Abstrações
© Gregorius Vatis Advena 2013, Record L 2, Engl. Abstractions, January 2013 to November 2013, Hampshire, dactylic hexameter, ten poems, 100-120 lines, lyric poetry, Portuguese.
© Gregorius Vatis Advena 2013, Record L 2, Engl. Abstractions, January 2013 to November 2013, Hampshire, dactylic hexameter, ten poems, 100-120 lines, lyric poetry, Portuguese.

Era a meta inicial desta antologia ser uma ponte entre as tradições clássica e moderna. No processo de criação, porém, o projeto evolveu e tomou seu próprio corpo emancipatório. O nome da antologia evoca o que se abstrai da realidade sem deixar de ser real – a lírica da contemplação crítica.
As Abstrações são reflexões ou pequenas narrações em verso. Em geral, tematizam efemeridade, anseio e ilusão – fenômenos que em tradições orientais se vê como “as três características” da existência. É uma poesia conflituosa e ao mesmo tempo introspectiva, mas humorosa por vezes.
“Les sons et les parfums tournent dans l'air du soir”, Baudelaire, prelude by C. Debussy, performed by Jeremy Denk – FMA CC BY-NC-ND 3.0.
O verso é hexamétrico – seis tônicas separadas por uma ou duas átonas, ou por pausa. Em geral, o verso começa em tônica e termina em diérese bucólica – o ritmo tátata-táta. É datílico ao evocar o antigo dátilo no ritmo tátata. Todo verso possui ao menos um dátilo tonal. O dátilo classico, porém, era quantitativo.
O uso das formas épicas é tratado no ensaio Prosódia e Grafia. Nesta antologia, a única forma épica é a do verbo ser: [é] em contexto tônico, [è] em contexto átono.
| Turva no grau da nuvem perde-se a vila sombria, | |
| Fumam das chaminés do porto as águas a névoa. | |
| Sonho, espuma e breu envolvem de fúnebre cinza | |
| Portos, céu e mar, e os ânimos fogem o homem. | |
| Vai vanecendo a silhueta que o trem atravessa | 5 |
| Rumo a verdejantes burgos e bosques vistosos. | |
| Trilha sozinho. Dentro ninguém repara o percurso, | |
| Dorme o mundo estranho, desconhecido e descrito. | |
| Longe de ocelos vagos humanos estão as imagens, | |
| Perto porém do interior, do vale e do abismo. | 10 |
| | |
| Vias que terra airosa e viço deixastes embora, | |
| Vidas inteiras a vir, caminhais veredas opostas! | |
| Passa a confusão da cena correndo cons trilhos e | |
| Deixa em nossa memória amor, saudade e derrota. | |
| Pobre o cor merencório, fundo e mundo gravíssimo | 15 |
| como um antro torto e de prantos refúgio celeste. | |
| Alma depoente, cobres-te em verbos ingratos | |
| Nunca traduzidos porém ouvidos de dentro. | |
| Cala-se a língua pequenina e vozes passivas | |
| São falar errante e cada palavra è sem forma. | 20 |
| | |
| Longe as linhas dançam do horizonte alheadas, | |
| Movem como aladas céu, fundidas coa banda. | |
| Flente a furto irrompe e dança a baila das orlas, | |
| Turva de cílios chuva quando os olhos oscilam. | |
| Perto da estrada, as folhas desfiadas esperam | 25 |
| Certo sopro ventá-las a toda e nenhuma sorte. | |
| Como os sonhos levam quem os sonhos enleva | |
| Qual se fossem leves, sopros são sonhos levados. | |
| Dormem, porém, sonhando sono alegre de arcanjos | |
| Folhas e linha, cílios – e as pálpebras guardam as juras. | 30 |
| | |
| Vai-se o trenzinho e corre e leva consigo a paisagem, | |
| Leva além o verbo, que letras são feias nem simples. | |
| Árvore! Nume pientíssimo e núncio sem nome, | |
| Vila dos verdes generosos, amigos dos olhos: | |
| São apenas tuas a luz e a verdade das almas! | 35 |
| Fosse puro o ânimo e fresco qual se de folhas! | |
| Seguem trilhos, paragem futuramente passada, | |
| Vista e sumida alhures por hemisférios ocultos. | |
| Aves invejadas! Parti do claustro nas nuvens! | |
| Ide a montes! Fugi procela e plagas humanas! | 40 |
| | |
| Voa por entre galhos e passa o pássaro afoito, | |
| Busca cantando a causa e trina pela colina. | |
| Mar de papilhões anis, margaridas mansinhas, | |
| Ponde fim, pequenos, ao tempo grande das aves. | |
| Casas de lenho, capelas trás o véu transparente | 45 |
| Vão ferindo o céu e além terminam as terras. | |
| Findam como a gama que ocelos vagos avistam, | |
| Perdem-se pós um piscar atrás do trilho corrido. | |
| Onde, pássaro afoito, buscar de cores a causa, | |
| Onde cantar, se canto è vento perdido nas rodas? | 50 |
| | |
| Musas mortas leram o livro dos imos do homem e | |
| Letras lacrimosas, langura, angusta esperança. | |
| Ride, algozes máximos, desses mínimos entes, | |
| Lábios inábeis ao canto, hino de amores ingentes. | |
| Símplices glórias, voz negada ao cabo dos húmeis, | 55 |
| Dai consolo ao mendigo da lira e rico na pena. | |
| Houve deuses grandevos e semi-heróis na palavra? | |
| Dai sossego ao inquedo abismo e sopro sem termo, | |
