eo quero um descanso | |
e peço morte è para estar chus perto de Deus. – | |
Isto dito Totila estendeu la mão que calasse! | |
Junge-li o rei: – A tua morte non posso te dar | 560 |
28
mas posso dar justiça e dom maior do que a morte. | |
Para que tou pedido non fique em tudo incompleto | |
dar-te-ei de fato uma morte, a morte del ímpio | |
ser que anamantou la menina. E dou-te um ordem: | |
Leva contigo o gado, o leite, l’escau, lo remédio, | 565 |
leva el ouro que o rei te daremos e trata a menina, | |
trata como se fosse dodra dum rei que a protege | |
nem reclames: Maior justiça somente a de Gus! – | |
Totila, pois, ordenando a morte dum pravo soldado | |
deu los seus haveres todos, pilhagem de guerra | 570 |
ao pai, que retornava embora aos braços da filha | |
rico rezando a todos que encontrava na estrada | |
quão bondoso li fora o rei Totila dos godos. | |
| |
| |
ζ | |
| |
Na mesma noite aparecerom quatro | |
soldados bizantinos. Eram remotos | 575 |
da Isáuria, pois lugares ermos proviam | |
a tropa de combatentes. Quando Tótila | |
os recebeu indagando o que ali buscavam, | |
os guardas apavorados se ajoelharom | |
trazendo: – A gentchi venh’aqui li falá | 580 |
29
da partchi dji Bessas mandô a gentchi não. | |
Sinhô, até daqui si consegui iscutá | |
gemidu i som dji todu jeitu i sufridu | |
qui mermu surdu ôvi. Inda tem gentchi | |
im Roma guentanu gemê na fomi, è milagri | 585 |
mermu du infernu! Maz ua coisè verdadji: | |
Vali nada essi Bessas guardanu cumida | |
du povu, coisa qui nenh’è deli, è du povu: | |
pedaçu dji grão i carni lá da Sicilha. | |
U qui eli gostè dji cachorrada, Totila. | 590 |
Semana passada li iscreveu Belisáriu: | |
Tomi vergonha na cara, so trastchi infeliz, | |
e dê dji cumê au povu. I Bessas s’importa? | |
Ficô foi ricu dji tantu vendê pa quem pódi | |
pagá, ou melhó, pudjia: Djinhêr acabô. | 595 |
Agora mi diga: Issè serviçu dji gentchi? | |
Até soudadu passanu fomi! Dji noitchi | |
u coru comi qui è bebedera i mulhé | |
i dança i só festança i lambança na torri. | |
Mar fora, meu Deur, dà dó djimair dji vê | 600 |
30
morrê mininu i velhu feitu cachorru: | |
È coisa du cão! – O rei porém produziu: | |
– Por várias vezes, soldados, propus a paz | |
e a fome, como se vê, è culpa de Bessas. | |
Esse tipo de gueso no’existe entre godos, | 605 |
quem veio viu. Que Bessas se renda e logo! | |
Comigo non cumpre falar, e sim com ele! – | |
Mas um dos quatro irrompeu desordenado: | |
– Nem quiu demôniu mi lev’eo falu cum Bessas, | |
gentchi rũi, qui si dependê dum cachorru | 610 |
feit’aqueli Roma si acaba dji fomi i | |
aaave Maria. – Forom pois revelando-li | |
o plano: – A troca da guard’o sei a ora | |
quó é. Eu, i us treis aqui, cumeçamu | |
dji madrugad’u nossu turnu, u restu | 615 |
durminu. Pelu amor dji Deus, soberanu, | |
entri dji veis im Roma, acabi cũ issu! | |
Nòis abri u portão laterau da muralha, | |
a trop’inter’invadji i termin’u suplíciu, | |
promessa nossa. Sò queru sabê ua coisa, | 620 |
31
sinhô: Si nóis abrí u portão-là pa godu, | |
será qui godu dexa a gentchi vivê? – | |
Totila foi tomado como dum raio e | |
faísca nos olhos, concedendo exaltado: | |
– Ah, soldados, se for verdade a promessa | 625 |
não somente vivêieis mas ricos sereis | |
e tereis de mim uma recompensa tremenda. – | |
Mostrava-lis pois o baú repleto de joias, | |
deliciosas as prendas de prata e d’ouro | |
e pedras delicadas, pulseiras, correntes. | 630 |
Erguendo uma recatada presilha dourada | |
na forma e na tez duma borboleta luzente, | |
el-rei lis disse: – Vale mais duma vida! – | |
Choravam quase em comoção los soldados | |
nembrando as toscas ocas donde saíram | 635 |
pelos ermos da Isáuria – eles, coitados, | |
que só buscavam pão de início, dinheiro, | |
leixado atrás em regiões desgraçadas | |
família grande na espera e mães e meninas. | |
Totila marcasse a data e logo abririam | 640 |
32
as portas da velha Roma ao rei dos godos – | |
e quis-cada-quem encontraria ao final | |
lo paraíso seu, dinheiro out império. | |
Mas o rei confabulando nos bosques | |
com Rigo, lo tringo amigo, rogava aviso | 645 |
e falava baixo: – Será verdade a promessa? | |
Sõ espiões mandados por Bessas, não? | |
È bom demais para ser verdade, meu caro. – | |
Mas Rigo ponderava em silêncio perplexo, | |
o queixo caindo. Vez et outra mirava | 650 |
adoidadamente as folhas dum árvore antigo, | |
entusiasmado na sua incerteza, e por fim | |
devolvia: – Melhor atender, melhor estudar | |
e ver porque gente simples non sabe mentir. | |
Investiga bem issaí porque gente da Isáuria, | 655 |
rei, dali non sai mentira. Os soldados | |
o quanto dizem pode esser emboscada, | |
sei, mas não parece. Totila, investiga | |
logo issaí que parece vitória, è verdade. – | |
Na mesmo instante forom mandados às pressas | 660 |
33
dous ou três ou quatro a rondar a muralha | |
de madrugada e compravar os relatos. | |
Nisto porém a notícia do plano iminente | |
chegou a Bessas: Veio da boca dum bom | |
soldado e fiel guerreiro de Belisário. | 665 |
Sim, Belisário sim amava e buscava | |
a salvação de Roma, contudo esperava | |
em Portus vendo o resto da Itália rendudo, | |
o comandante calado e de mãos abanando. | |
Quem não sabia da glória de Belisário, | 670 |
quem não temia o grande general de Bizâncio | |
que destruíra os vândalos? Era o maior dos | |
guerreiros! Bessas não: ouviu la notícia | |
no meio da noite embriagado, nos braços | |
da sua puta e no toque da cítara grega. | 675 |
Ouviu, bebeu, sorriu e nem sem importou: | |
Houve sim responso ao bravo informante | |
que a flecha forte dos hômino seus bastava | |
contra godo qualquer. No mesmo momento | |
quatro soldados transbordantes angústia | 680 |
34
buscavam Totila: – Pel’amor dji Jesuis, | |
sinhô, qui demor’è essa? Si Bessas soubé | |
dalgua coisa a gentchi morri linchadu. | |
O quer’è quium raiu cai na mha cabeça i | |
mi matchi agora nafrendji tuquè gentchi | 685 |
si fô mintchir’u c’o tô djizenu, qui Roma | |
tá qui implora invasão ’sa cidadji dji Roma, | |
sò faltè querê! – Totila enviava espiões, | |
e nesses lances de medo e tanta incerteza | |
o monarca buscava profundamente aprehenso | 690 |
de novo a tenda de Rigo: – Talvez Benedito | |
preveire, gaiúca, a grandiosa vitoriam! | |
Reza, amigo, roga que Deus se apiede | |
da nossa gente, a glória seja a verdade | |
e não tropeço e não começo de morte. – | 695 |
Quando ouvirom que já seguiam a Portus, | |
donde Belisário intentava o resgate, | |
muitos outros soldados, o peito na boca | |
querendo avisar o quanto antes o plano | |
ao comandante, aqueles quatro isáuricos | 700 |
35
forom aos godos cavalgando e tremendo: | |
– É agora ou nunca! – Ouvindo e pesando | |
os detalhes, Totila incerto e lívido incede, | |
a Rigo e poucos outros dos próximos seus, | |
que fossem ver de si mesmos no meio da noite | 705 |
o estado da rês. Em poucas horas voltarom | |
e disse-li Rigo medês: – Tudo em silêncio, | |
a guarda dorme e ronca e sonha tranquila. – | |
Deu-se assim que um rei, arfando exaltado, | |
mandasse a quatro soldados: – Podem abrir | 710 |
as portas de Roma! Podem abrir a cidade! – | |
| |
| |
η | |
| |
Quand’o aluvião de tropas entrou na cidade | |
Bessas e os seus soldados debandarom na hora. | |
Pela porta oposta e desordenados, perplexos | |
cães leixavam pelo chão escudos e lanças, | 715 |
pois um medo feral cambaleava a coragem. | |
Eles contudo fugirom duma fuga ligeira: | |
Quem não conseguia fugir era sim o povo | |
pelas ruas, na sarjeta, na vala cons mortos. | |
Que visão e triste sina aguardava Totila e | 720 |
36
quantos corpos apodrecendo à beira do Tibre: | |
Só sobravam quinhentas vidas naquela cidade. | |
Quem podia correr corria, no seu desespero, | |
rumo àlguma igreja de abrigo e não se enganava: | |
Era um ódio tremendo depois de meses em duro | 725 |
cerco et anos florescendo no peito dos godos, | |
era de pouco efeito o sermão dum rei moderado. | |
Home assistia a lança atravessando os corpos | |
pelas costas no meio da rua. As vidas idosas | |
iam caindo e lamentando o que não mereciam. | 730 |
Cada templo de Roma era um formigueiro de aflitos | |
dividindo a fome, os gritos e o medo do mundo. | |
Não havia plebeus e patrícios, e sim romanos | |
terrivelmente irmãos. Os senadores de agora | |
vinham batendo de porta em porta pedindo comida, | 735 |
concorrendo com cães e moscas na caça por carne. | |
Uma coisa, parece, Totila ensinou aos soldados | |
pois que houverom trata os tempestuosos lanceiros | |
Rusticiana, que for’a esposa do antigo Boécio: | |
– Essa mulher do demônio pagou pra destruírem | 740 |
37
a estátua de Teodorico! Pois prendemo a cadela! | |
Froi, a vadia nem precisa morrer de verdade, | |
basta nós usar como quer, nòs acaba com ela. – | |
Mas a refém mirava o chão e negav’a palavra, | |
ela cuja dor, relatavam, matara de pena | 745 |
Teodorico, sim, num pesar desgostoso da vida. | |
Inda nembravam como outrora o rei da paz, | |
depois de trinta anos aclamado por todos, | |
fora imprudente em breve e desgraçado instante. | |
Dando ouvido à língua duma invejosa mentira | 750 |
veio a crer que Boécio, homem de prece e poemas | |
cuja causa era um pobre povo, tramav’o assassínio. | |
Antes que algum apelo forte pudesse movê-lo | |
forom mortos Boécio com Símaco, pai et esposo | |
dela que agora ali se calava perante Totila. | 755 |
Mas o rei da paz percebera tarde o seu erro: | |
Era em vão que perdia a noite inundado de pranto, | |
era em vão correr feito louco berrando orações. | |
Nem o perdão que requisera da esposa contrito | |
nem o perdão de Deus li bastava, antes sonhava: | 760 |
38
Via Boécio derramando seus olhos no claustro | |
e tendo às mãos a cabeça decepada e sangrando. | |
Essa visão do inocente seguiu lo rei da paz | |
na aurora e tarde da noite não havia sossego: | |
Meses depois, Teodorico enfermou-se e morreu. | 765 |
Mas também a matrona passara os últimos anos | |
presa dum pranto imorredouro e porém ajudando, | |
como outrora o marido, infortunados de Roma. | |
Tótila entanto manda: – Fique em paz a mulher! – | |
Mas o clamor maior se ouviu de manhã nos famintos | 770 |
quando o monarca, tendo Roma inteira renduda, | |
veio rezar e agradecer a Deo por tremenda e | |
grandiosa vitória, dentro da igreja de Pedro. | |
Ora, la igreja de Pedro amanhecera lotada, | |
era uma densa massa o mar buscando refúgio: | 775 |
Desde a madrugada as mães escondendo menores | |
atrás de bancos gemiam baixo cobrindo o rosto. | |
Eram muitos que ali andavam dum lado ad outro, | |
eram muitos chorando os seus desaparecidos. | |
Outros ficavam deitados num canto escuro calados | 780 |
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vendo a cruz e sem nenhuma esperança e consolo. | |
Quando Totila pôs os pés adentro da igreja | |
rumo al altar, o povo em desespero irrompeu. | |
Era uma gama de ajoelhados rogando clemência | |
como crianças balbuciando num pranto agitado, | 785 |
como quem nunca tivesse sentido o gosto do mundo. | |
Criam que o rei entrara para mandá-los embora | |
já que fora do templo a ponta da espada aguardava. | |
Veio contudo um distinto vulto de encontro a si, | |
curvado e carregando uma bíblia. Era Pelágio: | 790 |
– Pelo amor de Deus, piedade dos destitutos! | |
O pobre povo abandonado de tudo em Roma | |
fez o quê para merecer – pero não prosseguia | |
pois as suas palavras afogavam-se n’alma. | |
Mas Totila li acede: – Sai do chão, infeliz, | 795 |
agora! Eu devia è brecar a tua cara de infame, | |
eu devia mandar cortar-te a língua, falsário! | |
Quando me houveste visto fiz oferta de paz | |
e generoso acordo: O testemunho da vida | |
prova quem eo sou e quanto fiz pelo povo | 800 |
40
não dos godos, mais até por gente de Roma. | |
Ende rem impressiona as ambições de Bizâncio! | |
Tens a memória curta, cão! – Pelágio contudo | |
recomposto um pouco sussurra: – A minha ambição | |
de mundo, meu senhor, è pão pra Roma somente! | 805 |
Eu que servia Bizâncio sejo agora tou servo e | |
servo apenas teu: Ordena de mim o que queres e | |
minha vida è tua. El única prenda que imploro, | |
rei, è compaixão por estes que nada fizerom! | |
Tem paixão de nós estora que Roma se rende: | 810 |
Ordena por Deus aos invasôribos teus caridade | |
pois aqui se congregam não inimigos: escravos! – | |
Totila foi erguendo Pelágio et outros do chão e | |
proferiu aos seus leixar em paz moribundos, | |
mas voltou adrentro invocando: – Para, Pelágio, | 815 |
suportei ofensas demais por esta paróquia. | |
Não mi venhas dizer perante o povo que è minha | |
culpa a devastação desta terra. Quero justiça! | |
Quero falar aos senadores no Forum Romano! – | |
Forom rebandados às pressas caindo aos pedaços | 820 |
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homens velhos e anamantados de fome farrapos. | |
Já também lo povo se aglomerava no Forum | |
para ver o que o rei diria e quanto ouviria. | |
Mas aqueles idosos de outrora império, calados, | |
forom despidos per ordem do rei perante o povo, | 825 |
para que dessem nus o testemunho da inglória: | |
– Raça infeliz – Totila acena –, desde o começo | |
tenho mandado apelos desesperados e cartas. | |
Não entendo donde vieire a vossa descrença e | |
vou buscando em vão resposta e me desiludo. | 830 |
Que de mal no mundo Teodorico vos fez, | |
senhor que dava à plebe pão e mão amistosa? | |
Era um protetor do Senado e do povo da Itália, | |
ele amava mais a Roma que a própria gente. | |
Inda dileto em toda parte, ele nunca interveio, | 835 |
antes vos dava a cada dia mais liberdade. | |
Mas que paga feia dades ao rei valeroso! | |
Muitos forom privados para dar ao Senado | |
nova glória, pero que efêmera como vemos. | |
Mas i se vê lo princípio que move o destino. | 840 |
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Ele, que tudo fez, se pedisse algum favor | |
de vós seria rem comparado ao que dera e | |
deu de graça, pois è tal la guisa dos godos. | |
Eu, de minha parte, pedi que abrísseis a porta | |
para que o bem de Teodorico aqui prosseguisse! | 845 |
Quis evitar o caso gor em que agora vos vejo | |
mas foi tudo ilusão, foi tudo incauto juízo! – | |
Inda boquiaberto, o rei mirava os fantasmas: | |
Ossos encolhudos no frio perdiam olhares | |
pelo chão enquanto a gente tapava os olhos. | 850 |
Mas Totila em novo acesso incluía-lis inda: | |
– Er dizede perante a sombra de Teodorico | |
de qual bondade Justiniano usou per Itália, | |
homo que nem aqui nasceu! Peleja por Roma | |
como se Roma fora seu berço, mas eu vosso rei | 855 |
è nado na terra e na mesma terra cá me criei! | |
Não cheguei nem vim de alhures como soldados | |
gregos e os persas e constantinopolitanos, | |
mercenários sem causa e de toda causa paga! | |
Não saí por aí corrompendo no mundo inteiro | 860 |
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jovens para lutarem comigo, nem combatemos | |
como aqueles no amor dalgum passado de ufão: | |
Nós lutamos è pela própria vida dos nossos, | |
vida que um homem decidiu arruinar sem remorso. | |
Quero ouvir um bem que lo Imperador vos confira | 865 |
fora a guerr’e a demolição de tantas cidades. | |
Neste ardor de passado e de brio foi retomada | |
já dos vândalos toda a costa d’África e Líbia: | |
Deus dos céus, acabou-se l’África e Justiniano | |
cada dia aument’o imposto, arruína as ruínas! | 870 |
Pois quereis que faça o mesmo da Itália? Fará! – | |
Mas nenhum senador aduz e Totila antefere | |
frente ao For’os quatro combatentes de Isáuria: | |
– Pois, romanos, doravante serão senadores | |
estes quatro, estes sim los amigos do povo! | 875 |
Eles abrirom as portas para o fim da miséria! | |
Não julgarom bons os guerreiros de Justiniano | |
servos de tão ingrata gestão e fazenda de guerras. – | |
Como foi amargo desta vegada o silêncio | |
mentre Totila mirava aqueles homens nos olhos. | 880 |
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Mas ergueu la voz por eles um vulto singelo: | |
– Poupa, Tótila, tanta vehemência verboro | |
contra quem mostrou lealdade e ficou na cidade. | |
Não convém insultar um moribundo arruinado | |
quando a fome fez calar a verdade no ventre! | 885 |
Qual das tuas cartas alcançou senadores? | |
Eram todas retentas pela guarda de Bessas | |
ora que o bom Senado não dispõe de recursos. | |
Qual dos nus que vituperas foi responsável | |
pelas tropas de Belisário, por armas alheias? | 890 |
Pois non foi o Senado que as foi chamar a Roma! | |
Pois non foi Senado nem Povo que foi consultado! | |
Tanto nõ eram de Roma que nem lutarom por Roma, | |
saírom correndo co general e sous provimentos. | |
Estes que increpas sim, poderiam ter debandado | 895 |
mas melhor pareceu ficar conosco e servir-te! | |
Portanto não maltrates quem te implora tutela, | |
pois ficarom por confiança e não covardia! – | |
Foi talvez no efeito desse apelo que o godo | |
mandou vestir do frio los macerados aspectos | 900 |
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mas intermitiu a Pelágio: – És o meu servo | |
como dizes? Ouvi direito o termo no templo? | |
Mas Pelágio, Roma quer a guerra ou lo guerso? – | |
Roma decerto queria paz e Totila arremata: | |
– Boca de Roma, tu que dantes iste falar-me | 905 |
agora irás falar a Constantinopla por Roma! – | |
Houve tremor e convulsão perante os caídos | |
quando a nova circulou pelas ruas: Pelágio | |
fique conosco! Totila entretanto não concedeu. | |
Na mesma noite forom acertados às pressas | 910 |
termos de paz: – Em tuas mãos – o rei avisa – | |
jaz o destino de Roma. – E não havia demora. | |
Zarparia a nave em breve et era de império | |
quanto antes retornar ca lo rei esperava. | |
Mas uma grave ameaça fora escrita e com ódio | 915 |
na carta al Imperador: Se não bastare a derrota, | |
caso a guerra prossiga um pior evento virá: | |
Roma será deleta no fogo e na ponta da espada, | |
mortos os senadores, províncias serão arrasadas. | |
Tendo em mãos a missiva Pelágio zarpa apressado e | 920 |
pelas ruas atrás vislumbrava um povo alarmado, | |
antecipando juntos o fim duma eterna cidade. |
Totila |
θ | |
| |
Em torno do fogo um pequeno coro de godos | |
cantava serenas canções, os vitoriosos | |
soldados sorvendo em libações de alegria | 925 |
as notas e um gole, doce, do vinho de mel. | |
Os ânimos ébrios, entrevendo a muralha | |
envolta no inverno lunar, alçavam o cálice, | |
bebendo e dedicando as bênçãos ao froia. | |
Se vinha à mente uma gor lembrança do dia, | 930 |
consolo quem trazia mesmo era o fogo. | |
De gole em gole rolavam mais histórias | |
ali, ao redor da fogueira, e fatos heroicos. | |
Mas era um guerreiro em particular que buscavam, | |
um provedor de façanhas que os ébrios mandarom | 935 |
trazer e trouxerom: – Ruderico, frijōnd, | |
a noite è longa! Drigk, fralusts ist slapan. | |
Conta aí pragente essa história, você | |
foi como que se salvou? – Um cálice cheio | |
esvaziava-se, aos poucos, na boca do jovem | 940 |
47
e Ruderico livrava o discurso do peito: | |
– Ah, rapaz, a flecha entrou pela cara | |
e foi sair aqui no mei-da bochecha. | |
No dia seguinte só, sò no fim da batalha | |
foro ver de verdade. Passei que nem vi, | 945 |
fiquei na briga tipo morto-vivo, Bizâncio | |
tudo apavorado. A flechona era imensa, | |
ficou na cara atravessando a cabeça. – | |
Mostrava as suas deformações elegantes | |
no rosto e completava: – Só me livrei | 950 |
do pau no que pus sozim pafora e saiu. | |
Ninguém queria rancar e o povo dizeno | |
que ali non sobrevive, a carne todinha | |
rombada, ua dor que dava nem pa tocar. | |
Olha bem pa mim e mi diz s’o to morto, | 955 |
gente de Deur, to vivè demais: bastou | |
tocar na flecha e caiu depoide dois dia. – | |
Mas Vilas, o mestre de lanças, desafiou: | |
– Eiþan, menino, mostra a seta na cara | |
como quebreires e como salvaste a cabeça. – | 960 |
48
Do fundo do fogo a gargalhada irrompeu | |
mas Ruderico abafa os risos, ousando: | |
– Eo botè na tua cara e se tu quiser | |
agora, è só falar! – Mas foi impedido: | |
– Ei, gadraúhtōs! – O jovem Ruderico | 965 |
com seus cabelos ruivos de flama e soltos | |
ao vento quase longos, os olhos do azul | |
dum mar revolto, cortara a cabeça dum grego | |
durante certa batalha e guardava seu crânio | |
como troféu de guerra, que agora mostrava | 970 |
todo esbelto aos ouvintes. Ergueu a peça | |
roubada e vinta frente ao brilho que alçava | |
o teor de seu rosto bronze guerrar, e contudo | |
um pouco esmaltado de prata ao brilho da lua. | |
Ergueu lo crânio e derramou, no prenúncio | 975 |
dum ritual, o vinho no cálice amargo | |
que el osso formava agora. Bebeu a bebida | |
do artefato sagrad’e assombroso num gole, | |
sedento de vida e morte, enquanto os outros | |
o viam lamber deliciosamente elas gotas. | 980 |
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Dizia a crença: Quem bebesse do crânio | |
dum seu inimigo sorver-li-ia a corage, | |
o medês espíritu. Era a vitória cabal, | |
conquistado o corpo a conquista del alma. | |
O jovem d’armas tragau num ruído voraz | 985 |
o sopro dum morto outrora dito valente | |
por entre os camaradas gregos; as almas | |
de fato sobrevivem depois da desgraça? | |
Após as reflexões desta vida e da morte, | |
as canções de antanho soarom pela fogueira | 990 |
e tornada a calma Vilas contou seu caso, | |
considerando o jovem: – Pois que cresceres | |
darás valor maior ao amor pelos outros. | |
Eu, por exemplo, não preciso de crânio | |
nem me curei de feridas extravagantes, | 995 |
salvei meu povo foi sem alarde e sozinho. | |
Alguns se esquecero já pero não me importo: | |
Quando a gente lutou por Verona, lembra, | |
enquanto aqueles trinta mil de Bizâncio | |
tudo covarde brigava contra os nossos, | 1000 |
50
de quem restava ali sò Deus e uma pars, | |
ali no mei-do povo quem tava era eu, | |
cercado e combatendo patrás e pafrente. | |
Vinham vinte pracima do cara e montados, | |
sorte sua se vinha menos de cinco! | 1005 |
Caí, confesso, pensaro c’o tinha morrido | |
mas non sou disso não, nõ entro no flol | |
e pego e fujo pra não morrer, Ruderico! | |
Uma coisa, rapaz, meu fadro ensinou: | |
“Pode parar coessa história de erguer tua lança | 1010 |
e depoir jogar no chão que nem vagabundo!” | |
Falou assim! Então non teve negócio | |
de lança cair mas eu correr, nõ existe: | |
Caí foi junto, caí mas me alevantei | |
pa derrubar peão do cavalo e com gosto. | 1015 |
Escanda è fugir porque bonit’è lutar: | |
Gaiúca, o camerada naquela travada | |
chegou pa ficar e ficou quem teve corage | |
até lo fim, e quem caiu levantou-se e | |
quem morreu foi tringo. Fugiro foi eles, | 1020 |
51
vinte mil crepado e rabo entre as perna, | |
jogando fora o scud’e a spada, cachorro | |
buscano canil. Mas Ruderico, menino, | |
não matei ninguém por caçano cabeça | |
nem chutei caído. Sperei que se erguessem! | 1025 |
A minha lancè forte e nela eo confio: | |
a ponta derribou guerreiro e lanceiro | |
e flecheiro caiu do cavalo coa minha lança. | |
Aquilali que foi luta e de gente decente! | |
Nadei na corrente swim quebrando flecha | 1030 |
coas próprias mãos, o rio me levava com tudo | |
mas eu que levava o rio que non teve conversa | |
e diabo de rio! Cheguei primeiro e valente, | |
viero pracima de mim, non quis nem saber, | |
arremessei foi de riba e botei pra correr. | 1035 |
Foi assim! – Non teve quem não erguesse | |
o copo pelo ufão invejado daquele | |
mestre de lanças e dele ninguém maior, | |
até que aduz um goia: – Mas que queísso, | |
gente de Deus, è corage e dà nem pa invejar. | 1040 |
52
Home non pode, a pessoa fiquè confusa | |
ouvino ua coisa dessa! Vou nem li dizer | |
meu caso, nem se compara c’ua coisa dessa! – | |
A voz dos ouvintes ébrios contudo insistiu | |
que a voz de Elerico falasse, portanto entoou: | 1045 |
– Meu caso è nulha rem, nem conta meu caso. | |
Aconteceu no primeiro cerco de Roma: | |
Tava eu coa mim espada que è forte | |
e ganhei de dois que desarmei de repente. | |
Caíro e se ajoelharo e pediro, imploraro | 1050 |
mas dava dó de ver peão que chorava. | |
Tav’è eu coa mim espada e pensava: | |
Mato ou solto? – A boca se esvaziou. | |
Um certo e sereníssimo olor de hidromel | |
tornava as palavras mais macias na bruma: | 1055 |
– Leixei viver! Praquê matar desarmado | |
que já se rendeu? – Mas uma voz interpela: | |
– Homessa, Elerico, ès insano? Foi-te dada | |
a vida e deixas viver, frião, que dizes? – | |
Porém o guerreiro mirando além revelava: | 1060 |
53
– Julgar essa vida è fácil, dific’è justiça. | |
Ah, leixei, meo amigo, ali me importei | |
porque juiz de verdade è Deus: perdoei... | |
Bonito era antigamente a vida sem guerra, | |
aí quera vida, ik friyoda Rumanan meina, | 1065 |
iþ afar háifst fraláus ik friaþwa meina. | |
O coração decide ua rem mas a sina | |
non deixa a pessoa não, a pessoa, coitada, | |
tem que viver sem saber o que aconteceu, | |
se ainda existe, se vive aquela menina | 1070 |
queu amo. – Sorriu dum tristoroso suspiro | |
enquanto o silêncio testemunhava respeito. | |
Seguiam na madrugada os casos e o brio | |
de poemas amenos num monumento perdido: | |
O vento levava embora a língua dos godos | 1075 |
além dos muros de Roma e da mão do futuro. | |
O vento de fato è destruïdor de desígnios | |
nem se importa com nossas rodas de fogo. | |
O vento sopra, apaga e desfaz àmizade: | |
Quando se houverom ereitos os cameradas | 1080 |
54
buscando lenha, no meio do bosque um gemer | |
abafado e desesperado subiu dos infernos. | |
Um homem prostrado, um macerado, um faminto | |
ergueu los olhos do chão. Era um romano | |
e veio de Vilas a mágoa quando indagou: | 1085 |
– Pedacim de pão por aí? – O cão vislumbrava | |
contudo e perdia el ânimo junto coa voz. | |
O mestre lanceiro Vilas avisa ad amigos: | |
– Carece muito essome e vou-li buscar | |
algum pedaço. – Mas Ruderico interveio: | 1090 |
– Diabo de pão! Cachorrè cachorro, bandido | |
tem que morrer! – Vociferando estendeu | |
la espada, separando os passos de Vilas | |
e a roda de cinzas, confundindo o guerreiro: | |
– Queísso, barno, que foi que o mendigo fez? – | 1095 |
Vilas demand’e o jovem retruca: – Nasceu! | |
Perdi parente meu por ca-de romano! – | |
O froi ordenara clemência de todo soldado, | |
portanto Vilas num gesto grave e ligeiro | |
tomou às mãos a própria espada, antepondo: | 1100 |
55
– És um grande atrevido! Para com isto! | |
Baixa a tua espada ou verás de meu ódio! – | |
Mas Ruderico em transações embalantes | |
rugiu como um louco: – Nim þana haíru! – | |
Vilas desbrava ouvindo o grito de guerra: | 1105 |
– Recebo ordens do Froia: pão para os pobres! – | |
O sopro mal terminara as palavras e a luta | |
abriu-se viva, repentina entre as armas. | |
Voavam os velhos caçadores de sangue | |
pelos céus e farejadeiros de morte. | 1110 |
Abaixo os gumes afiados cravavam | |
lâmina em lâmina e fulminantes rajadas | |
causavam tremor. Mas ai, a inveja do acaso | |
joga os sous dados na tirania do arbítrio, | |
destino desconhece a justiça e l'honor. | 1115 |
Um gesto falso bastou, um momento fugaz, | |
e Vilas viu descer a espada dum outro | |
contra o próprio pulso: Um raio de ódio | |
caiu e dissociou a mão de seu braço! | |
Às pressas forom apartados, tarde | 1120 |
56
demais, enquanto os cameradas choravam | |
pela morte iminente de Vilas, em sangue, | |
e pela de Ruderico, já condenado | |
do rei o réu de libações assassinas. | |
| |
| |
ι | |
| |
Longe na sua barca, Pelágio | 1125 |
aumentava em vão o tamanho do mar: | |
– Quanta mágоa, Deus, e quanta angústia | |
vai consumindo o meu peito e mi pesa | |
mais do que o mar e vai me engolindo | |
como um túmulo. Eo vou embora de Roma | 1130 |
nesta nave e na verdade busco o navio | |
que me levasse embora è do mundo. | |
Eo fico olhando esse céu estrelado | |
como um tolo e vou errando em mim mesmo | |
e perguntando mais e sabendo e conhecendo | 1135 |
menos. Mas que mundo è este? | |
Desde cedo eo sabia, | |
desde cedo eo fui buscando um caminho | |
longe de império, tormento, ilusão. | |
Desde jovem eo já ouvia | 1140 |
57
como è tudo arruinado, tudo | |
que era forte e bonito arruinado. | |
Por trás da cor a sombra das coisas | |
era maior e mais verdadeira. | |
Eu passava pelas ruas de Roma e pelas | 1145 |
estradas da Itália e nos traços | |
dos homens e das paisagens castigadas, | |
ai de mim, eo percebia bem que ruína | |
e que mundo sem futuro os pés andavam. | |
Eo vou fazer o quê dessa vida? | 1150 |
Era todo mundo indembora, | |
ninguém sabia aonde, e quem diria! | |
Roma è velha. Mesmo com Teodorico, | |
aquelome bom que era generoso, | |
as pedras rudes de toda ruela | 1155 |
já diziam que Roma acabou, | |
morreu, dali non sai futuro. | |
Recordo as almas da minha infância | |
de gente desencantada e sem ambição | |
porque não tem amanhã. A que ponto chegamos. | 1160 |
58
Meu pai, graças a Deus, não viu | |
o que Roma virou e deixou de virar: | |
Teve sorte. | |
Quando meu pai era forte as estátuas | |
e as casas contavam histórias, | 1165 |
era viva a lembrança, era doce. | |
Mas do lado da pedra estava a poeira | |
desde então e junto a sombra. | |
Que destino! Nasci na morte | |
dum tempo, nasci sem razão. | 1170 |
Ninguém levanta não a cidade do chão, | |
acabou, meus filhos, ali se acabou. | |
Eo vejo os pobres na ermida | |
e andando entre o povo nas ruas | |
eo queria gritar no topo monumentoro | 1175 |
como no altar das minhas lágrimas: | |
– Vai-te embora, sai, | |
sai pelo mundo afora, povo perdido, | |
Roma desaba sobre a tua cabeça! – | |
Só muito amor de nem sei o quê retém | 1180 |
59
um homem naquele encontro de ratos. | |
Eu pensava até que o serviço de Deus | |
seria uma vida mais grata e feliz, | |
pero não, coitado e condenado de mim: | |
Fortuna arrasa o ser em qualquer posição | 1185 |
e nem servindo a Deus o esser è seguro. | |
Em que vaga de perdimento me encontro, | |
eu, que quanto mais fugia a ruína | |
de Roma a ruína de Roma seguia | |
e vem comigo na terra e no inferno? | 1190 |
Ó, Senhor, eo preferia mil vezes | |
o trato rude no extremo do mundo, | |
os homens sem cultura e fortunados. | |
Mas não, busquei a barca de Cristo | |
e as mãos dos homens vão me jogando | 1195 |
polo mundo e me vejo no meio do mundo, | |
eu, que queria rezar no meu canto | |
longe de tanta sombra sem mundo. | |
Eo perco o fôlego e falo e me afogo: | |
Se ao menos aqui no peito eo soubesse, | 1200 |
60
lá no fundo, que o dono das gentes, | |
o caro amigo que vou encontrar | |
pudesse ouvir e ver o impossível! | |
Mas non pode não, minha gente, | |
gente de dentro de mim, | 1205 |
a pessoa non viu o que Roma virou, | |
e quando foi que palavra | |
tocou el alma dum homem tão distante | |
em nome só dum banquete de ratos? | |
Ah, non tem metáfora não, ali non tem | 1210 |
poema não porque pedra non sabe ler. | |
Eu queria è desaprender a pensar, | |
subir dessa nave nas asas dum ícaro | |
e me perder pelo mar e pelos céus | |
sair voand’a um lugar de menos guerra, | 1215 |
fome e menos ódio, mesmo que fosse | |
a caverna de Bento Coitado, | |
levar comigo um punhado de vento | |
e caminhar sozinho pela terra inteira | |
rezando pela estrada e desaparecendo. | 1220 |
61
Mas não, issaí n’existe não, | |
o negóc’è viver sem saber praquê, | |
jogado pra lá e pra cá numa nau | |
que me leva às portas de Constantinopla, | |
lá pro palácio delicado da púrpura, | 1225 |
lá pro sólio dum home assoberbado, | |
dono de Roma e que nunca viu | |
o lugar que governa, è issaí. | |
Mas não, no fundo è bom, ver praquê? | |
Que diferença faz mastigador de carniça? | 1230 |
Ei lacerada existência, ei perdimento. | |
Era Roma o começo do mundo. – | |
Pelágio inclinando a cabeça | |
mirava, sentindo o frio das nuvens, | |
na superfície undar espelhos | 1235 |
incertos, fitando o líquido brilho | |
como se desvendasse, da treva, | |
verdade no embalo do abismo. | |
| |
| |
κ | |
| |
Quando porém Pelágio aporta em Constantinopla | |
pondo os pés no paço do Império, u do sólio | 1240 |
62
Justiniano recebe os enviados e os grandes | |
(como li reza o protocolo col ordem do dia), | |
vai correndo levar ao Imperador a novi- | |
dade do rei, sous dedos tremulando coa carta. | |
Mas o dono do Império acena ao guarda doríforo | 1245 |
e num segundo os hipaspistas, levando consigo | |
para fora os legados e os súditos, deixam vazio | |
l’átrio das audiências. Justiniano se apressa: | |
– Fala, caro, vejo que um caso urgente te move. | |
Que se passat e que mi diz Belisário da Itália? – | 1250 |
Foi-li explicando os acontecimentos recentes | |
tão marcante e tão profundamente que o rosto | |
como o cetro quase que empaleciam no sólio. | |
Antes porém que o mensageiro de Roma entregasse | |
a carta Justiniano estende a destra impedindo: | 1255 |
– É do rei? Non quero nem saber do que trata! | |
