Poemas de Guerra
© Gregorius Vatis Advena 2014, Record E 5, Engl. War Poems, december 2014, Hampshire, dactylic and short hexameters, five poems, 200-225 lines, epic poetry, Portuguese.
© Gregorius Vatis Advena 2014, Record E 5, Engl. War Poems, december 2014, Hampshire, dactylic and short hexameters, five poems, 200-225 lines, epic poetry, Portuguese.
O estado islâmico, o mal de Aral, o bombardeio de Dresden, o Rio de Janeiro e Trafalgar são retratados sucinta e fragmentariamente: Do heroico ao anti-heroico, o realista e o sonho, catarse e cinismo encontram-se na contemplação de cenas e casos fortuitos.
Imagem: Vista de Dresden após o bombardeio, 1945, Bundesarchiv, Bild 183-Z0309-310 / G. Beyer / CC-BY-SA 3.0.
Os Poemas de Guerra retratam a guerra como condição íntima do ser na angústia dum mundo irracional ou racionalizado arbitrariamente. O fogo, o conflito, a destruição exteriorizam tanto o animal indomável quanto o anjo perdido em sua luta por sentido, numa contenda invisível que arrasa e fortifica o homem.
Passacaglia em dó menor BWV 582, por Johann Sebastian Bach, performance de Peter van der Zwaag – Musopen CC BY NC ND 3.0.
O verso é hexamétrico longo ou breve – seis ou cinco tônicas separadas por uma ou duas átonas, ou por pausa. Em geral, o verso começa em tônica e termina em diérese bucólica – o ritmo tátata-táta. É datílico ao evocar o antigo dátilo no ritmo tátata. Todo verso possui ao menos um dátilo tonal. O dátilo classico, porém, era quantitativo.
O uso das formas épicas é tratado no ensaio Prosódia e Grafia. Nestes poemas, ocorre a forma átona do verbo ser: [é] em contexto tônico, [è] em contexto átono.
Já não passam Xerxes nem Ciro o deserto | |
nem o rei de Pasárgada. Corre somente | |
gente que o raio partiu – longe do éden. | |
Quando subiam inda ontem aos montes, | |
um descia, moroso, criança no braço: | 5 |
– Quer morrer, Assã? Estamos cercados! – | |
O velho, porém, mirando o seco abaixo: | |
– Olhe, rapaz, mataram a minha família. | |
Vou enterrar um filho caído na areia. | |
Levo meu neto, que vai embora comigo.– | 10 |
E não deixou lhe darem nenhuma resposta: | |
– O mundo fugiu e vida aqui não dura! – | |
Vou comentar em breves termos o caso | |
mas vale a pena, creio, dizê-lo logo: | |
Morreu degolado. Digo – ambos morreram, | 15 |
se o canto humanitário contar a criança. | |
Fica um pouco pedante, mesmo ao poeta, | |
nesses dias tão medíocres de mídia, | |
dar um verso ao velho drama de Pérsia | |
velho demais para a moda. Anda calada | 20 |
1
a voz das musas. Depois de tanto tempo | |
pega mal, parece, usar os órgãos do belo, | |
como dizem, às custas de vidas alheias, | |
dores prosaicas já narradas por telas e | |
outras fontes sérias – de fato modernas – | 25 |
mais verdadeiras que o verso. Dito isto, | |
fica ao leitor de saco cheio o conselho. | |
Mas depois do mal que lhe fez a existência | |
tenha a bondade, rogo, de ler um apêndice. | |
Bem pequeno. A quem parecer alongado | 30 |
repito o fim do relato: Morreu degolado. | |
O fato è corriqueiro e de pouco revelo, | |
mas uma coisa, convenhamos, comove: | |
Assã não teve muita sorte na vida. | |
Quero falar do seu caso sem efeito | 35 |
retórico – caso não apenas do velho, | |
meu também. Quando chegou a notícia, | |
veja, até me queimei babando meu chá: | |
a fundação, na mesopotâmica Pérsia, | |
digo, o renascer, num raio inequívoco, | 40 |
2
do reino de Hamurabi – algo que abala. | |
Entrevi naquele instante a presença | |
duma nova antiguidade, crescente. | |
Veio depois, efeito forçoso da causa, | |
em nota de rodapé (depois de subirem | 45 |
o monte, note-se bem, aqueles perdidos), | |
a referência à degola de Assã – e do neto. | |
A causa do novo estado antigo? Divina. | |
Não espanta, portanto, a ira dos justos | |
contra toda gente e crenças iníquas. | 50 |
Foi assim, se não se engana o cronista, | |
que Assã subiu ao monte levando a família. | |
Corrijo-me: Levou apenas o neto, ferido. | |
Deixou apenas os mortos. Sei que repito | |
o apenas. Mas existe uma certa ironia, | 55 |
vã, no segundo apenas. Ora – sentado | |
aqui no meu sofá humanista, custa-me | |
crer, confesso, que um ser humano corpo | |
possa estar ou ficar “apenas” morto. | |
Anos atrás, um certo incômodo ainda | 60 |
3
vinha à minha mente quando tentavam | |
dar à morte a qualidade de – apenas. | |
A foice parecia maior no meu mundo, | |
mas a minha escola è mundo distante, | |
algo que, hoje, fizera canto de musas. | 65 |
São valores tão antiquados, coitado | |
de mim e minhas enferrujadas virtudes | |
longe da morte de Assã – poeira de livros. | |
Não por acaso os meus amigos repetem | |
que sou, e creio, velho demais ao mundo. | 70 |
Mas velho ou jovem, uma coisa lhe digo: | |
Assã não quis saber de conversa, meu caro! | |
Pegou cajado, sapato e tudo o que tinha: | |
– Eu vou-me embora! – A gente via, pensando | |
que algum delírio abalara-lhe o viço. | 75 |
Foi descendo, descalço – o sol escaldante. | |
Quando o neto chorava, porque chorava | |
por vez ou outra, Assã batia o cajado: | |
– Venha, diabo! – mas era um modus dicendi, | |
exortação afetiva no tom do deserto. | 80 |
4
Lembrava ainda o outro. Já lhe dissera | |
que Assã tivera um outro neto? (Confuso | |
como estou, vou escrevendo, esquecendo, | |
como vêm a boca o verbo e lembrança.) | |
Morreu também – mas de morte diversa. | 85 |
Ora, quem, se jovem em tais abandonos | |
de chão, resiste à terna cor dum boneco? | |
Apareceu um desses na porta de casa, | |
e diga o bom leitor que mão, se meiga, | |
não se abaixa a levantá-lo da terra! | 90 |
Custa dizer, a quem ainda não saiba, | |
que aquele boneco era mina. E mina mata. | |
Mas isto è bobagem, detalhe. Vamos avante. | |
Vinha gente em vão, do topo e de baixo: | |
– Espere, Assã! Chegou notícia de rádio, | 95 |
vem chegando avião e comida e socorro. – | |
Ele, porém: – Deixe-me em paz! – e seguia. | |
Cabe aqui parêntese: Gente em deserto | |
crê dificilmente em promessa e cidades. | |
Ur e Babilônias e as águas do Tigre | 100 |
5
são de pouco emprego no reino do medo. | |
Isto, porque vizinhos. Agora pensemos | |
como tratam novas de além dos Eufrates. | |
Sejamos francos: Desmembrar um império | |
tem um preço. O buraco aberto deixado | 105 |
torna-se cova, muitas vezes a própria. | |
Mais amor a quem oprime que opressos | |