| Dor feral que apenas astros quiça perceberam. | |
| Ser humano è calar, e fora do ser a expressão. | 60 |
| | |
| Trás o monte escondem-se tantos burgos intactos, | |
| Trás as terras perpassadas um rio prestimoso. | |
| Rosto brioso raia no bom contraste de ondinas | |
| Rumo ao fim das eras e ao terno começo dos olhos. | |
| Verde sucede vertigem, cena aos cílios cerrados | 65 |
| Corre como o rio, e os cantos colorem as auras. | |
| Trás o rio a palavra termina, começam letícias | |
| Nunca faladas. Verbo, tenham fim as sentenças! | |
| Cala-te, velha musa, não seja a beleza pequena | |
| Para em ti caber, que as letras abstratas perecem. | 70 |
| | |
| Houve mestres de história, doutos e suma verdade? | |
| Sábios, nunca fostes ao flume parvo e tão franco. | |
| Rio cansado e corredio, sereníssimo curso, | |
| Quanto sangue tingiu as tuas lúcidas ondas? | |
| Passa a transição eterna fluente por ribas, | 75 |
| Plena de castros imotos e grandes vãs catedrais. | |
| São difíceis os homens, ruínas modernas tragadas, | |
| Sonho e cobiça velha: As ondas deliram as causas. | |
| Brado e soluços fartos diluíram com urros | |
| Úmidos todo o sangue. Foram lutas inúteis. | 80 |
| | |
| Longe surge no monte a torre de ameias antigas, | |
| Vale redondo e terras desbravadas e virgens. | |
| Certa flor dormiu sorvendo a sombra poente, | |
| Rubra nuvem desfez o frientíssimo escuro. | |
| Como um sol fatigado vai morrendo a colina, | 85 |
| Ledas dão graça campinas à triste estrela primeira. | |
| Noite invicta, cerraste os olhos pulcros das luzes, | |
| Mortas do ocaso que cega as almas bambas na espera. | |
| Trilhos lustrosos que iludis o romeiro sem rumo, | |
| Désseis visse o trem o súbito termo das cores. | 90 |
| | |
| Fosse o homem menino pelo campo, correndo, | |
| Véu de fantásticas chuvas, mistério puro esquecido. | |
| Dizem que há tesouro trás paisagens coradas, | |
| Ouro de raios e rosa rara e gemas briantes. | |
| Mas o fumo se esvai, cruzando azuis impalpáveis, | 95 |
| Nuvem que o sol pertranse de impossível distância. | |
| Simples amores sumos! Cantai calados os dias, | |
| Trilho e verbo finito que não seduzem a treva. | |
| Louca voz de riso, de pranto perene romagem: | |
| Sede ingênuos, meninos, sede velhos ingênuos. | 100 |
| Abstrações |
| Queres mais sentido na vida que olhar o asfalto? | |
| Coisa dura è ser ingênuo. O trem que termina | |
| dá num mar cinzento: Trilho, viga de ferro, | |
| pedra cor de nuvem. Ainda ontem raiava | |
| sol num campo. Bom è estar sentado no banco, | 5 |
| ver o mundo passar e não saber de cidade. | |
| Verde è muito bom: O mundo parece bonito. | |
| Para o trem na estação, a gente passa descendo | |
| pela escada e aqueles prédios, aquela feiura. | |
| Feio mesmo? Talvez è só desgosto nos olhos, | 10 |
| esses sim os feios, treinados em ver as coisas, | |
| cada coisa que o único canto è pousar num deserto, | |
| verde, de fato, porém deserto e mato intocado. | |
| Vai passando a pressa da gente na rua empurrando, | |
| indo ao trabalho. Fica pensando o peão pela beira, | 15 |
| cuja vida è de beira, se gente è só quem trabalha. | |
| Coisa boba. Ninguém se importa com tanta besteira. | |
| Dá um aperto no peito a fumaça. Quase que mata. | |
| Sabe Deus de que jeito se vive, Deus è que sabe. | |
| Sabe nada, quem que sabe de quê nesse mundo? | 20 |
1
| Cada esquina è mistério. Vem de longe uma gente, | |
| vence a strada e termina na rua. Ir-se embora? | |
| Onde o rumo e cadê coragem? A vida è uma pedra. | |
| Não existe lugar onde a mão se è mão de verdade | |
| não passou sem fazer uma coisa feia. Desgasta. | 25 |
| Bom de verdade è ser menino sentado na escola. | |
| Vem doutor e diz que trabalho è criar e criar e | |
| criam gado, coitados, quase morrendo na seca, | |
| plantam se Deus deixar, alavancando uma vida. | |
| Dá um dó de levar ao rio o boi, carneando | 30 |
| como peão de rua que a gente parece que ama, | |
| anda junto a vida inteira e depois que se dane. | |
| Tudo boi carneado. Trabalho è criar. Carnear! | |
| Gente sem rumo è isso, fica olhando o asfalto. | |
| Quando a rua era terra, pegava coa mão e moía, | 35 |
| indo embora o grão pelo ar. Nascia uma grama, | |
| planta qualquer. Mas essa pedra de asfalto sufoca, | |
| rua preta pra carro passar. Ali não se cresce. | |
| Tem luar de noite não, a luz è de poste. | |
| É, peão, se for de pedra o asfalto, se mata, | 40 |
2
| leva também. Leva-te além, alguma cidade, | |
| mato, qualquer lugar. A estrada è dura demais, | |
| deixa triste o pé das almas, caleja o sossego. | |
| É porém caminho de pé, e todo o caminho | |
| quando anda è duro de andar mas um dia termina. | 45 |
| Coisa qualquer que faças salva, mesmo modesta. | |