Rasga! Diz ao vil que a Belisário compete, | |
pois assim o quero, fazer a paz como a guerra. | |
Ele decida, pois o Imperador que procuram | |
não discutimus guerra e paz com usurpadôribos. | 1260 |
63
Já podemus voltar portanto al ordem do diei. – | |
Mas Pelágio, antes que Justiniano acenasse | |
para os doríforos reabrirem as portas, orando | |
como podia mostra a missiva: – Honrai, Senhor, | |
o diadema d’ouro que ilustra o crânio do justo, | 1265 |
esse que tendes! Pelo amor de Deus e de Roma | |
tende bondade e lede as ameaças dum godo! | |
Vim rogando ao céu durante a longa jornada | |
pelo mar que mi desse a letra e verbo correto: | |
Roma se acaba, Roma è como um túmulo aberto! | 1270 |
A fome castiga os inocentes, os párias padecem | |
pelo frio mas apenas começa a nossa desgraça: | |
Pois Totila avisou, perante o povo cansado e | |
frente aos senadôribos: Roma será destruída e | |
posta ao chão se não bastar o termo do acordo! | 1275 |
Venho cá na condição de escravo implorar-vos, | |
sim, que enfim me fiz escravo do rei e refém: | |
Basta um gesto e Roma inteira se perde no fogo. – | |
Justiniano lendo a carta pondera e reclama: | |
– Mas Totila non tem l’autoridade do Império! | 1280 |
64
São de pouco valor essas ameaças fingidas. | |
Todo-los monumentos, os muros e os templos, | |
casas de Romae restituídas erem, prometo, | |
cada pedra recolocada ao lugar de origem. – | |
Nisto l’outro estende a mão suada interpondo: | 1285 |
– As pedras sim, mas e las vidas? Que mão rëergue | |
tantas almas devastadas do chão que as acaba? – | |
Mas o Imperador reverbera: – A vida est amara, | |
vir, e não me tortures demais! Erat o início, | |
era o primeiro mês do meu governo somente | 1290 |
e já chegavam cartas e apelos de Roma e godos. | |
Não me venhas dizer que tenho rem, o que seja, | |
contra um povo que apenas protejo da tirania | |
e como não? Esqueceste aquela tristem mulher | |
e filha de Teodorico, Amalasunta, a regente? | 1295 |
Não mi implorava socorro a vida reta e valente? | |
Dês que o pai morrera foi leixada e guiava | |
Roma e seus godos já que Atalarico, o menino, | |
era herdeiro menor de idade. Foi perseguida, | |
Pelágio, foi condenada desde o primeiro momento! | 1300 |
65
Nunca ouvi falar em mais intrigas e ofensas | |
contra uma vida tão desinteressada e pacata: | |
Esto, meu caro, pois queria fazer do seu filho | |
rei decentem, vida amiga da nossa bandeira | |
como dantes Teodorico a serviço do Império. | 1305 |
Que fazer, indago, quando uma vida sem erro | |
como essa se lança a tous pés rogando socorro? | |
Ela perdeut o filho ca foi corrupto por vérmibos | |
como por homens torpes: Embriagado de morbo | |
não resistiu lo doente e despediu-se do mundo. | 1310 |
Ela cedeu, Pelágio, contra os nossos apelos | |
o próprio trono: Quis salvar apenas a vida! | |
Ela escreveut as cartas mais penosas quas li, | |
die e noite implorando a proteção de Bizâncio. | |
Ela morreu! Assassinada per ordem daquele | 1315 |
Teodato que as suas mãos puseram ao trono! | |
Era um próximo! Aprisionou-a pois numa ilha | |
e contra os meus apelos et ameaças solenes | |
ordenou de soldados a trucidassem na jaula. | |
Não bastou! Negou até la morte o seu crimen | 1320 |
66
contra muitas provas et evidências patentes. | |
Ela, coitada, teria leixado embora a cidadem | |
vindo pôr-se ao pé de Bizâncio donde um retiro | |
calmo e generoso aguardava. E ali morreria. | |
Não li foi permitido inofensivo silêncio? | 1325 |
Contra um ato inglório levantei mias armas | |
nem descanso até que os impostores se rendam. | |
Luto per Roma de outrora e per Amalasunta: | |
Saiam da Itália pois ou sejam nossos súditos! – | |
Vendo a fúria fulminar dos olhos do augusto | 1330 |
Pelágio todavia devolve num gesto agitado: | |
– Deus dos Céus, se è Teodato a causa de tudo, | |
nisto existe consenso universal e concórdia: | |
Nem os godos duvidam, Dômine, que Teodato | |
foi lo autor da fealdade maior deste século! | 1335 |
Mas o crápula foi degolado no meio da estrada | |
quando fugia para esconder do mundo a vergonha! | |
Ele morreu, o inferno è testemunha do alívio! | |
Nem se compara a Totila, Tótila è rei generoso: | |
Pois ergueu do chão Rusticiana e romanos! | 1340 |
67
Mas que dizer ao rei generoso quando reúne | |
todo-los senadores e o povo de Roma no Forum | |
orando: “Que maldade fiz, ingratos, ao povo?” | |
Ora, as bocas dos oradores então se calarom | |
frente ao rei ca frente ao rei calarom audazes. | 1345 |
Mas a resposta decerto somente Justiniano | |
sabe e somente a vossa boca prova e conhece: | |
Pois uma tal pergunta transtornada e pungente | |
Totila dirigia menos aos pobres que a Vós! – | |
O Imperador, a mão cobrindo a testa suada, | 1350 |
fala baixo al outro, quase tocando seu ombro: | |
– Est um caso de fato raro, ingrato e funesto. | |
Já se evidenciat às ruas o brio de Totilae. | |
Mas direi, Pelágio, todo o mal que tem feito. | |
Veio das suas próprias mãos a proposta de paz: | 1355 |
Pois que outrora Vítice houve rendudo Ravena | |
veio depois Totila, por carta, propondo render | |
as arma, os homens e a fortaleza sua em Treviso. | |
Pois! A pedido seu aceitaumus propensos à calma: | |
fora já marcada a data da entrega das armas! | 1360 |
68
Mas agora pergunto: Que fazer, meu querido, | |
quando em toda Constantinopla irrompe um rumor | |
anunciando Totila o novíssimo rei dos godos? | |
Já li bastou dum pouco d’ouro e coroa de vis | |
e lá se foit infame revigorando os rancores? | 1365 |
Não me acuses! Deus è testemunha do acordo: | |
Quantas vezes depus de bõa fé mias armas? | |
Eu queria crer em Totila letra por letra | |
mas non posso: Fui iludido, fui enganado! | |
Quantas cartas recebi recitando promessas? | 1370 |
Não jurou Teodato que Amalasunta vivia? | |
Fui traído muitas vezes por muitos governos | |
mas, Pelágio, a confiança co tempo se acaba. | |
Não me comovem mais correspondências extensas | |
pois non sou palhaço, sou o Dono das Gentes: | 1375 |
Quero pois, está decidido, que saiam da Itália! – | |
Lívida a boca de Roma transtornada recorda: | |
– Algo de alívio, Dom, è necessário dizer-lis | |
para acalmar os godos como o povo sem rumo. – | |
Justiniano li assere: – Digam toda a verdadem: | 1380 |
69
Cabe a Belisário nossa campanha de Itália! | |
Já podemus voltar portanto al ordem do diei: | |
Há questões iminentes da santa Igreja tratandas! – | |
Ainda falava lo Imperador pero l’outro entrevia | |
como um fastasma Roma devorada por flamas. | 1385 |
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λ | |
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Mas aproximou-se do rei lo guerreiro | |
Vilas, el homem sem mão, a lança caída: | |
– Durante dias, andei perdido por ermos | |
jurando a Gus e a Ruderico vingança. | |
Por onde meu corpo se arrastava doído | 1390 |
o movimento tranformava-se em bloa. | |
Era um rio que jorrava, um mar infinito | |
levando embora o brio, valor de meu éu. | |
Caí, senhor, às aƕas dalguma corrente, | |
sem força de alevantando, presa del ódio, | 1395 |
e quanto mais eo maldizia o destino, | |
o nome inufo de Ruderico e de infames, | |
mais o sangue fugia de dentro de mim, | |
mais aquele rio et as pedras e o guês | |
bebiam a minha vida, o vaso brecado. | 1400 |
70
Não me recordo como colhi memórias | |
abandonado perante as portas do inferno. | |
Mas percebi, por algum recurso divino, | |
descendo no escuro pela escada da morte: | |
A mão tirana que me empurrava abaixo | 1405 |
nõ era el ero maldito de Ruderico, | |
era meo ódio que propulsava o sangue | |
e derramava ao fréu afora uma vida. | |
Desde aquele momento e remorso, portanto, | |
retive a derradeira gota que havia. | 1410 |
E derribando um peso mortal de meu erto | |
jurei de novo ao doador de destinos: | |
Dá-mi tão somente um pedaço de vida | |
e leixarei de mim, a meu rei e meu povo, | |
o testemunho dum coração sem rancor. | 1415 |
Venho pedindo, desde então, armel | |
pela vida errada dum jovem sem pai. | |
Andei pela estrada refletindo meu rumo: | |
Deixa o barno viver comigo, Totila, | |
quero consumar esta minha promessa. | 1420 |
71
Eu guiarei Ruderico, eo ero seu froia! | |
O povo inteiro em pouco tempo verá | |
do exemplo dum firme, valoroso na lança | |
como no flol escão gestor de vitórias. – | |
Contudo, um rei estupefato mirava | 1425 |
quem os que amigos acreditavam morto. | |
Viera como um raio a notícia dos guardas, | |
de Vilas ferido, moribundo e perdudo. | |
Totila passara sete noites sem sono | |
vagando pelo escuro em recintos vazios. | 1430 |
Ruderico detento em fuga e rendudo | |
sperava na jaul’a espada pena de morte, | |
o corpo ferido por toda espécie d’armas. | |
O rei, porém, imagens mistas na mente, | |
fitand’o ar tenebroso induz a Vilas: | 1435 |
– Handus swinþista wast alláize gadraúhte, | |
eras el alma dum povo e blingarom tou viço. | |
È cada coisa que mi aparece, meu caro! | |
O gesto daquele covarde te converteu | |
à mesma covardia e pretendes amá-lo? | 1440 |
72
Aqui non tem isso não, non quero conversa: | |
Mandei matar, mandei! Auleaste, infeliz? | |
Além de perder a mão perdeste a cabeça? | |
A mão que esse desgraçado cortou foi a minha! | |
O céu conhece o tamanho do meu coração. | 1445 |
Perante o sofrimento dum home inocente | |
jamais hesitei: Estendi minha mão, perdoei. | |
Eo sou assim, do cavalo eu desço, eo amparo, | |
eo ouço confissões, eo pondero argumentos. | |
Agora dó de bandido e rebelde sem causa, | 1450 |
Vilas, aí non dá, non cabe em meu peito. | |
Esse cara è do tipo que chuta caídos, | |
educação ali non corrige, acreditem! | |
Mandei averiguar como é quem vivia: | |
Vivia sem eira nem beira, negava comida | 1455 |
a quem pedia, dava porrada em mulher | |
e vilipendiava cadáver coas armas! | |
O estilo era esse, Vilas, sai dessa vida! | |
Ali non tinha mãe nem pai e nem brodo. | |
Olha pra minha cara e mi diz se merece | 1460 |
73
viver quem bate em pobre, caído e ferido! | |
Suão de Vilas algoz de mendigos? Me poupem! – | |
A palavras exaustas somavam-se gestos | |
e o rei arfava, pois ainda que fosse | |
possível perdoar Ruderico da morte | 1465 |
seria um gesto de impunidade soltá-lo, | |
um exemplo mau aos jovens, vinta a virtude. | |
Mas Vilas não se abala, insiste e recria: | |
– Eu afianço a minha vida à promessa: | |
Se o filho meu cometer um gesto ingreto | 1470 |
pode matar os dois, morrerei com gosto! – | |
Tótila enfim desiludido e surpreso | |
mandou trazerem Ruderico ao recinto | |
donde anunciou, na frente de Vilas: | |
– O crime teu, menino, não se auleia | 1475 |
mas tua pena de morte será postergada. | |
Afiançarom a vida por tua conduta: | |
Mas Ruderico, non reconheces tou fadro? – | |
Assim mostrando o vulto de Vilas atrás, | |
Totila viu lo susto no rosto do jovem | 1480 |
74
ora prostrado, a rouca voz soluçando | |
enquanto o novo pai tocava-li a fronte. | |
| |
| |
μ | |
| |
Fora apareceu do nada uma sombra apressada | |
pedindo ver o rei, misterioso o seu vulto. | |
Foi com certo esforço que os cavaleiros godos | 1485 |
enfim reconhecerom aquele aspecto assombrado: | |
Era Pelágio que demandava, um’alma penada! | |
Vinha dar a notícia de Justianiano a Totila | |
mas Totila entendeu na hora e foi concluindo: | |
Esse Justiniano era mesmo um homo sem honra! | 1490 |
Mal se importara em ler (a dedução era óbvia) | |
o apelo e julgara o remetente um rei sem promessa. | |
Pois o rei cerrou sous punhos num gesto irascível, | |
foi secando el ódio dos olhos, dizendo a Pelágio: | |
– Esse Império Romano não se importa com Roma? | 1495 |
Abre mão das construções, da paz e das vidas? – | |
Como tomado num riso atarantado e de asco | |
não se conformou, falou perdendo o juízo: | |
– Pois se Roma non vale porra nenhuma ao Império | |
pode botar pra quebrar, acaba de vez coesse lixo! – | 1500 |
75
Não assentia o desrespeito à sua embaixada e | |
já cumpria gustar melhor o sabor da vitória! | |
Assim pensou, e firme perante os emissários | |
Totila sem mais demora e vacilo pronunciou: | |
– Quero que seja destruída a cidade de Roma! – | 1505 |
Foi o rei falar e os incendiários chegarom | |
para embebedar as pedras de combustível: | |
Era em vão os abandonados correndo gritarem. | |
É difícil lembrar aquela cena: Totila | |
não queria repetir a história de Nero | 1510 |
que incendiou e depois mandou apagarem. | |
Era questão de honor arrasar os edifícios, | |
pôr um fim pra ninguém reconstruir a desgraça. | |
Cada gradrão carregou seu martelo pesado | |
prenhe de morte e destruïção, violento o sinal. | 1515 |
Fora selada a sorte da capital dos leões: | |
– Roma acabou, daqui pafrente è pasto de gado! | |
Pega aquela pedra ali, apaga essa história, | |
manda o boi pisar pa nulhome ver que existiu! – | |
Quando o fogo irrompeu das antiquíssimas casas, | 1520 |
76
quando ao trom do martelo cambalearom pilastras | |
veio a massa às ruas, erguendo os olhos ao céu | |
por onde as flamas altas anunciav’a verdade. | |
Cada soldado era só entrar por tudo-què-lado | |
confiscando o que quer que fosse ninguém defendia. | 1525 |
Não surtiro efeito os senadores em pranto: | |
Não, o que se ouvia era o crepitar e tremores, | |
sons de escudos, espadas abafavam clamores. | |
Era inútil buscar apelo, non tinha clemência, | |
era um rei que perdera a paciência e mandava. | 1530 |
Era maior do mundo o grito rouco de Roma | |
mas o mundo ensurdecera esquecido de Roma. | |
Muita gente de madrugada chamou sem resposta | |
o nome do Imperador, l’angustiada esperança | |
via pelo fogo o vulto de algozes bradando: | 1535 |
– Pode sair agora, quero romano aqui não! | |
Sai, vagabundo, sai, se não sair nòs te mata! – | |
Mas além da voz que chicoteava a cidade | |
o fogo mandava seus desobedientes embora. | |
É, non era fácil ver uma casa de toda | 1540 |
77
a vida desabar na martelada e no incêndio, | |
gente parava e se perguntava se era verdade. | |
Certo que era, a cidade estava se esvaziando! | |
Mas ouviro contar que no meio daquele inferno | |
quando Totila dormia, do nada vieire do alto | 1545 |
o clarão, a caravana alada dos cem cavaleiros. | |
Eram luminosos heróis em quadriga ligeira | |
que descendendo surprehendero Tótila. O rei | |
foi levado na carruage de roda de vento | |
rumo ao Forum donde um vulto escuro atendia. | 1550 |
Quando os dois se virom a sós, o rei estendeu | |
a mão, o pária debruçado perante uma estátua. | |
Mas o outro se ajoelhou e buscando sous olhos | |
rogava ao godo: – Respeita Roma, apaga este fogo! – | |
Camanha dor entristeceu a Totila, pedindo: | 1555 |
– Sai do chão, responde, fala: Como te chamas? – | |
Mas o pária chorando sangue mostra-li um busto | |
em cujo rosto o rei reconhece Teodorico! | |
Súbito um raio fulmina e despedaça esse busto | |
quando Totila acorda imóvel sentindo o trovão: | 1560 |
78
O medo congelara os membros e a força do grito. | |
Entra Rigo no mesmo instante, transtornado, | |
corre como vedor de fantasmas prorrompendo: | |
– Tem andando um vulto atrás de mim sem cabeça | |
e vem correndo e me perseguindo a noite inteira. | 1565 |
Era que nem um sonho, meu frião, no Forum: | |
Vinha vagano e carregando a própria cabeça | |
fora do corpo, Jesus, choramingano comigo! | |
Eu mandava sair pero o vulto parava e dizia: | |
Pede po rei, meu amigo, piedade de Roma. | 1570 |
Vegada et outra descia um anjo querendo levar | |
mas ele recusava, ele mostrava o fogo nas casas. | |
Eu andava adiante mas ele sentava-se perto: | |
Pede ao rei, meu querido, piedade de Roma. | |
Quanto mais eo olhava o seu olhar arrasado | 1575 |
mais eo via a multidão dos mil que seguia. | |
Eu queria fugir pero estendia-mi as mãos | |
e balançava a cabeça agoniado e manhava: | |
Pede ao rei, meu amigo, piedade por Roma. | |
Ave, que aluvião sem guês pedino socorro! | 1580 |
79
Mas vi de repente a transfiguração duma alma: | |
Quando o vulto se diluiu num estranho vapor | |
uma chuva amena, meu Deus, como um sol radiante | |
cobriu os sofredores e a voz do céu ressoou: | |
Filhos de Roma, Boécio permanece entre vós. – | 1585 |
Totila vai ruminando a intervenção do sonho: | |
Que queísso? Buscava resposta nos olhos de Rigo | |
mas o frião perdera a fala e Totila sugere: | |
– I buscar o cavalo, vamos a Monte Cassino! | |
Bento decifra sonho, Bento sabe a verdade. – | 1590 |
É que ninguém avisara o que sucedera com Bento: | |
Certa noite, ele alevantou sous braços em prece, | |
tão bonito de ver, e caiu sem vida entre os seus. | |
É, meu amigo, a morte n’avisa o seu dia não. | |
Mas Totila non quis saber, o plano era o plano, | 1595 |
que conversa e nada e visão e sonho e balela! | |
Inda faltava è destruir a muralha odiada, | |
pôr de vez no chão porque só travava os ataques. | |
Já soava mesmo o bater do martelo no muro | |
mentre o fogo passava atravessando vielas. | 1600 |
80
Irom minando primeiro os bastiões importantes | |
lá da margem do Tibre e perfurando crateras. | |
Inda estava exposta a passagem que derrubaram, | |
isto, aquela que Pedro protegera do assalto: | |
Pois dissero assim, na campanha de Belisário | 1605 |
quase o muro todo caiu mas nulhome invadiu | |
que a mão de Pedro impediu, deixou soldado não. | |
Ogano andavam longe Pedro e Bento e Boécio, | |
por longe andavam Teodorico e Justiniano. | |
Ogano passav’os retirantes em tiras extensas | 1610 |
e pés senadoro e de párias unidos sem rumo. | |
Pois quem teve juízo não pensou duas vezes, | |
foi embora às pressas e não se adirom sozinhos: | |
Levarom consigo os fracos e deserdados embora | |
e pouco antes da aurora Roma estava deserta. | 1615 |
Mas dos fugientes que se adentravam ad ermos | |
teve um que foi corajoso e voltou patrás. | |
| |
| |
ν | |
| |
Entrou a sós pelo fogo o romano sem nome, | |
lançando seu corpo gasto aos pés duma estátua. | |
Godo quando assistiu ficou foi confuso | 1620 |
81
e foi pegando as arma e caçando esse intruso – | |
mas ponderando a morte, iminente o perigo, | |
miravam desnorteados um gesto inaudito. | |
Era tamanho o descabimento do estranho | |
mendigo, lançado ao monumento em fogo, | 1625 |
que mesmo osores se apiedavam da cena. | |
Ué, diziam, se o cara perdeu o juízo | |
alguém se prontifique, ajude, encaminhe! | |
E não faltavam mãos e atitudes valentes | |
de gente pronta e desafiando os calores. | 1630 |
Ali non podia perder nem tempo, o romano | |
junto coa státua stavam cercardos por flamas, | |
os prédios prestes a sucumbir: complicado! | |
Pois se lançarom, desrespeitando os temores | |
pela vida própria e prestando socorro: | 1635 |
– Inda dà tempo, bora coa gente, romano! – | |
Mas qual non foi, Jesus amado, a surpresa | |
pois aquele estranho que a tropa ajudava | |
houve erguida a voz, lamentando del alto: | |
– Daqui non saio, daqui ninguém me tira, | 1640 |
82
a minha vida taqui nesse monumento! – | |
Falava assim, abatido, mostrava o mármore | |
enquanto os godos retrucavam pracima: | |
– Rapaz, você è louco? O cara oferece | |
ajuda e tu manda embora? Olha esse fogo! – | 1645 |
Mas el home sem nome num ato de angústia | |
e confusão e desespero responde-lis: | |
– Nem que um raio me parta eo saio daqui! – | |
Aí que se convenceu de vez todo mundo, | |
só podia ser louco. Nisso os soldados | 1650 |
até que argumentavam, por dó do romano: | |
– Explica aí então por quê quessa estátua | |
merece tanto, è tão importante essa estátua? – | |
Mas o romão tomando de fôlego assere: | |
– Ah, nè só por estátua não, meu amigo, | 1655 |
voltei por causa dessa, a maior que existiu! – | |
O nervosismo aumentav’e o medo da morte | |
aguçav’a impaciência de quem perguntava: | |
– Mas è sua essa estátua? Deixa esse troço! – | |
Pois o romano se endoideceu, que gritou, | 1660 |
83
rugiu, chorou, insistiu, se agitou, explicou: | |
– Isto aqui est um monumento da história, | |
esta estátua veio dos braços de Fídias! – | |
Narrou detalhadamente, do meio do fogo, | |
a vida dum grande escultor, exemplo sem par. | 1665 |
Mas nem por isto os godos se contentavam: | |
– Pode parar, popará, poparacsaí! | |
Que palhaçada è essa, jà era esta estátua! – | |
El outro non quer saber de conversa e rebate: | |
– Éste l’alma de Roma que quero salvar! | 1670 |
Escuta aqui, você tá nervoso, soldado? | |
É porque non foi sua a família que amou | |
e se abraçou a ela: os meus tavaqui, | |
seu pai, seu avô tavalá na casa da porra! | |
Então non se meta e respeite o sofrimento | 1675 |
dosôto: a minha vida, ói, se eo quisesse | |
salvar psisava de ajuda não. Minha vida | |
taqui com ela e se ela cai caio junto, | |
cê tem o quê com isso? Então pelamor | |
de Deus me deixe em paz! Você já ganhou, | 1680 |
84
o mundo è seu, olha Roma aí o que virou! | |
Pode levar, levembora esse agora que è seu, | |
eo quero è meu passado e do povo que è meu! – | |
Decerto eles godos inda não se esqueceram | |
de quanto amor separa pedras e estátuas, | 1685 |
ca sol as pedras enxergarão nas estátuas | |
pedras apenas, apenas o amor monumento. | |
Mentre o calor e o nervosismo cresciam | |
non tinha argumento ali, era inútil tentar. | |
Num ato extremo contudo decidirom movê-lo | 1690 |
embora à força, e sob ameaças de lanças | |
buscavam pôr as mãos num homem sem nome. | |
Mas o romano, apagando o fogo com pranto | |
e protegendo co próprio corpo a scultura, | |
rugia contra as mãos de socorro e de ataque: | 1695 |
– Pode atacar, seu covarde, pode matar! | |
Se for pa viver sem mha státua psá vivenão! – | |
Os soldados iam se retirando às pressas | |
visto que a morte era pronta e se aproximava. | |
Os gritos de salvação e paz mesclavam-se | 1700 |
85
aos impropérios, as preces a indagações, | |
mas o incêndio interrompeu los diálogos: | |
Num lance alucinado e veloz, o romano | |
tentou remover o monumento de Fídias | |
e carregar embora o tempo nas costas. | 1705 |
Só que as pilastras do edifício defronte | |
vierom abaixo, soterrando as histórias | |
e o destemor da vida no escombro do agora. | |
Caírom juntos o homem e a obra de Fídias, | |
despedaçados quis-cada-quem a seu modo. | 1710 |
| |
| |
ξ | |
| |
Pela manhã la correspondência de Belisário | |
veio às mãos de Totila. Estava escrito no apelo: | |
“Rei de Roma, trata melhor a cidade que è tua. | |
Não condiz um gesto agitado coa palma da mão | |
que tantas vezes sem rancor estendeste a caídos. | 1715 |
Não se passa um dia sem que ouçamos atentos | |
como retribuis o pai da mulher desonrada, | |
como salvas da morte pequenos e poupas o fraco. | |
O nome teu se espalha pelas plagas da Itália | |
como doador de consolo, um farol de esperança. | 1720 |
86
Mas, Totila, explica, por atenção aos amigos, | |
como entender o que se tem passado por Roma. | |
Donde apareceu este novo rumor tam maldoso | |
contra ti que a tua ira incendeia a cidade? | |
Esse tipo de coisa abate os bons que te prezam. | 1725 |
Roma è tão generosa et abriga tantas famílias, | |
Roma tem uma história tam longa e tão venerada. | |
Pensa melhor. Se fores o vencedor desta guerra, | |
queres despedaçada a capital do teu reino? | |
Caso tu percas, queres ser um mau perdedor? | 1730 |
Quão distintamente o tou nome será relembrado, | |
rei, se mesmo perdendo tiveres salva a cidade | |
mãe de mundo. Meu amigo, essa coisa de incêndio | |
não condiz com quem verdadeiramente tu és. | |
A Itália te ama et espera pela tua grandeza.” | 1735 |
Fora de fato acordado pela voz de Pelágio | |
junto a mendigos e senadores no meio da noite. | |
Mas o general de Bizâncio, passando vertigens, | |
pôde apenas pedir que lo atendessem um pouco | |
mentre o pensamento concatenava as palavras. | 1740 |
87
Ah, quem visse aquele ali, naquele momento, | |
nem acreditava em quantas glórias e guerras | |
ele alcançara, ali era um sem igual Belisário. | |
Fora o mentor de campanhas vertiginosas na Pérsia. | |
Fora o gestor duma reconquista inaudita em Cartago | 1745 |
quando triunfara contra o reino dos vândalos. | |
Ele nem sabia direito em que porto aportar! | |
Pois chegou de manhã, e de noite jà tinha vencido: | |
Comeu do jantar que estava pronto pro rei inimigo. | |
Cônsul de Roma, desembarcou na Sicília e tomou. | 1750 |
Foi à Calábria, entrou vitorioso em Campânia, | |
teve Nápoles, teve Roma e Ravena e Florença. | |
Era um homem prezado em continentes diversos, | |
tanto que até depois da primeira guerra dos godos | |
mesmo os godos dissero “vem, vem ser nosso rei!” | 1755 |
Mas o destino inveja quando a pessoa è perfeita, | |
não, non tem condições. Justiniano entendeu | |
e não gostou daquilo, era perigosa essa fama. | |
Tinha que pôr Belisário meio prafora, inativo, | |
mas o povo que è povo amava era Belisário, | 1760 |
88
não, n’adiantava não esconder Belisário. | |
Só que Justiniano fez o quê? Percebendo | |
tudo chegou com “ô, meu querido, dá uma passada | |
lá na Itália, resolve ali pra mim essa história | |
com godo e Tótila, vai” e Belisário, contente, | 1765 |
foi, mas chegou non tinha soldado, aí complicou | |
bastante, o Imperador tipo “ah, qualquèóra eu te mando” | |
e tudo mais, o estilo era esse, era esse o problema. | |
Lá varava então pela Itália feito um fastasma, | |
por terra e mar um colecionador de desgostos | 1770 |
mentre godo dizia “isso è que è rei de verdade!” | |
Era aceitar. Ali non tinha debate, era claro: | |
O plano era desmoralizar Belisário completo, | |
ele acabado, implorando piedade a Totila. | |
Mas Totila ponderando o seu gesto extremo | 1775 |
leu e releu durante horas o apelo da carta. | |
Era de fato um caso desesperado e perdudo | |
para Bizâncio. Mas quando Rigo leu a missiva | |
pronto irrompeu, falando pelo próprio peito: | |
– Gus non quer que seja destruída a cidade! | 1780 |
89
Pelo amor deste povo, Tótila, toma u’atitude! | |
Que sinais ainda atendes da terra e do céu? | |
As almas transtornadas de Teodorico e Boécio | |
vagam de noite e de dia os inocentes lamentam. | |
Já se bandam vivos e mortos, o grito è sincero: | 1785 |
Para, Totila, a covardia ofende as estátuas, | |
tem romano morrendo no meio do fogo por elas. | |
Isso n’é bonito não e non pode existir | |
ua coisa dessa, não, apaga logo este incêndio! – | |
Totila tomou lo amigo pelo braço e li trouxe: | 1790 |
– Rigo, trahirei las mias palavras de guerra? | |
Olha esse filho da puta em Bizâncio, propus a paz, | |
o cara non quer saber, o cara quer que se foda! – | |
Rigo redobra: – E godo quer saber de cachorro? | |
Godo è gente, Totila, e tem que agir quenem gente. | 1795 |
Quem abandona o povo desse jeito è cachorro | |
filho da puta. Tem que punir mas não quem è gente, | |
tem que punir, Totila, cachorro e filho da puta. – | |
Ah, Totila non suportava mais essa história, | |
triste, cansado e desgostoso. Cedeu numa coisa: | 1800 |
90
– Pode conter, apagar de vez esse fogo de Roma, | |
deixa em paz os monumentos, as pedras, o tempo. | |
Para de usar o martelo desmembrando a muralha, | |
jà foi obliterado o seu poder estratégico! | |
Mas escuta e manda o povo escutar: A cidade | 1805 |
vai ficar deserta a partir de agora, deserta! | |
Pode punir quem puser o pé no que resta de Roma! | |
Roma acabou, romano eo levo embora comigo, | |
pobre e senador, quem quer que seja que venha! – | |
Forom consigo nem cessaro sofrendo na estrada | 1810 |
até la Campânia, por onde se permitiu moradia, | |
é, mas n’era bom não tentar fugir escondido. | |
| |
| |
ο | |
| |
Quem buscav’a fuga da inglória e milagres | |
era Belisário conjunto a falanges | |
de desesperançosos que pouco alçavam: | 1815 |
Durante meses Roma esteve deserta | |
enquanto o General, ancorado no porto | |
e sem reforço, mirava em vão direções | |
por onde encadear ataques certeiros | |
em certa brecha et ousadores intentos. | 1820 |
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Mas onde quer que zarpasse ao horizonte | |
olhava o mundo e sabia: O mundo era godo. | |
Os montes escondiam fortes armados, | |
as armas eram fortes, subiant aos montes: | |
Cada estrada ocultava la sua emboscada, | 1825 |
cercada de espadas e tempestade de lanças. | |
Por pouco eles retiveram Portus, sozinha | |
no meio da noite: Era pequena el única | |
célula ainda de resistência por milhas. | |
Cada movimento adentrando a paisagem | 1830 |
longe do mar expunha Portus ao cerco. | |
Muita vegada um passeio breve bastou | |
e norte e sul se revigoravam os godos | |
em violenta vergasta, donos do ensejo. | |
No cerco a morte era certa, a fuga impossível, | 1835 |
e mais: quem podia ajudar passava longe, | |
estava cansado e maltratado e distante | |
toda uma eternidade no leste e n’oeste – | |
desolador o cenário às margens do Pó | |
e desencantadora a guarda em Ravena, | 1840 |
92
pior ainda a situação na Calábria. | |
A causa de Belisário estava perdida, | |
non tinha como alcançá-las portas de Roma. | |
Mas Belisário na impaciência dos dias | |
não se conformava coa mão do destino, | 1845 |
antes tapava os olhos coas próprias mãos | |
repudiando o veredito e visão da verdade. | |
Pois rebelou-se! Reunindo os soldados, | |
ergueu a voz e pronunciou lo seu brado: | |
– Escuta aqui, quem quiser salvar uma vida | 1850 |
covarde e desonrosa, pode s’embora! | |
Eu porém seguirei coas minhas armas | |
a Roma, por Deus! E seguirei de repente | |
e contra o titubeio me impera marchar! – | |
Houve alarme dentre impávidos homens | 1855 |
ca Belisário non tinha essomem falar | |
que nem por falar e só pra encher a boca, | |
ali n’existia a pessoa falou descumpriu, | |
ali o estilo era outro: então se assustarom! | |
Era um gesto impensado, aventura de vidas! | 1860 |
93
Atordoados, ouviant os planos e o risco | |
rogando em vão explicações e cautela, | |
sabendo só que uma nova luta retinha | |
Totila alhur. Todavia, senhores da terra | |
como eram, ninguém garantia passagem | 1865 |
segura pela estrada e caminho de Roma: | |
Era caso de sorte, destino ou de Deus. | |
O general maior non concede e prossegue: | |
– Guerreiros, não me deslocaro de longe | |
no rumo de Roma para salvar-me medês | 1870 |
mas pela salvação de Roma e da Itália, | |
nem aceitei um dever maior do que a vida | |
para julgar mia vida maior que o dever. | |
El home poderoso e gestor de vitória | |
non dependeu de ocasião favorável, | 1875 |
meninos, para alçar o nome que tenho. | |
No meio da luta non venho com “ah, bora ver, | |
se for pra ganhar eo fico, se for pa perder | |
eo corro tipo cachorro,” tem isso aquinão; | |
combato è com valentia nem fujo nem temo | 1880 |
94
e quero cair com valor se o destino è cair. | |
Portanto nòs marcharemos juntos a Roma e | |
lutemos como quem faz o seu próprio destino! – | |
Assim falout e assim se fez a jornada: | |
Pois houvero desperto na auror’os soldados | 1885 |
pronto forom tomando os escudos e espadas, | |
futuros troféis ou testemunhos da audácia. | |
Destemudos da morte abraçavam-se amigos | |
qual del último abraço, jurando promessas | |
de lealdade eterna e recíproco auxílio. | 1890 |
Enfileirarom-se pela marcha e marcharom | |
homens sem esperança de vida e sem medo! | |
Os despreventos soldados godos sozinhos | |
eram rendudos, aprisionados ou mortos. | |
O arqueiro impedia a fuga de audazes | 1895 |
trânsitos pela flecha e caindo no campo. | |
A lança lançou ao chão inimigos de longe | |
e quem escapou pereceu na ponta da espada. | |
Nos flancos cavalaria forte avançava | |
impressionando incautos como o perito. | 1900 |
95
Ao fim do dia surgiu la cidade fantasma | |
coberta de musgo e grama, largada a ruína. | |
Quem nos tempos de César Augusto e Trajano | |
pintasse aquela imagem do Forum Romano, | |
ousasse profetizar uma astrosa verdade! | 1905 |
Ogano entretanto nenhuma visão de abandono | |
lis parecia impossível, infinda a derrota. | |
Exaustos num sentimento de amor e de morte, | |
alívio na reconquista de Roma e tristeza, | |
os homens amparavam-se cheios de angústia, | 1910 |
os olhos confusos. Mas Belisário, na mágoa | |
de percebendo o pesar estampado nos rostos | |
como agora enxergassem o quanto o descaso | |
das tropas regulares custara à cidade; | |
vencendo a comoção Belisário lis prega: | 1915 |
– I se vê, romanos, a nossa desgraça | |
e cá mirai-lo preço do vosso vacilo | |
et anos de hesitação, a coragem incerta. | |
Mas se algum iluso de vós presumeire | |
que já bastava a reconquista de Roma | 1920 |
96
para a nossa mãe retomar o seu brilho, | |
engana-se: Não vos enganeis, combatentes! | |
É trabalho demais e sem trégua trabalho | |
que as vossas mãos ainda têm pela frente! | |
Os monumentos que a mão hostil derribou | 1925 |
a mão amiga alevanta e restaura as ruínas, | |
devolve à pátria o brio, a vida, a vitória. | |
Reconquistar o passado è metade da meta | |
ca cumpre agora reter, defendê-la cidade: | |
Vamos tomar aos ombros as pedras de Roma | 1930 |
e reerguer, no cimento de tanta aflição, | |
