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Poemas de Guerra

Eustácio de Sales



© Gregorius Vatis Advena 2014, Record E 5, Engl. War Poems, december 2014, Hampshire, dactylic and short hexameters, five poems, 200-225 lines, epic poetry, Portuguese.



Poemas de Guerra

Introdução


O estado islâmico, o mal de Aral, o bombardeio de Dresden, o Rio de Janeiro e Trafalgar são retratados sucinta e fragmentariamente: Do heroico ao anti-heroico, o realista e o sonho, catarse e cinismo encontram-se na contemplação de cenas e casos fortuitos.

Imagem: Vista de Dresden após o bombardeio, 1945, Bundesarchiv, Bild 183-Z0309-310 / G. Beyer / CC-BY-SA 3.0.

Os Poemas de Guerra retratam a guerra como condição íntima do ser na angústia dum mundo irracional ou racionalizado arbitrariamente. O fogo, o conflito, a destruição exteriorizam tanto o animal indomável quanto o anjo perdido em sua luta por sentido, numa contenda invisível que arrasa e fortifica o homem.


Passacaglia em dó menor BWV 582, por Johann Sebastian Bach, performance de Peter van der Zwaag – Musopen CC BY NC ND 3.0.


O verso é hexamétrico longo ou breve – seis ou cinco tônicas separadas por uma ou duas átonas, ou por pausa. Em geral, o verso começa em tônica e termina em diérese bucólica – o ritmo tátata-táta. É datílico ao evocar o antigo dátilo no ritmo tátata. Todo verso possui ao menos um dátilo tonal. O dátilo classico, porém, era quantitativo.

O uso das formas épicas é tratado no ensaio Prosódia e Grafia. Nestes poemas, ocorre a forma átona do verbo ser: [é] em contexto tônico, [è] em contexto átono.













I



Já não passam Xerxes nem Ciro o deserto
nem o rei de Pasárgada. Corre somente
gente que o raio partiu – longe do éden.
Quando subiam inda ontem aos montes,
um descia, moroso, criança no braço: 5
– Quer morrer, Assã? Estamos cercados! –
O velho, porém, mirando o seco abaixo:
– Olhe, rapaz, mataram a minha família.
Vou enterrar um filho caído na areia.
Levo meu neto, que vai embora comigo.– 10
E não deixou lhe darem nenhuma resposta:
– O mundo fugiu e vida aqui não dura! –
Vou comentar em breves termos o caso
mas vale a pena, creio, dizê-lo logo:
Morreu degolado. Digo – ambos morreram, 15
se o canto humanitário contar a criança.
Fica um pouco pedante, mesmo ao poeta,
nesses dias tão medíocres de mídia,
dar um verso ao velho drama de Pérsia
velho demais para a moda. Anda calada 20


1




a voz das musas. Depois de tanto tempo
pega mal, parece, usar os órgãos do belo,
como dizem, às custas de vidas alheias,
dores prosaicas já narradas por telas e
outras fontes sérias – de fato modernas – 25
mais verdadeiras que o verso. Dito isto,
fica ao leitor de saco cheio o conselho.
Mas depois do mal que lhe fez a existência
tenha a bondade, rogo, de ler um apêndice.
Bem pequeno. A quem parecer alongado 30
repito o fim do relato: Morreu degolado.
O fato è corriqueiro e de pouco revelo,
mas uma coisa, convenhamos, comove:
Assã não teve muita sorte na vida.
Quero falar do seu caso sem efeito 35
retórico – caso não apenas do velho,
meu também. Quando chegou a notícia,
veja, até me queimei babando meu chá:
a fundação, na mesopotâmica Pérsia,
digo, o renascer, num raio inequívoco, 40


2




do reino de Hamurabi – algo que abala.
Entrevi naquele instante a presença
duma nova antiguidade, crescente.
Veio depois, efeito forçoso da causa,
em nota de rodapé (depois de subirem 45
o monte, note-se bem, aqueles perdidos),
a referência à degola de Assã – e do neto.
A causa do novo estado antigo? Divina.
Não espanta, portanto, a ira dos justos
contra toda gente e crenças iníquas. 50
Foi assim, se não se engana o cronista,
que Assã subiu ao monte levando a família.
Corrijo-me: Levou apenas o neto, ferido.
Deixou apenas os mortos. Sei que repito
o apenas. Mas existe uma certa ironia, 55
vã, no segundo apenas. Ora – sentado
aqui no meu sofá humanista, custa-me
crer, confesso, que um ser humano corpo
possa estar ou ficar “apenas” morto.
Anos atrás, um certo incômodo ainda 60


3




vinha à minha mente quando tentavam
dar à morte a qualidade de – apenas.
A foice parecia maior no meu mundo,
mas a minha escola è mundo distante,
algo que, hoje, fizera canto de musas. 65
São valores tão antiquados, coitado
de mim e minhas enferrujadas virtudes
longe da morte de Assã – poeira de livros.
Não por acaso os meus amigos repetem
que sou, e creio, velho demais ao mundo. 70
Mas velho ou jovem, uma coisa lhe digo:
Assã não quis saber de conversa, meu caro!
Pegou cajado, sapato e tudo o que tinha:
– Eu vou-me embora! – A gente via, pensando
que algum delírio abalara-lhe o viço. 75
Foi descendo, descalço – o sol escaldante.
Quando o neto chorava, porque chorava
por vez ou outra, Assã batia o cajado:
– Venha, diabo! – mas era um modus dicendi,
exortação afetiva no tom do deserto. 80


4




Lembrava ainda o outro. Já lhe dissera
que Assã tivera um outro neto? (Confuso
como estou, vou escrevendo, esquecendo,
como vêm a boca o verbo e lembrança.)
Morreu também – mas de morte diversa. 85
Ora, quem, se jovem em tais abandonos
de chão, resiste à terna cor dum boneco?
Apareceu um desses na porta de casa,
e diga o bom leitor que mão, se meiga,
não se abaixa a levantá-lo da terra! 90
Custa dizer, a quem ainda não saiba,
que aquele boneco era mina. E mina mata.
Mas isto è bobagem, detalhe. Vamos avante.
Vinha gente em vão, do topo e de baixo:
– Espere, Assã! Chegou notícia de rádio, 95
vem chegando avião e comida e socorro. –
Ele, porém: – Deixe-me em paz! – e seguia.
Cabe aqui parêntese: Gente em deserto
crê dificilmente em promessa e cidades.
Ur e Babilônias e as águas do Tigre 100