moveu governos humanistas da Europa | |
que, Deus do céu, mais dum século atrás, | |
redespertaram mesopotâmicas cóleras. | 110 |
Agora escute, leitor, aquele enfático | |
– venha, diabo! – e diga se afeto lhe falta! | |
Diabo chorou. Cobriu areia de angústia. | |
Mas veio. Obedeceu ao clamor avoengo. | |
Nome? Algum pudor me previne o dizê-lo. | 115 |
Chamemos esse jovem um filho da morte. | |
Ou melhor, a fim de evitar parábolas | |
algo dramáticas: Não me ocorre o nome. | |
Mas vou-lhe revelar um fato notável: | |
Quando a moribunda renca de velhas, | 120 |
6
subindo o monte, viu Assã desdenhando | |
co neto o medo, quis saber o destino, | |
razão daquela jornada rumo contrário: | |
– Pelo amor de Deus, Assã, subamos! – | |
Qual não foi espanto ouvir a resposta. | 125 |
Veja que estranho e curioso programa | |
surgiu, nas joviais ideias do ermita: | |
Assã cruzaria o deserto a pé co cojado | |
e tomaria o rumo das ilhas britânicas. | |
As velhas ouvindo riram. Era verdade? | 130 |
Mas Assã não lhes dava atenção e gritava: | |
– Abram caminho! – Os aviões demoravam, | |
a espera incomodava alguns, exaltados. | |
Calor altera os nervos, como se sabe | |
(tudo, ou quase tudo, explica a ciência), | 135 |
e fome e sede fazem milagres de vulto: | |
– Inda estão esperando avião de comida? – | |
era Assã que bradava a quem se lançava, | |
pois é preciso dizer ao leitor sossegado | |
que aquela pobre gente, no espasmo do páramo, | 140 |
7
tinha visões do – direi: inferno? – e lançava-se | |
ao chão, chorando ou tentando chorar uma gota. | |
Não por dor, a propósito – por sede somente. | |
Bebiam toda água que os olhos brotassem. | |
Em baixo tremulava a bandeira do estado – | 145 |
melhor: do novo estado, atrás da carreta. | |
Pneus deixavam marca e morte na areia. | |
Mas não tardou, ou não demais, a comida, | |
que vez e outra o céu mandava-lhe naves. | |
É preciso dizer que ao menos ingleses | 150 |
cumpriram tudo, como homens honrados | |
que são e sabemos, interessados apenas | |
na causa humana e na salvação das almas. | |
Ora, digam o quanto quiserem Diógenes, | |
resgataram da morte a montanha cercada! | 155 |
Ao menos alguns o fizeram. Outros soldados | |
abriam fogo ao sopé – contra Hamurabi, | |
dando esperança ao velho homem, ao neto. | |
Era verdade mesmo a vontade do prófugo: | |
cruzar o deserto rumo às ilhas britânicas. | 160 |
8
Dizia ao neto: – Olhe, quando chegarmos, | |
teremos pão e água e teto e camisa. – | |
Se tivesse esperado, talvez helicópteros | |
arrojados tivessem-no salvo da morte. | |
Mas e o medo? Algumas daquelas naves, | 165 |
meu caro, vieram bem abaixo: Caíram! | |
Ademais – quando as naves chegaram, | |
Assã se aproximava dos pés da montanha, | |
ante as lonas sujas dalguma carreta. | |
Pegaram-no, junto ao neto, pela manhã. | 170 |
O resto sabemos, o dies irae sumário. | |
Parece (assim o reza ainda o cronista) | |
que Assã se defendeu: – Filhos de Deus, | |
eu quero apenas ir e deixar-vos em paz. | |
Mal não fiz a ninguém! – Vale a pena | 175 |
seguir narrando? Quando ainda no cume, | |
um dos mortos dissera: – Deixe o menino | |
ao menos, Assã! Não basta querer morrer? | |
Tem de levar a criança junto? – Levou-a. | |
Nunca fora tão antevista uma morte, | 180 |
9
mas Assã contava com quase um século. | |
Avô com neto, débeis, era uma imagem | |
que comovesse talvez o carrasco otomano, | |
homem rude do tempo da longe infância. | |
Mas Hamurabi tinha um outro parâmetro. | 185 |
No seu dicionário, Assã e a triste gente | |
surgiam como adorando o mal e o diabo. | |
Era favor a Deus de fato a morte dum ímpio: | |
– Deixai meu neto vivo – o velho implorava, | |
– a minha vida tem não tem valia nenhuma, | 190 |
mas a dele, coitado – terei piedade: | |
Termino aqui. Estou demais ocupado | |
em casa. Veja, quase me queimo de novo | |
co chá de camomila, sentado à poltrona. | |
Que engraçado! Queria falar sobre os mortos | 195 |
mas acabei me lembrando de Assã – e do neto. | |
Culpa do chá, da poltrona. Velhas leituras | |
causam digressões na lembrança de Xerxes. | |
Melhor pensar que nada servem os mortos, | |
fechar o livro e – quanto ao chá lenitivo, | 200 |
deixar em água alguns minutos a mais. |
Poemas de Guerra |
Mandem calar ao Cariri de vida sedenta, | |
onde o gado cai pelo chão, o nome dos fortes | |
homens que, passeando rente a margens distantes, | |
decidiram: Joga fora esse mar! E jogaram. | |
Foi secando, coitado, secando embora e morrendo. | 5 |
Graças a Deus, partiu num paciente silêncio: | |
Teve a bondade, vejam, de abafar a própria agonia | |
sem chamar atenção de ninguém. Talvez um desejo | |
derradeiro as águas deixem. Apaguem dos mapas, | |
por compaixão, o nome velho do mar e deserto. | 10 |
Já não faz sentido qualquer azul cartográfico, | |
só lhe cabe um doloroso amarelo – um vazio. | |
Pede apenas que morra a sós, longe a memória. | |
Mas a criança não conhece as dores dum mapa. | |
Dizem que ali, na margem seca, brincava Bobur e | 15 |
construía castelos de areia junto aos amigos. | |
Eram fortalezas – resistentes às ondas | |
como às altas marés. Ao fim de algum esforço, | |
lá esperavam vir as vagas, cercando castelos: | |
Quais resistiriam? Fora imensa façanha o | 20 |
1
ver baixar marés e ver castelos intactos, | |
pouco dano. Aos engenheiros dava-se prêmios e | |
muita inveja rondava as vitoriosas proezas. | |
Um dos mais famosos, Bobur excedia em perícia. | |
Tinha uma técnica nova, prensando areia molhada | 25 |
quanto possível, dando gênese a massas compactas. | |
Certas vezes, o afã de construções hiperbólicas | |
quase causava inimizades. Bobur se lançava | |
contra rivais e vice-versa. Dessas batalhas | |
foi surgindo a mal chamada guerra dos bagos. | 30 |
Eram refregas diárias, e começaram aos poucos. | |
Diz a versão majoritária que o próprio Bobur, | |
fora de si, lançou bolotas fartas de areia | |
contra algum atrevido, dizendo: “Batata na cara!” | |
Como não? O punido lançara o pé num castelo e | 35 |
não ficou sem resposta tamanho gesto de guerra. | |
Cada qual tomou partido e formaram-se exércitos. | |
Ora, Bobur, nas palingenesias da glória, | |
fez-se o líder de jovens gravemente sedentos, | |
ávidos todos de corajosos feitos – heroicos. | 40 |
2
Hitler e Stalin eram incorporados com brio e | |
não deixavam em paz Napoleões e Alexandres. | |