a lida, a muralha, o monumento dum povo! – | |
Assim orou, e tomando a primeira pedra | |
a recolocou aos pés da muralha sem base. | |
Sem dormindo aqueles soldados lançarom-se | 1935 |
a Roma perdendo a noite e ganhando firmeza. | |
Mas não se arriscarom sozinhos: Pela manhã, | |
quando a nova das tropas se teve espalhada, | |
correu de volta à cidade um povo plangente | |
turvando de longe a nitidez do horizonte. | 1940 |
97
Leixaram para trás os negócios que havia | |
e sem promessa de pão, de teto e de vida | |
pisarom ele chão que o rei prohibira | |
e terra que em vida já non creram pisar. | |
Jurarom, carregando o peso dos sonhos, | 1945 |
jamais abandonar a morada e morrer | |
se preciso fosse, mas cair coas ruínas | |
trabalhadores rudes e nobres sem nome | |
mas não sem um sentimento raro no peito. | |
Quando Tótila ouviu da vitória das tropas, | 1950 |
cercado de ansiëdade e combates acerbos, | |
leixou de lado a luta e subiut ao cavalo | |
zarpando inopinadamente, assombrado, | |
acompanhado do grosso do exército godo | |
e guerreiros acostumados a todo cenário. | 1955 |
E qual non foi lo sobressalto de Roma | |
quando se ouviu la cavalaria de longe | |
gritante maldições, impropérios irados. | |
No terremoto que fez tremer os intrépidos | |
tinha agravante: Que as portas de Roma | 1960 |
98
ainda non foram repostas, lacunas abertas | |
no meio dum muro reergudo de súbito. | |
Gritos dos invasores eram mesclados | |
ao desespero ofegante correndo nas ruas: | |
Romanos que poucas horas antes plantavam | 1965 |
grãos pelas praças prevenindo escassez, | |
perdiam novamente a esperança e fitavam | |
l’horizonte hostil, a muralha indefesa | |
ca manifesto estava: Fora preciso | |
obrar de dias pra terminar os portões! | 1970 |
Soava naquelas mentes sinal de chacina | |
e jovens e velhos fabulando sem nexo | |
sentavam-se pelo chão esperando o martírio. | |
Mas Belisário conclamando sous homens, | |
selecionando os mais audazes a dedo | 1975 |
mandou: – Seremos nós as portas de Roma! | |
Provade, honrados, de qual cimento se fez | |
o portão de vossos braços chave da vida. | |
Sabei uma coisa apenas: Se o braço cair | |
cairá co vosso braço la história dum povo. | 1980 |
99
Usai com gosto o vosso impávido escudo | |
porquanto muitos de vós ende erguerão | |
aqui pel última vez, e não os lanceis | |
ao chão sem antes leixardes pelo chão | |
a própria vida testemunhando quem sois! | 1985 |
Pensai nas mãos que se calejarom caladas | |
para vestir broquéis às portas de Roma! | |
Pensai na angustiada esperança deposta | |
por estes caídos em vós e apenas em vós | |
porque vos digo, filhos, se não lutardes | 1990 |
pelo povo honesto atrás destes muros | |
como se fossem vossos pais e famílias, | |
leixai las armas antes mesmo da luta | |
e poupai da vergonha nossa grande batalha: | |
Guerreiros mais credores desta vitória | 1995 |
dividirão elor sangue amargo conosco! – | |
O ataque irrompeu interrompendo junções. | |
Totila contudo em seu avanço exaltado | |
mirou surpreso a ressurreição da muralha | |
e de escudos humanos que ali se puseram | 2000 |
100
desrespeitando as ameaças da morte. | |
Acumalavam-se corpos de nome indistinto | |
perante os muros: Sob assalto incessante | |
lanceiros cercados derrubavam cavalos, | |
escudos repelindo a clava dos godos. | 2005 |
Trocavam turno os combatentes nas portas | |
aliviando feridos, mantendo esperanças | |
e os novos braços avançavam na linha | |
spada contra espada, broquéis de bravura. | |
Muita vez um soldado caiu atingido | 2010 |
e prevendo mortem deslocou-se, calado, | |
para que o corpo derrotado na história | |
não perturbasse o pelejar dum amigo. | |
A imagem do fim, despojo inadequado | |
tomando espaço à virtude, não molestasse | 2015 |
um sacrifício maior que a vida exige: | |
a morte oculta, não porém sem memória. | |
Mas outros num movimento mais embalante | |
lançarom-se repentinos contra inimigos, | |
e enquanto os invasores alçavam a lança | 2020 |
101
tremenda e míssil derrubador de gigantes | |
a espada atravessava rasgando as entranhas, | |
tolhendo o golpe. Forom vistos valentes | |
de Belisário tendo um braço arrancado | |
enquanto l’outro arremessava uma clava | 2025 |
certeira contra a cabeça dum desprovudo. | |
Os semimortos no chão perfurav’os cavalos | |
e os corredores incautos caíam atônitos. | |
Do céu desciam vorazes corvos e abutres | |
e disputando a carne coas águias lutavam | 2030 |
a guerra dentro da guerra, ébrias de sangue. | |
Quando porém lo arqueiro subiut os muros | |
mirando facilmente a flecha à vontade, | |
Vilas, o professor maior dos lanceiros | |
tomando a Ruderico seu filho adotivo | 2035 |
correu a Totila. O dia inteiro passara | |
e já caíra a noite nas portas de Roma. | |
O rei, depois de recultos os combatentes | |
no mar de feridos ouviu la palavra de Vilas | |
que não insista no ataque! Os corajosos | 2040 |
102
merecedores de morte mais proveitosa | |
seriam presa fácil no campo de flechas. | |
Fosse pois evitado um cenário penoso | |
e triste desperdício de vida e de povos. | |
Totila como um surdo manteve a campanha | 2045 |
e lo sol assitiut o segundo diem de sangue. | |
Mas Roma não se abalara! Um novo utensílio | |
de guerra, durante a noite os soldados cravaram | |
estrepes na terr’e agudas pontas brilhavam | |
em torno dos muros como engenho de quedas. | 2050 |
Ai do cavalo que cavalgasse emboscadas | |
pois cavalgarom colecionando desastres! | |
O godo lançado ao chão coa flecha no peito | |
fechava os olhos fitando o céu sem resposta. | |
Ainda assim lo rigor dum olhar cuidadoso | 2055 |
muita vez enxergou Ruderico, o zeloso, | |
versado o braço derrubando os arqueiros. | |
Vilas notando agora o brio de seu filho | |
notava também Totila ciente do fato. | |
A morte contudo acumulava os seus ganhos | 2060 |
103
transformando o campo de guerra em planalto. | |
De noite Rigo, o guarda do rei, se aproxima: | |
Era melhor escutar o conselho de Vilas! | |
Totila se encoleriza e não se impressiona, | |
trompeta de praga e percussor de impropérios | 2065 |
berrando a perda de Roma. Inopinado | |
nasceu lo raciocínio do ataque frontal, | |
e rompendo a luz de mais um diei desdito | |
Totila lançou los godos às portas de Roma. | |
Mas às portas de Roma o soldado esperava | 2070 |
mais valente de nunca e tropas impávidas | |
ora que a resistência, a força braçor | |
em repelindo revigorava os escudos | |
e a sorte das armas aumentava o moral. | |
O rei dos godos percebendo os vigores | 2075 |
mudou la meta e concentrou los soldados | |
quase todos aos pés dum única porta, | |
decerto presa fácil com menos escudos. | |
E flutuavam num mar espadar e de lanças, | |
cavalos e clavas intimidando os ferozes. | 2080 |
104
Contudo o destino provou correto o conselho | |
de Vilas como depois a palavra de Rigo | |
porquanto um fato ominoso se deu de repente: | |
Num lance agitado veio ao chão co cavalo | |
o grande porta-bandeira do rei, atingido | 2085 |
ao mesmo tempo por flecha e lança: Morreu. | |
Quando enfim circulou pelas tropas a nova | |
que el estandarte do rei, a briosa bandeira | |
caíra ao chão pisada por patas equéstribos, | |
lábaro violado por barro e por sangue, | 2090 |
houve medo e tumulto no exército godo. | |
Vilas e Rigo e todos os grandes dum povo | |
correrom ao rei: – Termina agora o combate! – | |
Logo Totila recebendo em mãos o estandartem | |
dourado e recuperado e contudo ultrajado | 2095 |
mandou soar a trombeta do fim da batalha, | |
batendo em retirada co grosso dos homens. | |
E o povo de Roma vendo um novu milagre | |
ergueu las mãos aos céus e beijou Belisário, | |
enquanto os combatentes trocavam abraços | 2100 |
105
e lágrimas e sentimentos mistos, cansados, | |
contando façanhas ganhas e amigos idos. | |
A vida quis assim: Um homem sem meios | |
caído em desgraça fez-se patrono de Roma. | |
Colheu el última grande vitória de Roma | 2105 |
um homem fiel, desmoralizado e sem medo. | |
Leixou para trás a sua esperança e fortes | |
soldados, para que nunca mais se atrevesse | |
um rei a despovoar a matrona dos povos. |
Totila |
π | |
| |
Nome: Totila, ou Baduila. Data de nasci- | 2110 |
mento: desconhecida. Lugar: Treviso na Itália, | |
isto ou Espanha. Mãe: alguém. Pai: o irmão | |
de Idibaldo, o rei. Altura: um e setenta e nove. | |
Olhos: azuis. Cabelo: louro, longo, ondulado. | |
Peso: magro. Nacionalidade: dos godos. | 2115 |
Crença: cristão ariano. Ocupação: guerreiro, | |
rei aclamado. Acusação: derrota de Roma – | |
veio, cercou, invadiu, incendiou, arrasou, des- | |
povoou, depois vacilou, perdeu, se irritou, ten- | |
tou retomar, non conseguiu, a bandeira caiu. | 2120 |
106
Assim falav’os gadrãos e os estoas, pedindo explica- | |
ções ad um rei cabisbaixo e cumpria mesmo falar. | |
Nisto avançou, tomou corage, inventando uma nova | |
força e lançando: – Minha gente, atenção, quequeísso! | |
Ninguém ti explicou a guerra comé que é? A pessoa | 2125 |
um dia ganha, o l’outro perde, a guerrè issaí. | |
Tem que saber perder, meu erreiro, a vidè issaí, | |
quer saber de “ah, non seiquê” aqui não, se oriente. | |
Guerra a pessoa ganhar è bonito, agora bonito | |
mesmè cê perder que nehn’home! Comigo chegou com | 2130 |
“toma aí ‘sa coroa què tua”, então non pensei, | |
mandaro peguei, e non vim com viadage aqui não pa- | |
cima do povo, falei na cara: tem hora que perde, | |
seje home, aceite! Deus ajudè quem se garante, | |
mas direto o peão se garante e Deus non permite. | 2135 |
Vem choramingáqui não! Perdemo, è verdade, | |
mas non foi vagabundo ali não que ganhou, ganhou | |
foi Belisário, rapaz, o cara mais forte ali deles! | |
Ganhou non foi que godè fraco, ganhou porquè louco, | |
nós lutano ele apareceu foi com coisa adoidada, | 2140 |
107
contrariando a razão de quem sabe lutar, confundindo | |
todo mundo: tinha tudo a perder, mas destino ajudou, | |
meu filho, aí complica o negócio. Non tinha guerreiro | |
nosso na estrada, mas saporquê? eo ti digo por quê: | |
guerreiro nosso tava lutando num’outra estrada, | 2145 |
tava correndo não, meu nego, tava ganhando! | |
Então n’esqueça não que grande povo nòs somos: | |
Ele ganhou que o destino ajudou, senão perdia; | |
godo que è godo psá de destino não, tem força. | |
Ó, se fosse força com força, sem mão invisível | 2150 |
tava claro quem ganhava, mas Deus non quis, | |
então paciência. Tem que ter fé nè só quando ganha, | |
tem de dar benzadeus quando perde porque tà vivo. | |
Eire Deus decidiu, amanhã decide de novo. | |
Perdeu? Perdeu, mas a guerra taí, continua, | 2155 |
bola pafrente, né tipo “ah, perdeu, vamembora”, | |
sai dessa vida! O estilè “dia melhor virá!” | |
Então pelamor de Deus, meu filho, seje home, | |
erga a cabeça e da próxima vez er outro o destino. | |
Vira e mexe o cara cai do cavalo, acontece, | 2160 |
108
só non pode perder è fé, meus amigo! – E calarom. | |
Mas dali, Totila entrou numa crise terrível, | |
só andava de lá pra cá e falava sozinho. | |
Uma coisa è falar na frente de todo mundo, | |
outra coisa è viver e ver as coisas de fato. | 2165 |
Tinha rumores aqui-ali de alguma vitória, | |
mas a verdade era clara e Totila sabia: a respon- | |
sabilidade daquela derrota era dele mesmo. | |
Pois è nisso que dá nõ ouvir conselho, avisaram! | |
Ah, essa coisa de guerra acaba sim coa pessoa, | 2170 |
perde a paciência. Bonito è feito cavalo. | |
Tarde da noite o rei olhava o bicho nos olhos | |
como se fosse amigo, mas olha que era. Totila | |
tinha aquele cavalo desde criança. Gostava | |
muito mas dava dó, invejava a sua inocência: | 2175 |
coitado de tudo que é cavalo a correr por aí. | |
Do nada chega o l’home fingindo ser amigo, | |
quando vê o bicho vira escravo e chicote | |
dói na cara e no lombo: que vida! Cavalo perdoa | |
tudo, tadinho, tam puro, e a gente non tá nenhaí. | 2180 |
109
Ele non sabe a causa da guerra e sofre sem causa, | |
mas ele crê na bondade original do què mundo. | |
Pois è muito injusta a farsa desta amizade: | |
Ora o cavalo leixava a liberdade dos campos | |
u corria outrora, contemplando o seu modo, | 2185 |
para servi-lo amigo mau na batalha da morte. | |
É, merece mesmo um destino melhor o consorte | |
mudo e generoso de tanta coita e maldade. | |
Passa a guerra e depois o que resta è ver cavalo | |
pelo chão agonizando, o bicho te olhando. | 2190 |
Quebra o coração da pessoa quando è sincera, | |
dá pra ver no l’íris o desespero inocente, | |
ah, e aquela pergunta: Que fizerom de mim? | |
Oche, a minha vida era cavalgar no meu campo | |
sem maldade e sem mal – fizero o quê de mim? | 2195 |
Cavalo era como o povo godo e la gente de Roma | |
tudo arrasado, ensanguentado e despedaçado. | |
Tinha tudo pra ser amigo essa gente bonita, | |
Cristo, quem deixou terminar assim o conflito? | |
Mas Rigo interrompeu la reflexão de seu froia: | 2200 |
110
– Sai daí, Totila, cê tá falando sozinho, | |
calma, vai dormir, tá parecendo um fantasma! – | |
O rei non quer saber, o rei non tem ouvidos. | |
Antes de mais, o rei se enveredou pela noite, | |
foi correndo pelo campo em busca do nada. | 2205 |
Não se importava co vento castigando o rosto | |
nem o frio importava, importava perder o rumo. | |
Mas o frião lo seguia mantendo às custas um passo | |
mais e mais ansioso: – Tótila, para com isto, | |
né assinão, Totila, a pessoa tem que enfrentar! – | 2210 |
Mas o rei caiu sobre o feno olhando uma estrela | |
feito cavalo querendo resposta na sua agonia: | |
– Rigo, enfrentá o quê? Olha o mal queu toí, | |
perdemo Roma! Guerreiro morreu pela minha burrice. – | |
Rigo entendeu. Mas reatou, ponderando com calma: | 2215 |
– Ah, issaí jà foi conversado, bola pafrente, | |
foi você que disse, non foi? Então perfeito! | |
Olha, Totila, daqui desse peito sò sai lealdade, | |
pode crer, foi muito sangue que derramei e | |
vou seguir derramando, tem conversa aqui não! – | 2220 |
111
O rei porém condena: – Era a mensagem de Bento! | |
Era o que o gau estava a dizer. Ganho de mundo | |
passa e Deus abandonou lo gueso dos godos! – | |
Rigo interveio: – Ô, Totila, non diga u’a mentira | |
dessa não que Deus quem è pobre e fraco ele ajuda, | 2225 |
gente feito godo, que è povo sofrido e demais. | |
Se teve um povo que Gus amou foi este que è nosso. | |
Ei-lo povo que agora tem que ganhar essa guerra: | |
Deus que è grande pôs em tuas mãos a vitória! – | |
Mas Totila, enojado e solene, repudiou: | 2230 |
– Como te enganas, amigo, e tristior a verdade. – | |
Rigo falou pero um rei doído irrompeu explicando: | |
– Crês de fato que Deus me pôs no trono dos godos? | |
Ouve pois o meu mérito e julgarás com juízo: | |
Eu me rendera, sim, eu e meu forte em Treviso | 2235 |
de muitos gumas. Já selara a paz com Bizâncio | |
quando uma tira infeliz de dissidentes mi atira: | |
Toma a coroa! Em vão eo falei da paz contratada | |
como em vão pedi respeito ao rei que reinava. | |
Não te ocorre mais à mente o fim de Erarico, | 2240 |
112
froia sem feito? A sua morte nasceu em Treviso, | |
Rigo, nasceu da mesma voz que escutas agora! | |
É verdade! No mesmo instante em que recusei, | |
a grei lustosa e manipuladora mi disse: | |
Mas Totila, se o rei morrer, estamos sem rei! | 2245 |
Eu, sem pensar, no afã de consolando uma gente | |
disse assim: “Ué, se o rei morrer, meus amigos, | |
aí se não tiver ninguém eo aceito a coroa!” | |
Pois pronunciei, meu Deus, u’a sentença de morte! | |
Quando tive atinado melhor coa coisa e com tudo, | 2250 |
Rigo, já vinham trazendo, um, a cabeça do rei, | |
e o l’outro a coroa dos godos! Então assassinei, | |
meu caro, olha minha cara e mi diz o que eo sejo! | |
Ô frião, sè assim que se inicia um reino, | |
cadê l’honestidade e bênção de Deus neste reino? – | 2255 |
Rigo se transtornou ca non conhecia a verdade, | |
tanto que o rosto se deformou assustadora- | |
mente. Retoma: – Então è isto? Mas... impossível! – | |
Era coisa demais borbulhando na mente ao mesmo | |
tempo. Rigo orava tonto: “Ergui meu escudo, | 2260 |
113
Deus, de bõa fé, meu coração inocente: | |
Tem piedade aqui do resto! Este homem errou | |
mas eu também sou godo. Tem paixão de meu povo!” | |
Mas retendo o teor duma forte emoção, encoraja: | |
– Nosso exemplo è Teodorico, è ele que guia. | 2265 |
Povo que è grande è grande por caude todo mundo. – | |
Totila percebe, è claro, o esforço de seu escudeiro, | |
fecha os olhos num sentimento amargo, suspira | |
e pede: – Esconde essa monstruosidade do povo, | |
Rigo, não me queiras mal, defende este povo! – | 2270 |
Era noite avançada e as palavras non combinavam | |
mais co silêncio. Agora era digerir a verdade: | |
Rigo se foi, e Totila desmoronou pelo feno. | |
| |
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ρ | |
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Mentre um rei jazia a sós | |
plangia o seu lamento ao céu: | 2275 |
– Eu me perco de mim pelo fréu | |
deitado na vala feito um morto! | |
Ai, gente, eo vivo e mi pergunto | |
por que, naquele dia infame, | |
eirem tão longe iludir minha gente! | 2280 |
114
Meu povo andava livre na estepe, | |
sem maldade o meu povo arbedava, | |
meu povo conclamado de tão longe | |
para entrar nesta terra tão danada. | |
Estes coitados vierom num gesto inocente | 2285 |
ca prometeram que a l’ersa era sua. | |
No estusiasmo do instante, eles | |
leixarom para trás o que sabiam, | |
montaro elor cavalo e zarparom, | |
além da esperança trazendo | 2290 |
mães e dodra e bode, arado. | |
Mas que mentira e desengano! | |
Foi per dó de Gus que Teodorico | |
morreu sem vendo o que a gente virou, | |
um povo fragadado e perseguido, | 2295 |
um povo sem rumo e sem amigo. | |
Ô gente, eo me cansei de pedipaz, | |
mandei jurar o guerso a tudo què contra | |
nós, prometi: Escolhe aí, Justiniano, | |
escolhe o diem da paz e pronto, | 2300 |
115
serei teu filho de coração, | |
serás o pai dum povo: Estes godos | |
seguir-te-ão por tudo què féror | |
onde a guerra chamar o Império! | |
Ah, minha estrela, o que Deus decidiu | 2305 |
foi anamantar de vez minha gente: | |
Mas a que estau abençoado e grato | |
eu levarei, desta terra enganadora, | |
a multidão dum povo inconsolado? | |
Mi mostrem por bom frial no norte | 2310 |
e no sul apontem à fuga o portu | |
em que o l’home maior deste mundo | |
não encontre meu povo nem persiga! | |
Isso nè vida não, issè cachorrada! | |
Eo passo os dies olhando estrela | 2315 |
mas l’horizonte non quer saber não: | |
O mundo è pequeno ca sempre soube | |
e decidiro, meu povo non cabe não! | |
Tem tanta vida aí nessa grei | |
maior da minha e vida forte! | 2320 |
116
Olha pra mim que assassino queu sou: | |
Pode punir, Senhor, ua vida errada, | |
salva o povo só que o povo è teu! | |
Eo vejo quem eo sejo e porque sou | |
me odeio e quero gritar bem alto: | 2325 |
Eu me arrependo, errei, desdigo | |
o dia em que usurpei um cetro maior | |
do que as minhas mãos forom dignas. | |
Olho patrás dos meus caminhos | |
e não me encontro em meus díebos | 2330 |
ca nenhum desses dias foi correto. | |
O instante em que fui nado | |
me persegue, entristece e mata: | |
É issaí, minha vida è derrota | |
e minha morte è vontade de Dei – | 2335 |
ca não se viu jaquando um danado | |
manter-se no die del ira e da verdade. | |
Mas antes que minha vida se acabe | |
lá no triste inferno que mi cabe | |
eo quero, ai, meu Deus, ai, leixar | 2340 |
117
frial ao povo e refazer esta terram. | |
Será verdade queu tô implorando? | |
O mal queu fiz, ali se repara não, | |
ali fui mau de verdade, tem jeito não. | |
Peço perdão de meu erto, mas pedir | 2345 |
è falar, cachorro como eu melhor agir: | |
ca Deus condena mas meu povo espera, | |
meu povo bom que sò merece vitória! | |
Mais que perdão eo quero a bõa hora: | |
Eo quero a l’hora dum gesto frião | 2350 |
dos homens e digno de todo povo, | |
isto: o criminoso quer um bom ensejo, | |
Senhor, não por mim cuja vida è nada | |
mas pela guarnição desta gente: | |
Ergue o justu do chão, judia não! | 2355 |
Eo vou reconstruir a ruína de Roma! | |
Se pela estrela dum mundo melhor | |
Teodorico me escuta então escute: | |
Abre a porta daquela cidade mais | |
uma vez e vamos ver o que rola. | 2360 |
118
Rei verdadeiro que sês de meus godos, | |
pede pelos teus suãos que te amam. | |
Intercede aí por tantos que vão morrer | |
na ingratidão desta Itália que amarom. | |
Ô meu Deus, vai se perder comigo | 2365 |
a gente mais fiel que andou pelo mundo? | |
Deixa não, non pode acontecêsso não! | |
Sò muita força dentro de mim que nem sei | |
donde vem pra guiar meu povo e salvar: | |
è mha família tudo issaí, è sangue meu. | 2370 |
Mas que situação, eo aqui no meida noite | |
falando a sós com fantasma. Ah, quem sabe | |
um fantasma tem dó de meu povo bom! – | |
Assim falava um rei rendido à sombra | |
mentre as noites transformava em mar. | 2375 |
| |
| |
ς | |
| |
Mas Ruderico, astuto, explicout a seu pai: | |
Durante a guarda noturna fora atacado! | |
No fervor da refrega apoderou-se da clava | |
e contra quatro romanos, mancebos rudes, | |
lançou-se derribando os elmos intrépidos. | 2380 |
119
Terminarom aos socos. Medida a valência | |
e vendo-se os quatro desarmados de súbito, | |
houve pânico e pela noite adentro correrom. | |
O filho de Vilas, um pertinaz na batalha, | |
não se satisfez com vitória sem ganho. | 2385 |
Emaranhou-se no bosque buscando fugidos | |
e em diro golpe bateu-os, um contra quatro. | |
Se alevantarom atordoados da lama, | |
cada qual tateando um caminho no escuro. | |
O primeiro caiu partido em dous pela lança | 2390 |
afiada do jovem. Os três restantes, irados, | |
vendo Ruderico sem arma e sem medo, | |
tentar’um ataque, mas o golpe certeiro | |
do punho fez cair de pronto o segundo. | |
Como um leão se atirando à fera indefesa, | 2395 |
pulou sobre o morto que a sua lança partira | |
e retirou da carcaça a lâmina em sangue, | |
sedento de mais e maior mistura de fluidos. | |
Os sitiados gadrãos, porém, no transtorno, | |
julgando a vida maior do que a causa de Roma, | 2400 |
120
ajoelharom-se, flentes, aos pés dum herói | |
pedindo clemência e sussurrando promessas: | |
– Nóis si rendji, mata não qui nòis fala, | |
tudu quiu frói quisé qui nòis faz obedeci! | |
Mar non dexa nóir morrê não, Ruderico, | 2405 |
nòis tem familh’i fi pa criá, nòis ajuda! – | |
Houve barganha, pois o filho de Vilas, | |
pero que fosse bastante pedirem clemência | |
(ele anembrava ainda o próprio destino), | |
fora excitado ao prometerem proveito: | 2410 |
Pois explicassem a proporção da vantagem! | |
Foi-lis arrancando os detalhes da jura: | |
Abrir de novo aquelas portas de Roma! | |
Era palavra de emocionar defuntos. | |
Como penhor, leixaront um dos gadrãos | 2415 |
sob a guarda de Ruderico, o temível, | |
enquanto os outros retornariam a Roma | |
a preparar melhor o plano – partirom! | |
Quando pois Ruderico abeirou-se de Vilas | |
levando sigo o refém, a fatal garantia, | 2420 |
121
Vilas reprehendeu: – Corrompeste soldados? – | |
Mas ouvindo melhor o cas’e o contexto | |
não li desagradou la coragem do filho. | |
Foi-se apressado ouvir o sereno conselho | |
dum portador de escudos e mestre da guarda. | 2425 |
Antes porém que Rigo dissesse ao lanceiro | |
o novu desespero a que o rei se lançava, | |
Vilas e Ruderico e refém prorromperom | |
palavras, descrevendo em detalhe as imagens. | |
Rigo entonce num sobressalto exaltante | 2430 |
saiu pelos ermos procurando Totila, | |
seguido pelos hômibos: Totila correu-lis | |
como por acaso de encontro aos passos | |
e ouvido o longo relato deu-lis el ordem: | |
– Viche Maria, pode explicar issaí! – | 2435 |
Se aproximavam já na noite seguinte, | |
ainda feridos e atordoados da luta, | |
os desertores: – A gente nós chegaro | |
aqui da Isáur’e vimo comé que se paga | |
serviço bom pa conterrâneo nosso! – | 2440 |
122
Nisto se referiant aos quatro que outrora | |
abriram as portas de Roma, ogano opulentos. | |
O rei, mandando vi-lo tesoureiro do reino, | |
mostrou no tempo medês o talho do agrado | |
esclarecendo: – Com nós funciona assim, | 2445 |
a pessoa ajud’e a gente ajuda a pessoa. | |
Aqui non tem conversa e nhenhenhem não, | |
maluco, abre as porta e tu fica rico! – | |
Falou pra ser entendido, mostrando joias, | |
prometendo mais e melhor recompensa. | 2450 |
Pois de imediato acertou-se o momento! | |
Mas horas antes do ataque, Totila mandou | |
juntar perante si lo grosso das tropas: | |
– Desta vegada, gente, non quero saber | |
de violência, vagabundage e putada! | 2455 |
Pode levar cachorrada pra ca’do caralho: | |
non toque em mulher, criança e peão desarmado! – | |
Quando, porém, abertas as portas, entrarom | |
de noite e repentinos na antiga cidade, | |
descarregau-se nos fracos um ódio sem nome, | 2460 |
123
ca muitos ali destilaram veneno por anos | |
e vendo a confusão perdero o controle, | |
saíro arrebentando gadrãos e destitutos: | |
non teve dó de mulher, idoso e doente, | |
o l’ódio tinha sede, a morte também. | 2465 |
Enquanto alguns seguiam a voz de Totila, | |
outros lavav’as mãos num sangue inocente. | |
O rei, porém, erguendo os olhos aos céus | |
perante o sacrifício dum povo pacato, | |
vendo talvez renegados favores de Deus, | 2470 |
agiu ligeiro – mandou que fossem tratos | |
muitos dos desobedientes notórios, | |
e frente a romanos e godos forom malditos: | |
– Pó matar! Mandei ser bom mas è mau, | |
non presta não. Então vai pa casa do cão, | 2475 |
bandido, vem estragar meu exército não! | |
Aqui se respeita a paz e a vida mansor! – | |
Ali se viu, Totila falou, tà falado, | |
tem brincadeira não, e largaro da espada. | |
Assim reconquistarom-na sombra de Roma. | 2480 |
| |
| |
τ | |
| |
Não durou demais o regozijo dos godos | |
pois se aproximava já da Itália Germano! | |
Primo do Imperador e general violento | |
desde sempre vastou, impávido, os bárbaros. | |
Era herdeiro imperial do trono e do cetro! | 2485 |
Cedo nomeado mestre do exército em Trácia, | |
logo impôs um golpe irado às armas eslavas. | |
Foi Germano que, como de intervenção divina, | |
frente a milháribos repeliut o rol de invasores | |
pouco longe das portas magistrais de Bizâncio. | 2490 |
Foi ataque de monstros raro lido em relatos: | |
Seres animalescos andavam leixando terror | |
em toda a terra da Ilíria. Sedentos de império | |
fácil, dividiram, na sorte dos dados, o mundo. | |
Iam, pois, levando aos ombros a morte certeira | 2495 |
rumo à casa alheia. Non tinham dó de inocentes. | |
Punham ao chão pontiagudas estacas de lenho | |
lá cravando o lombo de quem a vista alcançasse: | |
Eram assassinados os velhos e mães e pequenos. | |
Mentre o lenho lis adentrava fundo as entranhas | 2500 |
125
grito em sinfonia de sangue ecoava no incêndio, | |
nem as casas nem lavouras poupadas de flamas. | |
Antes entravam pela fresta procurando pertences, | |
todo valor humano ou bruto. Passada a derrama | |
eram entregues cada qual a destino arbitrário | 2505 |
(palha ao fogo e vida às espadas), eram lançados | |
contra a rocha recém-nascidos, aos pés de cavalos | |
vinha terminar o labor de pastores tranquilos. | |
Não havia em todo oriente uma terra segura, | |
medo levantava o sol do horizonte e depunha | 2510 |
toda vila e família em renitente incerteza. | |
Ora, Germano, carregando sigo falanges, | |
homens abissais e feras de todo inferno, | |
foi vencendo os invasores em cenas inglórias | |
ante as portas da capital e vãos de províncias. | 2515 |
Pois pagou-lis o dobro de escandalosas chacinas! | |
Forom dizimadas tropas num paraíso de abutres, | |
sangue e carnificina o testemunho da pena e | |
pus e maldições por u los olhos caíssem. | |
Deste modo e de modo pior a razão conhecia, | 2520 |
126
certa, por quais horripilantes estâncias vastaram | |
mãos de Germano, o vencedor de invictos severo. | |
Herói temível, fora mandado às bordas da Líbia | |
para debandar, sem mais, a resistência do vândalo, | |
logo reduzindo a poeira o reino de Estozas, | 2525 |
ora deserto desordenado e morada de najas. | |
Indo à Pérsia, impôs temor a leões irascíveis! | |
Viço leal, recusou concurso a conspiradôribos | |
quando houverom tentado oferecer-li a coroa. | |
Quando a rumo da Itália uma nova incursão ocorreu | 2530 |
de grupações vehementes cruzando o Danúbio, | |
não hesitou: Mudou de rumo e modo e contenda | |
já recrutando, além de romanos, homens alheios | |
como impetuosos lombardos, gépidas, érulos – | |
fortes, unidos no desamor do inimigo comum. | 2535 |
Lá fundarom, em vilarejo e por entre lavouras, | |
largas charcuterias de corpos a céu aberto e | |
diro albergue de redivivas aves carnívoras, | |
víboras monstruosas, de rara estirpe elápidas. | |
Não os impressionou la multidão de invasores | 2540 |
127
nem moções de iniquidade e sevícia sem nome: | |
Quis-cada-quem impôs a força máxima à firme | |
lança derribadora insaciável de equestres! | |
Forom ali descobertas destruïções de inimigos | |
inda não narradas em prestimosos cronistas. | 2545 |
Tal teor e grau de incubações vingativas, | |
tal vigor exterminou la campanha de eslavos, | |
fez do oriente o cemitério aberto dos povos. | |
Falanges vencedoras gozav’o amor à vitória | |
mais visceral e desumanemente possível. | 2550 |
Ora, Germano, a cabo de similares cohortes, | |
pôs-se em cavalgada veloz a caminho da Itália! | |
Dentre os trunfos terríveis que carregava consigo, | |
foi temida por godos menos a lança certeira, | |
menos a espad’e a coleção maldita de arqueiros. | 2555 |
Era la esposa, sim, a força maior de Germano! | |
Filha de Amalasunta e neta de Teodorico, | |
Matasunta, forçada ao matrimônio com Vítice, | |
rei de vis, migrara junto ao monarca rendudo | |
rumo a Constantinopla. Ali foi bem cobiçada, | 2560 |
128
logo após a muito esperada morte do cônjuge, | |
pela corte inteira e, notadamente, Germano. | |
Certo, o primo do Imperador, medindo os efeitos, | |
viu na viúva a clave para o domínio da Itália. | |
Ora, casou-se! E Matasunta, infeliz nos amores, | 2565 |
pouco pôde interpor ao cortejador influente, | |
ela, que ainda chorava a sós a desgraça da mãe | |
Amalasunta. Ela não se esquecera das tantas | |
cartas do Imperador prometendo ajuda à matrona. | |
Não esquecer’a imagem daquela amada regente | 2570 |
feita prisioneira e trucidada na jaula! | |
Sabia, como não, que a causa de Justiniano | |
era menos el honra da mãe, ardiloso pretexto, | |
menos que a reconquista a todo custo da Itália. | |
Inda assim, sem escolha, cedeut à mão de Germano. | 2575 |
Stava prenhe! Uma constelação de vitória | |
já se formava aos olhos do ambicioso marido: | |
Era o signo da legitimidade do Império, | |
chave-mor da união pessoal num único herdeiro. | |
Mas a mãe refletia, triste, a que ponto chegamos: | 2580 |
129
só de pensar que um dia se imaginou ver unidos | |
todos os godos, fortes na Itália como na Espanha. | |
Era o casamento de Amalasunt’e Eutarico. | |
Isto sim que seria um destino, mas foi diferente: | |
Nada disso existiu, Eutarico morreu inda jovem, | 2585 |
pai dum povo e pai somente seu, e fechara | |
deste modo a porta entre os povos. Isto o destino | |
quis, enbranquecendo os cabelos de Teodorico, | |
rei que, batudo deste e doutros males do acaso, | |
morreu sem gosto a pressenti-lo fim de seu povo. | 2590 |
Ogano aquele povo estava à mercê de Germano, | |
mentre Matasunta implorava: – Tem piedade | |
desse povo, por favor non destruas meu povo! | |
Olha, Germano, teu filho aqui que vou carregando: | |
Sangue godo ele tem, o filho que te ofereço! – | 2595 |
Era triste se ajoelhar aos pés dum marido | |
rude e que não amava, grávida e sem escolha. | |
Mas Germano, arrebatado em paixões e desejos | |
ante aquele raro troféu e despólio de guerra, | |
dentro ouvindo, porém, uma emoção de justiça, | 2600 |
130
via la esposa e reërguendo do chão prometia: | |
– Ai, meu amor, non fala assim não queu te amo, | |
amo teu povo também, inimigo meu è Totila. | |
Todo mundo sabe, eo mandei avisar pela Itália: | |
Quem se render vou receber de braços abertos! | 2605 |
Tem rancor aqui não, sò tem amor no meu peito! – | |
Como porém Matasunta, inconsolável, chorasse, | |
Germano recolhia em beijo as lágrimas da esposa: | |
– Não, lindinha, non chores não, eo existo por ti! | |
Nunca existiu amor tam grande como tenho por ti! | 2610 |
Ama-me um pouco, Matasunta, só um pouquinho, | |
deixa o meu coração te provar com sinceridade: | |
Nunca vai existir eo fazer o que quer que seja | |
contra um povo teu, do teu filho e meu pra sempre. – | |
Ela entretanto ouvindo e meditanto intervinha: | 2615 |
– Ah, Germano, eo já conheço esse tipo de fala, | |
não me enganes não, porque te dei meu carinho! – | |
Mas Germano invertendo os papéis no seu desespero, | |
ele medês se ajoelha e beija os pés da esposa: | |
– Não te engano não, princesinha do meu coração, | 2620 |