5




são de pouco emprego no reino do medo.
Isto, porque vizinhos. Agora pensemos
como tratam novas de além dos Eufrates.
Sejamos francos: Desmembrar um império
tem um preço. O buraco aberto deixado 105
torna-se cova, muitas vezes a própria.
Mais amor a quem oprime que opressos
moveu governos humanistas da Europa
que, Deus do céu, mais dum século atrás,
redespertaram mesopotâmicas cóleras. 110
Agora escute, leitor, aquele enfático
– venha, diabo! – e diga se afeto lhe falta!
Diabo chorou. Cobriu areia de angústia.
Mas veio. Obedeceu ao clamor avoengo.
Nome? Algum pudor me previne o dizê-lo. 115
Chamemos esse jovem um filho da morte.
Ou melhor, a fim de evitar parábolas
algo dramáticas: Não me ocorre o nome.
Mas vou-lhe revelar um fato notável:
Quando a moribunda renca de velhas, 120


6




subindo o monte, viu Assã desdenhando
co neto o medo, quis saber o destino,
razão daquela jornada rumo contrário:
– Pelo amor de Deus, Assã, subamos! –
Qual não foi espanto ouvir a resposta. 125
Veja que estranho e curioso programa
surgiu, nas joviais ideias do ermita:
Assã cruzaria o deserto a pé co cojado
e tomaria o rumo das ilhas britânicas.
As velhas ouvindo riram. Era verdade? 130
Mas Assã não lhes dava atenção e gritava:
– Abram caminho! – Os aviões demoravam,
a espera incomodava alguns, exaltados.
Calor altera os nervos, como se sabe
(tudo, ou quase tudo, explica a ciência), 135
e fome e sede fazem milagres de vulto:
– Inda estão esperando avião de comida? –
era Assã que bradava a quem se lançava,
pois é preciso dizer ao leitor sossegado
que aquela pobre gente, no espasmo do páramo, 140


7




tinha visões do – direi: inferno? – e lançava-se
ao chão, chorando ou tentando chorar uma gota.
Não por dor, a propósito – por sede somente.
Bebiam toda água que os olhos brotassem.
Em baixo tremulava a bandeira do estado – 145
melhor: do novo estado, atrás da carreta.
Pneus deixavam marca e morte na areia.
Mas não tardou, ou não demais, a comida,
que vez e outra o céu mandava-lhe naves.
É preciso dizer que ao menos ingleses 150
cumpriram tudo, como homens honrados
que são e sabemos, interessados apenas
na causa humana e na salvação das almas.
Ora, digam o quanto quiserem Diógenes,
resgataram da morte a montanha cercada! 155
Ao menos alguns o fizeram. Outros soldados
abriam fogo ao sopé – contra Hamurabi,
dando esperança ao velho homem, ao neto.
Era verdade mesmo a vontade do prófugo:
cruzar o deserto rumo às ilhas britânicas. 160


8




Dizia ao neto: – Olhe, quando chegarmos,
teremos pão e água e teto e camisa. –
Se tivesse esperado, talvez helicópteros
arrojados tivessem-no salvo da morte.
Mas e o medo? Algumas daquelas naves, 165
meu caro, vieram bem abaixo: Caíram!
Ademais – quando as naves chegaram,
Assã se aproximava dos pés da montanha,
ante as lonas sujas dalguma carreta.
Pegaram-no, junto ao neto, pela manhã. 170
O resto sabemos, o dies irae sumário.
Parece (assim o reza ainda o cronista)
que Assã se defendeu: – Filhos de Deus,
eu quero apenas ir e deixar-vos em paz.
Mal não fiz a ninguém! – Vale a pena 175
seguir narrando? Quando ainda no cume,
um dos mortos dissera: – Deixe o menino
ao menos, Assã! Não basta querer morrer?
Tem de levar a criança junto? – Levou-a.
Nunca fora tão antevista uma morte, 180


9




mas Assã contava com quase um século.
Avô com neto, débeis, era uma imagem
que comovesse talvez o carrasco otomano,
homem rude do tempo da longe infância.
Mas Hamurabi tinha um outro parâmetro. 185
No seu dicionário, Assã e a triste gente
surgiam como adorando o mal e o diabo.
Era favor a Deus de fato a morte dum ímpio:
– Deixai meu neto vivo – o velho implorava,
– a minha vida tem não tem valia nenhuma, 190
mas a dele, coitado – terei piedade:
Termino aqui. Estou demais ocupado
em casa. Veja, quase me queimo de novo
co chá de camomila, sentado à poltrona.
Que engraçado! Queria falar sobre os mortos 195
mas acabei me lembrando de Assã – e do neto.
Culpa do chá, da poltrona. Velhas leituras
causam digressões na lembrança de Xerxes.
Melhor pensar que nada servem os mortos,
fechar o livro e – quanto ao chá lenitivo, 200
deixar em água alguns minutos a mais.


Poemas de Guerra






II



Mandem calar ao Cariri de vida sedenta,
onde o gado cai pelo chão, o nome dos fortes
homens que, passeando rente a margens distantes,
decidiram: Joga fora esse mar! E jogaram.
Foi secando, coitado, secando embora e morrendo. 5
Graças a Deus, partiu num paciente silêncio:
Teve a bondade, vejam, de abafar a própria agonia
sem chamar atenção de ninguém. Talvez um desejo
derradeiro as águas deixem. Apaguem dos mapas,
por compaixão, o nome velho do mar e deserto. 10
Já não faz sentido qualquer azul cartográfico,
só lhe cabe um doloroso amarelo – um vazio.
Pede apenas que morra a sós, longe a memória.
Mas a criança não conhece as dores dum mapa.
Dizem que ali, na margem seca, brincava Bobur e 15
construía castelos de areia junto aos amigos.
Eram fortalezas – resistentes às ondas
como às altas marés. Ao fim de algum esforço,
lá esperavam vir as vagas, cercando castelos:
Quais resistiriam? Fora imensa façanha o 20


1




ver baixar marés e ver castelos intactos,
pouco dano. Aos engenheiros dava-se prêmios e
muita inveja rondava as vitoriosas proezas.
Um dos mais famosos, Bobur excedia em perícia.
Tinha uma técnica nova, prensando areia molhada 25
quanto possível, dando gênese a massas compactas.
Certas vezes, o afã de construções hiperbólicas
quase causava inimizades. Bobur se lançava
contra rivais e vice-versa. Dessas batalhas
foi surgindo a mal chamada guerra dos bagos. 30
Eram refregas diárias, e começaram aos poucos.
Diz a versão majoritária que o próprio Bobur,
fora de si, lançou bolotas fartas de areia
contra algum atrevido, dizendo: “Batata na cara!”
Como não? O punido lançara o pé num castelo e 35
não ficou sem resposta tamanho gesto de guerra.
Cada qual tomou partido e formaram-se exércitos.
Ora, Bobur, nas palingenesias da glória,
fez-se o líder de jovens gravemente sedentos,
ávidos todos de corajosos feitos – heroicos. 40