Eram rudes. Batata na cara tirava do jogo. | |
Quem lograva pisar na fortaleza das hostes | |
sem que a batata, como diziam, voasse na cara, | 45 |
este vencia e recebia do time as insígnias. | |
Fato claro, Bobur era estrategista de classe e | |
tática boa. Pintava estranhos mapas na areia. | |
Dava ordens. Planejava ataques-relâmpago | |
dias antes, vários, confundindo estadistas. | 50 |
Reações de improviso pareciam treinadas. | |
Vale menção a resistência de Stalingrado, | |
como ficou chamada a mais ousada campanha: | |
Três flancos de ataque “nazistas”, frontais e | |
mais numerosos, batateados num quase-milagre. | 55 |
Pois cavaram trincheira funda frente ao castelo, | |
tabula rasa ao fator quantitativo. Falanges | |
laterais de flecheiros arremessavam de longe | |
bagos de peso vário. Houve graves feridas. | |
Como troféu, deixado para trás por soldados | 60 |
3
batendo em retirada, conquistaram os símbolos | |
nobres do mal-logrado invasor, e tomadas bandeiras | |
– vejam quanta audácia – trocavam águias guerreiras, | |
todas, por mal traçados abutres sustendo suásticas, | |
logo hasteados ao sol de abomináveis afrontas. | 65 |
Era somente a náusea de esplendorosas vitórias – | |
sabe Deus – que vez ou outra deixava entrever um | |
vazio abissal, e algum soldado-criança enxergava: | |
– Bobur, por quê que o mar está fugindo? Por medo? – | |
Tal resposta cabia somente a maiores oráculos: | 70 |
– Mãe, por quê vai indo embora o mar? – Mas calavam. | |
Já não mais impunham risco aos burgos as ondas | |
pois as altas marés rareavam. Perdiam o viço | |
bolas de areia, pois de pouco molhavam-se. | |
Cada dia, o rumo à beira do mar aumentava, | 75 |
novos centímetros iam dando à luz o deserto. | |
Suspeitou-se que o mar migrasse. Raro fenômeno | |
veio interpôr-se à guerra dos bagos. Algo tremendo | |
lá tomava lugar, e polêmicas tropas homéricas | |
converteram-se em largas expedições geológicas, | 80 |
4
repletas de oceanógrafos, doutos ad-hoc intrigados | |
migrando junto co mar. Migrando aonde do mundo? | |
Medo deviam chamar o mistério. Puseram Bobur | |
à frente da inusitada coorte e Bobur lhes rezava | |
ordens de busca e descobertas. Que se passou, | 85 |
diziam, aos grandes rios que o mar migrante bebia, | |
quem os roubou? A paciência dos homens minava-se. | |
Fossem ver, Bobur mandou, que agente inumano | |
trancara a foz do legendário rio de Alexandre, | |
esse que helenos chamaram Oxos. E foram sabê-lo. | 90 |
Mas Bobur, irritado e pouco crente em boatos, | |
decidiu correr em pessoa ao lugar, relatado | |
em cores mortas, onde o braço da baça corrente | |
vinha terminar em poeira, estanque no nada: | |
– Gente, o rio não quer correr? – o pântano-delta | 95 |
dava uma dor estranha no peito. Sabiam agora: | |
Não migrava o mar, morria. Porém estuários, | |
deltas, por que secavam? Vinham já de tão longe. | |
– Esse mar è grande demais e mar não se perde, | |
seca não! – Bobur assegurava e terrores calados. | 100 |
5
Todos os dias mandava alguém correr ao deserto | |
ladeando navios-fantasmas, colados à areia: | |
– Seca não! – Bobur repetia, menos verdade | |
séria que mantra, mesmo ordem. Como não seca? | |
Era hiato já no meio do mapa. Debalde em | 105 |
dias limpos ainda tentavam retinas mirar | |
no vago traço d’água. Nem uma fata morgana | |
tinha dó de tantos olhos. Faltava-lhes gota | |
como à boca peixe. Bobur deixava as coortes, | |
vindo vagar no meio do vácuo. Sentava-se ao solo | 110 |
onde outrora o mundo era mar e tomava de areia | |
nas mãos, deixando um vento seco levar as quimeras | |
no rumo do amargo. Era longe demais o que havia | |
inda de água, nem valesse a pena buscá-lo, | |
tão azeda a terra cruzanda. Plantaram em vão, | 115 |
que nem a grama crescia. A velha guerra dos bagos | |
dera lugar a batalhas contra um forte invisível. | |
Quando a mãe de Bobur falou, pediu-lhe somente | |
não olhar os pescadores – passasse direto. | |
Inda perambulavam incrédulas hordes ao Oxos, | 120 |
6
indo ver que de fato um rio se cansara de ser. | |
Mas crianças não se cansam. Mudaram o jogo e | |
novas guerras, corrosivas batatas surgiram. | |
Isto porque, num belo dia, Bobur conseguira | |
quase reinventar algumas bolas de areia. | 125 |
Como? Fechava bem as mãos a que nada caísse e | |
vindo perto das hostes, lançava bolas ao alto. | |
Estas porém se desfaziam no ar, espalhavam-se | |
como as tempestades. Foi sucesso instantâneo. | |
Tropas temíveis ressurgiam. A guerra dos bagos | 130 |
intensificara-se. Quando a bolota alcançava | |
corpo alheio, não se restringia à batida, | |
antes espalhava silício por todos redores, | |
pela pele e pelas roupas. Fizeram-se múmias | |
vivas, fantasmagóricas, impressionante atavismo. | 135 |
Passavam como diros monstros cobertos de tempo, | |
grãos que outrora o mar cobria. Lutavam combates | |
pelos vãos ou dentro de enferrujadas carcaças, | |
navios descalços – peças de relevância estratégica, | |
pois as tempestades de terra tornaram-se várias e | 140 |
7
velhos navios formavam escudos. Os fortes agora | |
eram as naves abandonadas. Bobur e oponentes | |
cruzavam o vasto na busca de glórias militares. | |
Pouco atinavam nessas horas coa perda das ondas. | |
Era superstição o dizer que daquelas poeiras | 145 |
vinham males, que não se devia respirá-las. | |
Muito mais importavam à juventude valente | |
grandes gestos. Nenhum herói sabia direito | |
quão distante estava o moribundo dos olhos. | |
Fora tabu perguntar – temor da seca verdade. | 150 |
Tão somente seguiam na imitação de contendas, | |
não se sabe bem se Segunda Guerra ou Primeira. | |
Nada disso importa aos que ficam. Nem aos que deixam. | |
Para os que morrem, toda guerra è guerra primeira. | |
Sem segunda. Vejamos primeiro, porém, a derrota | 155 |
do mar, e depois a dos homens. O mar se perdeu. | |
Escondam à gente do Cariri a verdade de Aral: | |
Era demais irrelevante aquele mar destruído, | |
era um inútil, era um lago de Genesaré – | |
a gente a carecer daquelas águas estanques | 160 |
8
eram só pescadores, e mais ninguém se importava. | |
Joga fora esse mar de quem ninguém precisou! | |
Talvez crianças carentes se lhe usassem de amor, | |
mas as crianças do Cariri nem ouviram falar – | |
espero – duma terra tão longínqua tão perto. | 165 |
Certos pais fariam como o pai de Bobur, que | |