131
jamais, eo te amo com tod’o ar que sai desse peito | |
quando falo contigo. Eo vou te fazer, eo prometo, | |
rainha, a rainha mais amada que já se viu. | |
Tomo a coroa das mãos dum tirano e ponho em ti! – | |
Era de ver nos olhos que aquele amor non mentia. | 2625 |
Mas como governar, por mais sincero que seja, | |
sobre amálgama tão brutal de tropas unidas? | |
Era difícil ver. E dentre os godos na Itália | |
rondavam casos, histórias e narrações abissais | |
de quem destrói num misto raro de ofício e prazer. | 2630 |
Medo, esperança e sentimentos confusos passavam | |
pela mente dos godos em contemplando o problema. | |
Era de fato inimigo ou companheiro do povo? | |
Era um alarme! Totila reconheceu num segundo | |
tod’a astúcia, a malícia que mascarava o projeto: | 2635 |
Rigo, Vilas e os conselheiros li derom razão. | |
O rei, reunindo os grandes no meido breu, ansiava: | |
– Isso tà claro: Se ele pusere os pés por aqui, | |
aí se acabou de vez nosso povo, pode esquecer! – | |
Desde então buscavam convencer os soldados | 2640 |
132
como os nobres do risco, mas alguns resistiam: | |
Como erguer as armas contra o sangue sagrado | |
de Teodorico? Matasunta seguia Germano! | |
Foi em tal desespero de vagações solitárias | |
pela noite que o rei, confuso, se viu abordado: | 2645 |
– Não adianta, Totila, buscar abrigo no escuro. – | |
Era Rigo! Antes que o rei porém respondesse, | |
inda envergonhado da confissão que fizera, | |
Rigo prossegue: – Ah, mha vida eo vivo no agora, | |
sirvo mou rei que jurei tà jurado. Ali foi feio, | 2650 |
Frói, mas a guerra continua e Germano vem vindo, | |
vamo lutar primeiro e tu chora depois, meu amigo! | |
Tem que tomar u’atitude logo, o caso è grave! – | |
Que fazer, porém? O tempo medês era contra! | |
Rem obstante, o mestre dos escudeiros sugere: | 2655 |
– Manda emissário! – Já no die seguinte partiam | |
rumo a Germano os representantes do rei de Roma, | |
gente de todo sangue unida na causa dos godos. | |
Fossem claros: Era oferta de paz a embaixada! | |
Pois falassem a Matasunta se fosse preciso, | 2660 |
133
não podiam poupar recurso, esforço e manobra. | |
Pelo amor de Deus, non voltassem de mãos abanando: | |
só voltassem coa paz! Era uma audácia tremenda | |
mas ninguém discordava do froia. Era sabido | |
já que a situação era tão perigosa que mesmo | 2665 |
a paz nos termos do Império seria aceitável! | |
Dias depois, seguia ainda umoutra missiva: | |
Tótila quer entregar a Matasunta a coroa, | |
pede humildemente que sejam feitos súditos | |
novos os seus guerreiros, asseguradas as vidas | 2670 |
como pertences: Nulho soldado seja punido! | |
Mas também se organizava em meio a temores | |
graves a resistência antecipando o combate. | |
Cá e lá, fortificavam o muro dos burgos, | |
eram mandados corredores rumo à Dalmácia | 2675 |
para saber a que ponto cavalgava o inimigo. | |
Nada garantia sequer a chegada por terra: | |
Era preciso entender se passariam por Vêneto | |
ou zarpariam do mar, desbaratando o preparo. | |
Uma vez demandando os litorais de Salones, | 2680 |
134
vila maior da Dalmácia, eram donos do acaso: | |
Basta um vento suim, em poucos dias alcança- | |
riam Piceno, desembarcando perto de Ancona. | |
Era um cenário forte: Em sobressalto ansiosos | |
gadrãos repetiant os exercícios de guerra. | 2685 |
Flecha, escudo, espada e sobretudo os lanceiros | |
não dormiam, a todo instante esperand’o ataque. | |
Fato inquiëtante, Germano chegara a Salones! | |
Cada nova aurora, Totila entrevia o retorno | |
triste dos emissários seus, prenúncio de anguisa. | 2690 |
Qual non foi, contudo, o estupefato, a surpresa | |
quando correu dum lado ad outro do mar Superno, | |
boca a boca, uma fulminante notícia: Germano | |
pondo os pés na velha capital da Dalmácia, | |
olha que coisa, contraiu doença e morreu. | 2695 |
| |
| |
υ | |
| |
Totila tinha certeza: A mão do destino | |
mudara o curso da história pelos godos! | |
Cumpria agir: Mandou reunir senadores | |
e muito velhos da Cúria, dentre os quais | |
Leôncio. A cavalgada a caminho de Roma | 2700 |
135
passava pelas estradas cheias de corpos | |
apodrecendo enquanto o medo grassava. | |
Totila os recebeut às pressas e andarom | |
passando além por construções arruinadas. | |
Os olhos pousavam atordoados por antros | 2705 |
testemunhando outrora um espírito urbano. | |
O rei notava as impressões de Leôncio, | |
que balançava a cabeça ao ver a verdade. | |
Ali non podia esperar, importava falar: | |
– Leôncio, non tem como levantar do chão | 2710 |
a ruína? Olhaí que situação, que flagelo! | |
A guerra foi ruim, me arrependo do incêndio, | |
só que a cidade jà tava bem combalida | |
dês que os vândalos saquearom, faz tempo, | |
desde o reino de Vítice o fogo judia | 2715 |
das pedras monumentor e Roma se acaba. | |
Eo sei, Leôncio, que muita gente non gosta | |
de mim, mas esse estrago aqui non fui eu | |
que fiz esse mar de escombros não, senador. | |
Do jeito que tá non tem condições a cidade, | 2720 |
136
então melhor agir, te chamei praísso! | |
Ô Leôncio, ajuda aí com reforço, | |
Roma non pó ficassinão, ressuscita! | |
Saqui nè roça não, è mãe dum império. | |
Eo abro de coração as portas da Cúria | 2725 |
pra decidir comé que renasce a Cidade. | |
Contigo a gente pó contar, nè verdade? | |
Ué, Leôncio, vai me deixar na mão? – | |
O velho senador, cabisbaixo entretanto | |
de avermelhados olhos, a voz tremulante | 2730 |
e cambaleando no passo, para um momento. | |
Retendo um rei que prosseguia na estrada | |
frente a danificadas pilastras, pondera: | |
– Rei de Roma, tantas vezes pedi piedade | |
desses escombros desolados por terra | 2735 |
nembrando: Poupa, frói, o passado inocente! | |
As pilastras arrebentadas no meio da rua | |
forom perdudas, se aqui se permite a verdade. | |
Eram da Grécia e da Itália, eram de raro | |
mármore as obras caídas e mármore caro. | 2740 |
137
Vierom das mãos de inimitáveis artistas! | |
Mas eu, que perdi família, nome e sustento, | |
qué sabêtsonão, to corren’de problema. | |
Enxergas mal a condição dum coitado – | |
é desilusão e desgraça o destino: | 2745 |
Antigamente a gente ainda abarcava | |
muita terr’e escravo por tudo què canto. | |
Daí chegaro os federados e os bárbaros: | |
chegou que nem sem terra tomano tudo, | |
tanto que ogan’eo vivo só de migalha. | 2750 |
Eles vândalos, pero que não tomarom | |
a nossa propriedade per’de Cartago, | |
ali non deixava mais o fruto sair, | |
ficava lá, e a gente aqui sem comer. | |
Bonito era quando tudo vinha da l’África, | 2755 |
tinha fartura, frói, mas a fonte secou. | |
A fonte foi secando aos poucos, secando | |
tanto que agora è toda seca e deserto | |
e somos ora à mercê do acaso somente! | |
Erguer ruínas? Os mármores u buscar, | 2760 |
138
pagar com que dinheiro? Onde artesãos | |
imitadores de momumentos antigos? | |
Ave Maria, saí custa mais do que o peso | |
do mundo e construções de Constantinopla: | |
Ali vão construindo um templo gigante | 2765 |
às custas do nossa escombro e da vida. | |
Rei de Roma! Tantas vezes pedi piedade | |
de nós e das nossas pedras maiores de nós! | |
Levanta do chão, Totila, nossas ruínas, | |
abre as portas da Cúria, reúne recursos! | 2770 |
A minha vida è sombra, o nome è vazio: | |
No cerco, de porta em porta eo passava | |
pedindo pão e recusando a verdade. | |
Estou de fato vivo? O pão que me derom | |
veio de gente outrora escravos meus! | 2775 |
Veio de vidas mais fiéis do que honor | |
permite esperar, e contudo eram servos. | |
Estou de fato vivo? No amor desse nome | |
que nem sequer mereço eles vão dividindo | |
migo um pão impossive, uma escassa seara. – | 2780 |
139
Mas Totila no impulso da pena o reteve: | |
– Entendo bem, Senador, as tuas palavras? | |
Ah, então tà tudo acabado de vez... | |
Leôncio, non tem nenhuma ajuda? Leôncio! – | |
Atarantado, um rei mirava as estátuas, | 2785 |
baixando o rosto como se visse um fantasma. | |
Considerando as vertiginosas pilastras, | |
Totila escorou-se aos galhos duma oliveira | |
por u la sombra o retrazia à verdade. | |
Leôncio, contudo, continuout o relato | 2790 |
alheio ao quadro desolador do monarca. | |
O velho dum povo a muito custo somente | |
leixou-se convencer ao cuidado romano. | |
Talvez, de fato, algum auxílio minuto | |
o tempo inspirasse, o tempo revelasse. | 2795 |
Naquela tarde porém de ocaso imaturo | |
nada mais li restava senão avisar: | |
– Ó, Totila, se for pra ficar eo fico. | |
Mas o gesto maior vou dizer de verdade | |
e ser sincero, è pouca coisa o recurso: | 2800 |
140
Começa com pão e circo o governo de Roma, | |
o resto è pilastra despedaçada na rua! – | |
| |
| |
φ | |
| |
Quando Justiniano pareceu confortado, | |
como um trovão arrasador a morte ecoou. | |
Correu alada no paço imperial e nas ruas | 2805 |
tendo à boca assustadora o trunfo: Germano! | |
Pasmo o dono do Império leixau cair o cetro | |
pelo mármore frio do seu salão de audiências. | |
Vagava mudo de madrugada os átrios escuros | |
horas inteiras, louca aparição sem cabeça. | 2810 |
Uma circumstância em particular agravava | |
tanto luto, pois non for’a espada inimiga, | |
lança ou flecha el aniquilador de seu primo, | |
não humana: flecha sim do acaso implacável! | |
Era correto um herói morrer daquela maneira? | 2815 |
Não se encaixava o fato atroz no plano divino. | |
Forom consultos os sacerdotes e muitos prestes | |
e fez-se claro o caso: intervenção do demônio! | |
Deus, assim pareceu, em tais desastres pune | |
a presunção de potestades e reis ociosos. | 2820 |
141
Manda a morte castigar com Satã la nociva | |
preguiça arrebatando toda a força do Império. | |
Pois agissem! Arrebentassem de vez o inimigo | |
nem atendessem pior evento das mãos do diabo. | |
Não estavam sozinhos. Desdo começo da guerra | 2825 |
muitos senadores migraram a Constantinopla, | |
donde, rancorosos, lançavam mão de recursos | |
para convencer a corte da guerra na Itália. | |
Die e noite se acumulavam cartas e notas, | |
era influente a facção em torno de Justiniano, | 2830 |
vates opulentos que decidiam destinos. | |
Eles eram resquícios da fina flor de Roma, | |
bem sabiam donde vinham. Falavam sem medo | |
como se co-investidos da púrpura imperial: | |
– Age, César, tira de Roma a cambada de abutres! | 2835 |
Onde se viut uma eterna gente entregue a cadelos? | |
Limpa a mãe do Império da bacanal de bandidos | |
nem consintas mais Império Romano sem Roma! – | |
Era em vão relembrá-las desordenadas finanças, | |
quão escassa era a verba e quão custosa a guerra. | 2840 |
142
Pois Totila na conjuntura era o caso menor: | |
Havia a Pérsia, poderosa, hostil, perigosa. | |
Mas o orgulho falava altior naquelas cabeças: | |
– Éste persa o teu império, l’Império Romano? | |
Não hesites! Não import’o esforço nem preço! | 2845 |
Pode ser enterrado até lo coveiro do mundo, | |
pode custar a vida del último abutre na Itália: | |
Mas que seja destruído o domínio dos godos! – | |
Foi ali deciso, portanto, o fato dum povo | |
nem pungentes termos de paz seriam releitos. | 2850 |
Quem contudo encarregar dum gravíssimo ofício? | |
Era a prioridade manter Belisário por perto | |
tanto pelo risco da Pérsia quanto por fama: | |
Fama demais ameaça a consistência de tronos. | |
Inda aguardava, em Salones, João de Vitaliano, | 2855 |
genro até de Germano, estrategista de astúcia, | |
mas faltava o carisma condutor da vitória. | |
Indo por nomes, apenas um general pareceu-li | |
digno da perigosa empresa: Narses, o eunuco. | |
Foi chamado às pressas à sala das audiências | 2860 |
143
onde o dono dos povos transtornado li reza: | |
– Narses, eres a salvação da cidade de Romae. | |
És a derradeira esperança, Narses, do Império. – | |
Foi-li mastigando o plano oneroso do prélio, | |
foi-li pouco a pouco revelando os detalhes | 2865 |
vivos e tortuosos de delicadas campanhas. | |
Narses, porém, concatenando benh’a extensão | |
de tal fazenda e belicosíssimos riscos recua. | |
Pede tempo. Assiste o pôr das horas calado | |
frente ao Bósporo mas adentra enfim o palácio | 2870 |
donde, reverente e caro, responde ao supremo: | |
– Ó destino impossível, desanimada existência! | |
Desde a primeira vez que vi a sombra do mundo, | |
César, eu me vi produto duma indústria de ultrajes. | |
Não se passou na minha vida um dia sem coita: | 2875 |
Fui castrado, vítima grátis, privado e vexado. | |
Quem me vê por aí atravessando as ruelas | |
como um condenado eunuco, ridículo e rindo, | |
ah, non conhece a dor dos sentimentos inúteis. | |
Eu existo mesmo è pra ser a piada do mundo, | 2880 |
144
para non ser amado, para amar sem direito, | |
para ver passar uma bela mulher e saber | |
que não existe lugar ali para o meu coração, | |
non cabe neste mundo o lixo de ser o que sejo. | |
Saber que no abraço meu floresceria uma vida, | 2885 |
ah, um’alma cara e velida, mas que naufrago | |
como quem nada e morre na praia. A vidè assim, | |
assinh’è la vida, non vale nimigalh’o infinito | |
dentro de mim, o poço da felicidade: tapado. | |
Antes, quando cabia esperança no meu coração, | 2890 |
rogava a Deo poderoso: Senhor, matai-me jovem, | |
ponde fim a tanta tristeza! Aqui me encontro, | |
ai de mim, setenta primaveras de angústia. | |
Bem eo sei que meu drama corriqueiro entedia | |
sim a sorte dos grandes, meu lugar eo conheço. | 2895 |
Mas por quê motivo, Dom, aumentar a desgraça | |
já da minha existência mutilad’e humilhada? | |
Por que razão me assassinar numa guerra perdida | |
pois que servi fiel com tanto amor este Império? | |
Teve coita demais minha vida, psá disso não! | 2900 |
145
Ali jà tá decidido aquele destino, non quero! | |
Já tentou Belisár’e todo mundo, mas falta | |
tudo: Soldado quer lutar, non tem armamento. | |
Quer comer, non tem comida e na fome enfraquece. | |
Quando luta, luta mas non tem pagamento! | 2905 |
Que serviçè este? Desmoraliza a cohorte. | |
Não queu seja ingrato, lealdade è meu sangue. | |
Sempre me desloquei por Vós em tropas e armadas | |
nem jamais pedi favor, recompensa que fosse. | |
Fiz por amor, ca sei quem sejo e donde cheguei! | 2910 |
Então se digo “não, nõ eia à guerra na Itália”, | |
né porque non quero: ali non tem condições. | |
Se for pra ser como foi com Belisár’a campanha | |
pode esquecer, è desperdício de força e de vida. | |
Falo como quem defendeu vosso trono e lo cetro | 2915 |
quando o dever mandou: non deu em nada essa guerra. | |
Pois, Augusto, se permitis ficarei no meu canto, | |
peço apenas ela paz de estrebuchar em silêncio. | |
Quem cuja vida foi vexame desde o começo, | |
gente, a pessoa non psá morrer na vergonha. – | 2920 |
146
Antes porém que prosseguisse a voz suplicante | |
foi interrupta. O Imperador emitiu de seu sólio: | |
– Nesta idade que vai mi enbranquecendo o cabelo | |
nunqua vidi um homem, Narses, da tua altitude. | |
Est em cásibos como o tuo que Deus manifesta | 2925 |
toda a verdadeira grandeza que cabe num peito. | |
Esse comércio estranho e desonroso de eunucos | |
já mandei banir dos hemisférios do Império, | |
pois amar e ser amado è presente de Deus | |
que todo homem filho do mundo quer e merece. | 2930 |
Tu sofreste mais de qualquer herói que conheço | |
mas a tua vida te fez o herói de verdade. | |
Tu tiveste menos amor que todo-los homens | |
mas a tua graça foi maior que a de todos. | |
Eles gozavam a vida, tu servias a pátriam. | 2935 |
Eles falavam, tu agias. È deles a infâmia! | |
Ora então non mintas, pois eo sei quem tu és! | |
Vexame quem apaga è virtude e por isto te peço: | |
Vai pr’a Itália , Narses, apaga aquela vergonha! – | |
Eles vão para fora e contempl’o Bósporo calmo. | 2940 |
147
Narses repara um rosto envelhecido com rugas, | |
fita o cansado olhar e nota o suspiro pesado, | |
mas o grande peso era o luxo em torno do homem. | |
Que contraste com tudo o que vira pelo Império. | |
Era difice a tarefa do Imperador, porque via | 2945 |
Narses guardar rancor pela fama de Belisário. | |
Eles se olharom dum olhar estranho, dum mundo | |
cada qual diferente, ligados pela inexpli- | |
cável contingência da vida. Narses entende | |
bem, aquele belo discurso era todo uma farsa. | 2950 |
Era praticamente uma emboscada a campanha, | |
mas non tinha escolha. Ele tenta esquivar-se | |
sem soar ingrato a l’honra tão questionável | |
que ali se oferecia. Reflete e conclui consigo: | |
Tem que expor a situação sem nenhuma ilusão. | 2955 |
Portanto devolve: – Raramente ouvi piedade, | |
Dom, me sinto muito obrigado a Vós pelo afeto. | |
Mas então, ali na Itália o negóçè o seguinte: | |
Esse novo rei è forte, o terrenè complexo. | |
Pode ganhar, mas né Belisár’ou eu que venceia: | 2960 |
148
Tem que ter recursos que, sinceramente, non vejo. | |
Posso ir, mas com meia dúzia de gatos pingados | |
vou fazer o quê? E como é queu recruto | |
sem dinheiro? Se for ser como foi doutra vez | |
com Belisário, melhor nõ ir. Praquele conflito | 2965 |
tem que ter um exército digno do Império Romano. | |
Quero poder nutrir, vestir e pagar de verdade | |
meus soldados para que lutem com fé e com força. | |
Quero cavalo, quero as armas mais poderosas, | |
quero dinheiro! Quem luta, luta pela vitória, | 2970 |
quer entrar numa guerra sabendo que pode vencer. | |
Merece respeito e compaixão lo soldado romano: | |
É preciso viver quem quer cumprir seo ofício, | |
pois macar a morte seja o preço do ganho | |
muitas vezes, nenhuma vida que julgo decente | 2975 |
quer morrer em vão numa guerra mal planejada. | |
Mas em tal situação se consomem as tropas | |
que dá desgosto e dó de ver, então praqueísso? | |
Pelo amor de Deus, praquê Narses a cabo disso? | |
Sem contar aliados como o povo dos érulos, | 2980 |
149
ah, coitados, tão leais enterrando centenas. | |
Dono das gentes, se consentis aqui la verdade | |
quero ser sincero cá entre nós, por bondade: | |
Esses recursos novos que tenho visto agregardes | |
bastam para a morte, pr’a vitória non bastam. – | 3985 |
Narses calou-se e Justiniano corou, golpeado | |
fundo na espinha dorsal de seu orgulho. Contudo, | |
mede as palavras, pondera longamente e profere: | |
– Ego consinto a tua verdade e respondo coa minha: | |
Se for recurso o problema, o problema está resolvido. – | 2990 |
César mandou pará-la construção do seu Templo! | |
Essa Itália, ruminava, non serve pra nada, | |
como è vazia a pompa da reconquista de Roma. | |
Mas um detalhe inconveniente era manifesto: | |
Era de Roma que vinha o próprio nome do Império. | 2995 |
Bem sabia que o povo detestava os pesados | |
novos impostos, financiando a guerra da Pérsia | |
como a construção da basílica Santa Sofia. | |
Quanta opulência e desordenação de recursos! | |
Como se nada disso bastasse, uma guerra por nada | 3000 |
150
fazia esvaziar a fazenda, o erário, o tesouro. | |
Quem vislumbrava as movimentações em Bizâncio | |
bem atinava coa proporção daquele projeto: | |
armas e provimentos, cavalos, ouro e bandeiras, | |
Narses munido. O plano era simples: destruir | 3005 |
Totila! Unir-se a João de Vitaliano em Salones. | |
Ir recrutando a caminho. O Imperador o despede: | |
– Uma coisa, Narses, ia-me quase esquecendo: | |
Minha parte eo fiz, agora faz a tuam partem. | |
Pois parei este Império para prover a campanha. | 3010 |
Tens agora recursos que pagam, se não a vitóriam, | |
pelo menos as mortes. Só te peço uma coisa: | |
Vence, pois se fores perder ere minha a derrota, | |
teu lo vexame. Se tudo for em vão, meu amigo, | |
tudo fore em vão depois de camanhos esforços, | 3015 |
não retornes. Morre por lá! – E Narses partiu. |
Totila |
χ | |
| |
Totila, porém, no medês instante adentrava | |
o Circo Máximo donde a massa aguardava | |
ansiosa a corrida bigar. O ensejo festivo | |
que o próprio rei custeara marcava uma nova | 3020 |
151
amizad’e a reconciliação entre os povos: | |
Era um pequeno agrado aos desesperados. | |
Prenunciando os ludos, a pompa circense | |
marchava pela arena, plebeus e soldados. | |
Romanos e godos carregando a bandeira | 3025 |
toavam os cânticos pela parada solene. | |
Já se perdera a memória dos últimos jogos | |
a reunir multitudes, e mais memoravel- | |
mente saltava aos olhos um raro evento, | |
um caso caríssimo e sobretudo ao froia! | 3030 |
Totila quis ganhar o povo primeiro, | |
depois a guerra, por isto cumpria agir: | |
curar, tratar ao menos, a velha ferida. | |
Forom restaurados alguns monumentos | |
e construções e foi proviso alimento, | 3035 |
mesmo sabendo que a sedução era breve. | |
Quando chegou ao fim a pompa de praxe | |
o rei ergueu-se frente à massa, propondo: | |
– Povo de Roma! Nem as pedras ignoram | |
o nome do vosso labor e vossa tristeza. | 3040 |
152
Pequenos pagarom pelo vício dos grandes | |
um preço que não convém ao homi sereno. | |
Não creais que me desloquei de distâncias | |
berando pela Itália as armas e os homens | |
para erguer o meu ero contra caídos! | 3045 |
Dês que Gus mi trouxe a coroa dos godos | |
e o fardo angustiado guerrar e do sangue, | |
julguei correto e consoante à decência | |
buscar em campo aberto os meus inimigos: | |
poupei de longe das vilas a vida inocente | 3050 |
merecedora de morte honrada e tranquila. | |
Segui assim, os homens meus è que sabem, | |
pelos ermos do Vêneto e pela Toscana, | |
segui buscando e desafiando oponentes | |
e preparando em campo aberto o meu are. | 3055 |
E no entanto os inimigos fugiam ligeiros | |
quando as ocasiões de batalha arribavam, | |
leixando o campo e transtornando sensatos! | |
Corriam querendo abrigo em cidades e gãos, | |
atrás de muralhas, cada qual da primeira | 3060 |
153
que via, para que, perdedores, morressem | |
não sozinhos, mas levando inocentes | |
sigo! Em tal valor vos medirom, romanos, | |
que rem lis importou la vossa existência! | |
Antes aglomerarom-se atrás desses muros | 3065 |
por u la fome veio punir vossos filhos | |
mentre comiam a sós do grão que colhêreis. | |
Entristeçudos dum modo ingrato de guerra, | |
muita vez apelaumos em vão, repetindo: | |
Covardes, não vos escondais pelos burgos | 3070 |
mas vinde medir a vossa força coas nossas | |
como convém ao bom guerreiro o seu flol! | |
Mas não vierom, e bem sabemos do resto. | |
Romanos! Foi por amor da vossa firmeza | |
e vida reta que despovoei la cidade. | 3075 |
Eo fiz trazer ao chão a muralha maldita | |
para que não custasse, mais uma vez, | |
as vossas vidas como a vida dos vossos! | |
Se dano indébito a minha ira abalada | |
causou à cidade, vão-se já reparando | 3080 |
154
estragos e mais remédios serão ministrados. – | |
Houve pausa, porquanto a voz de Totila, | |
enquanto o rei nembrava imagens, tremia | |
e os olhos seus avermelhavam-se fartos. | |
A massa silenciosa atendia entretanto | 3085 |
e lo rei, tomando fôlego novu, rezou-li: | |
– Ô meu povo de Roma, non cale a boca | |
desse jeito não que quem fala è quem ama, | |
nossa gente è pra ser unida pra sempre. | |
Olhe, meu povo, a partir de hoje começa | 3090 |
a verdadeira amizade, uma nova era. | |
Agora vai ser assim: a pessoa honrada | |
lusta e quer trabalhar, aqui se respeita, | |
pode arbedar porque nulhome atrapalha. | |
Aquela história do povo erguer a enxada | 3095 |
com medo acabou, porque se alguém molestar | |
a gente acaba è com ele, non tem discussão. | |
Quem quer viver em paz, em paz viverá! | |
Quem quer vender seu pão et al, que venda | |
e vá prover no suor quejandas vidas, | 3100 |
155
assim que è bonito e digo mais: uma coisa | |
pode crer c’o garanto: quem luta coa gente | |
pra defender inocente jamais se arrepende. | |
Aqui nõ existe não essa história, meu povo, | |
do cara oprimir e o juiz fingir que non sabe, | 3105 |
pois meu reino è de godos e reino livror! | |
O velho comércio e desgostoso de escravos | |
não condiz com respeito a Deus poderoso, | |
pode esquecer, mandei libertar todo mundo! | |
O l’homem bom querer guiar o seu éu | 3110 |
pero o mau senhor impedir, mandei proibir! | |
Dagorendiante o nome de Roma è Justiça, | |
o nome è proteger quem trabalha bonito! | |
Pode seguir plantando acrão pela terra, | |
levando gado, vá com Deus e sem medo! | 3115 |
Tem ladrão aquinão, a porção que se dava | |
antigamente aos ingratis dareis ao Froia, | |
que em vosso nome distribui pelo povo | |
aqui na cidade e no campo, assim è certo. | |
Aqui todo mundo conta e se alguém discordar | 3120 |
156
de alguma coisa avise, a gente conversa, | |
porque bonito è governar tudo junto. | |
Non tem Justiniano que vença, Romanos, | |
a força dum povo livre, unido e que luta. | |
Esta era a liberdade que um dia existiu | 3125 |
no povo e foi assim que Roma cresceu. | |
È dessa Roma que a gente mais necessita, | |
dum povo em que cada qual será senador: | |
porque se ouvirá, Quirites, a voz de todos! | |
Salve a liberdade maior que a dos Gracos! | 3130 |
Que Deus permita a guarnição desta Itália | |
contra a gama de osores da nossa inocência! | |
Eles maquinam a todo escau nossa morte, | |
comprados e compradores sedentos de bloa. | |
Eles vêm recusando os acordos e as cartas | 3135 |
pois non querem guerso, a desgraça procuram: | |
Que marcham violentamente em campanhas! | |
Então è isto, Romanos, o fim duma história? | |
A gente vai leixar esse bando de abutres | |
passar por cima da vida e do nosso trabalho | 3140 |
157
pra sustentar ladrão, vagabundo e tirano? | |
Eo não, friãos, non vou deixar isto não! | |
Mas todo verdadeiro guerreiro sò vence | |
quando o povo confia e por isto que peço: | |
Confia, povo de Roma, confia em teu rei! | 3145 |
O gesto da minha vida è singelo, è de amor | |
e gratidão, è de pai: e por isto ofereço, | |
amigos meus, aquestes jogos festivos. | |
Eo peço perdão por um gesto feio, agora | |
o que eu prometo è paz, justiça e vitória. – | 3150 |
Houve aplauso. Houve ardor prolongado | |
e profundos brados e comoção pela prole. | |
O nome do rei dos godos soava espontâneo | |
por entre as bocas como o Frói Romanor! | |
Num gesto raro, os cujo ouvido sentira | 3155 |
levadas pela brisa as palavras dum rei | |
estendiam os olhos, as mãos, a sua angústia | |
na direção de Totila. Speravam socorro | |
e que lis importavam, coitados, bandeiras | |
e nomes de reis? Estava clara uma coisa | 3160 |
158
somente: Era decerto um senhor generoso | |
que erguera a voz à plebi em tal gravidade | |
e tão patente arrebatamento de espírito! | |
Era de fato um tutor, escudo justor | |
e protetor perpétuo de vidas perdidas. | 3165 |
Aproximou-se porém o vetusto Leôncio, | |
impressionado e repetindo os apelos: | |
– Aduz verdade, rei, a tantas palavras! | |
Inclui verdade se podes, pois iludir | |
um povo generoso e crédulo e simples | 3170 |
è crime pior que impiedade na guerra. | |
Era melhor matar todo mundo de vez, | |
Totila, que prometer, mentir, enganar | |
uma gente condenada, aflita, arrasada! – | |
Passavam no embalo bigas, cavalos afoitos | 3175 |
dobrando perigosas curvas e esbeltos | |
enquanto a morte suplicava por carne. | |
Bastava a queda em velocidade voraz | |
e os éguos sem freno arrastavam-no corpo | |
agonizante em desgraciosos trajetos, | 3180 |
159
a biga vazia e descontrolada e tombada. | |
Muita vez, um guia de carros perdia | |
controle de rédeas e parecia ceder, | |
e pero ressurgia pleno em comando | |
quando a massa o cria morto na arena. | 3185 |
Mas quem atinava coas emoções esportivas | |
quando ainda soavam dentro do peito | |
as graves orações, a promessa de alívio? | |
Quanta vez os olhos voltarom-se ao céu | |
calados nalguma espera de paz duradoura. | 3190 |
Totila ganhara a massa. A massa contudo | |
descendo os olhos do céu mirava o chão | |
e questionava do acaso a verdade do tempo. | |
Será que algum Apolo ou Cristo Jesus | |
ainda recorda por alto o povo romano? | 3195 |
Terá piëdade enfim de quejendo destino? | |
Mas as vozes se erguerom amargas pedindo | |
a Deus amor. Assistiam, sem o saber, | |
os derradeiros jogos do circo de Roma. | |
| |
| |
ψ | |
| |
Narses, o general, passava por entre pobres | 3200 |
vilas balançando joias douradas no braço, | |
mar de prendas comovendo àmbição de mancebos. | |
Como esperado, jovens de todo modo e talento | |
já largavam a vida velha juntando-se às tropas. | |
Era de confundir os olhos a grei de guerreiros | 3205 |
cada dia a crescer e desafiando contagens. | |
Quem buscava a cohorte abandonando a familiam | |
era menos a mágoa dos seus do que certa alegria: | |
Vinha da guerra a l’única esperança de vida. | |
Mas julgout enganado quem julgou nesses homens | 3210 |
prole de desafortunados que a prata comprara. | |
Quando soau nas abissais estâncias da Trácia | |
como pelas montanhas e em litorais da Dalmácia | |
que Narses aglomerava tropas no rumo da Itália, | |
veio ao seu encontro o povo inteiro dos érulos, | 3215 |
grêmio distinto. Irom às arma sem que soubessem | |
bem de recompensas pagas, de como e de quanto. | |
Antes lis importava apenas servir um vetusto | |
amigo e protetor e companheiro firme no prélio, | |
pois honravam, em tudo, a retidão do aliado: | 3220 |
161
Não existia Narses voltar atrás em palavras | |
como quem fala primeiro e só reflete depois. | |
Promessas vãs passavam longe da sua amargura. | |
Foi de fato um claro e raro exemplar de destinos | |
onde a frustração conduziu la vida a virtudes. | 3225 |
Pouco antes porém que demandassem Salones, | |
houve, num vilarejo perto, um certo episódio. | |
É que circulava livre um ladrão de galinhas! | |
Ágil, furtava de madrugada, na aurora e no die, | |
inda impune e despertando a raiva das tropas. | 3230 |
Pois se fez questão de ficando mais uma noite | |
para armar emboscada: Foi detento em flagrante! | |
Quando contudo o carrasco levantava o machado | |
contro ladro, a mãe correu carregando crianças. | |
Ela ajoelhou-se em frente ao primeiro que viut | 3235 |
e derramava inquiëtante afluência de gotas: | |
– Mata Procêncio não, guerreiro, mata a mãe, | |
mata eu que foi eu que fez Procêncio ladrão, | |
mandei roubar galim pacomer c’os ova acabou! | |
O sei quessa vidè vida suja de gente feia | 3240 |
162
e vida feia, mas vida fei è mió que morrer. | |
Vida fei è sa vida que fez mo filho viver. | |
Mata não, coitá’de Procêncio que nem queria | |
viver, viveu foi só porque mandei pa roubar. | |
Ô guerreiro, Procens acabou! O pai de Procêncio | 3245 |
morreu por Belisário na Itália, Procens acabou! | |
Pode matar mas se matar matè todo mundo | |
logo que morre tudo junto e morre com gosto! – | |
Era pois a Narses que aquela mulher suplicava! | |
Quando porém ergueu lo rosto cons olhos molhados, | 3250 |
Narses amou-a como nunca se amou nelas eras. | |
Era a nembrança viva de desventuras antigas, | |
faces que o coração guardou em vão pelos anos. | |
Ó desencantos, ó, reerguer do fundo as almas | |
um die amadas, memória devidamente esquecida. | 3255 |
Mas a sublime sacerdotisa-mor de Afrodite | |
não se contentava e bela abraçava-se aos pés | |
de a quem inocente e sedutoramente implorava: | |
– Manda os seu soldado pó me matar, mata eu! | |
Procens è menin de coração fez mal pa ninguém, | 3260 |
163
meu fi sò quer comida, vida e pai de verdade. | |
Ô guerreiro, non tem lugar pa Procêncio na tropa? | |
Leva Procêncio, leva, pra ser escravo e ser filho! | |
Leva, que aqui vai ser ladrão de galinha e quem sabe | |
Procêncio na guerra junto cocê vira um home de bem. | 3265 |
Mas leva embora pelo amor de Jesus porque aqui, | |
soldado, essas vidè fei e non temnem como criar. | |
Ensina tudo o què de bom pa mo fi que meu fi | |
vão ter orgulho dele e muito! – Faltava-li a fala. | |
Mas o eunuco, amando em silêncio e sem esperança | 3270 |
como escondendo a dor do próprio rosto, profere: | |
– Para, cadela, enxuga logo essas lágrimas, vai, | |
è tua impostura roubar o soluço do amor verdadeiro! | |
Certo jà ti disserom quem sou e da vida que sofro, | |
pois então me respeita e me poupa de palhaçada! | 3275 |
Vem chorar por ladrão galinar aquinão, prostituta! | |
I falar a teu filho, vai, o menino te espera! | |
Pois essas lágrimas tuas se esgotarem por ele, | |
vem conversar e non chores como se fosse por mim! – | |
Narses entrou na tenda, onde, cabeça entre as mãos, | 3280 |
164
pensava, deliberando o fato de dous infratores. | |
Mas a mulher, chegando a saber a quem suplicara, | |
veio de novo ao general, trazendo Procêncio. | |
Foi perdendo arrebatadoramente as palavras: | |
– Ô senhor, mim desculpe, o nem sabia quem era, | 3285 |
o tava atormentada, o precisava implorar. | |
Non sei falanão, non sei vivenão, mim disculpa! | |
Narses, o faço o quê coessa vida desnorteada? | |
Procêncio vai morrer mas quer pedir perdão | |
porque Procens errou sem querer, errou nascer! – | 3290 |
Antes porém que o filho erguesse a voz remoída | |
Narses indaga: – É verdade essa história, ladrão | |
que a mando da tua mãe furtavas ovo e galinha? | |