| Chega alguma parte. Será que chega de fato? | |
| Baixa a cabeça. Se chega mesmo ou morre no meio | |
| quem que sabe? Mas quando o pé se deixa e recua, | |
| quando a boca sabe já que è nada o que espera, | 50 |
| só a morte, aí não tem caminho que ajude. | |
| Pode ser de terra fresca e todo de verde. | |
| Chega não. Talvez, quem sabe, chegue milagre. | |
| Pega a enxada! Homem honesto não sobe na vida. | |
| Sobe cadê? E trabalho? Tudo boi carneado! | 55 |
| Custa andar, e cidade a gente sabe o que é, que | |
| mar de pedra, barulho, martelo batendo no prego, | |
| carro de lá e de cá, buzina: Mundo-cinzeiro. | |
| Nem se ouve nem passarinho. Ouvir de que jeito? | |
| Árvore falta, cortaram, tiraram tudo da praça. | 60 |
3
| Fica no alto uma nuvem. Chove não, de sujeira. | |
| Só pra calar a boca do céu. Se tocam viola? | |
| Que esperança? Só se for tocar de sirene! | |
| Volta e meia morre alguém por aí. Baleado. | |
| Vem de longe querendo riqueza. Vira bandido. | 65 |
| Chega aí, conhece ninguém, se abate. Desiste. | |
| Fica caçando droga. Gente ruim nesse mundo | |
| nunca falta e nem cliente. Pobre que rico, | |
| tudo atrás de fumo e de cheiro. Boi carneado! | |
| Boa è vida de índio: Caçar e pescar pelo rio. | 70 |
| Índio? Cadê maloca, peão? Tomaram seu mundo, | |
| deram-lhe a rua que è rua só de carro passar. | |
| Rua de gente tem não. Melhor! Gente pra quê? | |
| Gente è problema. Bom è viver o gado largado. | |
| Gado? Boi que se dane, gado è carne ambulante. | 75 |
| Rumo seguro na vida gente nem boi se garante. | |
| Pelo menos de noite a gente esquece asfalto, | |
| anda aí pela sombra e chega em canto qualquer. | |
| Droga de pobre è sperar, sentado o rego no chão. | |
| Craque faz milagre nenhum, e nem aguardente, | 80 |
4
| viste, peão? Fazer o quê então? Desistir? | |
| Todo rumo è rumo pra longe, rumo de embora- | |
| nunca-mais-voltar. Ninguém que saiba morrer, | |
| nem de perto nem de longe! Ficar na cidade | |
| como? Abrir um bar de beber pra viver de fiado | 85 |
| rende riqueza não. Beber de graça è gostoso? | |
| Vira padre que o vim da missa è teu. Carneado! | |
| Cada coisa! Riqueza de pobre è saúde somente, | |
| isso quando a vida poupa. Doença não falta. | |
| Coisa dura è descer do trem sem rumo nenhum, | 90 |
| casa nem cama. Chega morta ao mundo a sperança. | |
| Como não? Gente importante tem tempo de ver? | |
| Boi que se dane, lugar de carne seca è churrasco. | |
| Olha no asfalto o sentido da vida: Seguir a jamais | |
| pela estrada, pedra feia. Mas nota que a strada | 95 |
| foi de pedra, viste, não pra ter formosura, | |
| isso não – foi só pra mostrar um rumo qualquer. | |
| Veio longe o teu pé, peão, e veio de longe | |
| tão de longe parar aqui? A vida è essa. | |
| Cada dia uma cama – pedra, relento, ribeira. | 100 |
| Vem até cachorro da rua fazer companhia, | |
| Deus è bom demais. Abrigo não falta nem paz. | |
| Falta rumo só, mas rumo a gente que inventa. | |
| Essa vida è andando aqui. Ali. Sem destino. |
| Abstrações |
| Máquinas, força perambulante e metálicas flores | |
| como feições de horrores úteis brincam co fogo. | |
| Caos, um córrego metalurgicamente dourado | |
| vai passando em vulcanizado insumo de lavas. | |
| Mal imaginava um Euclides a crassa verdade: | 5 |
| Dessa caldeira sai o motor do carro, o cavalo | |
| fica lá na roça. Cantemos curas de indústria! | |
| Tubos cúbicos dão tensão, pressão ao substrato | |
| quando na pressa o fogo furioso se alastra. | |
| Passa o fluxo desordenado e de longe da aresta | 10 |
| dançam as armações alegres, maiores que a lenda. | |
| Pela banda e nas margens liquefeito o lamento | |
| ferro escorre feito escória. Dai-nos o coque, os | |
| fornos altos vociferam, mas tarda a resposta: | |
| Inda labora a coqueria, o calor enlouquece, a | 15 |
| carga parte às acerias, carvão se apresenta – | |
| indassim o mestre de máquinas olha a formosa | |
| queda, a caldeira infernal cozendo a sopa do aço | |
| quando a faísca elétrica flui. No princípio, o | |
| caos proclamava a criação cabal do universo, o | 20 |
1
| rolo trator, a comoção do cilindro de vácuo | |
| pelo petrecho, o vapor, balancim rotativo. | |
| Força adentro o teor do lingote filho da hulha, | |
| sangue do sínter pesa e na rede jaz o resíduo, | |
| fluido oleoso e moribundo. No torque ressoa | 25 |
| como a voz dum sino o novo sistema de arranque. | |
| Vai surgindo torta entre emissões a estrutura, o | |
| ferro gusa que o forno hospeda, hotel de carbono. | |
| Lá de longe repica o bailar da bobina, a soldagem | |
| raia, o líquido sol por entre escamas sombrias | 30 |
| vence, a verdade ilumina. Que fazer entretanto | |
| quando a velhice corrói a ligadura do engenho? | |