certa vez tomou-lhe do braço, quando o menino | |
fitava o deserto: – Feche os olhos, filho, feche, | |
isto è feio demais. Ali não volte a brincar. – | |
Digam porém aos estadistas que não se incomodem, | 170 |
pois o mar malquisto è calado. Pouco lhe falta e | |
morre de todo. Talvez um poeta menor o relembre, | |
mas o seu pranto será decerto em português, e | |
português è língua que não se lê, que se joga | |
fora como jogam o mar – assim se combinam | 175 |
o mar e o grito no vácuo, no vão hiato dos mapas. | |
Quanto à derrota dos homens, foi derrota clemente, | |
pois Bobur não chegou a ver a morte do lago. | |
Quando veio a famigerada tosse, entenderam: | |
Fora a constante exposição a grãos de poeiras | 180 |
9
altamente tóxicos, filhos dos agro-resíduos e | |
doutras misturas. Fizeram parar o curso do Oxos. | |
Culpa minha, como não? O algodão do pullover | |
rubro que visto vem dalguma lavoura do mundo. | |
Jogaram fora o mar em nome do fino algodão | 185 |
e agora o rio irriga imensos tratos de terra; | |
jogaram fora Bobur e muitos outros pequenos. | |
Felizmente, ninguém precisou de Bobur e pequenas | |
vidas irrelevantes como a vida que pesca. | |
Quando o mundo era feito para glória de guerras, | 190 |
César mandava às armas milhões de em-vãos a morrer | |
o fim de heróis, deixando em paz em casa o patrício. | |
Hoje, que já não facilmente se livra da massa, | |
a morte grátis da plebe è demográfica bênção, | |
alívio ao Senado. Joga fora Bobur e o seu mar! | 195 |
Mas mandem calar aos Cariris o destino de Abel, | |
a fim de que menos chorem a fealdade das horas | |
nem tencionem irrigar o vasto coas lágrimas – | |
pois um grande mar perdido nem choro devolve, | |
nem o São Francisco, o rio dos mortos, transposto. | 200 |
Poemas de Guerra |
Cabe nalgum porão a ruína dos séculos? | |
Soavam sirenes e ouvia-se angústia no coro: | |
– Ave Maria, cheia de graça – exclamavam, | |
– rogai por nós, pecadores. – Marta rezava | |
menos por si que pelos pais que guiara | 5 |
pela escada às pressas, descendo ao abrigo: | |
ambos cegos. Trouxera num átimo roupa e | |
quanto valor cabia às mãos. Tremiam-se | |
forte as paredes, interrompendo a esperança | |
das preces: O mundo afora era flama somente. | 10 |
Duas mil toneladas de bombas, lançadas | |
abaixo, causavam tempestades de fogo | |
pelas ruas, e deu-se o tornado infernal. | |
Um calor de mil e quinhentos graus devorava | |
as casas e os corpos, sufocadas as almas. | 15 |
Quando a fumaça subiu as paredes, de pedras | |
quase ferventes, e a fé perdeu-se no pânico, | |
cada qual correndo e buscando um socorro, | |
Marta via aterrada a fraqueza dos pais: | |
Mal andavam, a vida questão de segundos. | 20 |
1
Os poucos que ousavam ir aos gritos à rua | |
eram de pronto carbonizados aos ossos | |
ou se deixavam cair num térmico choque, | |
mortos de asfixia. Era porém dos deixados | |
entre vida e morte a imagem pungente. | 25 |
Tropeçavam em corpos de velhos, crianças, | |
tateavam o escuro buscando parentes | |
encobertos na cinza. Chamavam amigos | |
em vão e as vozes mistas se entre-abafavam. | |
Dresden chegava ao fim. Aviões inimigos | 30 |
iam lançando os monumentos à terra. | |
Marta porém cuidava pouco de estátuas, | |
joias barrocas e construções imortais | |
da velha capital cultural por escombros, | |
antes migrava desesperada na massa, | 35 |
porão a porão, em fugas mal-ordenadas. | |
Vez ou outra, surgiam poucos bombeiros, | |
guias mostrando longe o rumo de escadas, | |
cantos talvez seguros onde os cansados | |
aglomeravam-se. Deixavam toda bagagem | 40 |
2
para trás, e pertences que atrapalhavam | |
os passos alheios eram tomados à força. | |
Assim se perdeu o recém-nascido na cesta, | |
confundido na rapidez das angústias | |
com mero brinco, e tristes mães desmaiavam | 45 |
vendo paredes soterrando um pequeno, | |
perdido pela poeira em berros inúteis. | |
Eram impedidas por mãos socorristas, | |
e quem ousasse retorno a porões torrados | |
para salvar o mundo nunca voltava, | 50 |
e quem ousasse sair afora coa cesta | |
logo tropeçava em escombros, perdia | |
de mãos o filho ao turbilhão do tornado. | |
Foi na madrugada, no meio do incêndio, | |
depois de poucas horas, que mais uma vez | 55 |
soaram sirenes. Foram poucos que ouviram, | |
já que poucas foram poupadas das bombas | |
horas antes. As explosões irromperam | |
quase repentinas, lançando ao chão | |
refugiados desprevenidos, soldados, | 60 |
3
enfermeiros mergulhados no abismo | |
donde tentavam resgatar os feridos. | |
– Ave Maria, cheia de graça – soava | |
pelos porões lotados, no meio de gritos, | |
o desespero completando as palavras | 65 |
que a confusão dos mil soluços tragava: | |
– Rogai por nós, pecadores. – Marta lembrava | |
em vão a voz de Adolf Hitler nas rádios: | |
– Não vos iludais, alemães, de esperança, | |
nenhuma cidade está isenta de ataque. – | 70 |
Eram conclamados à guerra total | |
até a morte heroica do último homem. | |
Marta porém guiava os pais por escombros | |
buscando menos vitória que a vida salva. | |
Mas o teto a cair interpôs-se ao caminho | 75 |
dos fugitivos. Restava somente um buraco | |
para a rua, ou para a morte iminente. | |
Marta mirava aquela magra abertura | |
e a multidão sem rumo e gemia escondida: | |
Que milagre do mundo, pensava aturdida, | 80 |
4
pode salvar esta gente inteira da morte? | |
Quem não via a temperatura aumentando, | |
quase insuportável, e os tóxicos fumos? | |
Não restava mais uma sombra de dúvida: | |
Ninguém teria a compaixão de deixar | 85 |
os dois idosos passar por aquele buraco. | |
Custava tempo demais e já se pisavam | |
alguns, desordenadamente, sem ar. | |
Mas percebendo a pouca ordem que havia, | |
foram eles, os pais de Marta que agiram: | 90 |
– Minha filha, corre e toma o teu rumo, | |
sai daqui, que nos veremos depois. – | |
Ela, porém, tomou-lhes ambos do braço: | |
– Ficarei, meu pai, sairemos juntos! – | |
– Marta! Não destruas a nossa esperança. | 95 |
A vida nossa já não presta de nada, | |
salva a tua e nossa morte è feliz! – | |
E foram indo embora, por entre fumaça, | |
bengala às mãos e tateando paredes: | |
– Filha, vai-te já! Sairemos ilesos, | 100 |
5
não te aflijas. Cristo è compaixão! – | |
Marta saiu, ajudada de anônimas mãos, | |
à beira da rua. Que visão, que cenário, | |