Foi a tua mãe que ensinou, celerado? Responde! – | |
Mas Procêncio, pesando a consequência funesta | 3295 |
de tal confissão, gemia e balançava a cabeça. | |
Ela contudo reafirmava a verdade da culpa | |
tão vehemente e destemuda que o filho cedeu. | |
E Narses, o coração diviso no amor e na fúria, | |
disse-li: – É, mulher, eo devia quebrar tua cara, | 3300 |
165
sim, cortar tua língua transmissora de crime. – | |
Isto dito, fez entrar o carrasco, aduzindo: | |
– Ele vai coa gente! Mão de ladrão alongada | |
vira mão de arqueiro aqui, que non tem e precisa. | |
Procêncio! Ouvindo um tormentoso apelo de mãe, | 3305 |
quero levar-te embora como filho e guerreiro! | |
Quero mostrar o laborar que edifica uma vida | |
e pois voltares tomarás as funções de tou pai | |
que, como ouvi, caiu valente e por causa correta. – | |
Antes contudo daquela mãe chorar de alegria, | 3310 |
o eunuco, mostrando a direção da rua, pedia: | |
– I-te embora! Terias sido feliz em mous braços! | |
Mulher, eo faço o quê dessa vida desnorteada? – | |
| |
| |
ω | |
| |
Reconhecendo ainda o fim de Germano, | |
Totila dispôs num sobressalto os gadrãos | 3315 |
e parecia contar coa bondade da sorte: | |
Escravos aliavam-se às tropas buscando | |
a vida livre e guerreiros bizantinos | |
largav’o posto para unir-se a Totila, | |
migrando em massa abandonando a bandeira. | 3320 |
166
E pois o rei gozasse o domínio da Itália | |
todo inteiro, cumpria cortar o sustento | |
que alimentav’os inimigos, tolhê-la raiz. | |
Navios de guerra pelas águas de Nápoles | |
forom presos, levados chus ao norte | 3325 |
mentre navegavant incautos e súbito | |
os marinheiros arremessados de bordo. | |
Em pouco tempo os godos usavam de frota: | |
A mando do rei, zarpavam em rumo diverso | |
desafiando a fúria do mar, cobiçando | 3330 |
saques e ataques em litorais adversos. | |
Inopinados, desembarcarom na Córsega | |
para ficar e não poupar’a Sardenha. | |
Correu la nova com’um alarme em Cartago | |
a comando das ilhas, ora incapaz de agir. | 3335 |
Rumavam no mesmo instante agitadas galeras | |
sedentas de Grécia: Devastavam a costa | |
tomando embora opulentos envios de Bizâncio | |
como os provimentos expostos nas praias. | |
Justiniano ouvia os relatos tremendos | 3340 |
167
e balançava lento a cabeça cansada. | |
Concatenava a custo o vigor das imagens | |
deliberando em vão repentinas medidas. | |
Totila assomara uma abundância de naves | |
a dar inveja a l’antiga gana dos vândalos. | 3345 |
Decerto Genserico, o rei das esquadras | |
que se apossaram d’África como de Roma, | |
desafiando em frota sem par o destino | |
e derradeiros dies do Império d’Oeste, | |
decerto invejaria as galeras de godos; | 3350 |
o rei, incendiando o grosso da esquadra | |
romana em litorais espanhóis, destruiu | |
de Majoriano, lo Imperador humilhado | |
e l’último deles patrícios cabos de guerra, | |
poder, a esperança, nome, desejo de vida. | 3355 |
O serviço de Genserico a Majoriano | |
Totila ansiava prestar ao dono gêntio. | |
Não hesitou! Vencendo o forte de Régio | |
zarpou sem mais na direção de Messana | |
cruzando irado o mar, arribando apressado. | 3360 |
168
Desembarcou na Sicília stilando em rancor | |
o seu afã de exaurindi a seara da Itália. | |
A terram percorrerom sem pena, pilhando | |
gado, grãos e o quanto a vista avistasse. | |
Que não leixassem nimigalha patrás! | 3365 |
O godo acompanhava os passos e as arma | |
ditando à tropa insaciáveis derramas. | |
Iniciou pilhando só los patrícios | |
como das vilas de Gordiano, lo Anício, | |
enquanto Gregório, o filho menor, meditava | 3370 |
convicto e tristoroso já de que vida | |
segura no mundo fosse a vida dos monges | |
como a de Bento demandando a caverna – | |
Gregório que dedicou a Deus o seu sopro. | |
Mas não bastava o confiscar de benesses. | 3375 |
Famílias remotas lamentavam caladas | |
a mão levando além animais e frumento. | |
O l’home de bois que duvidara tranquilo | |
do desembraque dormia ogano com medo. | |
O plantador de sementes mirava a lavoura | 3380 |
169
e derribav’o arado chorando em presságio. | |
O rei, porém, perambulando nos campos | |
veio a dar enfim no prenúncio da aurora. | |
Como num breve instante parasse a mirar, | |
ouviu das ribanceiras um berro de bodes. | 3385 |
Acompanhava o pastor que passava ansioso | |
enquanto longe ovelhas mudas seguiam. | |
Vinha correndo de quem buscava seu gado! | |
Totila notou la inquirição dos ovinos | |
e quis: – Aonde foges, pastor, de gadrãos? – | 3390 |
El outro, contudo, sabendo a quem se avançava, | |
falou de voz temerosa e caçando palavras | |
enquanto a talha berrante cercava Totila: | |
– Perdoa, rei, a intervenção de meus bode | |
pela minha vida e menor do que a deles. | 3395 |
Matei ninguém, non roubo, non sou de mentir! | |
A minha vidè de andar por aí sem caminho | |
e bode veio atrás e botei pa comer. | |
Agora, rei, meu bode non vive sem mim | |
nem eu sem bode, què bode par’da família, | 3400 |
170
filho meu da cabra e tirei da barriga. | |
Apareceu soldado caçano o mo gado! | |
Ei quer levar simbora mo bode què meu | |
c’o dou de viver, mo rei, mas quequeísso? | |
Aqui nego leva mha cabra eo jogu’è praga, | 3405 |
eis tão pensan’ quisaqui foi presen’de rei? | |
Toma prumo, peão, sai palade mou bode! – | |
Ao redor amedrontad’as ovelhas pastavam, | |
os olhos inteiramente voltados ao rei, | |
rebanho mastigador de pasto e fitando | 3410 |
calado, prestes à fuga desordenada: | |
Bastava um passo violento e corriam. | |
Mas ele pastor tomando calma seguiu, | |
enquanto os gadrãos atendiam resposta: | |
– A vida tua, Tótila, è de gesto bonito | 3415 |
e bonito que nem tu fez mo’rmão abonado. | |
Veio um soldado maltratano a menina, | |
Totila matô’o soldado e cuidou da menina | |
e deu dinheiro e gado e cuidou da menina! | |
Quando voltou mo’rmão e falou de Totila, | 3420 |
171
o povo entendeu “issaí què rei de verdade.” | |
Agora chega o rei quiè este quiès tu | |
e vem tomar meu gado, por quê, praqueísso? | |
Ô meu Deus, explica aí, tou confuso, | |
rei què bom roubano embora mou bode! – | 3425 |
Os bodes, percebend’a aflição do pastor, | |
berravam inquisitivos dum berro agitado. | |
Totila, porém, nembrando o caso longínquo, | |
mirou melhor el homem de ovinos e disse: | |
– Este homem pode reter o seu gado! | 3430 |
Ladrão, pastor, ladrão Totila non foi. | |
Explica aos conterrâneos teus da Sicília | |
que o rei sentiu la ingratidão do teu povo | |
quando alegre e de braços abertos abriut | |
os portus e as portas del ilha a Belisário, | 3435 |
sabendo que guerreava contro meu povo! | |
Desde ele tempo, carrego muito entristo | |
a nembraça dum gesto apagador de amizades | |
porque, pastor, a vida próspera vossa | |
também se deve a Teodorico, o bondoso | 3440 |
que nunca pôs a mão no pão de seus pobres. |
172
Pode avisar por aí que esse gado que embora | |
levo, eo levo a Roma e non levo pra mim! | |
Pastor, se eo precisasse roubar roubaria | |
de quem tem muito mais e merece benmenos. | 3455 |
Aqui foi sempre assim lo costume, frumento | |
e gado vão para Rom’e uma parte fica. | |
Non tou inventando do nada, então por quê | |
surpresa e raiva? Antigamente ninguém re- | |
clamava, que foi que mudou? A fome è menor? | 3450 |
Quem tinha fome quando os tiranos gualdavam | |
inda passa fome, pastor. Non somos amigos? – | |
O pastor, entonce, escolhendo de bodes, | |
cedeu parcela a Roma e Totila se foi. | |
| |
| |
α’ | |
| |
Mas em Roma o rei sofreu numa triste missiva: | 3455 |
A mão de Rodelinda lhe fora negada. | |
Como se não bastasse a paz | |
o amor também fugia. | |
Totila relembrava | |
as juras de jovem, | 3460 |
173
as confissões trocadas | |
no canto e no vale. | |
Perdera muitas noites | |
com saudade do abraço | |
guardado pelos anos. | 3465 |
O coração se transforma | |
na ausência, depois de crer | |
na promessa e no mundo. | |
E agora, que acontecera? | |
O rei relia a carta | 3470 |
em busca do tempo perdido. | |
O nome do tempo era Rodelinda, | |
a princesa dos francos. | |
Como o tempo engana! | |
Era tão bonita ela amizade | 3475 |
entre as terras e os povos. | |
Eles trocavam presentes | |
e provas dalgo duradouro. | |
A flor populoro unir-se-á | |
num casamento estimado. | 3480 |
174
Mas essas juras de amor, | |
que ilusão, que pecado crer! | |
Ogano Tótila via quem eram | |
os francos e o quequeriam: | |
No meio da luta mudavam | 3485 |
partido, agora cá, ora lá. | |
Primeiro estavam no norte, | |
depois invadiam o sul. | |
Essora era só lo mar | |
separando os godos | 3490 |
da Espanha e da Itália. | |
A guerra eclodiu, fecharom | |
acordo com um e outro. | |
Vítice, aquele rei godor, | |
lhes dera a costa da Gália, | 3495 |
Marselha a fim de acalmar, | |
mas dali quiseram benmais: | |
Tomaro o norte da Itália | |
nos Alpes, soltos no Vêneto, | |
Totila e Justiniano assustados. | 3500 |
175
Se aproveitavam da guerra | |
que ocupava dois governantes. | |
Eles dois queriam dos francos | |
neutralidade, assim se calavam. | |
Mas uma coisa o Froi conseguiu: | 3505 |
Que os francos ficassem no Vêneto | |
ata lo fim da guerra, a promessa. | |
Home acertasse então o novu acordo. | |
A verdade do dia era a carta | |
do amor que jamais è verdade. | 3510 |
Dizia o quê? Ah, Totila non tem | |
direito de amar ca não è rei: | |
Totila tomou a Roma e perdeu, | |
o Imperador nensequer reconhece! | |
Que rei, que partido e noivo è este? | 3515 |
No mundo civilisado, a barbaridade | |
máxima è mesmo amar de verdade. | |
Pairava a pergunta: Rodelinda | |
então se importa só com nomes? | |
Era mentir o amor de Rodelinda? | 3520 |
176
Acreditar em palavras como dói, | |
ah, como dói acreditar em palavras! | |
Era dessa gente a promessa da vida, | |
a espera da paz e do bom coração. | |
Era desse povo a voz da salvação. | 3525 |
| |
| |
β’ | |
| |
Contudo um outra carta abordou, navegando | |
da Itália e caçando João, cabeça de tropas: | |
“Valeriano, a comando em Ravena, saúda. | |
Aqui tà caban’a comida e tamo cercado, | |
falta dinheir’as puta tudo foimbora, | 3530 |
então tà fei o negócio, cara, acredite! | |
Agora Totila cercou nosso forte, viu? | |
Cercou de verdade, aqui nõ entra comida! | |
Eo já falei mas vou repetir: Atitude | |
de home tem que tomar agora ou nunca! | 3535 |
Que porra è essa, soldado caçano rato? | |
Mas c’oc’o to fazen aqui sem reforço? | |
Você non sá que Ancona se o pessoal | |
caí a Itália cai todo mun’de vez? | |
Rapaz, eo nem guento escrever de tanta fome! | 3540 |
177
Ó, se non for pa mandar socorro agora | |
tu pó ficar, viu? Psà vim pacà não, | |
sò manda a pá pa enterrá q’o godo enterra. | |
João, tu quer ser home? Zarpa com tudo, | |
socorre nós pel amor de Deus ou de Apolo!” | 3545 |
João de Vitaliano, balançando a cabeça | |
e mirando longe o mar, pondera o dilema. | |
A l’ordem è clara, atender em Salones | |
até que as tropas de Narses arribassem, | |
depois segui-lo cons homens e as naves. | 3550 |
Estava escrito, assinado por Justiniano! | |
Será que Valeriano estava falando | |
sério? Mas por que também mentiria? | |
Non tinha como non ser verdade, mas honra | |
impera rogar, d’a quem se deve, anuência. | 3555 |
O caso era espinhoso, o tempo era escasso. | |
O cara manda uma carta hoje a Bizâncio | |
e são semanas de espera. A morte iminente | |
non dá licença. Num caso de vida ou morte, | |
João ruminava as consequências dos atos: | 3560 |
178
às vezes è desleal mostrar lealdade. | |
O bem de Ancon’e o juramento a Bizâncio | |
surgiam, gladiantes, na arena da morte. | |
João passara menosprezado por todos, | |
guerreiro que era talentoso e contudo | 3565 |
um poço guardador de mágoas turvas. | |
A voz dos generais abafava os conselhos | |
mas o meio da luta os provava corretos. | |
Estava louco sim para ter um ensejo, | |
louco para provar quem era! Mas isso? | 3570 |
Contrariar seo Imperador e non al? | |
Ali se calou na comparação dos males, | |
curvado ao peso do dessaber e das horas. | |
O fato era forte e não cabiam lamentos | |
ante a lição do acaso e destino incautoro. | 3575 |
João, num surto inordenado e na pressa, | |
conclama, ordena e grita à massa: – Prepara | |
navios! – E sem sabendo futuro e jornada, | |
as tropas embarcam rápido naves adentro, | |
João escolhendo a dedo os heróis de valor. | 3580 |
179
Zarpou! Ao bafo de frientíssimos ventos | |
e mar violento, cruzou na tempestade | |
em virações tenebros’a garganta adriática. | |
Trinta e oito navios avançarom impávidos. | |
O remo que a mão impôs à boca das ondas | 3585 |
não se quebrou: Por breve instante a vida | |
venceu – o vaso frágil – a fúria do inferno. | |
Passarom fortes, humilharo nos braços | |
a força de temporais e l’orgulho do mar. | |
Exaustos, não contudo victos, pisarom | 3590 |
atrás de escuridões flutuantes o margem, | |
vistando nas nuvens o sitiado penhasco | |
donde se erguia firme o forte de Ancona. | |
Desembarcavam prevendo certos o inglório | |
tamanho da luta e João apontava claro | 3595 |
a sorte. Em terra e mar, o frio hibernal | |
mesclava-se ao arrepio, os temores das almas | |
subiam, em contemplando o perigo da morte, | |
alturas maiores que a ribanceira cercada. | |
João mirav’as mãos e as mãos de sous homens | 3600 |
180
titubeavam perante o prospecto da treva. | |
Qual non foi contudo o suspiro de susto | |
quando do fim de angustiantes praias | |
surgiu, nas brumas derradeiras, moção | |
de horizonte, véu, revelando do incerto | 3605 |
a bandeira inabalada de Roma e broquéis | |
de guerreiros: Valeriano e Ravena abordavam! | |
Ossada ambulante, um general concorria | |
a João, derramando dos olhos o seu alívio. | |
João, porém, percebeu la causa da empresa: | 3610 |
Valeriano o julgara um soldado sem honra | |
como os homens vis que, vendo o companha | |
clamando, passarom reto. Não esperava | |
ver naquela costa os navios de Salones: | |
A prova era o vir em pessoa por não confiar. | 3615 |
Astuto... Pedira ajuda alegando fraqueza | |
e pero aparecia benforte ao combate: | |
É por essas e outras, João contemplava, | |
que a vida vai minando a verdade da gente. | |
Valeriano, enfim, percebendo a tristeza | 3620 |
181
envergonhou-se um pouco da própria alegria: | |
– Perdoa de mim, João, um juízo incorreto! | |
Começo a ver, conquanto tarde, o tamanho | |
da tuas palavra e tua verdade me humilha. | |
Agora sei, guerreiro, quem sês e quem foires! – | 3625 |
Agora? João, vislumbrando o perder-se do mar | |
um segundo, logo baixou os olhos na areia: | |
– Traí, general, o Imperador em Bizâncio, | |
perdi meu honor pra vir aqui te ajudar. – | |
Valeriano, mordudo por dentro, entendeu | 3630 |
melhor o candor e a raridade dum homem | |
correto e triste injustamente ultrajado. | |
Erguendo a voz contrita responde: – João, | |
juntei mos home preles ver de verdade | |
nocê comé que se luta firme e bonito, | 3635 |
home nosso, teus benmais do que meu. | |
Marchei, João, foi só pa vim te entregá | |
que tu merece mais vinhaqui pa ganhá: | |
Traíste não, você ganhou foi valor! | |
Aceita esses home aqui, sacrifício meu | 3640 |
182
de amigo que to trazen’e jà vou mimbora. – | |
João demite ele gesto acanhado: – Fica, | |
guerreiro! È generoso o pendão da vitória, | |
paira sereno et abriga o nome de muitos. – | |
Num momento amargor e remorso abraçarom-se. | 3645 |
A dor se interrompeu pela nova notícia: | |
Totila já sabia o que estavam pensando. | |
Mandara, ouvindo o desembarque arrojado, | |
possante armada em quarenta e sete navios! | |
Chamara cedo os conselheiros do reino | 3650 |
e reinante explicara: – Basta Ravena cair | |
e teremos tod’a Itália. Ancona se rende | |
a guerra acaba, os provimentos adentram | |
por lá, Ancona a gente tem que tomar! – | |
Mas quando teve exposto o curso do plano | 3655 |
de como a frota avançasse buscando a batalha, | |
as vozes se erguerom: – Tótila! Werra de mar | |
e guerra d’água è bem diferente da terra, | |
o bom manejo ali tem que ter firmeza, | |
non basta ser lanceiro não nem flecheiro. – | 3660 |
183
Assim falara Vilas, e Rigo assentira | |
cons outros. Porenh’o rei godor retrucava: | |
– Mas duvidais, estoas, do extremo do caso? | |
Gadrãos, escolha non temos, tenhamos coragem! | |
Non tem auxílio de terra chegando alinão: | 3665 |
No mar que tem que arrebentar o perigo! – | |
Os homens grandes vislumbravam os anos | |
lustando aquela força d’água dos vândalos, | |
como outrora com pouca frota apossaram | |
o mar e do mar a cidade de Roma e milhares. | 3670 |
O sangue irmão dos godos, comum germanor, | |
decerto fervia como nos vândalos antes | |
robusto e prometendo a proeza nas ondas. | |
O rei, atenuados os grandes, adverte: | |
– Agora è só sperar que a sorte è lançada! | 3675 |
Se o forte de Ancona resistir à bravura | |
do assalto, estoas, nada mais interrompe | |
os pés de Narses, estamos arruinados. – | |
Irom zarpando afoitas de toda a costa | |
galeras largas e carregadas de guerra, | 3680 |
184
bandando-se embora em perdições adriáticas | |
u remavam, depressa, a destino sem medo. | |
E flutuando o mar como o fogo do inferno, | |
sofriam no corpo os elementos da fúria. | |
Ao cabo da grande armada estavam capazes | 3685 |
dominadores de remo. Provindos do Império, | |
buscavam do novo rei la paga e prestígio | |
que longe Bizâncio negara. Traziam consigo | |
perícia de naves e perspicácia de ardis. | |
Arqueiros eleitos se exercitavam na popa | 3690 |
e na proa, donde afiav’as flechas, a cópia | |
de lanças passava pelas mãos de gadrãos, | |
notadamente dum jovem: Tenaz, Ruderico | |
desdo começo pediu a seu pai, insistiu | |
em seguir e mostrar, aos inimigos de além, | 3695 |
o temor da sua lança e valor de seu nomen. | |
Não se menospreze o poder do arremesso! | |
E contros avisos insistentes de Vilas | |
nembrando que mar carece mais de arqueria, | |
embora embarcou desafiand’a incerteza. | 3700 |
185
Quando detrás dos horizontes de Ancona | |
e de brumas despontar’os navios apressados, | |
João e los marinheiros zarparom. Da nave | |
o general de Salones exorta: – Guardai | |
no peito, meus caros, o nome desta jornada, | 3705 |
porque depende dela e sò dela o futuro | |
do Império, Roma e vossas vidas. Coragem | |
mostrade e valor e experiência e grandeza, | |
porque son poucos ensejos que a vida presta: | |
Se aquela frota vencer, o destino acabou! | 3710 |
As armas que se abrigarem no vosso abraço | |
usai com orgulho e como pel última vez, | |
porque depois de nós amanhã è milagre! – | |
Entraro enfim a bruma do além, inimigos | |
remando de encontro. Eles não hesitarom | 3715 |
quando pronto irromperom galeras hostis. | |
A tempestade desesperada das setas | |
cruzava o vazio do abismo al horizonte, | |
as mãos de romanos largando a flecha d’arco | |
caçavam pelo véu a cabeça de incautos. | 3720 |
186
Puxado o míssil co viço maior do braço, | |
ao homem na mira milagre algum socorria | |
contudo caía, cravada a perda no peito | |
e carregado em vermelhantes ondas embora. | |
Os godos, então, aproximando as barcas | 3725 |
e as naves atracando, lançavam os corpos | |
contra os corpos, atacavam com clavas, | |
saltando e penetrando a popa de hostis | |
por onde arremessavam lança e cortavam | |
co gume a carne, amedrontando os audazes. | 3730 |
Julgarom já maior a coragem que a vida. | |
Cantout errado cujo canto de guerra | |
bradou vitória cedo e tarde a verdade, | |
porquanto longe e destemudo assomava | |
o braço de Ruderico, certeira a lança. | 3735 |
Desafiando os arqueiros, o filho de Vilas | |
coa mera força da mão catava dos ares | |
pujante pontiagudos projéteis, impunha | |
a palma como escudo frustrante de setas. | |
O peito exposto a provocá-lo invejoso | 3740 |
187
destino, bom lanceiro tomava da proa | |
as arma em cuidadoso arsenal, coletas | |
por anos as setas que todo dia afiava. | |
Alimentava a sangrenta sede dos fios | |
de gumes et haste, cinco pés de madeira. | 3745 |
Troféu tremendo, rumava a lança de ponta | |
a ponta banhada em sangue de vísceras | |
quando atravessava o corpo e varava | |
além, buscando vidas outras no incerto. | |
O brado, o mar, a morte pouco importavam | 3750 |
e pouco impressionav’os afoitos ataques, | |
o herói da lança cercado e gestor de vitória. | |
Ereito o braço, o jovem lançava arremessos | |
que em repetidos golpes cortavam escudos, | |
quebrando a sós o peito armado de intrépidos. | 3755 |
Tamanha força lhe propulsava de entranhas | |
que às vezes a fúria da lança levava consigo | |
embora os troncos, cravand’os no fundo do mar. | |
E quanto mais pelejassem contra a perícia | |
de Ruderico em tanto mais perecessem, | 3760 |
188
porquanto o braço contro qual se lançavam | |
braço inquebrantável no amor de seu povo. | |
A frota pois de João aturdida, a vitória | |
surgia descendendo do sonho à verdade, | |
nutridos ora os godos, o viço em coragem | 3765 |
de luta vastando pelo mar e quebrando. | |
E pero pouco vale a valência das armas | |
quand’o acaso se opõe, inimigo de esforços. | |
Ora, Fortuna, invejando a vitória do forte, | |
beirando o ventu que ali passava odiante | 3770 |
ordena ao elemento: “Confunde esses homens!” | |
Súbito o caos se alastra em góticas frotas, | |
desordem desbaratando o governo do remo. | |
Enquanto o bom lanceiro atirav’um petrecho, | |
o engano flutuante levava exaltadas | 3775 |
galeras ao rumo invocador de desgraça. | |
Ilusas, ora se aproximavam demais | |
atrapalhando caminhos umas das outras, | |
conglomeradas naus e naus atracadas, | |
ora no afã de desvencilhar-se contudo | 3780 |
189
demais se afastavam perdendo o contato. | |
Assim unidos no caos e de todo isolados | |
bradavam-se antagônicas ordens apenas | |
e não lutavam, romanos tomando proveito | |
e arrebatando embora as barcas e as vidas. | 3785 |
Industriosos na espreita, pronto cercav’a | |
galera à deriva, saltando a bordo e matando. | |
Cruzando grupos de duas ou três atracadas | |
naves de godos, aproximavam-se arqueiros | |
enquanto os incautos debatiam aos gritos | 3790 |
governo de rumo, e miradas as flechas | |
o peito alvejado frente ao mar tropeçava, | |
desgovernadas feridas, carcaças tragadas. | |
Em vão a barca assaltada lançava de bordo | |
as arma, ajoelhados rogando clemência, | 3795 |
rendudos todos e todos ali degolados. | |
Caíra a noite e galeras desesperadas | |
cuidavam fuga apenas, remando sem rumo | |
e cada qual por si dispersa, perdudas | |
no medo e vagas pela gartanta adriática. | 3800 |
190
Pobre a nau que se deparasse no azar | |
pequena ou grã perante as naves em fúria, | |
o assomo ondaro como se pouco bastasse. | |
João general, reconhecendo a verdade | |
no escuro, atribuindo pois uma estranha | 3805 |
vitória ao acaso, conclamou marinheiros | |
e desdenhando, cônscio de si, galardões | |
de corriqueira fama e troféus, navegou | |
embora a Salones, o coração humilhado: | |
Ele a certa altura perdera a batalha. | 3810 |
Assim pensava e ruminando nas brumas | |
rumava além com vitoriosos incautos | |
e preparava desde pronto a pungente | |
missiva, rogando a Justiniano perdão | |
por gesto intempestivo e dever arriscado. | 3815 |
Em meio à tormenta navagavam os poucos | |
godos que, sobrevivos por certo milagre, | |
buscavam nas ondas a direção duma costa. | |
Mas Ruderico, lançado em fúria de bordo, | |
tomara uma tábua e flutuava em distâncias, | 3820 |
191
oculto em perdições impossíveis na treva. | |
Decerto Netuno ali vingava ultrajad’o | |
honor divino que um povo inteiro traíra | |
quando, inopinado e deitando por terra | |
antigos ídolos, novu deus e de longe | 3825 |
tomou por seu contrariante avoengos. | |
Assim coligado à fortuna rancorosa, | |
soprava assustadoras vagas e abismos | |
tragavam as desesperações dum guerreiro, | |
porquanto o filho de Vilas, longe lançando | 3830 |
embora as armas ora inúteis, pregava-se | |
ao carcomudo escombro que o fato lhe dera. | |
O acaso, porém, erguendo altíssimas crestas | |
altíssimo alçava quase às nuvens o náufrago | |
e súbito, o mar cessante, o abismo se abria | 3835 |
por onde em vertigem Ruderico varava | |
em queda livre. Muita vez a madeira | |
perdeu-se fraca daquelas mãos e da vista | |
e Ruderico nadando e buscando e clamando | |
tomava como do nada e que quase afundava | 3840 |
192
o pedaço de tábua, pau que o deus maldizia. | |
A voz, abafada no vão das vagas mas alta, | |
bradava tragando fúria, ventu e rajadas: | |
– Cresci cum fé, Jesus è remo de náufragos! | |
Ô, meu Jesus, me deixa morrê aquinão! | 3845 |
È tanta coisa queo tem pa fazer nessa vida, | |
eo tava só começano a viver quenem gente | |
agora queo tenho pai, amor de meo povo! | |
Quanto mais façanha o mou braço toía | |
mais eo via que Deus è paz e bondade. | 3850 |
Non deixa o mar traiçoeiro acabar comigo | |
não, eo tenh’um passado pra consertar, | |
fiz mal pa muita gente, eo preciso mudar! | |
Ô Senhor, rema eu desse mar, me-dà força | |
que Deus è grande e dá pa quem non merece. | 3855 |
Que triste aquele dia em que ergui minha mão, | |
que triste, contrum home que hoje è mou pai! | |
Non pode, essa vida e maldade tem que acabar, | |
por mim cabou, eo quero ajudar quem precisa. | |
Mas que bastardo queu sou, que cão, que maldito: | 3860 |
193
eo to pagano por toda essa vida enganada! | |
Me esquece não, Jesus, pieda’de meu pai! | |
Me rema que agora em diante eo saíno vivo | |
daqui mha vida è tua e do povo de Deus! | |
Eo sinto den’de mim, meu povo quer paz, | 3865 |
romano também, então que Deus abençoe. | |
A vida verdadeira è bonita e sò vida | |
bonita cabe ao verdadeiro guerreiro. – | |
Assim chorando a Deus e rogando nas ondas | |
o filho de Vilas passav’o abismo de crestas. | 3870 |
Desembarcar’os poucos que a sorte trouxera | |
em colisão a rochedos e a bancos de areia, | |
nadando como andando e distantes do porto. | |
Corriam na madrugada os demandantes ajuda, | |
os restos da formidável armada que a fúria | 3875 |
e muita inveja do acaso soprara à ruína. | |
Ela derrota de mar quebrou-lhes o espírito. | |
Partirom endoidecidos no meio da noite, | |
levando a notícia desastrosa a Totila. | |
E longe de praias, escuridões carregavam | 3880 |
a triste tábua de Ruderico à deriva. | |
| |
| |
γ’ | |
| |
Narses porém marchava longe daqueles eventos, | |
tendo em mente o novu filho, a mãe que assombrava | |
firme ainda na imagem, die e noite, a memória. | |
Gradualmente, o general se orgulhava da vida | 3885 |
quando se comentava o desempenho do jovem. | |
Era destreza até de calar a boca dos mestres. | |
Narses merecia o contentamento, depois de | |
tudo o que fora um desviver, ao menos um filho, | |
sim, uma certa bõa ilusão de afeto e família. | 3890 |
Nesse novo sentido à vida, um homem idoso, | |
baixo, frágil, cabelo sujo e de rosto enrugado, | |
teve um antegosto de quão gostosa esta vida | |
pode ser se o mundo não destrói nosso corpo. | |
Eles olhos brilhavam qual se fosse menino | 3895 |
como Procêncio, sereno, virgem e sonhadora- | |
mente iluminados, ah, que esperanças de amor | |
e como è bonito o mundo nos corações inocentes, | |
como são delicada-las armas que vão erguendo | |
pela estrada na angústia dum sentimento melhor: | 3900 |
195
– Que tristeza è essa, Procêncio, sai dessa vida! | |
Pó deixar tristeza acabar co sonho da gente | |
não, meu filho! Teve gente aqui que tentou por | |
anos e ainda não consegue atirar uma flecha | |
como tu! Levanta a cabeça! – Procêncio respeita: | 3905 |
– Issè verdade, pai, to levando jeito p’a coisa, | |
mas eo só atiro em passarinho e nas planta, | |
nunca flechei ninguenh’e fico aqui matutano: | |
mas será queo levo jeito mesmo pa guerra? | |
Tipo, eo puxo a corda sim mas dà dó de soltá, | 3910 |
coita’do passarinho e quanto mais dum soldado. | |
Só que aí me envergonho porque roubei galinha | |
mas non sou violento, eo fiz p’ajudá mha família. | |
Ero eu, que non sou violento, um home de guerra? – | |
Procêncio baixa a cabeça a chora, pensando na mãe: | 3915 |
– Vêm da vida reta as tuas palavras, Procêncio, | |
são motivo de orgulho pra quem te ama e te educa. | |
Uma coisa na vida aprendi de soldados sinceros: | |
Ser violentè uma coisa, outrè usar violência. | |
Filho! O bom guerreiro alevantou suas arma | 3920 |
196
como gesto de amor primeiro e depois violência. | |
Quando o homem vil, destruïdor de pequenos, | |
põe a lança aos ombros querendo como presa a | |
vida sem erro, tem que fazer o quê? Impedir! | |
Erguer a bandeira da inocência e co peso da vida | 3925 |
como das armas lutar, prohibir um gesto indevudo | |
contra nossas mães e amigos. Ol home de guerra | |
sabe usar violência quando salva uma pátria, | |
mas el home de guerra, filho, foi justo primeiro | |
e só depois è de guerra o guerreiro què justo. – | 3930 |
Dito isto, Procêncio calado e boquiaberto | |
bem reparava a situação: se fosse verdade | |
pois que a guerra è para os violentos apenas, | |
que estaria fazendo Narses naquela campanha, | |
frente a poderosas tropas um velho, um eunuco? | 3935 |
Ele entendeu, naquele momento e nos olhos do pai, | |
a verdadeira força que faz um distinto guerreiro. | |
Mas o dessossego prossegue: – A guerra castiga | |
tanta gente, meu pai, que não merece a derrota. | |
Tantas vezes o cara que sabe lutar de verdade | 3940 |
197
teve que obedecer calado uma ordem injusta, | |
foi obrigado a fazer maldade até sem querer. | |
Non quero terminássim não quenem criminoso. – | |
Narses acariciou-lhe a cabeça, ensinando: | |
– Filho, a fealdade maior duma vida que vale | 3945 |
foi erguê-la espada quando alguém se rendeu! | |
Aí, Procêncio, tem que ter caridade e bondade. | |
Quando a pessoa está se ajoelhando e pedindo | |
paz respeita: teu dever è agir a l’altura. – | |
Isto sim Procêncio entendeu ali como certo: | 3950 |
era impossível vir de Narses um ordem covarde, | |
mal que desrespeita a retidão de quem serve. | |
Mas o pai completa: – Quando o comando ofende | |
a consciência do lutador e o peso das armas, | |
sê primeiro home e salva a verdade das armas: | 3955 |
pois o nome da bõa guerra è virtude, mentira | |
a guerra que ofende a vida desarmada e caída. – | |
Foi redentor vislumbrar a silhueta de longe: | |
era Salones interrompendo a conversa importante, | |
era João de Vitaliano, apressado, ofegante: | 3960 |
198
– Eita, Narses, fui passado patrás, me enganaro! | |
Fui lutar ni Ancona contra as ordens da corte: | |
ganhei no mar mas quase perdi, ganhei por acaso. | |
Narses, non tive escolha: Valeriano escreveu | |
que nem guentava andar mas tava lá combatendo! | 3965 |
Olha, o Imperador jà foi avisado, eo te imploro, | |
xô continuar cucê nessa guerra, me ajuda! – | |
Ora, o pai de Procêncio considerando o relato | |
disse apenas: – Prepara logo as tropas e vamos! – | |
Forom! A nova marcha unia aos homens de Narses | 3970 |
os restos da momentosa grei que seguia Germano | |
quando a morte o sequestrou, e leais de João | |
ogano redobravant a vid’e a cópia das armas. | |
Era excitante ouvir a batalha de Sena Gálica: | |
Narses pensava o caso inusitado dum grande | 3975 |
ter que pedir desculpas pela própria vitória. | |
Entre si, a sós, o general se aproxima: | |
– Foi impressionante, João, la tua coragem. | |
Posso pedir um favor de amigo? Ensina Procêncio, | |
mostra um pouco aí desse seu valor pra meu filho! – | 3980 |
199
Ah, João cabisbaixo se emocionou como nunca. | |
Isso sim è què ordem de guerra, issè comando! | |
Procêncio ganhou ali no mesmo dia um segundo | |
pai, um protetor incansável: – Então, professor, | |
foi covardia fugir – o jovem aluno indagava – | 3985 |
quando o cara tá perden’e non dá pa ganhar? – | |
Mas João, contente apesar das feridas, concede: | |
– Caso non dê p’avançar, você recua um momento, | |
volta depois e ataca, as armas aí do seu lado. | |
Mas tu pó se render se tá cercado e sozinho, | 3990 |
cê que sabe. Tem duas coisa só que non pode: | |
Uma è pôr as arma no chão, traição, covardia. | |
Outra è lutar com raiva: cabeça fria, Procêncio, | |
raiva só atrapalha a mira, então se concentre. | |
Quanto a perder, se for non tenha medo, se renda: | 3995 |
pois guerreiro que è forte aceita e te deixa viver. | |
Covarde mata, mas ó, se impressione não, è melhor: | |
melhor morrer que esser escravo de gente covarde. | |
Nesse caso aí quem ganhou foi você, è consenso. | |
Mas enquanto houver um bem a ganhar numa luta | 4000 |
200
pó lutar porque nessa luta a morte è vitória. – | |
Isto e mais debatiam quando o filho interpela: | |
– Então, João, non pó ter raiva não de Totila? | |
Mas ele fez o quê? Tótila è mau de verdade? – | |
Dentro em pouco receber’o reforço lombardo. | 4005 |
Povo errante em desafeto aberto dos povos, | |
seus governantes geravam guerra constantem | |
contra os gépidas, érulos, francos, Bizâncio. | |
Mãos violentas incendiavam os corpos e aldeias | |