| Como dantes montado ao cavalo branco o guerreiro | |
| firme de arnês corria, ora os pobres trabalham. | |
| São valentes mãos a quem ordena uma indústria: | 35 |
| Contra o brio do aço lutar, amansar a dureza. | |
| Vão passando de impávido arnês buscando a furna | |
| donde o fogo inventa o mundo, os motores, o trilho. | |
| Mas a mente ao calcular o problema se alarma, as | |
| faces congelam quando a casa de máquinas treme. | 40 |
2
| É perigoso ver as mãos acionando o comando, os | |
| pés descendo como se pela escada da morte: | |
| »Desce logo, diminui a pressão, e cuidado!« | |
| Nessa contenda seca o bate-boca se acirra, o | |
| dedo tremula sobre a tela, o brinquedo apavora. | 45 |
| »Sobe a pressão, reduz a velocidade da banda!« | |
| Pela força do modo imperativo a trombeta insensata | |
| voa pela estrutura num contraponto de angústias, | |
| cena insuportável. Perante o fogo travam batalha | |
| contra a flama aqueles fracos, travam batalha | 50 |
| como quem reconhece, a guerra nunca se vence | |
| nem se perde, somente o cálculo engana atrevidos. | |
| Pelas histórias dessa gente insana perpassa | |
| todo o querer de mais poder, o queimar indomado | |
| contra as coisas, o roubo magistral do tesouro: | 55 |
| Surge a máquina, as armas, as novidades urbanas. | |
| Esses obreiros queriam melhor, mas pobres e pagos | |
| vão lutando armados pela aurora do incêndio: | |
| Amam de certo modo o quanto pelejam, pelejam | |
| fortes, mas o incêndio devora a própria existência. | 60 |
3
| Atos se perdem por entre a bruma suja do engenho, | |
| não contudo em vão: Enquanto a lida naufraga a | |
| vida emerge vitoriosa, o labor se trascende | |
| pelo inferno e na escaldação redime os escravos, | |
| eles que vão soldando o sol e maiores que o fogo. | 65 |
| Não te preocupes porquanto em nada te acusam, | |
| cada um aceita o seu fado e vai-se lançando | |
| flama adentro em busca da salvação e da cura – | |
| pois a máquina è mãe e vale mais do que a vida a | |
| mão que sustenta: Eles não desistem do prélio | 70 |
| quando a lida è lida irmanadora das almas. | |
| »Anda, vai, diminui a velocidade da banda, | |
| vamos senão a gente morre, a máquina explode.« | |
| Certos párias são maiores que eterna memória | |
| quando vencem o próprio ser em nome do amigo: | 75 |
| »Mas a tela quebrou, desobedece o comando, | |
| gente, corre, sai, estou perdendo o controle!« | |
| Uma coisa è mesmo verdade: A vida dum pere- | |
| grino frouxo è só poeira a mais que se espalha. | |
| Lá estão, no desespero, buscando equilíbrio as | 80 |
4
| mãos suadas, os pés que vão correndo da morte. | |
| Quando o socorro sobe e chega ao topo, a fornalha | |
| ruge desordenada: A caldeira, o vulção se transborda, | |
| cospe lava na cara do mundo e traga os incautos, | |
| náufragos sós que agora só quem salva è destino. | 85 |
| Dentro e fora, o fogo avança. »Aumenta a pressão!« | |
| Doutra parte da fábrica chega auxílio: tardio, o | |
| caso è grave, è caso perdido, è caso de apenas | |
| salve-se quem puder. Como um ladrão fugitivo a | |
| massa vai gritando e buscando a saída às pressas. | 90 |
| Pelo império ruente um bravo baixa alavancas e a- | |
| vança afoito, o apuro, o pânico, o pranto mesclados. | |
| »Vai explodir, quebrou, socorro, corre, cuidado!« | |
| Culpa de quem? Quando o lingote pesado despenca | |
| pelo coque e no ferro gusa, na poeira das hulhas | 95 |
| tudo acaba e desaba, anoitece, a morte devora. | |
| É cruel, feições de horrores úteis, custoso o | |
| preço do incêndio, o sacrifício pai dos motores. | |
| É bonito o labor conquanto ingrato, o trabalho | |
| farto e redentor e assassino, um suor castigado. | 100 |
5
| Homem brinca co fogo e no fogo o calor se consome: | |
| Deve ser a vingança do acaso e do sol que se agita. | |
| Eles morreram: O inferno destruïdor arrastando | |
| pela explosão as vigas, a vida, o ferro torcido. | |
| É, bastava a mão do destino e tudo era salvo. | 105 |
| Mas de trabalho e muita morte o mundo se assoma | |
| pelo metal, motor, futura ferrugem que aguarda. | |
| Máquinas, força perambulante e metálicas flores! | |
| Que diria Platão dessas magistrais existências? | |
| Inda sobe o vapor saliente dos corpos torrados. | 110 |
| Inda sobe a memória ordenada à causa comum, o | |
| sangue sacrificado aos assassinos do templo. | |
| Age como aqueles gregos que rentes à pedra | |
| viram: A pedra è forte. Mas deixaram a pedra | |
| pela terra, o inferno atrás, Pitágoras cego. | 115 |
| Vida de cavaleiro è livre e montada a cavalo. |
| Abstrações |
| Sobre a rocha acasalam-se as cobras. Inda se ondulam | |
| pela areia seca ou dentro de tocos quentíssimos, | |