que ruína indescritível do inferno! | |
Onde os olhos pousavam, eram pedaços | 105 |
de pernas, braços, reduzidos cadáveres, | |
crianças torradas segurando bonecos. | |
Das casas restava tão somente a fachada, | |
fogo dentro e fora dos prédios, janelas | |
ilusórias, temíveis. Inda moviam-se | 110 |
ônibus, dentro todos mortos, em flamas, | |
grei de refugiados vindo do campo, | |
cidades longe por onde as tropas hostis | |
deixavam morte. Morriam agora nos ônibus. | |
Marta não pensava, sentada à calçada, | 115 |
mãos à cabeça. O bombardeio cessara, | |
deixando atrás por vários dias incêncios: | |
– Marta! – bradou de longe voz conhecida – | |
Marta, menina, que alívio! Havia um cadáver, | |
logo ali, que me fez pensar que morreras! – | 120 |
6
Era idoso vizinho, mas Marta interpôs-se: | |
– Cala a boca, Lothar, eu vivo culpada! | |
Deixei meus pais morrer naquele porão! – | |
E recusava as mãos que o velho estendia, | |
gemendo e retorcendo o rosto e tremendo: | 125 |
– Lothar, eu quero só saber onde estão! – | |
Contou-lhe o caso desde a primeira sirene: | |
– Tinha um bolo de amora pronto no forno. | |
Era o aniversário amanhã do meu pai. | |
Inda brinquei a dizer que só amanhã | 130 |
podia comer o pedaço que já lhe cortara. | |
Foi um dia de festa e de tanta alegria. – | |
Mas o outro, escondendo os olhos: – Ergue-te! | |
Vamos embora que aqui morremos de vez! – | |
Marta deixou-se levar por algumas esquinas | 135 |
antes que oficiais e bombeiros de longe, | |
frente ao colapso geral, pedissem ajuda: | |
Era uma ordem. E separaram-se os rumos, | |
ele buscando os corpos, ela coas outras | |
limpando e retirando pedras de escombros, | 140 |
7
repassadas, mãos em mãos, por esquinas. | |
Quando Marta desmaiou de cansaço | |
e as bofetadas a retrouxeram ao mundo, | |
pôs-se a vagar. Vagou por horas inteiras | |
vindo a parar naquela mesma calçada. | 145 |
Era quarta-feira de cinzas em Dresden | |
e Dresden amanhecia em ruína de cinzas. | |
Tiras desabrigadas voltavam às casas | |
destruídas buscando pertences, parentes. | |
Desde a hora clara, Marta tentava | 150 |
abrir passagem rumo ao porão soterrado. | |
Pusera fixa à triste mente uma ideia: | |
Recolher os corpos dos pais de destroços, | |
vê-los por última vez, fechar-lhes os olhos. | |
Não descansaria – custasse-lhe a vida. | 155 |
Desdenhava o dizer de soldados peritos: | |
– Senhora, naquele prédio todos morreram, | |
nem restou seguro acesso ao porão. – | |
Marta levava à boca a mão, suspirava | |
perante o calor de flamas. Mal reparara | 160 |
8
os seus cabelos secos, torrados na noite. | |
Separava as pedras o mais que podia, | |
e pelo mesmo buraco entrevia, no escuro, | |
entre poeira, várias passagens estreitas. | |
Qual daquelas teria engolido os seus pais? | 165 |
Mas sabia que aquela rede era vasta. | |
Ora, os pais teriam podido perder-se | |
muito longe. Aflita, migrava de bairros | |
a bairros, junto a caravanas caladas. | |
Perguntava em vão a passantes, aos mortos | 170 |
descrevia os aspectos. De nada ajudava. | |
Ajoelhou-se perante a polícia, contrita: | |
– Pelo amor de Deus, eu quero encontrá-los! – | |
Perto um bombeiro ferido, levado na maca, | |
tendo ouvido-lhe o choro, disse-lhe o nome | 175 |
da praça, tão longe àqueles pés fatigados, | |
aonde em carros-de-mão carregavam os corpos. | |
Expostos ao público ou sobrepostos em tiras, | |
aguardavam os olhos de algum conhecido | |
ou quem lhes devolvesse o nome perdido. | 180 |
9
Marta abalou, com toda a força que tinha, | |
rumo à praça dos indigentes disformes. | |
Ouvia ainda a voz: – Salva-te, Marta, | |
pensa em ti, que sairemos ilesos! – | |
Mas tormento fora maior que a razão, | 185 |
e Marta andava, corria como uma louca. | |
Sabe Deus de que modo e milagre chegou. | |
Eram milhares que ali deitavam sem vida? | |
Não perdeu nem tempo de impressionar-se, | |
revirava os corpos. Perdia o juízo e | 190 |
recomeçava. Confundia-se em lágrimas, | |
ora caindo, ora lançando-se aos vários | |
novos carros-de-mão que chegavam pesados. | |
Muitos miravam chorando a cúpula-máter | |
da Catedral de Nossa Senhora, uma fonte | 195 |
seca de força e constância em meio à ruína. | |
Que mal meus pais fizeram ao mundo, pensava, | |
que mal o meu povo fez? Fizera-se o mal, | |
e ao meio-dia, para extrema surpresa, | |
mais uma vez as sirenes de rua soaram, | 200 |
10
mas poucos bairros vizinhos ouviram a rádio: | |
– Homens de Dresden, máximo alerta, atenção, | |
um novo imenso ataque virá sobre nós! – | |
Todo o centro de Dresden estava sem rádio. | |
Quando de novo as explosões irromperam, | 205 |
viram tarde os aviões de inimigos no céu | |
mostrando ao mundo que o mal se paga co mal. | |
Muita vitória de espírito cabe ao poeta | |
a memorar o que ali se passou de tormento. | |
Marta lançou-se ao chão, de corpo e de alma, | 210 |
no meio da rua – perdera amor pela vida. | |
Foi depois de pouco que o velho vizinho, | |
homem reto, cruzando grátis perigos, | |
veio buscá-la ao braço, lágrima aos olhos: | |
– Marta, teus pais sobreviveram o ataque! – | 215 |
Quem morreu foi Marta. E Lothar tornou | |
ao hospital, levando a nova aos vizinhos, | |
cegos e salvos do inferno, dizendo à filha: | |
– Cristo è compaixão! – E os pais desolados | |
dividindo com leitos sem nome o destino, | 220 |
erguiam calados o pensamento perdido: | |
– Rogai por nós, pecadores! – repetiam. | |
Mas a Catedral de Nossa Senhora, | |
que suportara o bombardeio em silêncio, | |
desabou por inteiro no meio de Dresden. | 225 |
Poemas de Guerra |
Quando a milícia quis tomar à força a favela, | |
Jorge correu temendo a morte pracima do morro. | |
Era bala pra todo lado e malandro correndo | |
com medo e com raiva. Parecia festa junina | |
tanta rajada cruzando o céu. Mas nego chorava, | 5 |
tinha corpo no chão. Passava gente na pressa, | |
parava e reconhecia morto amigo e parente. | |
Vinha mãe de família feito cantora de ópera, | |
filho baleado no braço. Rolava de tudo, | |
rapá, até vovó rolando no chão e berrando | 10 |
pelo marido, mortinho, dando tapa na cara – | |
tinha, não tinha o quê? Gritava, baixava demônio, | |
falava em língua. Culpa dele! Vai passear | |
na faixa de Gaza! Ali o buraco è mais embaixo: | |
Ouviu polícia chegando fica em casa e se cuida. | 15 |
Deu bobeira, mané perdeu e ficou na sargeta, | |