2




Hitler e Stalin eram incorporados com brio e
não deixavam em paz Napoleões e Alexandres.
Eram rudes. Batata na cara tirava do jogo.
Quem lograva pisar na fortaleza das hostes
sem que a batata, como diziam, voasse na cara, 45
este vencia e recebia do time as insígnias.
Fato claro, Bobur era estrategista de classe e
tática boa. Pintava estranhos mapas na areia.
Dava ordens. Planejava ataques-relâmpago
dias antes, vários, confundindo estadistas. 50
Reações de improviso pareciam treinadas.
Vale menção a resistência de Stalingrado,
como ficou chamada a mais ousada campanha:
Três flancos de ataque “nazistas”, frontais e
mais numerosos, batateados num quase-milagre. 55
Pois cavaram trincheira funda frente ao castelo,
tabula rasa ao fator quantitativo. Falanges
laterais de flecheiros arremessavam de longe
bagos de peso vário. Houve graves feridas.
Como troféu, deixado para trás por soldados 60


3




batendo em retirada, conquistaram os símbolos
nobres do mal-logrado invasor, e tomadas bandeiras
– vejam quanta audácia – trocavam águias guerreiras,
todas, por mal traçados abutres sustendo suásticas,
logo hasteados ao sol de abomináveis afrontas. 65
Era somente a náusea de esplendorosas vitórias –
sabe Deus – que vez ou outra deixava entrever um
vazio abissal, e algum soldado-criança enxergava:
– Bobur, por quê que o mar está fugindo? Por medo? –
Tal resposta cabia somente a maiores oráculos: 70
– Mãe, por quê vai indo embora o mar? – Mas calavam.
Já não mais impunham risco aos burgos as ondas
pois as altas marés rareavam. Perdiam o viço
bolas de areia, pois de pouco molhavam-se.
Cada dia, o rumo à beira do mar aumentava, 75
novos centímetros iam dando à luz o deserto.
Suspeitou-se que o mar migrasse. Raro fenômeno
veio interpôr-se à guerra dos bagos. Algo tremendo
lá tomava lugar, e polêmicas tropas homéricas
converteram-se em largas expedições geológicas, 80


4




repletas de oceanógrafos, doutos ad-hoc intrigados
migrando junto co mar. Migrando aonde do mundo?
Medo deviam chamar o mistério. Puseram Bobur
à frente da inusitada coorte e Bobur lhes rezava
ordens de busca e descobertas. Que se passou, 85
diziam, aos grandes rios que o mar migrante bebia,
quem os roubou? A paciência dos homens minava-se.
Fossem ver, Bobur mandou, que agente inumano
trancara a foz do legendário rio de Alexandre,
esse que helenos chamaram Oxos. E foram sabê-lo. 90
Mas Bobur, irritado e pouco crente em boatos,
decidiu correr em pessoa ao lugar, relatado
em cores mortas, onde o braço da baça corrente
vinha terminar em poeira, estanque no nada:
– Gente, o rio não quer correr? – o pântano-delta 95
dava uma dor estranha no peito. Sabiam agora:
Não migrava o mar, morria. Porém estuários,
deltas, por que secavam? Vinham já de tão longe.
– Esse mar è grande demais e mar não se perde,
seca não! – Bobur assegurava e terrores calados. 100


5




Todos os dias mandava alguém correr ao deserto
ladeando navios-fantasmas, colados à areia:
– Seca não! – Bobur repetia, menos verdade
séria que mantra, mesmo ordem. Como não seca?
Era hiato já no meio do mapa. Debalde em 105
dias limpos ainda tentavam retinas mirar
no vago traço d’água. Nem uma fata morgana
tinha dó de tantos olhos. Faltava-lhes gota
como à boca peixe. Bobur deixava as coortes,
vindo vagar no meio do vácuo. Sentava-se ao solo 110
onde outrora o mundo era mar e tomava de areia
nas mãos, deixando um vento seco levar as quimeras
no rumo do amargo. Era longe demais o que havia
inda de água, nem valesse a pena buscá-lo,
tão azeda a terra cruzanda. Plantaram em vão, 115
que nem a grama crescia. A velha guerra dos bagos
dera lugar a batalhas contra um forte invisível.
Quando a mãe de Bobur falou, pediu-lhe somente
não olhar os pescadores – passasse direto.
Inda perambulavam incrédulas hordes ao Oxos, 120


6




indo ver que de fato um rio se cansara de ser.
Mas crianças não se cansam. Mudaram o jogo e
novas guerras, corrosivas batatas surgiram.
Isto porque, num belo dia, Bobur conseguira
quase reinventar algumas bolas de areia. 125
Como? Fechava bem as mãos a que nada caísse e
vindo perto das hostes, lançava bolas ao alto.
Estas porém se desfaziam no ar, espalhavam-se
como as tempestades. Foi sucesso instantâneo.
Tropas temíveis ressurgiam. A guerra dos bagos 130
intensificara-se. Quando a bolota alcançava
corpo alheio, não se restringia à batida,
antes espalhava silício por todos redores,
pela pele e pelas roupas. Fizeram-se múmias
vivas, fantasmagóricas, impressionante atavismo. 135
Passavam como diros monstros cobertos de tempo,
grãos que outrora o mar cobria. Lutavam combates
pelos vãos ou dentro de enferrujadas carcaças,
navios descalços – peças de relevância estratégica,
pois as tempestades de terra tornaram-se várias e 140


7




velhos navios formavam escudos. Os fortes agora
eram as naves abandonadas. Bobur e oponentes
cruzavam o vasto na busca de glórias militares.
Pouco atinavam nessas horas coa perda das ondas.
Era superstição o dizer que daquelas poeiras 145
vinham males, que não se devia respirá-las.
Muito mais importavam à juventude valente
grandes gestos. Nenhum herói sabia direito
quão distante estava o moribundo dos olhos.
Fora tabu perguntar – temor da seca verdade. 150
Tão somente seguiam na imitação de contendas,
não se sabe bem se Segunda Guerra ou Primeira.
Nada disso importa aos que ficam. Nem aos que deixam.
Para os que morrem, toda guerra è guerra primeira.
Sem segunda. Vejamos primeiro, porém, a derrota 155
do mar, e depois a dos homens. O mar se perdeu.
Escondam à gente do Cariri a verdade de Aral:
Era demais irrelevante aquele mar destruído,
era um inútil, era um lago de Genesaré –
a gente a carecer daquelas águas estanques 160