| entre escusos terrenos sob o sol caudalosos | |
| giros, letais e lascivos. De longe acorrem serpentes | |
| rumo a congresso de víboras. Agem caudas e vértebra, | 5 |
| jactam-se quase de ossosos os maxilares abertos, | |
| dentes à espreita. Macabra dança de escamas e ecdise | |
| densa excita aos hemipênis as fêmeas vorazes. | |
| Costa e costelas uma às outras cobras constritas | |
| qual na atrofia da vítima, ora em paixão calefeita | 10 |
| rudes amores répteis cravam de marcas a pedra: | |
| Gozam em laterais espasmos a morte do antídoto. | |
| Vem desse amor infernal nas elações de venenos | |
| arte, elegante indústria: Vão guardando peçonha, a | |
| dupla poção proteica – o céu e a terra invejam a | 15 |
| obra-prima perfeita das ovovivíparas vidas. | |
| | |
| Junta-se às víboras caravana imensa e colúbridas | |
| raças extensas. Ignotos, os maxilares ensaios | |
| perdem o véu perante a morta vítima apenas, e | |
| pelos músculos torce a boia uma estranha asfixia. | 20 |
| Pobre porém a crotálea de airoso e sevo chocalho, | |
| pobres almas botrópicas: Mera malha sem viço | |
| frente ao ávido neurotóxico fluido, inóculos | |
| dentes elápidos, proteróglifas bocas de cobras | |
| raro calmas. Chegam corais ao fausto concurso de | 25 |
| listras rubro-atro-amarelas, distinta a peçonha | |
| pela América. Estas são pacientes contudo, | |
| há piores ainda, o congresso apenas começa. | |
| | |
| Doutra feição de humor se ornaram elápidas longe | |
| pela costa que outrora Ovídio temera da Líbia, | 30 |
| najas do Nilo cuspindo elixir mortífero aos olhos. | |
| São todavia fracas frente a monstros d’Austrália e | |
| cobras oxiuranas, do prado ou remota em deserto | |
| gênio irascível – irmãs daquela cobra marrom, da | |
| cobra-tigre em rajadas listras, a doce elegância | 35 |
| mãe de gotas de nunca ouvido antídoto e cura: | |
| Foram dom de hemorrágica graça e quiçá citotóxica. | |
| Guardam da boca ovantes seiva na espera da presa | |
| farta e moritura em respiratórios colapsos. | |
| | |
| Como è baixo o molecular e levíssimo peso | 40 |
| visto em tais delicados venenos. Vasta veloz a | |
| gota no sangue e no delicado tecido do corpo, | |
| mescla-se ao leme desgovernado das células ávido: | |
| Age como outrora as armas dos donos do mato, o | |
| diro desbravador arrasando um perfeito sistema. | 45 |
| Outras vezes se ouviu dizer de instantâneo colapso, | |
| pronta entrega de forças. Quando adentra a bandeira | |
| suja dos impostores è espada o destino dos índios. | |
| É preciso viver melhor e aprender com perícia, | |
| ver e ouvir de quem viveu e conhece a verdade: | 50 |
| Nunca ouviram falar dos dendroaspísicos monstros? | |
| | |
| Correm livres pelos tratos d’África elápidas | |
| longas que a fauna universal e as feras temeram. | |
| Podes cavar a cova se mordem! Cobra de espírito | |
| vário, de raro e de raramente estável caráter, | 55 |
| move como a coda em barrocas bailas o esbelto | |
| corpo delgado: A mamba negra apavora e passa | |
| mais veloz que o corredor atleta de Atenas, | |
| cruza cansada vinte quilômetros cada hora, um | |
| terço do corpo erguido e buscando ensejo de bote. | 60 |
| Sobem as árvores. Máquinas irascibilíssimas, | |
| são doadoras de morte e gratuita agonia, as | |
| omnitóxicas glândulas guardam raro tesouro. | |
| | |
| Tal poção è paraíso dum homem que invade a | |
| própria veia na agulha dum cocaínico líquido. | 65 |
| Quando a víbora piedosa inocula econômica- | |
| mente a injeção, a mamba negra morde com gosto, | |
| lança o que puder de peçonha, o serviço è completo. | |
| Ela recusa a carne humana mas se lança agitada a | |
| múltiplas ágeis mordidas, doze se a sorte acode. | 70 |
| Dura este assassinato uns dez ou vinte minutos, | |
| luta ingrata contra o mar e triunfo da gota. | |
| Quatro-centos gramas vão navegando no sangue, | |
| sim, navegar è preciso e navegando naufragam | |
| nesse mar Cleópatra e multidões da coorte. | 75 |
| | |
| Quem não temeria as dendrotoxinas selvagens? | |
| Basta se aproximar de longe a sombra da mamba, | |
| basta abrir a boca em perigosíssimo alarme e | |
| foge em debandada a matilha, o leão, o elefante | |
| sai desesperado às pressas, a selva se esconde. | 80 |
| Há quem não se impressione: A solução è o mangusto | |
| quando morde a cabeça e balança a cobra e mata. | |
| Mas quem fica mordido morre e morre bonito: | |
| Pelo campo aberto falta antídoto e herpeste, o | |
| monstro morde e passa mas a morte se hospeda | 85 |
| pelas marcas rubras. Quando morde a cabeça o | |
| termo, o colapso è generalizado e mais rápido! | |
| Rumo ao congresso as elápidas dançam pela ribeira, | |
| sobre a rocha lasciva misturam raríssimos ritos: | |