sinto muito. Nego não quer saber de conversa. | |
Foda è quem passa e leva a sério sas coisas, | |
tipo-caxias, playboy, careta. O cara baqueia: | |
Nunca viu, não tem experiência de vida. | 20 |
1
Jorge entrava numas também, mas era de boa. | |
Matatuva de vez em quando e voltava à real: | |
dar moral pra zona sul è parada de otário; | |
chega osomem, pá! na cara, e bola pafrente. | |
Tem que ser assim, tem que ter esperteza. | 25 |
Só que ali, naquele dia pegou de surpresa. | |
Ali foi feio, o pessoal ficou – chateado. | |
Vou contar sa parada: No meido tiroteio | |
apareceu João – e sabe Deus de que jeito – | |
fazendo manha, choramingando: – Toma cuidado, | 30 |
pai, senão te matam, vem padentro, te enconde! – | |
Criança a gente releva e João ficava nervoso, | |
tinha puxado a mãe e Jorge até que brincava: | |
– Moço sério, vai virar doutor desse jeito! – | |
Ia pra escola e professor comia a cabeça | 35 |
dele: – Traficante è criminoso, não brinca. | |
Gente boa tem que andar direito no mundo, | |
tem que respeitar polícia! – Como se osomem | |
fosse pôr comida na mesa de algum favelado. | |
Ali se alguma coisa foi pafrente, mermão, | 40 |
2
foi por ca-de Jorge. Se for falar de detalhe, | |
vão pensar que tá pagando pau – com certeza. | |
Mas com João a coisa andava bem diferente, | |
dava dó de Jorge só de ver. Na verdade, | |
foi melhor do jeito que terminou sa parada. | 45 |
No meido tiroteio, Jorge ficou preocupado: | |
tava complicado o negócio, mas o moleque | |
nunca dava trégua, ficava lá insistindo. | |
Tava com medo, a tropa tava cercando geral: | |
– Deixa disso, pai, te imploro, vamo padentro! – | 50 |
E foi assim: acabou de falar, caiu baleado. | |
Jorge? Gosto nem de falar no bagulho direito, | |
dá desgosto. Levou padentro o menino sangrando. | |
Morreu, fazer o quê? O cara ficou arrasado, | |
diz que João se jogou na frente tipo-escudo | 55 |
de salvação. Contava história, falava sem nexo. | |
Jorge sumiu depois do enterro. Ficava trancado. | |
Eu que tomei coragem de entrar na casa do cara – | |
parei na porta do quarto. Nisso, falava sozinho: | |
– Mataram meu filho, bicho, vou matar ’se maldito, | 60 |
3
tem desculpa aqui não que gente assim è covarde, | |
nem viver merece. – Entrei, tentei conversar: | |
– Jorge, mermão, queísso, bola pafrente, rapá!– | |
Fez de conta que nem me viu. Chorava de raiva, | |
só de noitão que saiu. Sentou no topo na laje | 65 |
tipo-olhando pracima, pro mar, parecendo maluco. | |
Chegava alguém pra conversar, mandava pabaixo. | |
Eu que pude ficar, depois de muita insistência, | |
lá na minha. Dá pra entender: João era a vida | |
de Jorge, tudo o que mundo tinha de puro pra ele. | 70 |
E dizia até que queria morrer, Deus que me livre, | |
nunca eu tinha visto Jorge falando besteira, | |
mas o estado do cara era esse. Digo a verdade: | |
Tinha um incêndio dentro de Jorge – coisa de louco, | |
dava pra ver estampado no rosto feito uma ruga, | 75 |
traço áspero. Era uma assombração ambulante: | |
quem não conhecesse, via e saía às-carreira. | |
Hoje, eu penso, até entendo. Sa vida difícil, | |
nego crescendo sem saber se basta a comida. | |
Jorge foi assim, destino ali foi carrasco – | 80 |
4
velha história: pai morreu, a mãe sem trabalho, | |
dava nem pra mandar pra escola. Passava era fome. | |
Dizia que o pai morreu baleado – Deus è que sabe. | |
Porra de escola, rapá, cultura de Jorge era droga, | |
acorda pra vida! Sem contar que depois de crescido, | 85 |
quando o cara cai na real, termina no tráfico. | |
Vai fazer o quê? Conheço um montão de gente | |
decente lá no morro. Chega a lugar nenhum. | |
Jorge guardava rancor demais. Na certa sentia | |
na própria pele o precisar de ajuda e milagre | 90 |
sem ninguém pra dar apoio. Certo è que Jorge | |
nunca acreditou em justiça. Nem na polícia. | |
E vendendo pó dava inveja a qualquer traficante. | |
Era mordaz. Vendendo a preço bom pra riquinho, | |
tipo-punia playboy viciado – bom que morresse | 95 |
tudo no vício! Dava gosto saber de overdose. | |
Dizia que nunca falta cliente nesse mercado, | |
tinha orgulho em contar pra nós história da boca, | |
que nem no primeiro dia de venda a festa que teve, | |
depois o rolo com dívida paga com bala na cara, | 100 |
5
nego implorando por vida e morrendo. Quando João | |
nasceu, mudou. Tinha mais atenção pelos outros. | |
Mas agora que tava morto, o negócio era sério. | |
Falo assim e quem escuta até que se assusta: | |
tipo-madame torcendo nariz e fazendo cu-doce, | 105 |
tipo-caxias metendo a boca no pobre, no crime, | |
como se fosse melhor que Jorge ladrão de gravata; | |
como se Jorge fosse monstro e político santo. | |
Tanto faz! Mas Jorge esperou madrugada passar | |
e passou de manhã no bar do Beto, irmão dasantiga: | 110 |
– Sangue bom, negócio è urgente, chama a gangue! – | |
Revólver na mão, Jorge expôs o plano qual era, | |
que tinha descoberto o chefe do esquema sangreto: | |
– É um tal de Duarte o vilão! – Falava com ódio | |
e de cara nego apoiou: – Tem que morrer ’se covarde, | 115 |
mete fogo, te vinga, mermão, já passa da hora! – | |
Todo mundo sabia que o velho Duarte era o cão, | |
matava a esmo. Era a hora daquele palhaço, | |
já não dava pra liberar, acabou piedade. | |
Só que Jorge incluiu: – Filho dele eu conheço | 120 |
6
a escola onde vai! – E nisso o pessoal se assustou: | |
– Queísso, Jorge? Aí perdeu a noção, na moral. | |
O filho do cara nada a ver, è outra pessoa. | |
Vamo conversar melhor, peraí! – Não teve conversa. | |
Jorge forjou na hora uma morte – cinco minutos. | 125 |
Mas a resposta foi longa e o rapaz se irritou: | |
Pela primeira vez, apontou revólver pra nós! | |
Só na paciência: – Beleza, Jorge, se acalma. | |
Vamo se ver depois e a gente acerta detalhe. – | |
Foi de noite que, mais tranquilo, na laje molhada, | 130 |
a galera tentou de novo falar verdade pra Jorge. | |
Ele entendeu. Teve uma hora que até parecia | |
concordar. Mas Jorge nada no mundo convence. | |
Quando botaram pressão no cara, disse na hora: | |
– Olhe, quem quiser sair, pegue sas coisas | 135 |
e saia. Eu que sei o que eu vou fazer, decidido!– | |
Horas depois, eu na laje ainda enxergava | |
meu amigo, de longe. Coitado, tava ferido, | |
rosto todo pro mar, olhar sem nenhuma esperança, | |
feito doido nas ondas, luar, bebendo tristeza. | 140 |