8




eram só pescadores, e mais ninguém se importava.
Joga fora esse mar de quem ninguém precisou!
Talvez crianças carentes se lhe usassem de amor,
mas as crianças do Cariri nem ouviram falar –
espero – duma terra tão longínqua tão perto. 165
Certos pais fariam como o pai de Bobur, que
certa vez tomou-lhe do braço, quando o menino
fitava o deserto: – Feche os olhos, filho, feche,
isto è feio demais. Ali não volte a brincar. –
Digam porém aos estadistas que não se incomodem, 170
pois o mar malquisto è calado. Pouco lhe falta e
morre de todo. Talvez um poeta menor o relembre,
mas o seu pranto será decerto em português, e
português è língua que não se lê, que se joga
fora como jogam o mar – assim se combinam 175
o mar e o grito no vácuo, no vão hiato dos mapas.
Quanto à derrota dos homens, foi derrota clemente,
pois Bobur não chegou a ver a morte do lago.
Quando veio a famigerada tosse, entenderam:
Fora a constante exposição a grãos de poeiras 180


9




altamente tóxicos, filhos dos agro-resíduos e
doutras misturas. Fizeram parar o curso do Oxos.
Culpa minha, como não? O algodão do pullover
rubro que visto vem dalguma lavoura do mundo.
Jogaram fora o mar em nome do fino algodão 185
e agora o rio irriga imensos tratos de terra;
jogaram fora Bobur e muitos outros pequenos.
Felizmente, ninguém precisou de Bobur e pequenas
vidas irrelevantes como a vida que pesca.
Quando o mundo era feito para glória de guerras, 190
César mandava às armas milhões de em-vãos a morrer
o fim de heróis, deixando em paz em casa o patrício.
Hoje, que já não facilmente se livra da massa,
a morte grátis da plebe è demográfica bênção,
alívio ao Senado. Joga fora Bobur e o seu mar! 195
Mas mandem calar aos Cariris o destino de Abel,
a fim de que menos chorem a fealdade das horas
nem tencionem irrigar o vasto coas lágrimas –
pois um grande mar perdido nem choro devolve,
nem o São Francisco, o rio dos mortos, transposto. 200


Poemas de Guerra






III



Cabe nalgum porão a ruína dos séculos?
Soavam sirenes e ouvia-se angústia no coro:
– Ave Maria, cheia de graça – exclamavam,
– rogai por nós, pecadores. – Marta rezava
menos por si que pelos pais que guiara 5
pela escada às pressas, descendo ao abrigo:
ambos cegos. Trouxera num átimo roupa e
quanto valor cabia às mãos. Tremiam-se
forte as paredes, interrompendo a esperança
das preces: O mundo afora era flama somente. 10
Duas mil toneladas de bombas, lançadas
abaixo, causavam tempestades de fogo
pelas ruas, e deu-se o tornado infernal.
Um calor de mil e quinhentos graus devorava
as casas e os corpos, sufocadas as almas. 15
Quando a fumaça subiu as paredes, de pedras
quase ferventes, e a fé perdeu-se no pânico,
cada qual correndo e buscando um socorro,
Marta via aterrada a fraqueza dos pais:
Mal andavam, a vida questão de segundos. 20


1




Os poucos que ousavam ir aos gritos à rua
eram de pronto carbonizados aos ossos
ou se deixavam cair num térmico choque,
mortos de asfixia. Era porém dos deixados
entre vida e morte a imagem pungente. 25
Tropeçavam em corpos de velhos, crianças,
tateavam o escuro buscando parentes
encobertos na cinza. Chamavam amigos
em vão e as vozes mistas se entre-abafavam.
Dresden chegava ao fim. Aviões inimigos 30
iam lançando os monumentos à terra.
Marta porém cuidava pouco de estátuas,
joias barrocas e construções imortais
da velha capital cultural por escombros,
antes migrava desesperada na massa, 35
porão a porão, em fugas mal-ordenadas.
Vez ou outra, surgiam poucos bombeiros,
guias mostrando longe o rumo de escadas,
cantos talvez seguros onde os cansados
aglomeravam-se. Deixavam toda bagagem 40


2




para trás, e pertences que atrapalhavam
os passos alheios eram tomados à força.
Assim se perdeu o recém-nascido na cesta,
confundido na rapidez das angústias
com mero brinco, e tristes mães desmaiavam 45
vendo paredes soterrando um pequeno,
perdido pela poeira em berros inúteis.
Eram impedidas por mãos socorristas,
e quem ousasse retorno a porões torrados
para salvar o mundo nunca voltava, 50
e quem ousasse sair afora coa cesta
logo tropeçava em escombros, perdia
de mãos o filho ao turbilhão do tornado.
Foi na madrugada, no meio do incêndio,
depois de poucas horas, que mais uma vez 55
soaram sirenes. Foram poucos que ouviram,
já que poucas foram poupadas das bombas
horas antes. As explosões irromperam
quase repentinas, lançando ao chão
refugiados desprevenidos, soldados, 60


3




enfermeiros mergulhados no abismo
donde tentavam resgatar os feridos.
– Ave Maria, cheia de graça – soava
pelos porões lotados, no meio de gritos,
o desespero completando as palavras 65
que a confusão dos mil soluços tragava:
– Rogai por nós, pecadores. – Marta lembrava
em vão a voz de Adolf Hitler nas rádios:
– Não vos iludais, alemães, de esperança,
nenhuma cidade está isenta de ataque. – 70
Eram conclamados à guerra total
até a morte heroica do último homem.
Marta porém guiava os pais por escombros
buscando menos vitória que a vida salva.
Mas o teto a cair interpôs-se ao caminho 75
dos fugitivos. Restava somente um buraco
para a rua, ou para a morte iminente.
Marta mirava aquela magra abertura
e a multidão sem rumo e gemia escondida:
Que milagre do mundo, pensava aturdida, 80


4




pode salvar esta gente inteira da morte?
Quem não via a temperatura aumentando,
quase insuportável, e os tóxicos fumos?
Não restava mais uma sombra de dúvida:
Ninguém teria a compaixão de deixar 85
os dois idosos passar por aquele buraco.
Custava tempo demais e já se pisavam
alguns, desordenadamente, sem ar.
Mas percebendo a pouca ordem que havia,
foram eles, os pais de Marta que agiram: 90
– Minha filha, corre e toma o teu rumo,
sai daqui, que nos veremos depois. –
Ela, porém, tomou-lhes ambos do braço:
– Ficarei, meu pai, sairemos juntos! –
– Marta! Não destruas a nossa esperança. 95
A vida nossa já não presta de nada,
salva a tua e nossa morte è feliz! –
E foram indo embora, por entre fumaça,
bengala às mãos e tateando paredes:
– Filha, vai-te já! Sairemos ilesos, 100