| Macho mordendo macho estrebuchando por fêmea, | 90 |
| gozo grupal em meio às redes rudes de areia e | |
| guizo de anéis. Enroscam-se pelas vértebras frias, | |
| vão bailar além num dessabe-se-o-quê de calores | |
| onde estrangulam e emanam loções, gozoso veneno, | |
| proto-amor magistral reptilicamente expressado. | 95 |
| | |
| Mas depois a metamorfose da carne e do carma | |
| faz um milagre: Passado e presente se aproximam | |
| ora que ainda vês a imagem do tempo em que foste | |
| mamba negra e que és. Ainda saliva nos dentes | |
| teus o venenoso véu que disfarça as palavras, | 100 |
| inda vives como as cobras na espera do bote. | |
| Hoje se vê correr na cidade uma prole de ofídios | |
| ora eretos, outrora macacos. O réptil evolve, | |
| cobras elápidas são agora uma estirpe distinta, | |
| são pessoas grandes: o mestre, o homem de letras, | 105 |
| sábios, poetas que vão se arrogando importância, | |
| seres perigosíssimos como os homens de bem e | |
| muitos outros, guardiões duma toxina retórica. | |
| Inda se ondula pela areia seca e quentíssimo | |
| toco o lascivo e caudaloso simpósio de víboras, | 110 |
| mescla cardiotóxica, espasmos de rara elegância. |
| Abstrações |
| Quando se encontram no pentagrama de cima, ou de | |
| baixo se preferires (qualquer que seja a clave, | |
| sol ou dó, ou que seja escala menor ou maior), | |
| duas vozes, três de repente ou quatro cantando | |
| ponto contra ponto, ocorre o prélio melódico: | 5 |
| É que as notas se fundem loucas umas às outras, | |
| lembram o bosque por onde o desavisado passante | |
| quase creu que fosse harmonia a guerra das aves – | |
| máxima a polifonia que outrora Josquin emulava! | |
| Deu impulso à missa triste de Orlando di Lasso, | 10 |
| passos por onde Bach bebeu as águas de fusas, o | |
| caos da contenda, o atrito tonal. Um raro comércio | |
| move a linha por entre as indagações do compasso. | |
| Notas vão-se casando e repulsando, os amantes | |
| cujo amor corrosivo emana uns suaves efeitos. | 15 |
| Nossas aurículas pouco atentas e dadas a incerto | |
| tom se contentam. Não porém sem norte se entortam | |
| pela clave os sons, as vozes dependem de vozes. | |
| Vão nascendo interrompendo-se, e mútua mente. | |
| | |
| Quando se cruzam notas pelos quatro espaços | 20 |
| como pontos afoitos, é preciso cuidado. | |
| Sobre o papel, aquelas duas cores contrárias | |
| dão trabalho à vida auditiva e ver a verdade | |
| custa caro. Ali, numa linha de cima, começa a | |
| fusa com haste por baixo mas olhando pro alto. | 25 |
| Vem a segunda na contra-mão procurando problema! | |
| Como se não bastasse, a terceira escolhe o caminho | |
| duma já das duas, e a quarta. Não por acorde: O | |
| grande encontro è melódico, n’é harmônico não. | |
| É, meu filho, cada traste è tomando o seu rumo | 30 |
| lá pra cima, abaixo, aguda e grave a conversa: | |
| Mas o rumo embora pareça sem rumo è prescrito, | |
| viu, tudo è estudado. Tudo tem seu momento: | |
| Hora de consonância, hora de dissonância, | |
| hora de pausa. Hora do cara pensar que basta | 35 |
| pôr tudo junto e ver o que rola, quando a verdade | |
| mesmo è deliberada, è raciocínio, è regrada. | |
| | |
| Sabe novela? Então, contraponto não é diferente, | |
| sempre a repetição daquilo, o mesmo boato, | |
| isso, aquela fofoca de sexta-feira na esquina: | 40 |
| Todo mundo repete, mas cada qual a seu tempo, | |
| cada um se dizendo senhor da versão verdadeira. | |
| Tem o canto firme. E tem os sósias do canto: | |
| Um termina, começa o outro, è como telhado – | |
| telha contra telha, telha amparando telha | 45 |
| pois nenhuma cai: a de baixo apoia a de cima, | |
| vai passando a mesma gota d’água por todas. | |
| É regime democrático mesmo, o sistema, | |
| filho, è participativo, è bonito, arrojado: | |
| Cabe todo mundo e todo mundo aparece. | 50 |
| Canto sozinho è canto gregoriano, entenda, | |
| saiba com quantos paus se faz um contraponto. | |
| Não me venha dizer que bate-boca não pode | |
| nem dizer que bonito è seu arranjo de acorde, | |
| vá, me poupe. Vá passear na floresta enquanto o | 55 |
| lobo não vem. Ali tem muito pássaro e vaca | |
| lá do pasto ensina, contraponto è destino. | |
| | |
| Nota traço compasso voz cadência soprano | |
| cláusula clave tenor passagem trítono frase | |
| linha pentagrama escala e diaboli musica | 60 |
| quinta imitação dissonância quarta terceira | |
| passa segunda primeira do ré me fá passará se | |
| dó de baixo do ré do mi do fá consonância | |
| passo pausa appogiatura sétima sexta | |
| ponto contra ponto contra próximo ponto | 65 |
| contra ponto contra próximo ponto que ponto | |
| ponto contra próximo contra ponto começa | |