mas o Imperador, no afã da conquista da Itália | 4010 |
como sedento de amigos, retecera cons bárbaros | |
nova causam, forjando-se em dubiosa aliança | |
o dote desastroso e dor hedionda na história. | |
Inda assim, ao amor do sangue esperdiçado | |
o povo rude mesclava afeto ao nome de Narses. | 4015 |
Lá marchavam agora os povos unidos do Império, | |
levando pelo mundo os homens, as armas e as aves. | |
Era incerta a via, o prenúncio do sangue trazia | |
medo à menti de alguns e contudo sede ad outros. | |
Já se aproximavam quase as paisagens dal Ístria | 4020 |
quando João general recebeu missiva da corte. | |
Era decerto a l’ordem de retornar a Bizâncio, | |
era a punição do trono. Mas o astuto enganou-se: | |
“Tomamus ora nota, João, dum gesto impensado. | |
Segue, destrói Totila e trataremus do resto.” | 4025 |
Totila |
δ’ | |
| |
Qual non foi a surpresa por Deus milagroso | |
pois que demandando as portas do Vêneto | |
um forte francoro interrompeu-lis o rumo, | |
donde Segisberto marchava de encontro: | |
– Em nome da vossa bõa guerra, aliados, | 4030 |
ide embora daquesta terra e salvay-vos! | |
Ousaves, Narses, ofender este solo e | |
sujeitar a Itália à mercê de lombardos? | |
Muito me entristece a que ponto chegaste! – | |
Narses, porém, perplexo da audácia, retruca: | 4035 |
– Pois me espanta, Segisberto, que os francos, | |
a quem o Dono dos povos chamava aliados, | |
num gesto menor se apoderassem de terras | |
propriedade de Roma e das leis de Bizâncio! | |
Como se não bastasse a reis sem nobreza | 4040 |
202
usar ovantes a partem que o Dom concedera, | |
vierom farejando o que elor nunca fora! | |
Ora, em toda esta palhaçada a que ponto | |
os cobiçantes reis chegueirem, declara | |
mais da palavra a triste cena que assisto. | 4045 |
Non quero nem saber em cujo desígnio | |
migrout o povo franco do norte ao Vêneto, | |
mas desejo avisar em que terra te encontras: | |
Propriedade de Roma e das leis de Bizâncio! – | |
O comandante do forte contudo interpõe: | 4050 |
– A profusão de imoderadas palavras | |
menos me ofende que apenas entristece, | |
vinda que vem do de quem melhor se atendia. | |
L’home que vê primeiro e que julga depois | |
jamais desabusou deste modo a meu povo. | 4055 |
A terra do Vêneto, ousado, foy concessa | |
de fato pelos godos à nossa tutela. | |
Propriedade de Roma, Roma a cedera | |
a Teodorico e los sucessores do godo. | |
Foy Totila, o consolador de oprimidos, | 4060 |
203
que aqui nos deu o patamar em que estamos: | |
Pois a nós, aliados de Roma e dos godos, | |
compete defender da impostura uma Itália | |
tão relegada à barbaridade das armas: | |
Tão exposta que nem hesitas de intro- | 4065 |
duzir aqui, audaz, um rol de lombardos | |
et homens vis que recrutaste em cadeias, | |
comprando com prata l’afeição de ladrões! – | |
João de Vitaliano ergueu sua espada em | |
protesto contudo Narses tranquilo provoca: | 4070 |
– Ladrão, meu caro, è povo que invade país | |
alheio sem convite ou permissão adequada. | |
È tudo pretexto: Teodebaldo, o teu rei, | |
uniu-se a Valdrada lá do trono lombardo! | |
A diferença que sei de lombardos e francos, | 4075 |
Segisberto, è esta: O lombardo se agrega | |
à causa do Império quando nós conclamamos. | |
Adentram-na terra alheia quando chamados | |
não por falsário, mas pelo Dono dos povos | |
cuja vontade questionas e desobedeces. | 4080 |
204
Pois aí se vê lealdade o que seja, | |
pois aí se vê sacrifício de vida. | |
Eu, contudo, vejo bem desses francos | |
como prometem primeiro e depois decidem. | |
Ué, non foi assim que este mundo assistiu | 4085 |
la profusão de tantas juras traídas? | |
Chamados para provar valor e hombridade, | |
não viestes, ficastes, calastes, fugistes: | |
Vivestes deliberando ganho e malícia! | |
E no entanto mi cumpre revelar a verdade | 4090 |
desta terra e doutras que tanto usarpades: | |
Propriedade de Roma e das leis de Bizâncio! – | |
Mas Segisberto crava o seu ero na terra | |
enquanto em torno os impropérios irrompem | |
pelas tropas na troca de olhares irados, | 4095 |
e realçando a voz em flama interrompe: | |
– Não se assente em meu domínio mentira: | |
Estuda nossa história e verás o que somos! | |
O povo dos francos è federado do Império | |
pois o trono do Imperador a que serves | 4100 |
205
reconheceu. Governamos de fato e gualdamos | |
num território concesso, nunca roubado | |
e digo mais: Adotamo-la fé de Bizâncio, | |
aí se vê lealdade, enquanto te abraças | |
a hereges, um povo desordeiro e sem rumo | 4105 |
e transmissor de desgraça por donde se apossa. | |
Não se assente em meu domínio lombardos! – | |
Mas Narses não se impressionando comanda: | |
– Abre alas, Segisberto, a meus homens: | |
lombardos, érulos, gregos, persas, romanos | 4110 |
que os francos em vergonhosa mente traírom. | |
Abre alas ca os homens todos que adentram | |
adentram contra godos e não contra francos. | |
As ordens vêm do Imperador, obedeçam! – | |
E como Segisberto negasse a passagem, | 4115 |
Narses ouvia calado a resposta do franco: | |
– É direito meu decidir os que adentram | |
a partem que o rey mi confiou de defesa. | |
E para que não repitas de modo indevudo | |
ofensas contra um povo correto, amigo | 4120 |
206
não de impostores mas de Deus e da paz, | |
discutiremus aquesta causam que invocas | |
não com tipos da tua estirpe e soldados. | |
Ainda hoje a delegação dos legados | |
ere enviada a caminho de Constantinopla | 4125 |
para tratar, com a quem compete em pessoa, | |
propriedade de Roma e domínios francor! – | |
E não mentiu, porquanto os altos legados | |
leixavam a fortaleza remota, seguindo | |
viagem planejada e visita de estado. | 4130 |
E que fazer? Entrar por força das armas? | |
Era arriscado demais atacar uma gente | |
de jure aliada, expor o grosso das forças | |
à guerra contra dois inimigos unidos, | |
quando em verdade estava incerto o caso | 4135 |
contrum único apenas. Francos e godos | |
unidos contro Imperador? Desastroso! | |
E Narses calado e consternado nas portas | |
do Vêneto consultava em vão conselheiros. | |
| |
| |
ε’ | |
| |
Apareceu’m mendigo buscando Segisberto, | 4140 |
todo pálido, coberto com pele de carneiro. | |
Dentro do forte foi que reconhecerom: | |
Era Rigo, o escudeiro do rei | |
gemendo, rogando | |
ver Teodebaldo, o rei francoro. | 4145 |
Mas ali se encontrava em caravana de acaso | |
uma taciturna mulher, | |
e Rodelinda bem percebeu lo traço gótico, | |
dizendo a Rigo: – Queres o quê de meu brodo? | |
Está de cama, está doente! – | 4150 |
Rigo: – Doente o jovem rei, | |
o filho de Teodeberto doente? Mas como? – | |
Antes de mais a princesa: | |
– Ah, eu sey quem te mandou! | |
Tótila não me engana apesar do tempo e da guerra. | 4155 |
Quem o viu durante a paz o que as horas fizeirem | |
quase desacredita como tudo se perde. – | |
Rigo não permite: – Perde não, Senhora! | |
Ele ora por vós como amigos. | |
Ele sofre ao ver | 4160 |
208
como son vãs as palavras que prometemos por aí. | |
Mas o coração què tringo o tempo non fere! | |
Só Totila sabe o que teria a dizer | |
à mulher que sempre amou. | |
Ao rei francor direi | 4165 |
la verdade: Tótila ainda espera, meu Deus, | |
um gesto a l’altura deste povo. | |
Não o gesto de tou pai, que chegou invadindo | |
nossos castelos. Mas Totila auleia | |
porque o passado è maior. | 4170 |
Aqueles laços que unirom dois povos, | |
foi tudo em vão, foi tudo mentira? | |
Totila sò quer sinceridade, sò isso! – | |
Ela sentau-se perante a janela | |
donde mirava, tristonha e sonhadora, o cursu dum rio: | 4175 |
– Rigo, responde, | |
Tótila quer o quê? – Rigo: – Vitoriam, | |
vida, a salvação dum povo | |
que o mundo inteiro persegue sem motivo. | |
Totila quer o quê? Um mundo melhor! | 4180 |
209
Longe dum peso repressor querendo o passado, | |
ele pesa à mente o porvir duma Itália liberta. | |
Nosso povo veio dum estau sem escravos, | |
sem pobres, sem gente caída pela estrada. | |
Roma è assim que deve ser! | 4185 |
Nós abrimo-los braços sem medo, | |
nós dividimos do próprio pão. | |
Como è justo, gente, o reino dos godos, | |
como defende o fraco da truculência do forte! | |
Como salva da morte o faminto, o moribundo | 4190 |
nesta terra farta e provedora de muitos. | |
Ah, que feliz o reino cujo rei nunca pôs | |
a mão no trabalho e no pão de ninguém! | |
Vai pela estrada querendo verdade do povo | |
pois dirão quem foire Totila e quem é. | 4195 |
Totila? Tótila não, Teodorico, | |
porque Tótila só imita. | |
Vamos viver juntos, amigos, vamos! Vamos | |
construir esse mundo novu, livre, bonito | |
onde toda palavra, toda amizade è verdadeira! | 4200 |
210
Não vamos partir cada qual no seu rumo não: | |
Nós os godos non temos muita gente | |
e quanto a vocês, essa paz não vai durar. | |
Non pensem os francos que essa terra | |
è lor, onde estão porque Tótila quis. | 4205 |
Non pensem que um home como Justianiano | |
vai querer alguma coisa com franco | |
quando formos destruídos! – Rodelinda | |
apenas interpõe: – Mas Rigo, Rigo, Rigo, | |
por que tudo isto, esta desgraça, esta guerra, | 4210 |
donde saiu isso? Meu coração não se esqueceu | |
de Totila, mas Tótila era tão diferente. | |
Como foy isto, Rigo? Eram tão friãos | |
os reis godor, o Imperador, os povos! | |
Eu vou pensando e vendo que o mundo non cabe | 4215 |
na minha cabeça, eo não entendo este mundo. | |
Nesses anos de tanta confusão e de dor, | |
em vão me perguntey e pergunto ao céu | |
mas non vejo, nesta guerra, o partido de Deus. – | |
Mas Rigo, os olhos avermelhados, contesta: | 4220 |
211
– Ah, Rodelinda, o partido de Deus | |
está num povo caído, abusado e ferido. | |
Num povo que vivia em paz numa terra distante | |
quando um falso amigo disse: Vai pra Itália, | |
vai, vai que a terra è tua, toma què tua! | 4225 |
A nossa gente implorou: Senhor, non faça isso, | |
a nossa gente è simples, não caçoe da gente! | |
Insistirom: Pode ir, pode ir! E vierom, | |
ah, com tudo o que tinham, vida, amor, esperança | |
maior do que... Agora è isso, | 4230 |
agora è assim, agora tem que sair todo mundo | |
feito cachorro com rabo entre as pernas. | |
Agora è fugir ou morrer, mas não, lutaremos, | |
non temos escolha, nós que plantamos, cuidamos, | |
lubamos esta terram como nunca se amou, | 4235 |
nós que morremos perguntando a Gus: | |
Por quê? Fizemos o quê para merecer isto? | |
Mas quanto mais el erto se despedaça | |
mais sabemos que Deus è compaixão de pequenos, | |
Deus è partido, meus friãos, duma grei sem amigos! – | 4240 |
212
Rigo falou. Do silêncio aniquilante | |
ela ergueu o rosto, limpando a lágrima lenta: | |
– Cala a boca, Rigo, porque non sabes de nada, nada, | |
cala a boca e non sês ingrato, cala a boca | |
e me escuta, infeliz: Ouvi que uma certa mulher, | 4245 |
sabendo que Narses se aproximava da Itália, | |
pediu a Segisberto, implorou: | |
Non deixes, impede a passagem de Narses. | |
Ouvi que uma certa mulher, | |
sabendo que o seu frião estava em perigo, | 4250 |
abandonou lo próprio irmão doente na cama | |
para pedir: Segisberto, deixa chegáqui não! | |
E ouvi que nada mais se pode toer | |
contra quem nunca fez nada contra nós. | |
Meu pai jurou lealdade a Justiniano: | 4255 |
Non posso, Rigo, erguer a espada contra | |
meu fadro! – | |
Uma flecha forte entrou, devastando | |
a mente, el erto, as entranhas do mensageiro godoro: | |
– Wê, Rodelinda, que sinceras palavras e triste | 4260 |
213
a gente que se ajoelha a teus pés. | |
Ergo do chão sozinho as migalhas dum povo | |
generoso, sem crime e sem paz! | |
Deus desdisse mesmo do povo dos godos. – | |
Mas Rodelinda, erguendo o rosto ardente, murmura: | 4265 |
– Rigo! Rigo! Fala a teu froia: | |
“Say, meu amigo, say desta terra ingrata!” | |
Rigo! Conheço uma certa mulher | |
que saberá de abrigo a teu rey | |
werreiro e generoso! | 4270 |
Abandone a guerra e tenha dó dos amigos! | |
Diz que uma certa mulher implora, | |
um vivo cadáver: “Foge, salva a tuam vida! | |
Salva, porque se morreres | |
morre contigo quem tanto te amou!” – | 4275 |
Ela afogou-se em soluços, perdendo | |
desesperadamente a voz e os sentidos. | |
Segisberto, calado, olhava Rigo | |
e balançava a cabeça. | |
Mentre Rodelinda era carregada às pressas, | 4280 |
214
Rigo abordou Segisberto: – Por dó desta mulher, | |
obedece, impede Narses, impede! – | |
Olharom-se amorosamente. Rigo: | |
– Vem chegando a primavera e cultores | |
precisam de paz. Se Narses trouxere a guerra | 4285 |
nada se planta nem colhe. | |
Franco que és, Segisberto, que fomos friãos outrora | |
mais que agora os nossos povos, por favor, | |
resiste até lo estio e ganhamo-la guerra: | |
È sò isto o que pede meu povo e meu rei. | 4290 |
Totila è bom, Segisberto! – Segisberto anuiu | |
auxílio. E Rigo partiut | |
orando alto, rogando a Deus piedade dum povo. | |
| |
| |
ζ’ | |
| |
Mas pelas folhas dum bom jardim | |
ouviu-se a voz duma certa mulher: | 4295 |
– Eo ando pelas trilhas e quanto | |
mais o meu passo as marca mais | |
mi dou conta da vida e triste sina | |
e vejo e sey que nunca mais verey | |
quem amo e mais que ninguém amey. | 4300 |
215
E no entanto, quanto mais eu ando | |
a derramar de meus ogo verdade | |
e fôlego, mais me perco e mais | |
mi dói lo peso de ser e esconder | |
de todo-los homem como me sinto | 4305 |
e sejo: Ca dês que vejo este mundo | |
vejo o que este mundo me fez | |
e nem se viu jamais, neste mundo, | |
o mundo ouvir ou sentir a dor | |
dum ser que chamarom mulher; | 4310 |
que sendo já maior do que mundo | |
o mundo menospreza e toda parte | |
ofende, como se fosse menor | |
e pior do que o mundo el erto | |
redentor e sereno que sofre. | 4315 |
Por quê, se meu coração è maior | |
e mais verdadeiro que a vida | |
que Deus mi deu, este mundo | |
me ofende e despreza meu ar? | |
A minha vida è barganha somente | 4320 |
216
nas mãos do império dos homem, | |
que nem na vida e na morte | |
saberão lo que cabe e carrego | |
num coração melhor desta vida | |
e da morte, ay, meu fôlego, ay, | 4325 |
morrer, se esses homem soubesse | |
o que è de fato uma guerra | |
e como luta contra o mundo | |
e contra si uma vida sem erro | |
mas que sendo vida e mulher | 4330 |
non tem estau em que seja livre, | |
livre sem que uma espada ou braço | |
interrompa o candor de seu passo | |
por entre as aves e as árvore, | |
inda que apenas procurando, | 4335 |
como busco, Deus que me alenta | |
e sabe, talvez, de melhor morada | |
por onde a vida è livre e verdade | |
pode andar sem grilhões e sem medo | |
cantar por entre toda-las aves | 4340 |
217
e as árvore sem a tristeza | |
da morte! Mas Deus è grande | |
e mundo com Deus non se acaba | |
nem vida em Deus è pequena. | |
O mundo me ultraja mas vivo | 4345 |
e vou vivendo como o guerreiro | |
a quem recusarom as armas, | |
e adentrando o campo de guerra | |
eleva os olhos ao céu, erguendo | |
a spada da prece como el única | 4350 |
arma que tem porque Deus li deu | |
e ninguém desarma e que peço | |
às avibos, aves, levade a Deus | |
minha prece que è prece apenas | |
e não espada, e prece da vida | 4355 |
sem rumo e que non sabe orar | |
mas ora e por quem padece! | |
Clotilde, mãe de meus franco, | |
desce um momento da excelsa | |
esfera que Deus te abonou: | 4360 |
218
Ensina à vida que só è livre | |
na prece a rezar, como a vida | |
que ao menos merece o que tem | |
e que sendo pouco tem que ser | |
o melhor que há. Tu que outrora | 4365 |
fizeste a conversão de Clóvis, | |
inspira menores e dá-mi forças | |
de erguer a Deus um pranto melhor | |
e não de murmúrio, mas de amor, | |
para que firme um grande Rey | 4370 |
estenda do firmamento a sua mão | |
de misericórdia ad um homem, | |
ay, que tanto padece e que tanto | |
e por tão grande tempo eo amay | |
sem medo e sem permissão do mundo. | 4375 |
Gus è testemunha, eo não me movo | |
por corriqueiro desejo, mas o amor | |
de meu peito maior do que a carne | |
e maior do mundo me impele e peço: | |
Piedade, Céus, dum home que tantos | 4380 |
219
odeyam mas cujo coração conheço | |
apenas eu, que peço amor e peço | |
compaixão e peço a Deus o ensejo, | |
se ensejo aprouver, de ajudar | |
o meu frião maior e meu homem | 4385 |
como a Deus meu Pay convier: | |
Levay, andorinhas, levay a Deus! – | |
| |
| |
η’ | |
| |
Mas Rigo foi abordado no meida estrada: | |
– /o, mo si'ɲo, to 'venu ki tu ɛ 'godu, | |
m_ja'ʒudɐ_'i, pfa'vo, ko to proku'ɾɐ̃nu | 4390 |
mo ɾej to'tʃil_i 'vilɐs pẽ'so ko to moxtʰ, | |
mew Dewz_o to ɛ 'vivu max 'kõm_o nũ sej, | |
a'ʒudɐ ew! / – E Rigo ampara, depondo: | |
- /ɛw'ke ktu'kɛ, hɐ'pa, falɐ_'i ko t_o'vinu, | |
to'tʃiʎ_ɛsɐ 'ʒẽtʃ_a'i se ko'ɲɛsi dʒi 'õdʒi? / – | 4395 |
E pero o balbuceio do l’outro interrompe: | |
– o 'higu, nũ 'sabi mas quẽɲo'so? m_jakɐ'bej | |
nu max ki neɲ_ɐ'migu mew heco'ɲesi? | |
'ave ma'ɾij_ĩ'tɐ̃w̃ vo te ki dʒi'ze | |
mo 'nomi 'mexm_ɐ'ki ɐ 'kaɾɐ nũ 'bastɐ? – | 4400 |
220
Ah, bastou, porque Rigo olhou melhor | |
e viu com muito susto quem lhe falava: | |
– Pelo amor de Deus, ès tu, Ruderico! – | |
Inopinados e assaz adoidadamente | |
forom-se abraçando os dois dum abraço | 4405 |
calmo e sincero e pero vivo e pulsante | |
e repentinamente o bor e o legado | |
abandonados ao deus-dará do momento | |
ou sabe deus por ação premeditada | |
se libertaro sem mais ad um novo tremor | 4410 |
ou carinho ou calor que subia e fazia subir, | |
e desenfreados saírom rolando no campo | |
num misto de lágrima, afeto e beijos, | |
bocas murmurantes o amor de Deus | |
e dum povo e duma nova emoção arrebata- | 4415 |
dora e penetrante, os olhos nos olhos: | |
– Comé co to vivo, o meus amigo tudo | |
morreu! As onda levava pa tu-què lado, | |
eo era tipo um briquedo ali de Netuno. | |
Me abraça, Rigo, abraça co to devastado. | 4420 |
221
Ai, com’eo amo esse povo, mas por que | |
que Deus faz isso cum nóis, eo mim perguntava | |
enquanto ele mar bebia eu bebia-o | |
mar mas aí gritei-ô, Senhor, piedade, | |
se abeira do meu naufrágio, me tira daqui | 4425 |
queo vivo vou vivê quenem gen’de verdade! | |
Era cada cresta, era cada abismo, | |
Jesus, eo fecho os ói e vejo atè hoje! | |
Mas Deus è bom demais me salvou, jogou | |
nas rocha e passou pescador me deu de comer, | 4430 |
to vivo, Rigo, me abraça, eo te amo demais! – | |
E Rigo o tinha entre os braços como um tesouro, | |
um mensageiro divino: quiçá nem tudo es- | |
tivesse perdido. Dividindo os beijos | |
e muitos soluços dum reencontro improvável, | 4435 |
eles se amavam mentre o jovem ouvia: | |
– Guerreiro bom de verdade Deus n’abandona | |
não, Ruderico, a prov’è a tua vida! | |
Te abraço e te amo sim que você merece | |
amor do meo coração e dum povo inteiro! – | 4440 |
222
Era verdadeira aquela amizade. | |
Rigo acariciava o rosto do jovem | |
e como custava crer que Ruderico | |
vivia, chorava e sorria. Ambos envoltos | |
no raro amplexo, ambos até se esqueciam | 4445 |
de como rolavam praticamente entre os mortos | |
num trato de terra destruído de guerra: | |
– Rigo, eo non tive pai, eo non tive amor | |
mas Vilas me adotou e você me entendeu, | |
amigo, que bonito è você existir! | 4450 |
Rigo, eo fiz ua jura no meido mar: | |
agora que Deus me salvou, agora è ganhar | |
mha guerra e depois o vo vivê feito Bento, | |
ca vida bonita è vida onde tem gratidão. | |
È cada coisa, frião, quesse mar me ensinou! – | 4455 |
As mãos entrelaçadas, passarom a noite | |
ali dividindo o sopro, o corpo e as estrelas. | |
Sirius e Procyon, Rigel e Betelgeuse | |
e muitas outras menores, testemunhas | |
do amor e da humanidade. ––––––– | 4460 |
223
A comoção de Vilas porém foi maior, que | |
se ajoelhou calado ao vê-lum milagre, | |
os olhos fermos enquanto o peito batia: | |
“È bom demais mo Deus què Deus de verdade, | |
gente, Deus non podja leixar Ruderico acabar | 4465 |
no mar justagora co to começano a cumprir | |
mha jura de guerra e de amor, mo povè que sabe. | |
Deus non fas’se tipo de coisa e maldade | |
cum quem traba’de verdade, Deus è bondade, | |
ah, meo Deus, que alegria è viver Ruderico!” | 4470 |
Mas Tótila, o rei, no meio da noite atinava: | |
“É, meu sopro, quando Deus è quem manda | |
a pessoa se salva de cada situação... | |
Amor de pai transforma um home em herói, | |
agora eo vi como é. E meo povo atacado? | 4475 |
Será que Deus levanta do chão esses godo | |
tudo gente inocente e fiel sem amigo? | |
Será que por cau’do meus erro um povo bom, | |
um povo generoso vai se acabar por inteiro? | |
Ô Senhor, Ruderiquè godo, foi nós que fez | 4480 |
224
Ruderico: Salva nós também que te implora! | |
Errei demais, esqueci muita grei, fui ingrato: | |
Pelágio rezou por mim... cadê Pelágio? | |
Meu povè bom, e o bom se vê pelo bem.” | |
Assim pensou Totila, o rei de seu povo | 4485 |
na noite, e pela manhã ordenou que chamassem | |
Pelágio e mandou que levassem grão e gado | |
em graciosa abundância aos fracos de Roma, | |
pois quem recebe è bom dividir com carente. | |
Chegou Pelágio e Totila abraçou muito forte | 4490 |
e veio Leôncio também, que falava a verdade. | |
E mentre o caso de Ruderico inspirava | |
um novu esforço encorajando os gadrãos, | |
fortificavam-se abastecendo as defesas | |
impávidos como convém à vida bravor! | 4495 |
Totila envia Teia, um temível, no rumo | |
francoro: Se Narses passasse Segisberto, | |
seria contenso por cavaleiros tremendos. | |
A fama da violência seguia os passos | |
de Teia e Tótila balançava a cabeça | 4500 |
225
ca Teia fosse o l’único seu recurso. | |
Mas buscando Pelágio, buscando Leôncio | |
soprou: – A causa de Deus a gente sabe, | |
amigos, è paz e amor e união de verdade. | |
Me ajudem, vocês que è velha gens romana, | 4505 |
tem que trazer romano e godo junto. | |
Tem que fundar uma escola pra Roma ver | |
que godo quer è paz e pa godo entender | |
que Roma è mãe de muita gente, uma escola | |
por onde romano e godo viu que è bonito | 4510 |
tudo junto a pessoa andar como amigo. | |
Funda essa escola, Pelágio, Leôncio, funda | |
essa paz pa romano e godo se conhecer, | |
saber que vive diferente mas vive | |
bonito quando è grande a vida, ca vida | 4515 |
quandè de amigo non tem diferença a pessoa. – | |
Irom-se pois colhendo pelas províncias | |
a fresca infância de centenárias famílias | |
por casas de senatoriais e patrícios. | |
Unido enfim o rol de trezentas crianças, | 4520 |
226
fundaro uma escola expondo o modo dos godos, | |
o modo romanor e a visão da amizade. | |
Ainda descontente, o rei abordou | |
na calma e lacrimosamente um guerreiro: | |
– Deus me ensinou a ver, meu fiel Ruderico, | 4525 |
que quando uma vida erra o dever è guiar, | |
porquanto a vida errada que Deus amou | |
se conserta quando tem perdão e bondade. | |
Ruderico, perdão! Perdão, meu fiel Ruderico! | |
Agora eo sei, errado que sou, que uma vidè | 4530 |
que nem a flor, a pétala cai mas o sol | |
què pai continua raiand’e nisso ela cresce | |
e fica brilhando como o sol que ela espelha. – | |
Mas antes que Ruderico alcançasse a resposta, | |
o rei duma gente em perigo e sem nenhum | 4535 |
amigo pôs o rosto entre as mãos e leixou | |
ecoar um fortíssimo pranto enquanto de longe | |
as aves calavam, e o rei cavalgava querendo | |
Pelágio e li dita uma novam carta a Bizâncio | |
que avise, esclareça et implore a Justiniano: | 4540 |
227
“Dono das gentes, a luta inglória desune | |
irmãos que Deus destina iguais ao eterno | |
banquete, na Itália, na terra como no céu, | |
e quanto mais a guerra se afasta de alturas, | |
a vida mais ensina que a causa dos homens | 4545 |
em Cristo è paz conciliando amarguras. | |
Rogando pois aos céus um juízo correto | |
Totila ansia, renunciando de glórias | |
e vahidade e vitórias, o fim dum conflito | |
que Deus desabonou e que ofende serenos. | 4550 |
Um pródigo filho depõe aos pés de seu Dono | |
uma oferta que apenas a vida iníqua recusa: | |
O norte da Itália dominado por francos, | |
restando em flor do antigo reino godor | |
apenas Sicília, Dalmácia somente, governa | 4555 |
as terras essas como bem entenderes! | |
Os godos, retendo a destituta desgraça | |
e relevando do abismo a ruína que resta, | |
serão teus filhos, darão ao trono o tributo | |
que o Dom quiser em ouro e prata e suor. | 4560 |
228
Aponta pois a terra onde a guerra te chama | |
e lá te segue uma gente aliada no peito, | |
lutando e morrendo pelo amor de teu nome.” | |
Porém o Imperador recebendo os legados | |
rasgout a missiva e mandou-os via calados, | 4565 |
Tótila ouvindo o caso e querendo o porquê. | |
| |
| |
θ’ | |
| |
Quando se ouviu na tropa a novidade de Teia, | |
ora forte em Verona obstand’a estrada e cavando | |
fundo fosso ao longo do Pó, eversa a passagem | |
rumo a todo o resto da Itália, Narses vacila. | 4570 |
Mesmo se Segisberto permitisse a passagem | |
de nada serviria o favor, e soldados à espera | |
viam como a consternação calava constantes. | |
Mas João de Vitaliano se avança, que avisa: | |
– Pót’squecês’se cara, Narses, sai dessa vida! | 4575 |
Olha nós aí... sentados à margem das ondas | |
feito boi enquando o tempo passa e non brinca, | |
pois Valeriano, ali se acabou resistência! – | |
Isto ouvindo, Narses conduz: – João conselheiro, | |
sei tampouco a solução deste caso assombroso e | 4580 |
229
passo as noites em vão concatenando conatos. | |
Fala aos teus! Pergunta a conterrâneos da Itália | |
como agir e que via andar lis ocorre na mente. – | |
Esto acertando e pronto demandand’os nativos, | |
rompe da multidão atônita o Paulo, escudeiro | 4585 |
rumo a João: – Na riba tem os peão peixeiro | |
tudo amigo ali non passa gadrão nem fudeno. – | |
Narses, porém, que ruminava a marcha morosa | |
diz apenas: – Já perdeste, Paulo, a prudência? | |
Fala! Comè que vai passar nonseiquantos soldado | 4590 |
numa foz de rio complicada e chei de laguna? | |
Home vai contornar dequejeito esse delta lodoso? | |
Leva muito tempo issaí, tem pântano e tudo. | |
Passa a primavera e seu pé talá, atolado! – | |
Paulo, filho daquele trato e perito de escolhos, | 4595 |
vendo unidas as naus de João redentoras de Ancona, | |
nembra: – Sai dessa vida, Narses, ali passa barco! – | |
Narses se irrita: – ’Ma vergõemsacara, moleque, | |
porra de barco! Tem ua tropa aqui de meimundo, | |
passa como essa tropa? Cadê seus barco? No avanço | 4600 |
230
godo vê desbarata o desembarque e te arrasa. – | |
Mas a voz do escudeiro consiste: – Psá de galera | |
não, general, ali pa travessia o que basta, | |
basta tipo ponte. – João dubitoso interveio: | |
– Quem constrói porém, e como, cópia de pontes | 4605 |
quando escasseia lenho, pedra e tempo e diversos | |
braços d’água requerem a cada passo um milagre? – | |
Paulo compõe: – A ponte ali vai ser de barquinho, | |
sabe? Barquinho vai, tardinha cai? È simples: | |
Bota uas tira enfileirada de barco que vira | 4610 |
strada pa nego passar se equilibrando, com calma, | |
sim, ali ficou nervoso cai, temque ter jingado, | |
tem que rebolar com delicadeza o maluco, | |
um depois do outro, nós flutuando de perto | |
lá na tábua, marchano e navegan’, è assim. – | 4615 |
Pois no meio da noite alevantarom-se as tropas! | |
Rumo à costa marchava lento o passo nascosto, | |
buscando a si pequenos barcos que desde Salones | |
vinham consortes e recrutando ainda em reforços, | |
u preciso, aventureiras naus de pesqueiros. | 4620 |
231
Como Paulo aconselhara, assim praticarom: | |
Qual non foi a beleza enfim à vida do ingênuo | |
ver de longe cruzar as caudalosas correntes | |
fila de amigos, equilibrando a toscas madeiras | |
corpos e os pés na inusitada baila das ondas. | 4625 |
Quando porém Procêncio depondo os arcos olhava | |
a sós o poente endourecendo a cor da laguna, | |
Narses, sentando-se ao lado: – Respeita, menino, | |
tanto mar! A pessoa que menospreza o perigo | |
vira presa fácil, portanto nunca te enganes. | 4630 |
Olha como passam quïetas elas ondinas! | |
Basta um vento maior e logo avançam tragando | |
barca e vida. Ama se apraz a beleza oscilante, | |
não porém osciles, meu filho! – Assim apontava | |
longe uma luz que naufragava rubra no incerto. | 4635 |
Mesmo o pai, contudo, cruzando um braço do Pó | |
no meio do nada, andando pelas barcas, saltando, | |
alça os olhos ao céu clamando: – Casório feliz, | |
Procêncio, foi casório de rios e mares e noivos | |
como estes que a mão de Deus uniu para sempre. | 4640 |
232
Vê! No medês instante se funde o fluxo diverso | |
salso e doce: Estamos no rio out estamos no mar? | |
Estamos em toda parte e porque vivemos estamos, | |
pois as ondas, porquanto revelem onde passamos, | |
calam ainda o que somos e somos em toda parte | 4645 |
como agora, pequenos e salteando por barcas | |
sem sabendo se estamos e como no rio ou no mar. – | |
Procêncio vislumbrando ainda mar no horizonte | |
volta a si: – Entendo bem que o mundo decide | |
muita vez por nós na terra como nas ondas | 4650 |
u estamos, por onde andamos e como passamos; | |
não contudo, nem na terra e no mar, o que somos: | |
Sou guerreiro! Sou guerreiro da guerra que è bõa | |
como a verdade que em toda parte está lo que é. | |
Prossigo sim, meu pai, levando migo a flecha | 4655 |
d’arco forte! Caço em campo o peito de inglórios | |
pelo amor de teu nome e nome dos meus e de Roma! | |
Narses, terás orgulho de mim! – O pai arremata: | |
– Ah, Procêncio, orgulho mesmo eo tive de vendo | |
amor de como honreires a tua mãe no infortúnio. | 4660 |
233
Honra agora Roma também que padece e que sangra, | |
mãe de nossas mães! – Seguiam assim travessias | |
quando uma carta arrebatou los olhos do eunuco: | |
“Narses! Soldados outrora abondonando bandeira | |
vêm pedir-te perdão, e aumentaremo-lo império | 4665 |
já de poderosas cohortes se apenas mandares!” | |
Isto lendo, Narses manda que venham sem medo, | |
Narses promete: Receberão enfim pagamento | |
todos os combatentes, a quem Bizâncio devia | |
muita prata, porquanto a prata agora chegara! | 4670 |
Como um raio a varou notícia excitante guerreiros. | |
Nova carta porém, e peior, arribava de longe: | |
“Narses! Por piedade do pó que resta de outrora | |
deixa em paz a cidade de Roma! Gera essa guerra | |
longe dos párias que um generoso rei protegeu! | 4675 |
Pouco importa a quem caído se abriga em ruínas | |
rei de perto ou de longe imperadores; caídos, | |
sim, Totila ergueu do chão meninos e estátuas | |
priscas e não derrubes, Narses, mais uma vez | |
depois de tantas, o reergudo escombro das vidas.” | 4680 |
234
Narses releu por diversas vezes o apelo mendigo, | |
carta anônima, já que lo autor temeu represália. | |
Quem duvidava, de fato, da intervenção de Pelágio | |
como a voz esconduda sob a sombra dos tempos? | |
Quem non via naquela missiva a mão de Leôncio, | 4685 |
Rusticiana e senadores e irmãos na aflição? | |
O eunuco, porém, aproximou-se inquedo dum poço | |
para beber, e deliberava o destino das almas | |
quando uma velha atordoada abordou-o do nada: | |
– Beba não, senhor, que desse poço se morre, | 4690 |
só eo sei, e como, que desse poço se morre: | |
Eu, se me nembro, produzia vaso de argila | |
bem bonito e meu filho, o viajeiro de vila, | |
ia vendeno. Chegou, coitado já de meu filho, | |
bebeu do poço e morreu, coitado já de meu filho, | 4695 |
filho meu sem rancor e sem maldade no mundo. | |
Foi depois que dissero da má verdade do poço: | |
Dissero que Belisário jogou carniça no poço, | |
foi, que aquele forte ali pacima do monte, | |
forte de godo usava dele e bebeno vivia. | 4700 |
235
Quando depois o godo soube disso, rendeu-se | |
pois sem água l’home non tem sustento na vida. | |
Mas coitado chegava com sede depois e bebia | |
sem saber desse poço e do poço coitado morria. | |
Ai, senhor, è vida não essa vida què nossa. | 4705 |
Eu que sei o que é porque que o mundo se acaba, | |
pois escute: Novo deus que trouxero de longe | |
gos’da gente não. Deus que gosta da gente, | |
deus que sempre amou foi deus Apolo e Netuno. | |
Quando a gente punha fé nesse Apolo e Netuno | 4710 |
coisa ruim assim que nem de agora non tinha. | |
Esse deus de longe è deus que desdisse da gente! | |
Mas atrás daquele monte encontrei uma gruta | |
bem bonita, e vou botano uma flor e pedindo | |
junto àquela estátua de Jano por dó de romano, | 4715 |
gente nossa què maltratada e coitada demais. | |
Era tão jeitoso o meu vaso que a gente comprava. | |
Leve consigo um desses aqui, e leve de graça, | |
leve, que é pesado comigo de andar pelo mundo | |
e sei que já ninguém passano aqui nesse poço | 4720 |
236
tem dinheiro, mas leve mesmo assim que precisa. | |
Leve, que noutro poço a boca bebe e guarda | |
mais o resto d’água de muita estrada no vaso. | |
Custava caro quando tchá dinheiro no mundo! – | |
E lá depondo aos pés do general um ânfora | 4725 |
foi-se embora errando e titubeante nos passos. | |
Era petrecho benfeito e de mui custoso labor | |