5




não te aflijas. Cristo è compaixão! –
Marta saiu, ajudada de anônimas mãos,
à beira da rua. Que visão, que cenário,
que ruína indescritível do inferno!
Onde os olhos pousavam, eram pedaços 105
de pernas, braços, reduzidos cadáveres,
crianças torradas segurando bonecos.
Das casas restava tão somente a fachada,
fogo dentro e fora dos prédios, janelas
ilusórias, temíveis. Inda moviam-se 110
ônibus, dentro todos mortos, em flamas,
grei de refugiados vindo do campo,
cidades longe por onde as tropas hostis
deixavam morte. Morriam agora nos ônibus.
Marta não pensava, sentada à calçada, 115
mãos à cabeça. O bombardeio cessara,
deixando atrás por vários dias incêncios:
– Marta! – bradou de longe voz conhecida –
Marta, menina, que alívio! Havia um cadáver,
logo ali, que me fez pensar que morreras! – 120


6




Era idoso vizinho, mas Marta interpôs-se:
– Cala a boca, Lothar, eu vivo culpada!
Deixei meus pais morrer naquele porão! –
E recusava as mãos que o velho estendia,
gemendo e retorcendo o rosto e tremendo: 125
– Lothar, eu quero só saber onde estão! –
Contou-lhe o caso desde a primeira sirene:
– Tinha um bolo de amora pronto no forno.
Era o aniversário amanhã do meu pai.
Inda brinquei a dizer que só amanhã 130
podia comer o pedaço que já lhe cortara.
Foi um dia de festa e de tanta alegria. –
Mas o outro, escondendo os olhos: – Ergue-te!
Vamos embora que aqui morremos de vez! –
Marta deixou-se levar por algumas esquinas 135
antes que oficiais e bombeiros de longe,
frente ao colapso geral, pedissem ajuda:
Era uma ordem. E separaram-se os rumos,
ele buscando os corpos, ela coas outras
limpando e retirando pedras de escombros, 140


7




repassadas, mãos em mãos, por esquinas.
Quando Marta desmaiou de cansaço
e as bofetadas a retrouxeram ao mundo,
pôs-se a vagar. Vagou por horas inteiras
vindo a parar naquela mesma calçada. 145
Era quarta-feira de cinzas em Dresden
e Dresden amanhecia em ruína de cinzas.
Tiras desabrigadas voltavam às casas
destruídas buscando pertences, parentes.
Desde a hora clara, Marta tentava 150
abrir passagem rumo ao porão soterrado.
Pusera fixa à triste mente uma ideia:
Recolher os corpos dos pais de destroços,
vê-los por última vez, fechar-lhes os olhos.
Não descansaria – custasse-lhe a vida. 155
Desdenhava o dizer de soldados peritos:
– Senhora, naquele prédio todos morreram,
nem restou seguro acesso ao porão. –
Marta levava à boca a mão, suspirava
perante o calor de flamas. Mal reparara 160


8




os seus cabelos secos, torrados na noite.
Separava as pedras o mais que podia,
e pelo mesmo buraco entrevia, no escuro,
entre poeira, várias passagens estreitas.
Qual daquelas teria engolido os seus pais? 165
Mas sabia que aquela rede era vasta.
Ora, os pais teriam podido perder-se
muito longe. Aflita, migrava de bairros
a bairros, junto a caravanas caladas.
Perguntava em vão a passantes, aos mortos 170
descrevia os aspectos. De nada ajudava.
Ajoelhou-se perante a polícia, contrita:
– Pelo amor de Deus, eu quero encontrá-los! –
Perto um bombeiro ferido, levado na maca,
tendo ouvido-lhe o choro, disse-lhe o nome 175
da praça, tão longe àqueles pés fatigados,
aonde em carros-de-mão carregavam os corpos.
Expostos ao público ou sobrepostos em tiras,
aguardavam os olhos de algum conhecido
ou quem lhes devolvesse o nome perdido. 180


9




Marta abalou, com toda a força que tinha,
rumo à praça dos indigentes disformes.
Ouvia ainda a voz: – Salva-te, Marta,
pensa em ti, que sairemos ilesos! –
Mas tormento fora maior que a razão, 185
e Marta andava, corria como uma louca.
Sabe Deus de que modo e milagre chegou.
Eram milhares que ali deitavam sem vida?
Não perdeu nem tempo de impressionar-se,
revirava os corpos. Perdia o juízo e 190
recomeçava. Confundia-se em lágrimas,
ora caindo, ora lançando-se aos vários
novos carros-de-mão que chegavam pesados.
Muitos miravam chorando a cúpula-máter
da Catedral de Nossa Senhora, uma fonte 195
seca de força e constância em meio à ruína.
Que mal meus pais fizeram ao mundo, pensava,
que mal o meu povo fez? Fizera-se o mal,
e ao meio-dia, para extrema surpresa,
mais uma vez as sirenes de rua soaram, 200


10




mas poucos bairros vizinhos ouviram a rádio:
– Homens de Dresden, máximo alerta, atenção,
um novo imenso ataque virá sobre nós! –
Todo o centro de Dresden estava sem rádio.
Quando de novo as explosões irromperam, 205
viram tarde os aviões de inimigos no céu
mostrando ao mundo que o mal se paga co mal.
Muita vitória de espírito cabe ao poeta
a memorar o que ali se passou de tormento.
Marta lançou-se ao chão, de corpo e de alma, 210
no meio da rua – perdera amor pela vida.
Foi depois de pouco que o velho vizinho,
homem reto, cruzando grátis perigos,
veio buscá-la ao braço, lágrima aos olhos:
– Marta, teus pais sobreviveram o ataque! – 215
Quem morreu foi Marta. E Lothar tornou
ao hospital, levando a nova aos vizinhos,
cegos e salvos do inferno, dizendo à filha:
– Cristo è compaixão! – E os pais desolados
dividindo com leitos sem nome o destino, 220
erguiam calados o pensamento perdido:
– Rogai por nós, pecadores! – repetiam.
Mas a Catedral de Nossa Senhora,
que suportara o bombardeio em silêncio,
desabou por inteiro no meio de Dresden. 225


Poemas de Guerra






IV



Quando a milícia quis tomar à força a favela,
Jorge correu temendo a morte pracima do morro.
Era bala pra todo lado e malandro correndo
com medo e com raiva. Parecia festa junina
tanta rajada cruzando o céu. Mas nego chorava, 5
tinha corpo no chão. Passava gente na pressa,
parava e reconhecia morto amigo e parente.
Vinha mãe de família feito cantora de ópera,
filho baleado no braço. Rolava de tudo,
rapá, até vovó rolando no chão e berrando 10
pelo marido, mortinho, dando tapa na cara –
tinha, não tinha o quê? Gritava, baixava demônio,
falava em língua. Culpa dele! Vai passear
na faixa de Gaza! Ali o buraco è mais embaixo:
Ouviu polícia chegando fica em casa e se cuida. 15
Deu bobeira, mané perdeu e ficou na sargeta,
sinto muito. Nego não quer saber de conversa.
Foda è quem passa e leva a sério sas coisas,
tipo-caxias, playboy, careta. O cara baqueia:
Nunca viu, não tem experiência de vida. 20