| quando se encontram ponto fusas a clave | |
| ponto dá-se contra guerra melódica ponto | |
| lá do pasto ponto ensina o próximo lobo | 70 |
| dando ponto pulso contra a missa de Lasso | |
| raro contra comércio ponto próximo ponto | |
| contra ponto contra contrapontro primeiro | |
| canto ponto gregoriano próximo contra | |
| ponto ponto ponto ponto ponto e pronto | 75 |
| contra ponto: Ali tem muito pássaro e vaca | |
| lá do pasto ensina, contraponto è destino. | |
| | |
| Não se sabe na confusão da fuga a verdade | |
| nem a voz maior: O canto não è de ninguém. | |
| Como è falso o renitente tom da certeza | 80 |
| quando imita o que não existe: Sim, a beleza | |
| toca, pelas notas dum pentagrama invisível, | |
| toda a corda eletrizada das células, toca | |
| mas è fato, a barra dupla encerra a cadência – | |
| todo canto è belo porquanto è curto e singelo. | 85 |
| É bonito e doloroso assistir o conflito do | |
| sopro anunciando na fuga o fim da pureza – | |
| é bonita a fé dum transtornado temente | |
| quando à beira da morte busca eterna semente. | |
| Ele chora pela força que impede a vitória, | 90 |
| fim que o tempo entrelaçou no mesmo remendo – | |
| ele se torna a toccata redentora de Bach: A | |
| vida è canto que só se pode cantar uma vez – | |
| quem quiser ouvir esteja atento, que logo | |
| vem a barra e tudo acaba e ninguém dissuade. | 95 |
| Mas o gado segue seu passo, vagando calado | |
| pela sombra, os olhos endereçados à grama. | |
| Quando o pasto parecer indigno do canto, | |
| quando o canto for menor que a idade recorda, | |
| vaca incauta: Ela te aguarda. Ela te aguarda. | 100 |
| Abstrações |
| Toda fantasia, confuso e fortuito, parece | |
| mas perece quando a cor descobre a verdade: | |
| Verde sobre o mundo a linha cinza eminente | |
| forma a meta-metamorfose incauta. Da curva | |
| sombra cinza folha sombra flores verde | 5 |
| noite vagas cinza n’água sombra sombras | |
| cinza folhas fronde esconde espelho verde | |
| sombro n’água e cinza verde e verde e cinza. | |
| Nuvem negro-claro fosca e sistema impressão e | |
| toca perdida, verde no labirinto apodítico. | 10 |
| Ovo bozó, a cinza unidas na lava porquanto | |
| rota e verde tenso. Grande parvas e quando | |
| menos sombrias cinza, muito menos inqueda | |
| vida tonta já se movendo verde e nos foscos | |
| cantos, dança constante. Cinza ser movimento, | 15 |
| tom, sussurro verde ao derredor, epiléptica. | |
| Traço baço-estranho e mouco, cinza conquanto | |
| círculo flutuante do mar e verde das bordas, | |
| ponto dondo e casto cinza. Escuros entanto | |
| pálido três e verde esquálido nuvem amena, | 20 |
1
| verde e sombra seca o som, o versa mistura. | |
| Luz de cinza, diclofenaco del ovo bozó se | |
| cospe caminhão luvas uvas verde cadência. | |
| Foram bolastes cinza perdera será denotavam | |
| filme sorvete verde, quimera tenso de túneis | 25 |
| ave de sons ouvidos. Jamais em cinza nenhum. | |
| Longe estrela verde potássio: viver sofrimento | |
| cinza sintaxe luz, porém o côncavo gama | |
| grande matiz. Verde inexiste ser inexiste, | |
| ovo bozó pela relatividade dos pares. | 30 |
| Vistos banhavam correriam verde pudessem, | |
| ondas tenha cinza brio ilusão corriqueiras. | |
| Fluidos verde elevam, foi, morrer transparente | |
| mente na cinza chama do ré mi fá sol e lá, | |
| verde sim, se dou ré me faz chorar si mi nada. | 35 |
| Vaga e cinza dó ré mi fá sol lá sem dó, | |
| dó do sol sem verde lá. Se o dó dançaria | |
| nuvem vaga imagem cinzas deixa vozes | |
| sombra vagas fronde noite verde n’água | |
| cinza esconde sombras flor e cinza e nuvem | 40 |
2
| vaga fronde e cinza e verde e verde e cinza. | |
| Iam voz esconde vagais alado cinza vorazes | |
| manda mamar. Clarão e verde e fluiu prateado | |
| tempo, raro de olhar. Cinza claros o risco, | |
| ponto e verde a meta-matemática e curvo. | 45 |
| Listra caírem frente ao ser e cinza deitadas | |
| leva estranha, verde comer. Convexa madeixa | |
| cruza cinza causou tivesse dum ovo bozó de. | |
| Pois que a teoria da verde atividade, | |
| cinza embora a relatividade e das mortes: | 50 |
| Ó cantardes pouca sorte, verde momento! | |
| Perde rubro ao cinza o sonho, sonho mentira, | |
| tudo passa e doce o medo e verde e mistério. | |
| Eis esquerda pedra cinza, os anos modernas, | |
| folha cambelando verde: Querer, ser, sofrer. | 55 |
| Doido cinza Alice país, maravilha prosaico, | |
| dentro ruído e rua e cinza e rasgo e de carro, | |
| trem das árvores sempre verde nunca na ponte. | |
| Postes cinza nasceste terá solfejo e sulfato | |
| d’ovo bozó florescente. Hora verdes e boca | 60 |
3
| fala que nunca cinza acaba o cloreto de manga, | |