que lá deixara, rara e formosíssima a prenda. | |
Mas a João que se aproximava Narses ordena: | |
Issem comprar daquela velha as ânforas todas, | 4730 |
pagando muito ouro para que não carecesse | |
a bõa vida que a sua vida salvara sem preço. | |
Ora, tapando o poço da morte, seguirom viagem | |
inda e sempre e burlando as emboscadas de Teia. | |
Foi na aurora que as almas vislumbrarom de ameias | 4735 |
cores patenteando na bruma a bandeira de Roma. | |
Vinham já de encontro Valeriano e famintos | |
pelas ruas saudando como a César o eunuco. | |
Narses cavalgando calmo e seguido de amigos | |
via à beira da estrada centenas de ajoelhados. | 4740 |
237
Clamavam como o pai da liberdade o seu nome | |
quando lançavam aos paralelepípedos flores. | |
O pranto mesclou-se à comovida salva de palmas | |
testemunhando a redenção que chegava a Ravena. | |
| |
| |
ι’ | |
| |
Da porta oposta contudo adentra Ravena | 4745 |
o repto a Valeriano, a missiva dos godos | |
contendo: “Cê non tem vergonha, bandido? | |
Ave, ques covarde esses home escondido | |
enquanto a guerra espera, camba’de cretino! | |
Honra teu povo, honra o seus petrecho | 4750 |
e bora medir, bora vê a força das arma | |
quenhè mais e quenhè bom de verdade! | |
Aqui ninguém tem me’de morrer ni frescura, | |
’s home nosso aqui, pode crer, se garante. | |
Agora, tá com medo, então vapacasa! | 4755 |
Na guerra nego entrou vai ter que lutar, | |
jà tá passano da hora: agora o que falta | |
è só il tudo ou nada, a batalha final. | |
Nòs godo tá de saco chei de vyadage, | |
putada e palhaçada: foge não, vagabundo! | 4760 |
238
Tu quer ser home? Então vem ser de verdade, | |
depen’de vocês àtitude! Xá de ser rato, | |
maluco, vira gente! Què pau no rabo | |
vai pa Grécia, tem nhe-nhe-nhem aquinão! | |
Valeriano! Sous home está cum vergonha | 4765 |
de tu armado e pedino socorro, queísso? | |
Até tem braço aí fortior que do teu | |
e tu desmoralizano a trop’e a gelera! | |
O cara tchi olha, cai n’ua depressão: | |
tous home è suim, teus home gos’de guerra. | 4770 |
Non gos’de sangue vaza, eles luta por tchi. | |
Espera Narses não, quem espera è gestante, | |
nego aqui tà passano fome, Ravena tamém! | |
Então, inimigo, vem, porquanto injungimos: | |
Mostra-tchi em campo aberto, traz contchigo | 4775 |
tudo os home e las arma, traz pa batalha | |
final e para nunca mais!” Provocarom. | |
Mas caiu a carta nos dedos do eunuco | |
que inopinado mandou legado a Totila. | |
Os godos maquinavam naquela astúcia | 4780 |
239
recursu arriscado: Antes de Narses Ravena | |
e Valeriano e los restos fossem rendidos! | |
Quando se houverom acumulado de longe | |
rumores que Narses demandara a cidade | |
em tremenda cohorte e quantidades dignas | 4785 |
do Império Romano, tumulto e pavor abalaro | |
o moral de pequenos e grandes. Refletiam: | |
Nem com quase tod’a Itália nas mãos | |
ganharo a batalha contra o mar e João. | |
Agora que Narses trazi’ua grege sedenta | 4790 |
de morte e mais numerosa, como ganhar? | |
Totila, reunindo o conselho dos nobres, | |
buscava às pressas discernimento correto | |
quando de Roma não missiva arribout | |
e sim Pelágio que prorrompia agitado: | 4795 |
– Ouvimos, rei de Roma, a nova do eunuco | |
e derribamos ao chão uma indébita espês. | |
Posso falar por um antro de condenados? | |
O povo non quer aquele teatro de guerra | |
adentro Roma e muro adentro as ruínas. | 4800 |
240
As obras da vida reërguida, as estátuas | |
hão de cair de novo no estrondo atroz? | |
Avisa, rei, somente avisa e nos eimos | |
embora pelo mundo sem paz e sem rumo! | |
Mas ah, Totila, cabem tantas histórias | 4805 |
em Roma e vidas! Por piedade, poupa | |
das arma os alicerces que mal se rëeguem | |
do cerco, incêndio e derribada de pedras. | |
Mas que faremos e como, aonde iremos | |
e quando chega Narses e quando morremos, | 4810 |
coitados de nós? – Totila não li permite: | |
– Não me ofendas, por caridade, Pelágio! | |
O povo de Roma conhece o meu coração | |
que nunca neste féror negou-se a caídos. | |
O cerco foi num tempo e num caso diverso | 4815 |
como um caso diverso a tristeza do incêndio. | |
Percebo bem que nutro em vão esperanças | |
ca nunca perdoarom de mim um momento, | |
um gesto infeliz que tantas vezes chorei | |
e, como vejo, em vão intentei reparar. | 4820 |
241
Percebo tarde demais, das tuas palavras, | |
o medo e pouco apreço que Roma mi deu, | |
percebo triste e contudo alegre te peço: | |
Retorna em paz, frião, cà mão violenta | |
que porventura abata os menores de Roma | 4825 |
jamais nos éus, jamais será de Totila. | |
Paguei, meu caro, o preço amargo dum erro | |
e decerto degustei da lição do remorso. | |
Mas seja sim se assim requer o destino: | |
O l’home virtuoso jamais se equivoca | 4830 |
e Tótila, tendo errado apenas um die, | |
errou errado, errou para a vida inteira: | |
Todo acerto do resto è resto somente. | |
Mas essa guerra nova, e se a nova vier, | |
será distante, confia em mim, de Roma: | 4835 |
Ere num campo mais conforme à desgraça | |
que atende o nosso povo sincero ou Narses | |
ou todos ambos. Conforta o povo, portanto, | |
e quem souber orar que interceda por nós! – | |
Assim falando Tótila pôs seu exército | 4840 |
242
em marcha rumo a Ravena destino de guerra. | |
Mas pouco andout em campo e veio de encontro | |
cultor de terra depondo aos pés do monarca | |
verdura e pranto, armado de muitas rugas: | |
– Bonito è ver a florescência dum prado, | 4845 |
Totila, quando se deixa em paz a semente. | |
Bonito era o tempo de Teodorico, que o rei | |
mi deu de terra e vim plantano e vivendo. | |
Chegava a colheita, eo vinha a pé entregar | |
com gosto a verdejância do mundo ao rei. | 4850 |
Mas passa a guerra e guerra vai pisano | |
no grão e mata quem nem consegue brotar. | |
Pois, senhor, se non brota, morre a semente | |
que quer nascer e morre o que espera brotar. | |
Destino è assim: Parece que vem a colheita | 4855 |
coa folha verde saindo, e passa uma tropa | |
e pisa e guerreia e vem morrer no meu campo. | |
A mão condenada quer colher e non pode, | |
passa a primavera enterrano esse mundo | |
que meu arado plantou e que a guerra abortou. | 4860 |
243
Passava gente sem rumo na estrada e parava | |
et eu parano dizia: “Filho, sai dessa vida | |
que esse rumo è de nada e non passa por nada.” | |
E passando-li a enxada e didivino da mesa | |
aumentei sem medo a família, que Deus abençoe. | 4865 |
Mas rei, o trabalho valia de quê, se na hora | |
do grão nascer passava a guerra e pisava? | |
Quando a lida è de bode o home na luta | |
sai correndo no meio do mundo co bode. | |
Mas o home que planta aonde que corre | 4870 |
e corre como a semente que nem desabrocha? | |
Amor demais de Deus que me deixa viver | |
e só, que de grão nulhome nado consegue. | |
Mas olha só que milagre e que coisa bonita: | |
Bandei família e sustento e me vim semeano | 4875 |
e já non sei se por certa ilusão de meu Deus | |
ou que coisa que for parece ogano que brota! | |
Será que brota, mha gente? Passa por longe, | |
rei, e marcha além de meu prado arruinado. | |
Pensei que dessa vida eo ainda colhesse | 4880 |
244
alguma coisa depois de tanto e sem fruto. | |
Contudo já me canso de vida e de angústia | |
que è desespero o fim dessa tanta esperança. | |
Percebo já que a guerra precisa dum campo | |
e de tod’os lugares ela gosta è do meu. | 4885 |
Mas desse estio, Totila, a vida non passa | |
e ninguém de casa conseguirá suportar | |
um ano a mais de fome e de aborto de terra. | |
Toma então, meu rei, toma aí da verdura | |
que muita vida perdida te traz e perdoa, | 4890 |
se podes, quem plantout e non pôde colher. – | |
Totila, porém, estende a destra ao cultor | |
e controlando a cor de sous olhos suspira, | |
querendo: – Como aceitar a prenda bondosa, | |
frião, se a mim doando te privas de vida? | 4895 |
A tua prenda maior forom tuas palavras! | |
Posso morrer em paz enfim, que na Itália | |
ao menos um se recorda de Teodorico. | |
Planta mais, cultor, e levanta os caídos | |
da estrada a que unidos cultiveis àmizade. | 4900 |
245
Era de paz o intento outrora dos godos, | |
somente amor dos povos que cultivava | |
o benfeitor te concedente esta gleba. | |
Perdão te peço eu que viajo de guerra | |
e muito mais te dera se Deus permitira. | 4905 |
Mas ouve! Meu povo inteiro marcha comigo | |
e vamos já de encontro ao fim desta luta, | |
fim qualquer que seja: O povo dos meus, | |
cultor, non mais suporta o destino dos teus. | |
Se algum apreço porém te resta de antanho, | 4910 |
tributo que rogo è rogares a Deus piedade. – | |
Assim orando, um triste rei recompôs-se | |
e devolvendo a verdura partiu de seu rumo, | |
nenhum dos pés desbaratando as sementes. | |
Andou contudo pouqu’e uma carta secreta | 4915 |
arribava: “Ainda è tempo! Se lubas a vida | |
apenas cruza o Pó que estaremos unidos.” | |
E bem sabia o rei de que mãos delicadas | |
e peito generoso as palavras brotavam. | |
Cruzando qual dos rios porém e que ponte | 4920 |
246
salvasse as multidões que Totila aduzia? | |
Wardando pois ao cor a missiva querida | |
o rei seguia avante no amor de seu povo. | |
E pouco menos andou e legados de Narses | |
chegavam, o qual leixara embora Ravena | 4925 |
no rumo de Roma junto à tropa universa. | |
Intrépidos pois os enviados avançam: | |
– Estamos acampados por perto, Totila, | |
munidos de tudo. Queres ouvi-la proposta? | |
Narses propõe a paz em nome do Império | 4930 |
se apenas o povo teu abandone la Itália. – | |
Totila demite: – A paz è decerto benvinda | |
quando espelha justiça. O povo a que falas, | |
legado, nada roubou que te deva entregar! | |
Chamou-nos Zenão, o Imperador, ao domínio | 4935 |
da Itália e cá viemos, toendo-li agrado | |
e fiéis amigos. Só los cadelos da estirpe | |
que serves quebram elor palavra de honra. | |
Mas não trates meu povo como sem terra | |
ou como ladrão ou fugitivo em delito. | 4940 |
247
Aqui ficamos de jus! – Legados contudo: | |
– A condição de paz è somente que vades! – | |
Totila proclama: – Pois na sorte das armas | |
home então decida quem vai e quem fica! – | |
Os núncios retrucam: – Marca logo a data! | 4945 |
Marca e cá viremos e o resto veremos! – | |
O rei, enfim, reconhecendo o tamanho | |
del ódio que produzia à boca as palavras, | |
recua aterrado, entretanto pouco li resta | |
e responde pausado: – Em sete dias veremos | 4950 |
pois de Deus o destino e duelo dos povos. – | |
Assim partirom levando a Narses a novam. | |
Tótila em valentíssimo incêndio de fúria | |
manda logo marchar, seguindo de encontro. | |
Nel ato, a multidão de soldados ergueu-se | 4955 |
e pôs aos ombros a lança, espadas e flecha, | |
legados correndo à cavaleria dispersa | |
de Teia que, congregada, viesse a combate. | |
Mas Rigo reconhecendo um risco iminente | |
e buscando o frói em transtornados saltos | 4960 |
248
impõe: – A marcha è repentina, a surpresa | |
do nada desestabiliza os soldados | |
e gente cansada luta mal na batalha. | |
A mão precisa de tempo e mais preparo, | |
a mente tem que ter perícia de campo. | 4965 |
Calma, calma! Reflete melhor nosso caso | |
e deixa Narses chegar, que chegando Narses | |
ere dos seus o fardo da marcha e do pouco | |
tempo e preparo escasso. Aqui parecemos | |
melhor munidos, melhor ficar por aqui. – | 4970 |
Totila sucede: – O casu inteiro reflito: | |
És insano? Marcharo a pé da Dalmácia, | |
a pouca estrada que resta è nada pra eles. | |
O trunfo nosso, Rigo, è chegar de surpresa | |
e vê-los não exaustos, contudo confusos. – | 4975 |
Assim lançou por terra, ainda uma vez, | |
o conselho de Rigo e Vilas porém interveio: | |
– Totila, a situação tem que ser estudada, | |
cuidado requer indústria! Basta uma falha | |
e veremos todo mundo confuso e perdendo | 4980 |
249
a vantage de estar em casa. Meus lanceiros | |
estão com medo dos riscos têmporo e mal se | |
tragou a derrota no mar. È melhor esperar, | |
esperemos a Narses! – Quanto mais a fala | |
ofegava mais o rei balançava a cabeça, | 4985 |
limpando a profusão vermelha dos olhos, | |
repondo: – Bem conheço o temor de derrota | |
e para menos temer que se lute sem mora! | |
O desgostoso estado em que vejo meu povo, | |
amigo, não mi permite maior incerteza: | 4990 |
Perda de tempo agora è perda de guerra. | |
Tenha fim, portanto, àflição de guerreiros! | |
Corramos logo, ergamos o véu do destino | |
sem medo e desespero de vida e de morte, | |
pois além da vida e da morte se avança | 4995 |
a retidão dum povo! – E assim refletindo | |
os godos marcharom, temor no peito e coragem. |
Totila |
κ’ | |
| |
Quando Narses ouve a narração dos legados | |
manda prepararem os braços e toda-las armas | |
para àurora, já prevend’o ataque iminente. | 5000 |
250
Não se engana, pois o primo raio do leste | |
longe revelout a bandeira em marcha dos godos, | |
grave e retumbante o brado ecoando nos montes. | |
Vendo enfim moções dum formigante horizonte, | |
homens de guerra em sobressalto pedem palavra | 5005 |
quando Narses, interrompendo angústias, explica | |
o plano, a formação da batalha. Os homens paravam | |
mirando quis-cada-quem amigos, sentindo nas clavas | |
o peso salvador da vida, a esperança no extremo. | |
Medo porém falava altior ao cor de bastantes | 5010 |
e Narses, reconhecendo o desassossego de tantos | |
como até de Procêncio, conclama os combatentes! | |
Tendo perante si, aflitos e ouvindo calados | |
todos os regulares soldados e bárbaras gentes | |
(eram hunos, lombardos, érulos junto a romanos | 5015 |
em multidão sequiosa), a voz do eunuco ressoa: | |
– Quanto orgulho escorre destes olhos, meninos, | |
ao ver gregada sob a sombra de excelsa bandeira | |
grei de amigos, povos tão distantes de mundo | |
lado a lado erguendo ao ombro amor à justiça. | 5020 |
251
Será milagre divino a concordância das gentes? | |
Pois humano, filhos, e muito humano o milagre | |
mas milagre que apenas este pendão oferece, | |
largo e generoso e já maior do que os séculos. | |
Não vos enganeis na aflição porquanto a verdade | 5025 |
pela qual erguemo-las arma desfaz-se da prata, | |
d’ouro que paga e não porém sacia a virtude. | |
É por bem maior que lutamos! O bem que elegendo | |
pelo ardor defendemos è bem de Roma que herdamos. | |
Vede pois o que somos e quão distinta amizade | 5030 |
colhem povos unidos no amor do Estado e del ordem, | |
o rol de moderados poderes e harmônicos órgãos, | |
o foro das instituições e das leis protetoras. | |
Tal tesouro os antepassados suores leixarom | |
não a Roma apenas, porquanto ao braço decente | 5035 |
Roma abraça e não pergunta ao amigo da lei, | |
jamais, se seja grego ou persa ou donde provenha, | |
antes estende sobre todos um nobre estandartem, | |
abre as portas do Estado protegendo perdudos | |
homens como ao general humilde que vedes. | 5040 |
252
Eu, meninos, nasci sem prata e fama e distante | |
pelos vãos de Armênia, u nimigalha è destino. | |
Desde cedo, porém, no amor das leis e del ordem | |
Narses reneguei minha vida servindo a maióribos | |
homens e causa maior. E desprovudo de mérito | 5045 |
mesmo assim gozei da confiança do justo | |
como do Imperador que aconselhei pela vida, | |
eu, que vim servir apenas e agora comando. | |
Não, heróis, em povo alheio nenhum o pequeno | |
pede amando a lei refúgio e vive sem medo, | 5050 |
Roma apenas ama lo amor renegado dos retos, | |
e a quem duvida rogo examinar minha vida. | |
Credes mesmo que essa nova estirpe de godos | |
possa gerir sem lei correta o destino da Itália | |
tanto tempo acostumada à constância das leis? | 5055 |
Vede o que foi outrora e donde veio la Itália, | |
vede se a tal porção do Império cabe a desordem! | |
Digo porção? Eo disse errado, direi genitora | |
deste Império Romano cuja bandeira elevamos | |
e cuja bandeira tanta vez elevou nossas vidas. | 5060 |
253
Tão distante por este mundo andaumos, guerreiros, | |
e agora titubeades que è já patente a vitória? | |
Semos ora dignos da longa marcha que agimos! | |
Ora que Deus nos concedeu chegar à batalha | |
como compete ao viço que não vacila no prélio | 5065 |
para alçar maior o nome dos Céus e do Império, | |
ora lutemos como cabe ao fiel combatente, | |
ora lutemos, filhos, a derradeira das lutas, | |
luta derradeira talvez das vossas vidas | |
como talvez a derradeira luta de Roma. | 5070 |
Usai de vossas armas como quem se despede | |
já da vida e das armas, não porém da vitória. | |
Homes de guerra! Nõ é derrota que apaga virtude, | |
vício somente e covardia. Se acaso cairdes | |
como muitos de vós cairão que sei e que aviso, | 5075 |
sabei cair a queda de quem entrou em batalha | |
para ficar e não fugir, servir sua causa, | |
pois caindo o bom herói è maior do que a vida, | |
vida sem honra e sacrifício è morte somente. | |
Ora vivei, guerreiros, a verdadeira das vidas, | 5080 |
254
eia, regai de vosso sangue o grão da vitória! | |
Uma coisa apenas, apenas uma eo vos peço: | |
Ide à luta orando a Deus piedade a pequenos, | |
pois a força das armas e o sacrifício perito | |
quando Deus non quer non desabrocha vitória, | 5085 |
mas vitória que vem è graça apenas de além. | |
Rogai de Deus um generoso olhar sobre nós | |
e a guerra venceremos como a nossa miséria! | |
Basta tão somente lutar coa virtude de sempre | |
como cabe à bandeira da bõa guerra que erguemos! – | 5090 |
Totila, contudo, alheio às orações dum eunuco | |
como à causa de tal clamor, espera na angústia. | |
Ora, Teia e sous cavaleiros por onde passavam? | |
Inda chegave a tempo da luta? Mirando medrosos, | |
o rei dos godos manda a todo instante legados | 5095 |
a Narses a ver se ganha tempo. Mas os soldados, | |
vendo lo atraso de Teia e presumindo o peior, | |
corriam atordoados contendo prantos et uivos | |
(como pois travar sem cavalos camanha batalha?) | |
quando a carta arribava anunciando a chegada | 5100 |
255
em meio dia ou menos de cavaleiros sem medo. | |
Tótila, erguendo caídos e confortando abalados, | |
nesse instante alçou-se pelo relevo do monte | |
frente às multidões que preparavam os eros | |
como escudos e lanças. Conclamado-los homens, | 5105 |
eles ora voltavam os olhos sedentos de alívio | |
rumo ao rei, que pronunciava forte a verdade: | |
– Povo dos godos! Aguarda o galardão da vitória, | |
pois vencendo Narses nòs venceremos a guerra. | |
Essa grei de vis que congrega e moções do inimigo | 5110 |
são menores que o nome e nossa história revela: | |
Não existe no mundo o viço, a virtude do tringo | |
sofrer derrota verdadeira na vida ou na morte. | |
Essas vidas que se aglomeram num velho estandarte, | |
que princípio, que bem e que justiça professam? | 5115 |
É bonita a glória dum povo à custa de escravos? | |
Erguei melhor a cabeça ao relembrar o que somos: | |
Quando em tempos ancestrais nosso povo godor | |
ainda estava em paz na floresta como na estepe, | |
quem passava fome e quem viveu na miséria, | 5120 |
256
ƕão se calou a voz da compaixão de pequenos? | |
Nós erguemos na piedade as nossas bandeiras, | |
nós non temos rico nem pobre, nós dividimos. | |
Vossas mães estão aí, perguntai que dizeiam | |
como é que se gesta uma sociedade justoro. | 5125 |
Foi por esta virtude que nós viemos à Itália | |
junto a Teodorico, porque confiaumos no Império. | |
Mas por confiarmos no Império estamos pagando, | |
vede aí, um preço bentriste, cruel, desastroso. | |
Pois do começo ao fim è mentira a bandeira de Roma! | 5130 |
Filhos meus, no princípio o nosso povo era livre: | |
Não havia pilastras de mármore em nossas florestas, | |
pois è sempre o braço escravo que arrasta esse mármore. | |
Mas se alguém non sabe eo direi o que havia entre nós: | |
Havia a dignidade intocável de todos os homens, | 5135 |
pois de tudo o que construímos, humilde que fosse, | |
nada se deve a trabalho escravo, tudo a nòs mesmos. | |
Depois vierom eles, dizendo que o mundo era deles, | |
crendo que nós somos deles, nada melhor do que eles. | |
E nós nos revoltamos contra um pendão de impostores. | 5140 |
257
Nós estávamos quase às portas de Constantinopla, | |
nós e a liberdade lutando contra opressores, | |
quando Zenão propôs a paz e falou de amizade, | |
deu-nos a chave da Itália como gesto de apreço. | |
Eles mentirom a Teodorico e meu povo godoro, | 5145 |
eles zombarom do nosso coração sem maldade, | |
eles nunca nos forom amigos, è esta a verdade. | |
Nós aqui chegaumos com tod’a esperança dum povo: | |
Era a nossa a chave, a paz, esta terra era nossa. | |
Pois aqui nos desenganamos e agora nos mandam | 5150 |
ir embora feito cachorro co rabo entre as pernas. | |
Desde sempre eles procuraro um pretexto de guerra! | |
Eu humildemente expliquei o que aqui se passava, | |
vendo um povo inteiro pagar pelos erros de poucos. | |
Eu pedi prudência, perdão, caridade, clemência, | 5155 |
mas a resposta è Narses, è guerra e mais violência. | |
É por isto que quand’o escravo arrebenta grilhões | |
nòs damos abrigo e levantamos o fraco do chão, | |
nòs damos pão à fome e pomos fim à vergonha. | |
Vem a vida erma e sem gão e recebe de nossos | 5160 |
258
braços éu, amizade, amor de Deus e trabalho. | |
É preciso dizer a muitos homens quem somos: | |
Somos a Itália da aurora como a flor do futuro. | |
Não permitiremos jamais que a mão de impostores | |
apague da história o nome do povo dos godos. | 5165 |
Cumpre enfrentar a derradeira luta que atende, | |
cumpre lutar com toda-las armas, o mérito è nosso. | |
Narses è grande, homem forte e distinto guerreiro! | |
Para Narses porém esta guerra è lazer corriqueiro: | |
Narses pode perder confortavelmente esta guerra, | 5170 |
Narses tem o seu palacete e pilastras de mármore, | |
Narses tem escravos e luxo a l’espera em Bizâncio. | |
Tanto faz ganhar ou perder: ganhar è bonito, | |
mas Narses nada tem de seu a pender nesta luta. | |
Nós, contudo, temos tudo a salvar do que è nosso: | 5175 |
A terra por onde andamos, o modo como nascemos, | |
o mundo que cultivamos, a vida que conhecemos. | |
Tudo o que nos è caro depende desta batalha, | |
desdo ar que inalamos até lo peso dos sonhos. | |
Mas os homens de Narses son mercenários apenas, | 5180 |
259
braços comprados sem nenhum amore à bandeira. | |
Ou será que algum lombardo ou povo distante | |
vai, na hora do vamover, ofertar sua vida? | |
Não porém na ganância de impreciosos metais | |
entraumos destemidos neste campo de guerra. | 5185 |
Vede bem a multidão que aqui se congrega | |
como as ondas do mar maior, sabendo com Deus | |
que nunca nulho guerreiro foi preciso comprar, | |
mas lutam pelo mero direito de ser uma gente | |
mentre os vis os querem ruir apagando de mapas. | 5190 |
Nós apelemos à paz mas nunca fomos ouvidos. | |
Pois então se decida enfim na sorte das armas | |
quem e que povo pode ainda existir neste mundo. | |
Vamos pedir a Deus por compaixão de quem sofre! | |
Regai de vosso amor, suor e sangue guerreiro | 5195 |
nossa semente e terra abençoada da Itália! | |
É distinto o soldado que sabe ver na vitória | |
como na morte a mão de Deus redentor de destinos. | |
Mas guerreiro maior foi ele que ergueu suas armas | |
por amor dum povo maior que a vida e a vitória. – | 5200 |
260
Pois assim falou Totila, o rei de seu povo, | |
e assim rejubilou-se novo o viço dos godos | |
pronto para a sorte das armas, o cor confiante. | |
Ora o monarca, montando repentino o cavalo, | |
passava frente aos seus em dourecente armadura, | 5205 |
destra lançando alto as lanças que a mão esquerda | |
calma pegava del ar em queda franca e velozes. | |
Homens de toda grei, impressionados miravam | |
quanta perícia o rei atestava. Lançava sem medo | |
como em desafiando inimigos, erguendo o moral | 5210 |
de muitos combatentes. Ora, Narses, o eunuco, | |
certo non fora capaz da façanha. O rei cavalgava | |
como cavalga quem passou la vida a cavalo. | |
Era uma imagem sem par a luz do céu refletindo | |
nítido o rosto amado a refratárias distâncias: | 5215 |
olhos claros mirando as almas em cada soldado, | |
pálida a tez e cabelo balançando ao vento, | |
a barba envelhecida, nariz e boca delgados, | |
mãos delicadas nem por isto alheias à clava. | |
Ele dançava! Firme em dirigindo o cavalo, | 5220 |
261
dava aos olhos mil dos encantados guerreiros | |
rara prenda, lição de vida heroica nas armas. | |
Como uma estrela irradiando o sol que reflete | |
brio da verdade, Tótila cavalgava e bradava | |
como a trombeta final anunciando a vitória. | 5225 |
| |
| |
λ’ | |
| |
Antes que os grandes cavaleiros chegassem | |
àquelas regiões tortuosas del Úmbria | |
dava-se já contenda aos pés dum outeiro, | |
porquanto os ambos oponentes o vendo | |
virom vantagem para a mira do arqueiro. | 5230 |
Totila num sobressalto enviout em velozes | |
cavalos guerreiros, já porém se abrigavam | |
peritos escudeiros a mando de Narses | |
obstando estrada. Eram menos em número | |
mas o tamanho da audácia de fato se infere | 5235 |
dum raro episódio: Quando houvero arribado | |
aos pés do monte e vislumbraront escudos, | |
os godos prepararo os cavalos e eloro | |
clavas ameaçando e mostrando o tamanho | |
da morte, mas como os escudeiros do Império | 5240 |
262
não lhes cedessem, cavalgarom de encontro, | |
a mão armada caçando o peito incautor | |
e a pata de violentos equestres cabeça. | |
Romanos então se ajoelharom às pressas. | |
– Já se rendem! – ouviro o coro de godos | 5245 |
em prematura emoção, porquanto inimigos | |
tomando da terra o quanto vissem de pedras, | |
roçavam-nas contra a superfície do escudo, | |
criando no atrito os acutíssimos guinchos | |
e sons que transtornavam éguas, medrosas | 5250 |
ora em desordenados relinches e saltos | |
enquanto os escudeiros nel ódio gritavam: | |
– Ô vagabundo, vamo medir nossas arma e | |
bora ver quem è mais! – Mas se avançavam | |
os godos titubeava o galope dos bichos | 5255 |
ouvindo os guinhos. Inda não conformados | |
coa cena desgastante, os homens do froia | |
largando a rédea desciam trazendo espadas, | |
lançando-se contros detestados broquéis. | |
Porém os romanos, peritos de antigo modo | 5260 |
263
depondo cabeça e corpo atrás de escudos | |
e lado a lado, desbaratavant o ataque, | |
espada pronta à mão esquerda esperando | |
a brecha do imigo et al: Um gesto impensado | |
expunha o braço ou peito ao gume afiado. | 5265 |
Delibarando melhor a incerteza do acaso | |
os combatentes mandam legado a Totila | |
pedindo reforço. Não porém debandarom, | |
antes lançavam assaltos notando melhor | |
a cada movimento o preparo de guerra | 5270 |
dos escudeiros de Narses. Estava claro, | |
patente estava: Prosseguindo a contenda | |
conquanto nada perdessem nada ganhavam. | |
Mas com muita astúcia os lanceiros irom | |
aos poucos se adequando ao novo cenário: | 5275 |
Agora evitavam contato, caçando lacunas | |
de gesto e falhas que vez e vez sucediam. | |
Ganhando tempo exasperaro oponentes | |
e pouco a pouco o bom moral oscilava, | |
fortes acumulando respeito e vitórias. | 5280 |
264
Foi então que da formação dos escudos | |
alevantou-se firme um home, clamando: | |
– E aí, boiada e godaiada aloprada, | |
será que alguém docês aguenta comigo? – | |
Assim falando, avançou perante os broquéis | 5285 |
chamando imigos à sorte e guerra de corpo. | |
E com certeza sabiam que sol um perito | |
faria um tal desafio. Mas como os godos | |
contavam com muitos agastados, perdiam | |
a paciência primeiro, depois a contenda. | 5290 |
Ora, o valente, quando não derrotava | |
armado muitas vezes tomava a lanceiros | |
espada e lança coas próprias mãos, lançando | |
ao chão perante as testemunhas atônitas, | |
um gesto desonroso à virtude de incautos: | 5295 |
– Desarmo mas non mato! Verme e covarde | |
eo deixo viver! – E provocava aos poucos | |
incêndio nel imo dos cavaleiros, bradando | |
sem medo e desarmando as mãos de peritos. | |
Quando contudo a multidão ultrajada | 5300 |
265
veio toda de encontro ao peito do herói, | |
os outros homens levantando os joelhos | |
e escudos encorajados pel alma do sangue, | |
gritarom guerra e, defedendo do ataque | |
o bom valente, ainda uma vez impedirom | 5305 |
fortíssimo prélio. Mas o caso notório | |
vindo ad ouvidos de Narses, Narses indaga | |
os detalhes, ouvindo impressionado o relato. | |
Quando pois se lhe avança o l’homem sem medo, | |
em qual surpresa os olhos do eunuco desvendam | 5310 |
de tal semblante um nome estimado: Paulo | |
que outrora guiara as tropas pelas lagunas, | |
os pés enfileirados passando por barcas, | |
Paulo fizera-se herõem maior do que fora. | |
Ao desarmado desarmador de armadíssimos | 5315 |
e como animado dalgum divino elemento | |
Narses, o eunuco, orou: – Doravante serás | |
o guarda, herói, do general te falante | |
e doríforo como os hipaspistas exímios! – | |
Assim usando, Narses tomou-se de Paulo | 5320 |
266
como de amigo fiel no peito, retendo-o | |
todo instante perto de si na batalha. | |
Do monte contudo aproximava-se Rigo | |
a mando do rei, averiguando o terreno. | |
Mal vislumbra os escudeiros do Império | 5325 |
contendo ataque e remata: – Bons de guerra, | |
aqui perdemos tempo que o caso è perdudo | |
e não me espanta. Conheço bem la façanha | |
de escudos, escudeiro que sou, e de fato | |
em vão roguei do rei enviasse broquéis | 5330 |
e não cavalos. Sabia já que um escudo | |
se atento vale mais do que vida e cavalo | |
jamais derruba e nem espada a constância. – | |
Dito isto, guiava embora do outeiro os | |
desiludidos guerreiros quando romanos, | 5335 |
ora embebudos de si, cercaro os equestres | |
e a marcha de godos, provocando iracúndia. | |
No mesmo instante alevantarom-se espadas | |
das ambas partes e corpo a corpo o combate | |
tingiu lo chão. Seguindo àviso de Rigo, | 5340 |
267
porém, de guardando as armas par’a batalha | |
em campo aberto, os godos se contentavam | |
na defensiva e na retirada ligeira | |
ao sopé, recuando sim, fugindo jamais. | |
Mas Rigo, acompanhado apenas de escudos, | 5345 |
num súbito lance foi cercado de lanças | |
e gumes, hostis interrompendo-lho passo. | |
Num gesto inusitado, interpôs o seu braço | |
em frente aos violentos que ali marcharom | |
e deu-se o prélio: Os poucos homens seus, | 5350 |
munidos no escudo e desprovudos d’al | |
obstavam. Na força de suas égides largas | |
a ponta e desavisada espada crepava-se | |
contra as placas. O peso tantoro metais | |
condidos em arma rem impedia que Rigo | 5355 |
erguesse como pluma apenas, levíssima | |
prenda que o braço alçava e rabiscava | |
nel ar e cá e lá, confundindo os expertos. | |
Vindo dous ou três em fortíssimo ataque | |
o braço de Rigo entanto sabia o momento | 5360 |
268
de cada espada e rumo de gume e de punho, | |
a mão esquerda livre esperando vacilos. | |
Como girasse a toda parte e sem tempo | |
o metal que a vida inteira passara lidando, | |
impunha contro corte o peso nel ângulo | 5365 |
certo e deturpador de intrépidos fios, | |
como um destino destruïdor de desígnios. | |
Quebrando as lanças, exasperava os incautos | |
e incautos no desespero e nel ódio lutavam | |
com menos perícia. Menosprezaro o talento | 5370 |
da vida dedicada ao emprego correto | |
dum certo petrecho! Quanto mais perdiam | |
a ponta afiada mais se lançavam a Rigo, | |
irados ao ver o fio cortante do rasgo | |
retento na superfície firme e rugosa. | 5375 |
Era como se o ferro gostasse dos golpes | |
que quanto mais apanhava mais o poliam. | |
Incrédulos frente às milagrosas proezas | |
lutarom até lhes cair el última espada, | |
ponta quebrada ou torta, a força humilhada; | 5380 |
269
brados insanos, Rigo entretanto calado. | |
Notaront enfim lo viço de quem se impôs, | |
e deles quis entendeu que aquele petrecho | |
de lidas era inquebrantável. Partirom. | |
Souberom apenas depois, no meio da noite, | 5385 |
que o portador de escudos era o maior | |
escudeiro dos godos e protetor de Totila. | |
Estava completamente apagada a vitória | |
de poucas horas antes e escudos menores. | |
| |
| |
μ’ | |
| |
Mas àurora trouxe nova força ao Império | 5390 |
quando arqueiros forom deslocados ao monte | |
para se contrapor ao contrataque iminente. | |
Dentre os atiradores daquela estirpe valente | |
stava Procêncio, a pontaria melhor que existia: | |
Não existia o seu dedo equivocar-se na seta. | 5395 |
Subira o monte enfim no entusiasmo da guerra, | |
pronto à proeza. O pai porém chamando João | |
ainda roga: – Anda perto e defende meu filho, | |
pois è meu legado, futuro e vitória do Império. | |
Quando Justiniano vir o valor desse jovem, | 5400 |
270
nada obstará Procêncio do cetro do Imperador. – | |
Pois houvero chegado os cavaleiros de Teia, | |
Tótila velocíssimamente agiu, que dispôs o | |
seu exércitu inteiro em posição de batalha. | |
Narses contudo concatenando os riscos ordena: | 5405 |
Frente a todos e face a face perante inimigos | |