1




Jorge entrava numas também, mas era de boa.
Matatuva de vez em quando e voltava à real:
dar moral pra zona sul è parada de otário;
chega osomem, pá! na cara, e bola pafrente.
Tem que ser assim, tem que ter esperteza. 25
Só que ali, naquele dia pegou de surpresa.
Ali foi feio, o pessoal ficou – chateado.
Vou contar sa parada: No meido tiroteio
apareceu João – e sabe Deus de que jeito –
fazendo manha, choramingando: – Toma cuidado, 30
pai, senão te matam, vem padentro, te enconde! –
Criança a gente releva e João ficava nervoso,
tinha puxado a mãe e Jorge até que brincava:
– Moço sério, vai virar doutor desse jeito! –
Ia pra escola e professor comia a cabeça 35
dele: – Traficante è criminoso, não brinca.
Gente boa tem que andar direito no mundo,
tem que respeitar polícia! – Como se osomem
fosse pôr comida na mesa de algum favelado.
Ali se alguma coisa foi pafrente, mermão, 40


2




foi por ca-de Jorge. Se for falar de detalhe,
vão pensar que tá pagando pau – com certeza.
Mas com João a coisa andava bem diferente,
dava dó de Jorge só de ver. Na verdade,
foi melhor do jeito que terminou sa parada. 45
No meido tiroteio, Jorge ficou preocupado:
tava complicado o negócio, mas o moleque
nunca dava trégua, ficava lá insistindo.
Tava com medo, a tropa tava cercando geral:
– Deixa disso, pai, te imploro, vamo padentro! – 50
E foi assim: acabou de falar, caiu baleado.
Jorge? Gosto nem de falar no bagulho direito,
dá desgosto. Levou padentro o menino sangrando.
Morreu, fazer o quê? O cara ficou arrasado,
diz que João se jogou na frente tipo-escudo 55
de salvação. Contava história, falava sem nexo.
Jorge sumiu depois do enterro. Ficava trancado.
Eu que tomei coragem de entrar na casa do cara –
parei na porta do quarto. Nisso, falava sozinho:
– Mataram meu filho, bicho, vou matar ’se maldito, 60


3




tem desculpa aqui não que gente assim è covarde,
nem viver merece. – Entrei, tentei conversar:
– Jorge, mermão, queísso, bola pafrente, rapá!–
Fez de conta que nem me viu. Chorava de raiva,
só de noitão que saiu. Sentou no topo na laje 65
tipo-olhando pracima, pro mar, parecendo maluco.
Chegava alguém pra conversar, mandava pabaixo.
Eu que pude ficar, depois de muita insistência,
lá na minha. Dá pra entender: João era a vida
de Jorge, tudo o que mundo tinha de puro pra ele. 70
E dizia até que queria morrer, Deus que me livre,
nunca eu tinha visto Jorge falando besteira,
mas o estado do cara era esse. Digo a verdade:
Tinha um incêndio dentro de Jorge – coisa de louco,
dava pra ver estampado no rosto feito uma ruga, 75
traço áspero. Era uma assombração ambulante:
quem não conhecesse, via e saía às-carreira.
Hoje, eu penso, até entendo. Sa vida difícil,
nego crescendo sem saber se basta a comida.
Jorge foi assim, destino ali foi carrasco – 80


4




velha história: pai morreu, a mãe sem trabalho,
dava nem pra mandar pra escola. Passava era fome.
Dizia que o pai morreu baleado – Deus è que sabe.
Porra de escola, rapá, cultura de Jorge era droga,
acorda pra vida! Sem contar que depois de crescido, 85
quando o cara cai na real, termina no tráfico.
Vai fazer o quê? Conheço um montão de gente
decente lá no morro. Chega a lugar nenhum.
Jorge guardava rancor demais. Na certa sentia
na própria pele o precisar de ajuda e milagre 90
sem ninguém pra dar apoio. Certo è que Jorge
nunca acreditou em justiça. Nem na polícia.
E vendendo pó dava inveja a qualquer traficante.
Era mordaz. Vendendo a preço bom pra riquinho,
tipo-punia playboy viciado – bom que morresse 95
tudo no vício! Dava gosto saber de overdose.
Dizia que nunca falta cliente nesse mercado,
tinha orgulho em contar pra nós história da boca,
que nem no primeiro dia de venda a festa que teve,
depois o rolo com dívida paga com bala na cara, 100


5




nego implorando por vida e morrendo. Quando João
nasceu, mudou. Tinha mais atenção pelos outros.
Mas agora que tava morto, o negócio era sério.
Falo assim e quem escuta até que se assusta:
tipo-madame torcendo nariz e fazendo cu-doce, 105
tipo-caxias metendo a boca no pobre, no crime,
como se fosse melhor que Jorge ladrão de gravata;
como se Jorge fosse monstro e político santo.
Tanto faz! Mas Jorge esperou madrugada passar
e passou de manhã no bar do Beto, irmão dasantiga: 110
– Sangue bom, negócio è urgente, chama a gangue! –
Revólver na mão, Jorge expôs o plano qual era,
que tinha descoberto o chefe do esquema sangreto:
– É um tal de Duarte o vilão! – Falava com ódio
e de cara nego apoiou: – Tem que morrer ’se covarde, 115
mete fogo, te vinga, mermão, já passa da hora! –
Todo mundo sabia que o velho Duarte era o cão,
matava a esmo. Era a hora daquele palhaço,
já não dava pra liberar, acabou piedade.
Só que Jorge incluiu: – Filho dele eu conheço 120


6




a escola onde vai! – E nisso o pessoal se assustou:
– Queísso, Jorge? Aí perdeu a noção, na moral.
O filho do cara nada a ver, è outra pessoa.
Vamo conversar melhor, peraí! – Não teve conversa.
Jorge forjou na hora uma morte – cinco minutos. 125
Mas a resposta foi longa e o rapaz se irritou:
Pela primeira vez, apontou revólver pra nós!
Só na paciência: – Beleza, Jorge, se acalma.
Vamo se ver depois e a gente acerta detalhe. –
Foi de noite que, mais tranquilo, na laje molhada, 130
a galera tentou de novo falar verdade pra Jorge.
Ele entendeu. Teve uma hora que até parecia
concordar. Mas Jorge nada no mundo convence.
Quando botaram pressão no cara, disse na hora:
– Olhe, quem quiser sair, pegue sas coisas 135
e saia. Eu que sei o que eu vou fazer, decidido!–
Horas depois, eu na laje ainda enxergava
meu amigo, de longe. Coitado, tava ferido,
rosto todo pro mar, olhar sem nenhuma esperança,
feito doido nas ondas, luar, bebendo tristeza. 140