7
Era um náufrago. Conheço bem o que Jorge pensava: | |
– Eu, viver praquê no mundo? O mundo uma praga! | |
Quero sucumbir de vez, melhor que vida sem rumo, | |
tipo-intruso e sem amigo e fugindo dosomem. | |
Paz pra mim não tem, melhor morrer de verdade. | 145 |
Eu, me render? Ladrão que prende volta pior; | |
tanto ladrão por aí governando impune, quenada! | |
Cara, matarem meu filho, do nada, dá pra esquecer? – | |
Eu que sei. Não tava com ele na hora escutando, | |
mas sei, conhecia o jeito dele: – Nem a vingança, – | 150 |
pensava, – vai trazer de volta o meu filho, | |
nem o nervosismo meu, eu sei que não presta, | |
mas se nem vingaça eu posso ter, que me resta? | |
Guerra tem que ser! Duarte vai ter que pagar. | |
Ué? Se for verdade que um criminoso não vale | 155 |
nada pro mundo, deixa eu morrer de vez co rapaz, | |
vai fazer diferença nenhuma, dane-se o resto, | |
a vida minha è essa; nasceu fodido, se foda. – | |
Tava desnorteado, tipo-roído por dentro; | |
era o dilema, nem sabia o tamanho do peito: | 160 |
8
– Mato ou não? – Passou a noite mirando estrelas. | |
Eu, que não sou otário, liguei pro Beto avisando: | |
– Manda a galera, que Jorge vai fazer besteira, | |
negócio vai terminar mal! – Fomos seguindo | |
Jorge de carro. Chegando lá na porta da escola, | 165 |
entra-e-sai do diabo, vinham vindo as crianças. | |
Nisso, mermão, tudo se deu num piscar de olhos: | |
Jorge, detrás dum carro parado, saiu atirando. | |
Quando um moleque caiu ferido, a mãe se jogou: | |
– João, levanta! Socorro, gente. – O jovem responde: | 170 |
– Mãe, me deixa morrer não! – Saímo do carro: | |
– Porra è essa, Jorge, para com isso, maluco! – | |
Quando Jorge viu que aquele moleque era outro, | |
o cara pirou: – Puta, Beto, quem que eu matei? – | |
Teve tempo nem pra resposta, que nisso chegava | 175 |
viatura abrindo fogo e o combate foi duro, | |
luta toda a torto e sem regra, fogo sem trégua. | |
Olhe: Aquilo ali virou depósito de pólvora! | |
Virou crepúsculo aquela manhã de névoa vermelha. | |
Bala voava pra tudo què lado e gente morria, | 180 |
9
sangue correndo feito enxurrada pela calçada. | |
Era uma fumaça, rapá, que não se viu nesse mundo, | |
todo mundo com medo e correndo e couro comendo: | |
– Cara, eu sou um monstro! – Jorge dizia, ralado, | |
– que degraça queu fiz, deixei até de ser gente! – | 185 |
dava pra ver o frio do suor escorrendo no rosto | |
tipo-gota de morte, uma coisa pálida, estranha. | |
No desespero, a galera fugiu, entrando em bueiro, | |
buraco, qualquer lugar que visse. Jorge na pira | |
tava abrindo a porta do carro – quando caiu, | 190 |
desfeito em choro e sangue, mas sem ódio no grito. | |
Olhou pro céu, miserável, todo atingido de bala | |
estribuchando e pedindo perdão, alguma clemência | |
que homem nenhum podia lhe dar. Mas ele sabia, | |
naquele remorso agonizante, que a vida è essa. | 195 |
Todo mundo tentou avisar. Agora era tarde. | |
Vinha gente da rua com raiva, rindo de Jorge: | |
– Morre, infeliz, diabo te leve! – Mas Jorge caído | |
lembrou João. Tinha lhe prometido na angústia | |
que nunca mais mataria. Agora sofria, coitado, | 200 |
nós chorando em vão aquele amigo querido, | |
Jorge ferido de morte, gemendo feito cachorro. |
Poemas de Guerra |
Junto à tormenta anunciada de longe, | |
surgiam do fim do mar em crescente perigo | |
quarenta e um navios de linha, pujantes | |
trunfos da frota franco-espanhola. Houve | |
temor e comoção entre as naus de Britânia! | 5 |
Horácio Nelson, a bordo da barca Vitória, | |
mirando as largas formações coa luneta | |
a comando de trinta e três navios, ponderava | |
enquanto as hostes geravam a linha de guerra. | |
Chegada a hora final, no meio das brumas | 10 |
foi expedido o sinal de batalha: England | |
expects that every man will do his duty! | |
Nelson, porém, ouvindo os seus guerreiros, | |
antecipava o pungente suor que os movia, | |
fogo e frio, e muita angústia nos olhos. | 15 |
Era patente o que o brio dos bravos temia | |
quando murmuravam duns para os outros: | |
– Deus dos céus, eu nunca vi uma esquadra | |
tão numerosa! Aqui morremos, amigos, | |
chega ao fim a pátria. – Alguns incluíam: | 20 |
1
– Vês o tamanho daquele mastro à direita? | |
Olha os canhões! E temos menos navios! – | |
Era triste ouvir o que ali se passava: | |
– Deus è que sabe quem de nós sobrevive | |
o dia de hoje! – E manejando os petrechos | 25 |
e as armas os marinheiros tibubeavam: | |
– Ai, meu Deus, ajuda a nossa batalha! – | |
Mesmo os peritos iam perdendo a coragem: | |
– Pode dar lembrança a meu pai se eu morrer, | |
consola a minha família – todos sabiam | 30 |
(como não?) que daquela grave batalha | |
dependeria o futuro, o destino, a história. | |
Era a salvação de toda uma gente, | |
do rei e do povo. Era urgente a vitória, | |
a vida pesava como o mar em seus ombros. | 35 |
Quando a verdade retumbou pela esquadra: | |
que não seria em linha o forte combate, | |
mas que a frota dividindo-se em duas | |
como um relâmpago avançaria; no ataque | |
frontal quebraria no meio a linha inimiga, | 40 |
2
lutando lado a lado; e quando atinaram | |
o custo de vida e coragem de tanta audácia | |
contra uma esquadra ainda mais numerosa, | |
houve dúvida e desespero nas naves: | |
Trafalgar era a tumba do povo britânico, | 45 |
era o naufrágio certo da frota e da história. | |
Ora, Nelson, vendo o seu ânimo incerto, | |
como a trompeta conclamando ao prélio | |
fez ouvir ao Vitória: – Heróis deste mar, | |
de vós eu quero saber uma coisa somente: | 50 |
Por que motivo combateis a meu lado? | |
Lutais pelo mal, guerreiros, ou pelo bem? | |
Pois se alguém quiser lutar por um bem, | |
levante com muita força as armas da pátria, | |
mostre ao mundo a coragem da vida correta! | 55 |
Esses homens hostis e sedentos de império, | |
são conquistas vãs e visões que cobiçam! | |
Vão espalhando o seu terror pelas terras | |
e medo nos mares. Nós, contudo, sofremos | |
não pela causa de enganadores tiranos! | 60 |
3
Lutamos pelo bem que nos traz a virtude: | |
Nossa causa è de amor a todos, verdade | |
com Deus e respeito pelo cetro do justo. | |
Nós deste mar ergamos forte a bandeira | |
contra a ganância de unidos impostores! | 65 |
Não vos impressioneis com suas palavras, | |
a vida se vê no gesto: Clamam concórdia | |