fosse exposto o povo lombardo, a grei violenta | |
cercada em toda parte por cavaleiros do Império. | |
Não lhes fosse possível reconhecendo o perigo | |
mudar de ideia e desertar, repentinos na fuga. | 5410 |
Hunos dispôs atrás de lombados. O povo contudo | |
dos érulos, ora fiel de palavra, houve consigo, | |
cônscios eles dum erro grave e gratos agora: | |
É que durante a guerra contras arma de Vítice | |
d’anos antes houvera de fato um certo episódio – | 5415 |
quando se houveram dispersos pelo norte do Pó, | |
los érulos forom passando e saqueando cidades, | |
pondo fogo, roubando inocentes, seguindo adiante. | |
Perto porém de Milão buscando chus, a nembrança | |
doutro modo arribout a frear ela grei cobiçosa: | 5420 |
271
Pois o próprio rei Fanisteu morrera na guerra | |
quando sucumbira herói nos braços de Narses. | |
Mas se até lo rei doau sua vida, atinarom, | |
os aliados seus mereciam melhor atitude. | |
Súbito pois se arrependerom cruzando embora, | 5425 |
triste o peito, regando toda a Itália de pranto. | |
Eles mandarom missiva confessando o lor crime, | |
letras contendo dentre mais: “Concede perdão, | |
Senhor, ad um povo ingrato em desditoso delito | |
e decide, por caridade, a qual deserto do mundo | 5430 |
iremos além, escondendo sob as mãos a vergonha, | |
a sina infeliz dum gesto apagador de amizades.” | |
Mas o Imperador, conquistado dalguma emoção | |
melhor e mais generosa que a brevidade da vida, | |
deu-lhes perdão e permitiu e pediu que voltassem | 5435 |
pronto, para lutar ao lado de Narses campanha | |
nova em novíssimo gesto apagador da vergonha. | |
Pois então mudaro o rumo e viero de encontro, | |
firme no cor o intento de reparando uma falta. | |
Mas comé que pode o juízo ser tão diferente | 5440 |
272
contrum povo a favor dum outro? Chegava legado | |
godo e dava dó de assistir como quera tratado, | |
mas os érulos, grei igual ao godo em virtude, | |
deles o Dono Gêntio ficou com dó, ao que consta. | |
Quando um só è senhor de tudo, assim que se vive. | 5445 |
Mas ali se juntava aquelora o povo dos érulos | |
grande e vivo, Narses o pai. E Narses dispondo | |
mais dispôs nos flancos laterais os lanceiros | |
junto ao mar de espadas bradejando coas vozes. | |
Tótila enfim notando as posições de inimigos | 5450 |
pôs o grosso das lanças na prima linha de guerra, | |
para atrás apenas a espada, arqueiros ao lado. | |
Rigo ainda assim e Vilas ouvindo as ordens | |
não hesitarom: – Mistura mais espada no campo, | |
rei, senão lanceiro nosso está tudo cansado | 5455 |
quando àjuda do flanco chegar. – Totila discorda: | |
Quer ativos na linha frontal lanceiros somente | |
e pouco atina com Vilas balançando a cabeça. | |
Lá se avança Ruderico na frente do exército, | |
o braço intimorato carregando o petrecho | 5460 |
273
junto àgrupação de clavas, herói de seu povo. | |
Ó destino incerto, quem viu de longe essa luta | |
pediu a Deus protetor vencessem ambos os lados. | |
Mas fortuna è surda às preces e avançam as armas | |
e súbito vida contra vida em fortíssimo impacto, | 5465 |
dous inimigos mesclando a morte ao rubro da aurora | |
quando o sangue impôs o ocaso ao raio nascente. | |
Firmes em tanto embate as armaduras colidem | |
contras outras, umas contras outras lutando | |
lança e spada. Fortuna viu la mão de lombardos | 5470 |
longe arremessar ao chão oponentes sem vida, | |
godos no mesmo instante atravessando àrmadura | |
como o corpo hostil na fúria louca de lanças, | |
muitas vezes uma apenas quebrando a coragem. | |
Raro guerreiro a tropeçar ergueu-se de novo | 5475 |
mentre os milhares de pés pisoteavam a carnem. | |
O passo desordenado passava contra o primeiro, | |
braço cravante ao peito ou pelas costas a espada. | |
Os godos peritos ora mirando longe um perdudo | |
davam rumo forte à flecha: Deitaront à terrae | 5480 |
274
gama incautor arrancando sem dó suas arma | |
da carne furada, agonizante a carcaça jorrando | |
pela lama. Vinha porém destemudo o lombardo | |
contra um pouco atento: Segurando os cabelos, | |
súbito o golpe dissociava do tronco a cabeça, | 5485 |
novu troféu ereito ao céu. Passava ao rosto | |
fel em ritual tenebroso quando de encontro | |
gótica espada ou clava terminava-lhe o gozo. | |
Doutra vegada o guerreiro, crepitados ousados, | |
vendo além o amigo em perigo corria de auxílio, | 5490 |
pronto dilacerada a carne atacante por duas | |
lanças fortemente enterradas, ruindo sem alma. | |
Doutras almas ainda arqueiros cortaront o grito | |
quando a flecha no coração calava impropérios. | |
Ora atacando marchavam, marchavam ora em defesa: | 5495 |
Marchavam pelo campo e as pilhas córporo vastas, | |
em todo andar tegumentos ofendendo a semente. | |
Quando enfim dos godos se extravasaront espadas | |
nem esperavam mais o gume dalgum dos érulos, | |
nova batalha ecoava pelos metais de armaduras. | 5500 |
275
Pois do trom atroz que trovões invejarom dilúvio | |
d’ondas cobriu a gleba de fluidos atros purpúreos. | |
Nada mais impedia as façanhas que a mão inventava | |
como os passos de Ruderico cercado e sem medo. | |
Ele, atacado, jogava a sós de ribas ciclopes, | 5505 |
a lança deitada ainda à terra. A lança, se erguia | |
rumo ao peito dum certo atrevudo, a vida fugia | |
já do corpo amedrontada evitando àrremesso. | |
Mas ao filho de Vilas não ferirom feridas | |
quando lhe houvero deformado o rosto ligeiras | 5510 |
como o corpo. Rasgarom fendas que pouco notava | |
pois sabia: Guerreiro bom è quem vem com vontade, | |
vem mostrar na luta o que foi amor de verdade | |
pelas mães de seu povo, amor sem medo e coragem: | |
– Vem, maldito! – extravasou’m jovem lanceiro | 5515 |
frente às levas mílito. Quando a fama espalhou-se | |
pelo rol dos lombardo-los homens vinham de longe | |
ver que irradiava o sol, e assim por primeira | |
vez se emocionarom dizendo duns para os outros: | |
– Isso è rei de verdade, fala com ele, convence, | 5520 |
276
leva a coroa: Vem, Ruderico, ser rei de lombardo, | |
vem, que amor e respeito nunca vão te faltar. – | |
E quanto orgulho resplandecia da morte ao morrer | |
morrendo pelas armas de Ruderico, o valente. | |
Quanta corage erguia do chão as vidas feridas | 5525 |
pelo míssil, sentido da estrela a voz inaudível: | |
‘Vai lutar, lombardo, não por tirano maldito, | |
vai lutar por quem merece viver de verdade, | |
vai lutar por quem padece na mão de impostores!’ | |
Isto e bem mais o raio de Ruderico ensinava | 5530 |
como um rei guiando os povos com força e bondade: | |
Quando lombardos oferecendo-lhe a vida deitavam | |
armas ao chão, ajoelhados rogando clemência, | |
a mão do herói ergueu o lor viço. Issem embora | |
como friãos na paz de Deus que defende seus mansos! | 5535 |
Ele não se esquecera da própria vida arruinada | |
quando aos pés de Tótila após o crime implorava, | |
a mão que restava em Vilas reerguendo as ruínas. | |
Mas o rei se concentrava em assuntos diversos: | |
Vinha camuflado por entre os comuns e guiando | 5540 |
277
como ouvindo ansioso o parecer de peritos. | |
Pois o farol do diei passava já pela tarde | |
nem por isto movia consigo a linha da guerra. | |
Que toer? Chamando Vilas e Rigo e rogando | |
Tótila ouviu: – Agora Deus è que sabe destino | 5545 |
pois agora è caminho sem volta, agora è coragem. – | |
Rigo mandaut a campo os escudeiros melhores | |
e novas espadas arribaro à foz do combate | |
mas àngústia penetrava um rei que escutava: | |
Deus redentor terá desdito do povo dos godos? | 5550 |
| |
| |
ν’ | |
| |
Narses não se via em melhor conjuntura, | |
guerreiros sacrificando em vão lor esforço | |
porque soldado arfava e nulhome avançava. | |
Mas ao ver a moção dos arqueiros ordena: | |
Atirem contra os cavalos! E assim atacando | 5555 |
projéteis dilacerarom a carnem de equinos | |
causando alarde e perturbando projetos. | |
Corria dele outeiro aos ouvidos do eunuco | |
o milagre d’arco pelas mãos dum herói: | |
A mira infalível derrubava os impávidos | 5560 |
278
como animais, e presto Procêncio trocava | |
os alvos marcando imperturbado no tiro. | |
Soltas as cordas, sous dedos inopinados | |
puxavam a sua próxima flecha, deitando | |
às cordas uma atrás das outras, perito | 5565 |
diminuindo aos poucos o exército godo. | |
Em tal fortuna Vilas, l’home sem destra, | |
andava atrás da linha ajudando caídos | |
e removendo as setas de peitos feridos | |
coa mão esquerda apenas. Veio contudo | 5570 |
num turbilhão desordenado de marchas | |
a guerra, pois a linha mudara de rumo e | |
surprehendeu em campo o varão desarmado, | |
perdudo agora no próprio seio do prélio. | |
Pois alevantando da terra a primeira | 5575 |
lança que ali divisara, Vilas impede | |
como pode lo assalto do gume dos érulos. | |
Quando porém recua buscando os sentidos, | |
guerreiro hostil que vislumbrava de longe | |
obstou num sobressalto o passo do velho: | 5580 |
279
– De mim non fujas, godo, a fuga covarde! – | |
João de Vitaliano indali se expusera, | |
alçando a spada e desferindo ataques | |
que a mão de Vilas a todo custo parava, | |
porquanto o gládio minuto não alcançava | 5585 |
o corpo ancião devudo à lança comprida. | |
– Desiste, gadrão, a tua espada pequena | |
me alcança não que contra lança ere inútil – | |
avisa o mestre de godos. João todavia | |
peleja, fiel à bõa guerra que abraça, | 5590 |
quando num gesto de titubeio do imigo | |
derruba pelo chão lo que resta de Vilas. | |
Erguendo porém a espada ao golpe final, | |
João, ouvindo o brado exausto dum velho | |
divisa no corpo de Vilas verdade: A destra | 5595 |
outrora dissociada feria os sous olhos | |
como o fio da espada. Em triste vertigem | |
João generoso e tomado de angústia recua. | |
O godo contudo crendo a morte iminentem | |
tira do chão la primeira adaga que atende | 5600 |
280
e de súbito fere em desespero por vida | |
a mão et as faces do general, que no susto | |
tombou, enquanto Vilas erguendo-se presto | |
tomou da sua lança e com força enterrou-a, | |
profundo, na terra e por um triz de João, | 5605 |
roçando-lhe quase o crânio. Olharom-se ambos | |
num longo e desgracioso silêncio de morte, | |
que Vilas enfim interrompeu, rematando: | |
– Aí se vê, werreiro, a vida que engana, | |
assim se aprende o que a vida tói da gente. | 5610 |
O l’home vão comemora vitória e non sabe | |
e passa um vento e já lhe mostra a verdade. | |
Verdade a pessoa descobre com vida no chão, | |
ca o l’home de pé non reconhece a verdade | |
e verdade derriba e quem caiu testemunha. | 5615 |
Levanta-te desse chão, inimigo, levanta | |
e leva embora de mim tua vida, que vida | |
nulha è minha e não adentro uma guerra | |
buscando vida que nimigalha mi serve. – | |
Vilas estende ao outro a mão sinistra. | 5620 |
281
João, porém, ouvindo do chão penitente | |
reflete ainda e dedica: – Notei de começo, | |
inimigo, que a tua estirpe era rara e distinta. | |
Talvez por esto eo quis saber o que sês, | |
previ correto, a luta contigo è daquelas | 5625 |
que ensina a viver. Disseste mal uma coisa: | |
Caí ao chão que me enterra não por fugaz | |
amor e vislumbro de corriqueira vitória. | |
Caí porque perdi a moção de meu peito. | |
Perdi porque te vi sem mão que lutavas, | 5630 |
honroso a quem somente a vida covarde | |
derruba e vence. Mas no ataque entendi | |
la certeza que já supunha: O homem correto | |
em luta mesmo sem mão è gestor de vitoria. | |
Elo e mais por nosso encontro entendi, | 5635 |
agora eo quero saber a verdade da mão, | |
porque guerreiro da tua altitude non perde | |
por nada e quero que seja bõa a razão. | |
Aclara um pouco esta confusão e revela | |
o l’home que desonrou tão feio tou braço | 5640 |
282
e diz o nome, pois eo hei de buscar, | |
eo não me canso até vingar tuam vida! – | |
Mas Vilas contendo os olhos e os membros | |
opõe a João: – Eo er percebo, inimigo, | |
quão distinta grei por aqui representas, | 5645 |
e foi sabendo da piedade que abraças | |
que vim olhar a profundez de tous ogos | |
e ouvir tua voz e dizer de nós a verdade: | |
Da luta nossa aprendi que uma ponte nos une, | |
um laço invisível maior que vitória de guerra. | 5650 |
O homem porém que arrebatou minha destra | |
foi lo que mi ensinou grandeza e corage | |
e fez o bom guerreiro que sejo e prossigo. | |
Meu filho e professor apagou lo seu erro | |
e não me vingues pois éste Deus a vingança. | 5655 |
A vida que agora levas a deves àquele | |
que tanto tem chorado um momento infeliz. | |
Vingança não, issaí nè mha guerra aquinão! | |
Non fosse a mão perdi, perdão que aprendi, | |
eo não me comportara perante tous olhos | 5660 |
283
como compete ao verdadeiro guerreiro. | |
A vida è isso o que é: Quando me vires | |
caído em campo e se novamente eo caíro | |
em tuas mãos, recorda a vida o que é. | |
Levanta já do chão, inimigo, levanta-te | 5665 |
e segue embora! – Mas João que se erguia | |
tomando a mão de Vilas assente responde: | |
– Viveste bem, disseste bem, uma ponte | |
passa entre nós, inquebrantável certeza: | |
Jamais ergueia contra ti, e nem permito | 5670 |
a meus amigos, a mão de guerra e de morte! – | |
E assim falando e misturando promessas | |
partirom, cada qual na incerteza do rumo, | |
olhando vez e vez para trás e querendo. | |
| |
| |
ξ’ | |
| |
O novo estrondo contudo interrompia o juízo | 5675 |
pois a guerra avançava cá e lá demandando. | |
Ó visões de transtornadas gentes parindo | |
morte e desassossego e tormentoso estupor! | |
Jazia desafiando o viço das flores a carne | |
pela terra, clamando em vão socorro caídos. | 5680 |
284
Ora que a seta dilacerava parcela do crânio | |
como entranhas, ora a multidão de estirados | |
ia buscando por entre pilhas pedaços e membros. | |
Os godos e os esgueirados pela beira gemiam | |
como o gado sem rumo e suplicando um pastor, | 5685 |
enquanto irados gládios dilapidavam-se mútuos, | |
homens atracados caçando sangue e desgraça. | |
Mas Procêncio, o dedo inabalado e sem pausa, | |
fere quejendos mira de morte e cala clamores, | |
vai mudando de posição polo monte e buscando | 5690 |
plus de cavalgantes ousados, em cujos peitos | |
abre um poço fundo e profundamente rubente. | |
Quanto mais a mão arrancava do tórax a ponta, | |
mais os contrafios da pua arrancavam do abismo | |
pele e carnem: Eram três os gumes metálicos, | 5695 |
um pela frente e dois traiçoeiros por trás. | |
O jovem ouvia João de Vitaliano que ovava: | |
– Ah, Procêncio, teu futuro está garantido, | |
tu serás em breve o máximo nome do Império! – | |
Mas o jovem supõe: – Dever humilde, senhor, | 5700 |
285
à mãe de minhas mães e ao general que me adota, | |
nada mais, porque de verdade tenho atè medo! – | |
Pero o mestre mílito impede: – Temor è certo | |
quando ensina amor à vida aspirante coragem. | |
Mas non temas não: O galardão que te atende | 5705 |
vinhe das mãos do Dono Gêntio! – Assim ensinava | |
mais detalhes de mira e tiro, mesclando Procêncio | |
pelos muitos gépidas ora àquele monte chegados: | |
Eram competentes arqueiros! O filho do eunuco | |
vendo o modo novoro tutores mais se apurava | 5710 |
e chus certeiras setas largava embora da corda. | |
Nada entretanto abalava e rem minava o guerreiro | |
godo que não demandara aquele campo de guerra | |
para fugir de inimigas armas ou al, pero antes | |
cair com honor. Ainda ajoelhados, quebravam | 5715 |
eles da própria mão a flecha, tirando de dentro | |
a ponta, peito e vísceras que afloravam afora. | |
Eles fechavam os olhos plangendo pelo seu povo | |
mais que por si, sofrendo e terminando calados. | |
Longe e de perto, abutres pelejavam a guerra | 5720 |
286
dentro da guerra: Dissecando o cor de cadáveres | |
frescos co bico, especial banquete o das tripas, | |
as aves dilaceram no afã da gana a si mesmas | |
como misturando o lor sangue à carni engolida. | |
Abutres ali se atacantes decepavam cabeças | 5725 |
uns aos outros: Mentre rolavam vertiginosas | |
inda mastigavam co bico a moela de entranhas | |
numa fome de morte já maior do que o mundo. | |
Quanto mais a batalha alimentava a rapina | |
como as horas, mais distante andava a vitória | 5730 |
d’ambas pártio ca’s partes ambas sorte arruinava. | |
Vendo tod’o estrago que ali flecheiros faziam | |
quase inalcançaturos no outeiro, Totila consulta | |
Vilas que impera muita cautela. Rigo pondera | |
risco maior, porquanto o sol ansiava esconder-se, | 5735 |
triste riso, dum dia astroso de astroso destino. | |
Triste o sol? Mas quem non via, estrela ultrajada, | |
quanta imensa dor embarcava nel erto dos homens, | |
nave pesada e naufragatura quiçá pelas ondas! | |
Cujo froia portanto em vendo tanto suplício | 5740 |
287
não se condói dum povo face a tal sacrifício? | |
Mal sabia o rei explicar, nos destinos da marcha, | |
como chegaram, andando que estavam perto de Roma, | |
neles abismos da l’Úmbria por onde agora lançavam. | |
Ora Totila na angústia dum desairoso suspiro | 5745 |
reza a Rigo: – Por Gus bondoso, traz o cavalo! | |
Quero avançar à linha de frente como mi cabe, | |
rei que sou, e encorajar o braço bravoro | |
lança e bandeira às mãos! – Mas Vilas e Rigo: | |
– Fica, rei, por caridade vivor e de mortos! | 5750 |
Pode não, non pode a pessoa expor suam vida | |
desse jeito quando è senhor! – Isto apelantes | |
ambos reprimindo a gota, Totila interrompe: | |
– Istu eo sei mas olha como o dies se apaga, | |
olha como vai cansano os nossos guerreiro. | 5755 |
Rei què rei non pó deixar sou povu assinão, | |
non pode, tem que chega o rei tajunto alitudo, | |
tu’depend’essa luta aqui, essa guerra è vencenda. | |
Venha o cavalo! – De pouco adiäntarom os rogos | |
e veio o cavalo. Totila montava o bicho apressado | 5760 |
288
mentre ao longe divisava o que enfim se passava. | |
Antes pero que o rei godoro desse as esporas | |
foi avistado pelo arqueiro: Procêncio mirou | |
atrás da linha Totila camuflado de guerra. | |
Pensando ver um mero soldado puxou intrigado | 5765 |
o quanto pôde a corda, a flecha mais afiada. | |
Totila tomava da lança quando veio de encontro a | |
seta lacerando-lhe o peito em rajada de sangue: | |
– Rei alvejado! – ecoa o brado e Totila atingido | |
cai, amparado pelos braços de Rigo e de Vilas: | 5770 |
– Fui ferido, amigos, Deus esteja a meu lado! | |
É ferida séria? Luta! Non pode parar! – E falando | |
mal continha a dor nas distorções de seu rosto. | |
Nisto porém Ruderico irrompe agitado buscando | |
Vilas e derramando uma forte afluência por terram: | 5775 |
– Pois eo vi quem deu, meu pai, esse tiro covarde! | |
Pois eo vou, meu pai, vingar Totila e meu povo! – | |
Antes de ouvi-los tantos apelos de Vilas, dizente | |
’guerra non ganha com ódio, tem que ter paciência’, | |
ele partiu, que não julgou correto um valente | 5780 |
289
vê-lo desaforo que vira e leixar que passasse. | |
Pois Ruderico marchou, com lança firme no braço | |
e passo firme atravessando a linha de frente. | |
Não se importou desafiando audaz o destino | |
pois o peito dum rei generoso fora ultrajado. | 5785 |
Ele marchou, e demandando l’outeiro de arqueiros | |
viu fugi-los atentos: Sabiam que ali penetrava | |
bom lanceiro e certo o maior do exército godo. | |
Porém Procêncio desatento mirava adiante | |
quando o grito de Ruderico irou retumbante: | 5790 |
– Não atires de novo pelas costas dum bravo, | |
verme, a flecha infame e vem lutar feito homem! – | |
Mas Procêncio no sobressalto dum gesto agitado, | |
ato contínuo volta-se a Ruderico e lhe aponta | |
contra a cabeça a seta que preparava na corda: | 5795 |
– Sou guerreiro bravo e pela frente eo atiro | |
como atiro, atrevido, contra ti se quiseres! – | |
Que assim diziam lançarom destemudos olhares, | |
pois tomando impávido cada qual de petrechos | |
ambos correrom rumo ao irrevogável combate: | 5800 |
290
Mas foi breve a contenda ca Ruderico arremessa, | |
como se fosse flecha, todo o peso da lança | |
contra o corpo vulnerável do filho de Narses. | |
Quando entretanto a lança dilacera Procêncio, | |
jogando fora o seu corpo e cravando na terra | 5805 |
um juvenil cadáver – da corda avança uma seta | |
e míssil que penetrando Ruderico no crânio | |
derriba o filho de Vilas em violenta agonia. | |
Procêncio caído já perdera os seus movimentos | |
pelo derradeiro reflexo – l’outro guerreiro | 5810 |
lembra porém lo seu dever et amor de seu povo: | |
Ergueu-se e como em desastroso milagre marchou | |
lo monte abaixo para expirar nos braços dum pai. | |
Contudo um corpo cambaleado recede e se nega: | |
Ele lança um grito inaudito e no meio da luta | 5815 |
finda o passo; e as armas ressoam em torno de si. | |
Em torno de si, por dentro e por cima essa guerra | |
passa, pisa, deforma, enterra o que jaz duma vida. | |
Mas também Procêncio beirando as portas da morte | |
ainda um momento recorda a pobre mãe que leixava. | 5820 |
Que destino infeliz e vergonha à vida de Narses | |
como guerreiros de quem a sua sombra abeirou-se! | |
Ora entendia, e como não, que um pequeno ladrão | |
furtante galinhas non cabe numa guerra bravoro: | |
cai por terra; e as armas ressoam em torno de si. | 5825 |
Por quê, se a verdade
è bõa que luz, destino
quis o fim de todos
dias? Certeza maior
è que, todos os dias,
da sombra da morte
estrela aurora nasceu.
ο’ | |
| |
Mas onde o paradeiro final de Totila? | |
Era verdadeira a notícia da flecha? | |
Caía a noite e lo desespero invadia | |
guerreiros, rumores circulando confusos | |
que o rei quiçá caíra, fugira, morrera. | 5830 |
Assim começou la debandada e gadrãos | |
querendo em vão resposta lançavam embora | |
escudo e clava. Ajoelhados e exaustos | |
batiam ao peito reconhecendo a verdade, | |
livrando angustiados clamores. Perdudos | 5835 |
por entre cadáveres divisavam no escuro | |
escado talvez de amigos, imigos quiçá. | |
Mas aonde fugir e por quê, e como agir, | |
de que modo viver? Desordenados lanceiros | |
corriam rumo à sombra abismal dum bosque | 5840 |
292
caçando a própria vida por entre buracos, | |
o pranto como o medo guiando na treva. | |
As tropas de Narses, embebudas del ódio, | |
buscavam indassim desarmados seguindo | |
o passo e perseguindo àflição de caídos. | 5845 |
Ó destino espedaçador de esperanças, | |
quanta vegada o bom guerreiro aturdido | |
lançou-se aos pés de vencedores irados | |
rogando clemência? Quanta vez vencedores | |
erguendo a spada decapitarom rendudos | 5850 |
ajoelhados e mendigando e plangentes: | |
– Me mata não, seu filha da puta! Deixa | |
nós viver, respeita quem se rendeu. – | |
De pouco adiäntaro os apelos de Narses: | |
A caça a fugitivos agora era o novo | 5855 |
lazer dos atrozes. Cá e lá combatiam | |
ainda isolados godos, talvez dessabendo | |
uma triste verdade os condenandos heróis. | |
Alguns unidos resgatavam-se em grupos | |
de dous ou três buscando abrigo na sorte. | 5860 |
293
Pobre a vida em fuga porém que caísse | |
nas mãos de caçadores vis de caídos. | |
Feitores da treva e da violenta falange, | |
os hunos e os bizantinos matarom a esmo. | |
Passavam lombardos incendiando aldeias | 5865 |
de perto e trucidando o quanto avistassem. | |
Assim perecerom juntos romanos e godos, | |
crianças, mulheres, inocentes pastores. | |
Quão diferente Tótila teve essa terra! | |
Mas os godos corriam, comprehendendo | 5870 |
a cada passo que aquela batalha pusera | |
fim ao seu direito de esser uma gente. | |
A liberdade, a flor do futuro extirpanda | |
jazia sangrante, arrebatada a bandeira. | |
Clamarom! Amargamente choraro o desfecho | 5875 |
da sua abortada esperança, recém-nascida, | |
num reino de amor e Deus e paz duratura | |
a ver um povo gozar dum bondoso banquete. | |
Mas Narses, angustiado na lenta certeza, | |
ainda atende a palavra final de peritos | 5880 |
294
vinta a resistência nos últimos focos. | |
Qual non foi enfim la surpresa do eunuco | |
quando se houverom aproximado da tenda | |
dois legados vindo de opostas veredas: | |
Um lhe depôs ao braço esquerdo a bandeira | 5885 |
em trapos do rei Totila atestando a vitória; | |
mas l’outro impôs ao destro um corpo ensan- | |
guentado, Procêncio testemunhando a verdade. | |
Narses – lançando pelo chão a bandeira, | |
Narses num grito ensurdecedor desmorona | 5890 |
perante aquele cadáver qual se vivesse. | |
Ele para, ele cala, ele clama, ele fala: | |
– Mas que grosseira encenação, que mentira, | |
Procêncio vive, cadê Procêncio, guerreiros? | |
Non pode meu filho morrer, morrer nõ existe, | 5895 |
Procêns è vitória, vai chamar que ele vive! | |
Procêns è isto o que resta? Acorda, acorda! | |
Ah, João, essa vida jamais me enganou: | |
Destino quando odeia a vida um homem | |
termina assim, non tem vitória que ganhe. | 5900 |
295
Não, João, que triste ilusão de meu peito | |
pensar que o meu amor salvaria uma vida. | |
Eo sempre soube o fim do que fosse alegria | |
desde que vislumbrei a sombra do mundo. | |
Mas por que, de todo mundo, Procêncio? | 5905 |
A vida tudo o que eo amo ela tira de mim, | |
meu coração è como ele toque de Midas: | |
eo passo pelo mundo e as vidas me tocam | |
mas quando as toco alguam coisa mas toma. | |
O meu sentido è passar sem amor e sem riso, | 5910 |
porque, João, eo non tenho direito de ser | |
num mundo por onde nada jamais me sorriu. | |
Daí passou Procêncio, que vi, que pensei: | |
Procêncio non pode ser ladrão de galinha, | |
Procêncio merece amor de pai, que se educa | 5915 |
Procêncio vira gente e guerreiro decente. | |
Ah, João, que maldade esta vida inocente | |
cruzar meu caminho: amando Procêncio matei, | |
destino o matou por mim porque me alegrei. – | |
Passados soluços, um general sem vitória | 5920 |
296
prostrou-se caladamente ao lado dum corpo. | |
Mas mirando estrelas, tornando à verdade | |
e secando os olhos, a voz de Narses clamou | |
de novo e levantando-se chama um soldado | |
e desarmado desarmador de armadíssimos: | 5925 |
– U se encontra Paulo? Paulo, guerreiro | |
que bem te vejo, sai de perto de mim! | |
Destino arrasa quem se aflige por mim. | |
Ainda procuras, menino, o gesto correto | |
de guerra e gesto redentor da existência? | 5930 |
Ah, meu caro, eo conheço o fim dessa busca! | |
Toma aos ombros teus o meu filho Procêncio, | |
sê meu amigo! Vai devolvê-lo aos braços | |
da mãe, de quem num movimento infeliz | |
sequestrei, selando a desventura de três | 5935 |
desafortunados! Cruza por mim a distância | |
por terra ou mar e tem coragem, prossegue | |
ata lo fim da jornada! Procuras ainda, | |
Paulo, o gesto excelso? – Paulo escudeiro | |
inesitante assente e tomando Procêncio | 5940 |
297
monta o primeiro equino que lá se mostrava, | |
cônscio que foi de inquebrantável dever. | |
Mas Narses, retirando do peito um anel, | |
dourada e valiosa prenda que entrega | |
ao bom guerreiro, roga: – Pois chegares | 5945 |
entrega àquela mãe meu tesouro singelo. | |
Ela que venda e com fé em Deus encontre | |
algum abrigo por este mundo e seu pão. | |
Mas diz que descobriste no chão este anel | |
e não que vem das mãos dum eunuco odioso, | 5950 |
porque matei seu filho mais do que meu. | |
Reporta somente, Paulo, uma breve mensagem: | |
Procêncio caiu porque o destino invejou. | |
Não contudo como um ladrão de galinhas | |
Procêncio caiu: Procêncio caiu como homem, | 5955 |
como um guerreiro digno do nome de Roma | |
Procêncio caiu, porque Procêncio venceu. – | |
Assim partiu a cavalo um fiel escudeiro, | |
na madrugada um misto de treva e de luto. | |
Estava determinado a varar como um raio | 5960 |
298
e como um relampo em poucos dias tornar. | |
O eunuco entretanto segurava o seu pranto | |
buscando ainda notícia do fim de Totila. | |
| |
| |
π’ | |
| |
Pelas escuridões a cavalgada avançava, | |
Rigo perto, os escudeiros, | 5965 |
Totila retorto por dentro. | |
Iam varando a tempestade em galopes | |
e defendendo o rei de armadilhas. | |
Era possível remover, do fundo de entranhas, | |
a flecha? | 5970 |
Totila comprimia os gemidos, | |
a dor, o incêndio no peito, | |
quando mais um ataque irrompeu: | |
Lombardos perseguindo | |
vinham mirando as suas lanças. | 5975 |
Mas Rigo crendo ali desertores | |
reprime: – Alçais a spada contra Tótila, | |
cães, o vosso rei? – Alçarom, e atirando | |
cegos pelos ermos uma lança | |
acertou, assim o quis o destino, | 5980 |
299
uma adentrou, por acaso e pelas costas, o rei, | |
que lançava um novu golfo de sangue | |
boca afora, o galope cortando seu ventre. | |
Mas a busca dalgum retiro os impeliu | |
por horas pelos bosques e estradas. | 5985 |
Quando enfim Totila em seu tormento | |
lançou do cavalo um grito, | |
Rigo parou, o bicho parou, os escudeiros pararom | |
ouvindo: – Pode parar por aqui mesmo, | |
acabou meu fôlego. – | 5990 |
Rigo mandou buscarem água e desceu | |
lo rei do cavalo: Deitou-o | |
pela beira da estrada. Tótila | |
olhando muito além ponderava: | |
– Rasgou demais a ferida, | 5995 |
foi muita cavalgada, Rigo, essa vida. | |
Pode ir embora, | |
salva a tua vida, vai, pensa em mim não. | |
Deus non quer saber de godo não. – | |
Mas o amigo: – Fala assim não, Totila, | 6000 |
300
ferida cura e Gus protege inocente. | |
Daqui vai sair todo mundo vivo, | |
calma que a flecha sai. – O rei retruca: | |
– Né assinão, meu amigo, tem jeito não, | |
non cabe mais vida aquinão, | 6005 |
me destruírom, corage è ver a verdade. – | |
A mão que erguera caídos ora mal se levanta, | |
aponta para uma pedra e trêmula a voz o rei sorri: | |
– Toma aquela pedra e por piedade de amigo | |
apaga o meu nome da história. – | 6010 |
Mas um fiel escudeiro tomando aos braços o froia | |
falava e consolava que a chuva parou. | |
Um homem ferido, fechando seus olhos | |
perante o céu que se abria, | |
mirando muito longe sentiu: | 6015 |
– Hoje está bonita la estrela do norte. – | |
Totila morreu. | |
Rigo na inundação dos olhos viveu: | |
– Está bonita mesmo, | |
Rei, e peço a Deus que teu nome | 6020 |
301
fique guardado nela e marcado para sempre, | |
porque teu povo inteiro te amou, | |
godo que è godo sabe. – Depondo sobre | |
os restos do froia seu escudo que não se quebrara, | |
falando a sós e soluçando e gritando | 6025 |
Rigo correu, e nem se sabe por qual abismo | |
ou estrela Rigo passou. | |
Quando Narses ouviu do paradeiro final | |
pelas escuridões, mandou | |
buscarem uns fios de cabelo e pedaços | 6030 |
do vestuário real em sangue, | |
a prova da morte que desejava o l’Imperador. | |
Mas aproximou-se do eunuco uma certa mulher, | |
delicada e distinta, rogando baixo: | |
– Que bonita esta tua vitória, Narses, | 6035 |
como alçaste maior o nome dos Céus e do Império. | |
Estás contente? | |
Então revela, por caridade a quem migrou | |
de ermida em ermida, onde encontro | |
a paz que se acercou de Totila. Se posso pedir, | 6040 |
302
rogo non vilipendiar um despojo mortal. | |
Chamo covarde o guerreiro que vendo um cadáver | |
nega-lhe a paz, atormenta um jazer derradeiro. – | |
Narses defende: – Tem isso aquinão, Senhora, | |
non cabe esse gesto não na mha bandeira. – | 6045 |
Mas vendo Segisberto et altos legados, Narses | |
reconhece a princesa francor, que lamenta: | |
– Quando ouvi da batalha iminente, uni | |
meus home e vim propô-la paz e mediar, | |
que Deus quando chama a pessoa | 6050 |
tenhora que ouve, então quem ama insiste: | |
Mas olha o que me custa um dia de atraso, | |
Narses, Narses, que guerra foi esta? | |
Olha a Itália! Todo mundo era amigo! – | |
Narses, pai sem filho, revelou-lhe o jazigo | 6055 |
e Rodelinda partiu levando a lembrança, | |
olhando paisagens que um dia testemunharam | |
laços e as juras do amor que foi puro. | |
Ó tormentosa noite, | |
quantos olhos se erguerom pela treva | 6060 |
303
pedindo a salvação de Roma e consolo da Itália. | |
Quanta gente ali perdeu seu caminho: | |
O senador pensava que a guerra acabara, | |
que Roma estava livre, e pondo a família na estrada | |
rumo à cidade amada perdia a vida e família. | 6065 |
Pois os godos em fuga, ouvindo que o vencedor | |
assassinava rendidos, rasgarom pela estrada | |
a garganta dos inocentes | |
num misto de desespero pelos seus | |
e vingança. È devastante lembrar, mas a vida | 6070 |
è esta: quando Teia viu los filhos do patriciado | |
na escola que o rei erguera num die melhor, | |
mandou destruir – | |
e forom degoladas trezentas crianças. | |
Ô Senhor de longe, pede pro sol atrasar | 6075 |
seu nascer, non deixa ver a desgraça infinita | |
questa noite, inesquecível, lançou sobre nós: | |
Nada rëergue desta treva ruínas Italiae. | |
Ô Senhor de longe, salva as crianças ao menos! | |
O resto da multidão se arranja e se enterra: | 6080 |
Olha ali como vai passando um homem sem mão, | |
remexendo despojos pelo escombro, chorando, | |
chamando: – Ruderico, meu filho! – | |
Mas na madrugada o corpo non tinha rosto, | |
o rosto non tinha corpo: Senhor, o que è isto? | 6085 |
Caídos e misturados pelo destino | |
jaziam, calados, unidos, irmãos, inimigos, amigos. | |
|