7




Era um náufrago. Conheço bem o que Jorge pensava:
– Eu, viver praquê no mundo? O mundo uma praga!
Quero sucumbir de vez, melhor que vida sem rumo,
tipo-intruso e sem amigo e fugindo dosomem.
Paz pra mim não tem, melhor morrer de verdade. 145
Eu, me render? Ladrão que prende volta pior;
tanto ladrão por aí governando impune, quenada!
Cara, matarem meu filho, do nada, dá pra esquecer? –
Eu que sei. Não tava com ele na hora escutando,
mas sei, conhecia o jeito dele: – Nem a vingança, – 150
pensava, – vai trazer de volta o meu filho,
nem o nervosismo meu, eu sei que não presta,
mas se nem vingaça eu posso ter, que me resta?
Guerra tem que ser! Duarte vai ter que pagar.
Ué? Se for verdade que um criminoso não vale 155
nada pro mundo, deixa eu morrer de vez co rapaz,
vai fazer diferença nenhuma, dane-se o resto,
a vida minha è essa; nasceu fodido, se foda. –
Tava desnorteado, tipo-roído por dentro;
era o dilema, nem sabia o tamanho do peito: 160


8




– Mato ou não? – Passou a noite mirando estrelas.
Eu, que não sou otário, liguei pro Beto avisando:
– Manda a galera, que Jorge vai fazer besteira,
negócio vai terminar mal! – Fomos seguindo
Jorge de carro. Chegando lá na porta da escola, 165
entra-e-sai do diabo, vinham vindo as crianças.
Nisso, mermão, tudo se deu num piscar de olhos:
Jorge, detrás dum carro parado, saiu atirando.
Quando um moleque caiu ferido, a mãe se jogou:
– João, levanta! Socorro, gente. – O jovem responde: 170
– Mãe, me deixa morrer não! – Saímo do carro:
– Porra è essa, Jorge, para com isso, maluco! –
Quando Jorge viu que aquele moleque era outro,
o cara pirou: – Puta, Beto, quem que eu matei? –
Teve tempo nem pra resposta, que nisso chegava 175
viatura abrindo fogo e o combate foi duro,
luta toda a torto e sem regra, fogo sem trégua.
Olhe: Aquilo ali virou depósito de pólvora!
Virou crepúsculo aquela manhã de névoa vermelha.
Bala voava pra tudo què lado e gente morria, 180


9




sangue correndo feito enxurrada pela calçada.
Era uma fumaça, rapá, que não se viu nesse mundo,
todo mundo com medo e correndo e couro comendo:
– Cara, eu sou um monstro! – Jorge dizia, ralado,
– que degraça queu fiz, deixei até de ser gente! – 185
dava pra ver o frio do suor escorrendo no rosto
tipo-gota de morte, uma coisa pálida, estranha.
No desespero, a galera fugiu, entrando em bueiro,
buraco, qualquer lugar que visse. Jorge na pira
tava abrindo a porta do carro – quando caiu, 190
desfeito em choro e sangue, mas sem ódio no grito.
Olhou pro céu, miserável, todo atingido de bala
estribuchando e pedindo perdão, alguma clemência
que homem nenhum podia lhe dar. Mas ele sabia,
naquele remorso agonizante, que a vida è essa. 195
Todo mundo tentou avisar. Agora era tarde.
Vinha gente da rua com raiva, rindo de Jorge:
– Morre, infeliz, diabo te leve! – Mas Jorge caído
lembrou João. Tinha lhe prometido na angústia
que nunca mais mataria. Agora sofria, coitado, 200
nós chorando em vão aquele amigo querido,
Jorge ferido de morte, gemendo feito cachorro.


Poemas de Guerra






V



Junto à tormenta anunciada de longe,
surgiam do fim do mar em crescente perigo
quarenta e um navios de linha, pujantes
trunfos da frota franco-espanhola. Houve
temor e comoção entre as naus de Britânia! 5
Horácio Nelson, a bordo da barca Vitória,
mirando as largas formações coa luneta
a comando de trinta e três navios, ponderava
enquanto as hostes geravam a linha de guerra.
Chegada a hora final, no meio das brumas 10
foi expedido o sinal de batalha: England
expects that every man will do his duty!
Nelson, porém, ouvindo os seus guerreiros,
antecipava o pungente suor que os movia,
fogo e frio, e muita angústia nos olhos. 15
Era patente o que o brio dos bravos temia
quando murmuravam duns para os outros:
– Deus dos céus, eu nunca vi uma esquadra
tão numerosa! Aqui morremos, amigos,
chega ao fim a pátria. – Alguns incluíam: 20


1




– Vês o tamanho daquele mastro à direita?
Olha os canhões! E temos menos navios! –
Era triste ouvir o que ali se passava:
– Deus è que sabe quem de nós sobrevive
o dia de hoje! – E manejando os petrechos 25
e as armas os marinheiros tibubeavam:
– Ai, meu Deus, ajuda a nossa batalha! –
Mesmo os peritos iam perdendo a coragem:
– Pode dar lembrança a meu pai se eu morrer,
consola a minha família – todos sabiam 30
(como não?) que daquela grave batalha
dependeria o futuro, o destino, a história.
Era a salvação de toda uma gente,
do rei e do povo. Era urgente a vitória,
a vida pesava como o mar em seus ombros. 35
Quando a verdade retumbou pela esquadra:
que não seria em linha o forte combate,
mas que a frota dividindo-se em duas
como um relâmpago avançaria; no ataque
frontal quebraria no meio a linha inimiga, 40


2




lutando lado a lado; e quando atinaram
o custo de vida e coragem de tanta audácia
contra uma esquadra ainda mais numerosa,
houve dúvida e desespero nas naves:
Trafalgar era a tumba do povo britânico, 45
era o naufrágio certo da frota e da história.
Ora, Nelson, vendo o seu ânimo incerto,
como a trompeta conclamando ao prélio
fez ouvir ao Vitória: – Heróis deste mar,
de vós eu quero saber uma coisa somente: 50
Por que motivo combateis a meu lado?
Lutais pelo mal, guerreiros, ou pelo bem?
Pois se alguém quiser lutar por um bem,
levante com muita força as armas da pátria,
mostre ao mundo a coragem da vida correta! 55
Esses homens hostis e sedentos de império,
são conquistas vãs e visões que cobiçam!
Vão espalhando o seu terror pelas terras
e medo nos mares. Nós, contudo, sofremos
não pela causa de enganadores tiranos! 60