porém dissipam o sangue dos inocentes. | |
Inscrevem o nome da liberdade na guilho- | |
tina que cai dissociando as cabeças. | 70 |
Heróis do oceano, está traçada a derrota | |
da nossa terra pela astúcia de França! | |
Basta um erro nosso e tudo se perde | |
entregue à baioneta que ofende serenos. | |
O rei nos conclama a combater e vencer! | 75 |
Pensai nas vossas mães que precisam de vós, | |
pensai nos vossos fracos porque são fracos | |
mas è força em Deus a fraqueza do justo! | |
Sejamos fortes, lutemos por esses pequenos | |
porque merecem a vida, a verdade, a vitória! – | 80 |
4
Os homens angustiados ali se abraçaram, | |
os olhos rubros, e mesmo quem nada tinha | |
de seu nesta vida batia forte no peito, | |
unidos pela esperança dum mundo melhor. | |
A voz de Nelson soou, erguendo das profun- | 85 |
dezas do mar o valor dos desanimados. | |
A voz de Nelson passou dum canto ao outro | |
da sua esquadra subindo ao céu que aguardava: | |
– Guerreiros! O mar conhece apenas duas | |
verdades: a morte e a vitória. O mar è caminho | 90 |
sem volta e como não volta è preciso remar: | |
Remai, lutai, navegai, a coragem è leme! | |
Uma coisa, heróis, eu vos digo e guardai | |
no lado esquerdo do peito: Morrer pelo bem | |
è melhor que salvar a vida e perder a verdade. | 95 |
Sabei viver porque a luta requer vossa vida, | |
mas se o nome da morte è vitória morramos! – | |
Os inimigos chegavam, mas Nelson seguia: | |
– Não, heróis do mar que nos mata e redime, | |
não temais a frota inimiga. Ali se congrega | 100 |
5
quem não sabe o que faz e navega sem rumo. | |
Não temais porque são eles que temem! | |
Eu vos prometo em nome de Deus e do povo: | |
Basta avançar e mostrar a coragem de sempre, | |
basta serdes quem sois e deixar a verdade | 105 |
calar a boca do medo, da morte e do mar! – | |
Soava já de longe o trovão dos canhões | |
enquanto a frota seguia avante em colunas. | |
Era preciso quebrar a linha inimiga, | |
portanto avançavam. E destemidos cercavam | 110 |
em grupo os primeiros navios desavisados, | |
suprehendendo, confundindo e rendendo. | |
De dentro a multidão de canhões disparava | |
seu fogo faminto, devorador e certeiro. | |
De fora os atiradores miravam na pressa | 115 |
a vida dos homens vis, buscando o peito. | |
Os sacrifícios da guerra o mar enterrava: | |
– Nelson, – avisa um companheiro de luta – | |
retira o manto militar do teu corpo | |
senão te reconhecem de longe e te matam! – | 120 |
6
Nelson responde: – O manto destas medalhas | |
traz a verdade da minha vida e não nego! – | |
Assim afligia quantos guerreiros o viam, | |
pois estava exposto. Quando um navio | |
dos inimigos se aproximou atacando, | 125 |
a luta deu-se corpo a corpo e sem regra. | |
As balas atravessavam as velas e os corpos, | |
comiam carne e madeira caçando os audazes | |
enquanto de longe uma tempestade avançava. | |
De cima do Redoutable, perto dum mastro, | 130 |
o soldado atirador que avista as medalhas | |
pergunta ao almirante da frota francesa: | |
– Nelson à mira! Permissão para o tiro? – | |
Pois atire, acerte, mate o inimigo! | |
Foi por acaso que viram Nelson caído, | 135 |
a mão ao peito e calado no meio da luta, | |
dizendo a seus homens: – Calma, guerreiros, | |
não temais porque são eles que temem! – | |
E pondo à frente do rosto suado um lenço | |
foi levado abaixo, deixando em seu rumo | 140 |
7
novas instruções de manejo e de luta. | |
Conteve como pôde o poder duma dor | |
maior do que a vida. Quando o médico veio, | |
Nelson somente tocou-lhe a mão revelando: | |
– É, meu amigo, chega ao fim uma vida. – | 145 |
E nada se pôde fazer: Fora atingido | |
atrás do ombro e perturbada a medula. | |
Quando o melhor guerreiro ali demandou, | |
levando a mão à boca, cobriu os olhos | |
perante um homem cercado de amigos, fiéis | 150 |
e tristes. Deitado ao chão em lenta agonia, | |
Nelson ouvia do amigo a voz soluçante: | |
– Como foi isto, Nelson? Começa a batalha | |
e já parece perdida a nossa esperança. | |
Quando souberem do triste fato que abraças, | 155 |
como se vence a batalha de Nelson sem Nelson? – | |
Ele, porém, resoluto, impôs-lhe silêncio: | |
– Não è de Nelson não a batalha, meu caro, | |
e não ofendas a luta de meus marinheiros! | |
Estes homens hão de cumprir seu dever | 160 |
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porque não é por mim que pelejam: Nelson | |
de nada vale, Nelson já pode morrer. | |
A vida que importa è vida que ainda tem | |
de viver: a minha está vivida e cumprida. | |
Não há nada mais a mostrar a meus homens, | 165 |
as armas estão em suas mãos, utilizem | |
como ensinei a constância mãe da vitória. | |
Andar por estas naves de nada me vale | |
pois o andar è supérfluo. Nós venceremos! | |
Eu morrerei, mas a morte que estou a morrer | 170 |
preenche a minha vida e completa o que sou. | |
Jamais se morreu por este mundo uma morte | |
tão feliz e tão orgulhosa, guerreiros: | |
As minhas últimas lágrimas são de alegria. | |
Os homens mal notarão a minha ausência | 175 |
porquanto a vida requer somente a vitória: | |
O nome da minha morte è maior do que a vida! – | |
No desespero das horas os homens choravam | |
e muita vez o navio tremulava por dentro, | |
enquanto fora o mar mesclava estandartes. | 180 |
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As naves de guerra, sem nenhuma ciência | |
da morte de Nelson, prosseguiam impávidas. | |
Eram rendidos navios de porte maior, | |
peritos eram vencidos e confundidos. | |
Os marinheiros quebraram a linha inimiga, | 185 |
a Grande Armada de Nelson ganhou a batalha. | |
Foi severa a lição que aprenderam França, | |
Espanha e tantos outros navios à deriva. | |
No mar revolto os heróis da vitória levaram | |
embora o troféu e a memória dum grande homem. | 190 |
Nelson não viu, todavia, o fio da contenda | |
quando as naus atormentadas renderam-se, | |
tantas horas passadas de fogo e de morte. | |
Fugiam da luta rumo à tormenta e naufrágio, | |
prestando ao mar o testemunho dos corpos | 195 |
no abismo e nas ondas. Nelson via somente | |
os amigos caros, entristecidos, deitados | |
juntos no chão imundo. Do limbo entregou | |
seu derradeiro sopro ao extremo mistério, | |
deixando atrás de si no suspiro imortal | 200 |
apenas rouca frase: – Deus e meu povo! – | |
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