3




Lutamos pelo bem que nos traz a virtude:
Nossa causa è de amor a todos, verdade
com Deus e respeito pelo cetro do justo.
Nós deste mar ergamos forte a bandeira
contra a ganância de unidos impostores! 65
Não vos impressioneis com suas palavras,
a vida se vê no gesto: Clamam concórdia
porém dissipam o sangue dos inocentes.
Inscrevem o nome da liberdade na guilho-
tina que cai dissociando as cabeças. 70
Heróis do oceano, está traçada a derrota
da nossa terra pela astúcia de França!
Basta um erro nosso e tudo se perde
entregue à baioneta que ofende serenos.
O rei nos conclama a combater e vencer! 75
Pensai nas vossas mães que precisam de vós,
pensai nos vossos fracos porque são fracos
mas è força em Deus a fraqueza do justo!
Sejamos fortes, lutemos por esses pequenos
porque merecem a vida, a verdade, a vitória! – 80


4




Os homens angustiados ali se abraçaram,
os olhos rubros, e mesmo quem nada tinha
de seu nesta vida batia forte no peito,
unidos pela esperança dum mundo melhor.
A voz de Nelson soou, erguendo das profun- 85
dezas do mar o valor dos desanimados.
A voz de Nelson passou dum canto ao outro
da sua esquadra subindo ao céu que aguardava:
– Guerreiros! O mar conhece apenas duas
verdades: a morte e a vitória. O mar è caminho 90
sem volta e como não volta è preciso remar:
Remai, lutai, navegai, a coragem è leme!
Uma coisa, heróis, eu vos digo e guardai
no lado esquerdo do peito: Morrer pelo bem
è melhor que salvar a vida e perder a verdade. 95
Sabei viver porque a luta requer vossa vida,
mas se o nome da morte è vitória morramos! –
Os inimigos chegavam, mas Nelson seguia:
– Não, heróis do mar que nos mata e redime,
não temais a frota inimiga. Ali se congrega 100


5




quem não sabe o que faz e navega sem rumo.
Não temais porque são eles que temem!
Eu vos prometo em nome de Deus e do povo:
Basta avançar e mostrar a coragem de sempre,
basta serdes quem sois e deixar a verdade 105
calar a boca do medo, da morte e do mar! –
Soava já de longe o trovão dos canhões
enquanto a frota seguia avante em colunas.
Era preciso quebrar a linha inimiga,
portanto avançavam. E destemidos cercavam 110
em grupo os primeiros navios desavisados,
suprehendendo, confundindo e rendendo.
De dentro a multidão de canhões disparava
seu fogo faminto, devorador e certeiro.
De fora os atiradores miravam na pressa 115
a vida dos homens vis, buscando o peito.
Os sacrifícios da guerra o mar enterrava:
– Nelson, – avisa um companheiro de luta –
retira o manto militar do teu corpo
senão te reconhecem de longe e te matam! – 120


6




Nelson responde: – O manto destas medalhas
traz a verdade da minha vida e não nego! –
Assim afligia quantos guerreiros o viam,
pois estava exposto. Quando um navio
dos inimigos se aproximou atacando, 125
a luta deu-se corpo a corpo e sem regra.
As balas atravessavam as velas e os corpos,
comiam carne e madeira caçando os audazes
enquanto de longe uma tempestade avançava.
De cima do Redoutable, perto dum mastro, 130
o soldado atirador que avista as medalhas
pergunta ao almirante da frota francesa:
– Nelson à mira! Permissão para o tiro? –
Pois atire, acerte, mate o inimigo!
Foi por acaso que viram Nelson caído, 135
a mão ao peito e calado no meio da luta,
dizendo a seus homens: – Calma, guerreiros,
não temais porque são eles que temem! –
E pondo à frente do rosto suado um lenço
foi levado abaixo, deixando em seu rumo 140


7




novas instruções de manejo e de luta.
Conteve como pôde o poder duma dor
maior do que a vida. Quando o médico veio,
Nelson somente tocou-lhe a mão revelando:
– É, meu amigo, chega ao fim uma vida. – 145
E nada se pôde fazer: Fora atingido
atrás do ombro e perturbada a medula.
Quando o melhor guerreiro ali demandou,
levando a mão à boca, cobriu os olhos
perante um homem cercado de amigos, fiéis 150
e tristes. Deitado ao chão em lenta agonia,
Nelson ouvia do amigo a voz soluçante:
– Como foi isto, Nelson? Começa a batalha
e já parece perdida a nossa esperança.
Quando souberem do triste fato que abraças, 155
como se vence a batalha de Nelson sem Nelson? –
Ele, porém, resoluto, impôs-lhe silêncio:
– Não è de Nelson não a batalha, meu caro,
e não ofendas a luta de meus marinheiros!
Estes homens hão de cumprir seu dever 160


8




porque não é por mim que pelejam: Nelson
de nada vale, Nelson já pode morrer.
A vida que importa è vida que ainda tem
de viver: a minha está vivida e cumprida.
Não há nada mais a mostrar a meus homens, 165
as armas estão em suas mãos, utilizem
como ensinei a constância mãe da vitória.
Andar por estas naves de nada me vale
pois o andar è supérfluo. Nós venceremos!
Eu morrerei, mas a morte que estou a morrer 170
preenche a minha vida e completa o que sou.
Jamais se morreu por este mundo uma morte
tão feliz e tão orgulhosa, guerreiros:
As minhas últimas lágrimas são de alegria.
Os homens mal notarão a minha ausência 175
porquanto a vida requer somente a vitória:
O nome da minha morte è maior do que a vida! –
No desespero das horas os homens choravam
e muita vez o navio tremulava por dentro,
enquanto fora o mar mesclava estandartes. 180


9




As naves de guerra, sem nenhuma ciência
da morte de Nelson, prosseguiam impávidas.
Eram rendidos navios de porte maior,
peritos eram vencidos e confundidos.
Os marinheiros quebraram a linha inimiga, 185
a Grande Armada de Nelson ganhou a batalha.
Foi severa a lição que aprenderam França,
Espanha e tantos outros navios à deriva.
No mar revolto os heróis da vitória levaram
embora o troféu e a memória dum grande homem. 190
Nelson não viu, todavia, o fio da contenda
quando as naus atormentadas renderam-se,
tantas horas passadas de fogo e de morte.
Fugiam da luta rumo à tormenta e naufrágio,
prestando ao mar o testemunho dos corpos 195
no abismo e nas ondas. Nelson via somente
os amigos caros, entristecidos, deitados
juntos no chão imundo. Do limbo entregou
seu derradeiro sopro ao extremo mistério,
deixando atrás de si no suspiro imortal 200
apenas rouca frase: – Deus e meu povo! –





FIM