| manjo, mangá que embora verde então ventilasse | |
| canta metálicas: Ave fêmea cinza no asfalto. | |
| Correm belas éguas de pés e verde rapaces. | |
| Era drogado? Não e verde e tudo mentira | 65 |
| passa, passa, avenida cinza, irreais artefato. | |
| Verde? Vovó de biquíni balança a sandália, | |
| cai no chão o jiló da cumbuca cinza da bruxa, | |
| verde o fio-dental-edredom grudado no modess. | |
| Sapo de para com de cinza que passa e portanto | 70 |
| tudo passarem verde enquanto. Camadas diante | |
| d’ovo bozó que sofre sempre cinza, vivendo | |
| rato e vi rato vendo e roendo o rabo verde, | |
| spelho cinza e vago vozes soam sombras | |
| vagas verdes cinzas folhas vagam vão e | 75 |
| vêm em vão e n’água cinzas vozes sombras | |
| flor e noite e cinza e verde e verde e cinza. | |
| Olho que para da contra semi-outrora te cinza | |
| formam do verde escuro vampiro onírico têm de. |
4
| Ovo bozó, ovo bozó – e cinza – e mormente | 80 |
| tudo passa as mordomo são mordente que verde. | |
| Verde bozó, capitão, cafetão do capeta e peitão se | |
| vândalos um, que longe a reta demais paralelam. | |
| Vale próximo movem cinza estranho de pontos, | |
| pontos de estranho verde movem próximo vale? | 85 |
| Cena e trator! Desejo è dor. A cinza è verdade. | |
| Ovo bozó, ovo bozó, verde e jante o bozó dos | |
| dedos os quais, retângulo cinza dá-lhe entretanto | |
| longe da escada verde: Jacó numismática nuvem. | |
| Abre-se quando quem todavia as nunca foi cinza, | 90 |
| digo e repito, verde de dó que porém sobretudo. | |
| Trás o trânsito três transtorno e cinza vermelha: | |
| Ovo bozó, ovo bozó coa vovó que a da verde e | |
| beija o chupa-cabra e rebola a vaca da cinza! | |
| Pousa a pupila sobre a sombra verde e medita | 95 |
| semirretas, prisco o cinza, vertigem de arestas. | |
| Passo, sofres, verde, morremos, viveis, cessarão e | |
| quando sentar, sentar e cinza. Das quais existência | |
| letra e livro verde que quando cai de repente. | |
| Ovo bozó, que noite-quase-dia e que os cinza | 100 |
| scondem verdes vozes sombro espelho soam | |
| cinza imagem fronde vaga deixa nuvem | |
| flores vagam folhas cinza e sombra e cinza | |
| verde e cinza e verde e cinza imagem sombram. | |
| São quimeras e pouca verde e cinza momento | 105 |
| nada, cinza a pata choca do chão que morrendo | |
| beija: Tudo papa verde, tudo ilusão que sofres | |
| ovo bozó, ovo, povo, ovo bozó. |
| Abstrações |
| Bom è abrir um lindo e financeiro instituto | |
| tipo um banco-zumbi, aquele banco falido | |
| mas ativo: Todo mundo sabe que è treta, | |
| só cliente que não. O cara guarda dinheiro, | |
| quer sacar não pode: Defeito, o caixa lamenta | 5 |
| pelo transtorno. Fim de ano toma empréstimo, | |
| compra casa e diz que pode pagar depois, que | |
| banco è bom demais. A casa não vale a garagem | |
| mas è casa própria, orgulho e sonho da gente. | |
| Banco ruim è bom também. Vive de empréstimo e | 10 |
| Nunca fecha. Ministro torce a cara, protesta, | |
| manda abrir falência. «Mas ministro, queísso? | |
| Essa gente toda aí que depende do banco, | |
| como vive se o banco quebra? Tem que ajudar!» | |
| Tudo ator de primeira. Governo empresta fortuna, | 15 |
| faz aquele cu-doce mas cede. Gente do demo | |
| mesmo è peão de bolsa, povo de ações e valores. | |
| Volta e meia chega alguém caçando conversa: | |
| «Banco zumbi vendendo toca a valor de palácio? | |
| Vale nem a cueca essa porra! Pago a metade!» | 20 |
1
| Aí bastou. A comoção se alastra na bolsa, | |
| nervo à flor da pele. Fazer negócio de otário | |
| custa caro: Perde valor num dia o bagulho e | |
| banco se alarma: Diz que a casa è boa, garante! | |
| Quando a novidade se espalha o banco se irrita, | 25 |
| inda mais se è banco-zumbi. Não tem piedade: E | |
| banco è flor que se cheire? Não perde nem tempo, | |
| manda carta: «Dinheiro da casa paga amanhã! | |
| Paga logo ou sai, vagabundo!» Pobre è assim. | |
| Banco e bolsa se acusam, o bate-boca de praxe: | 30 |
| Teve banco aí dizendo que a culpa è da bolsa, | |
| desde o começo peão botando fogo na lenha, | |
| todo dia fazendo o preço da casa aumentar. Mas | |
| quem não sabe o começo de falatório no mundo? | |
| Seis bilhões de bocas! Converseiro, rapaz, que | 35 |
| nem novela da Globo vence. Culpa de quem? | |
| Culpa do mundo! Daí se reúne gente do mundo | |
| todo e começa a falar de crise e reforma do mundo e | |
| banco dando dinheiro pro povo e país se acabando e | |
| banco tomando a casa do povo. Dinheiro cadê? | 40 |
2
| Tem dinheiro mesmo, existe? Oitenta trilhões, | |
| dizem, de americanos dólares correm na Terra. | |
| Disso, porém, dinheiro impresso, nota e moeda | |
| modo-de dar comida a pobre, cinco trilhões, è | |
| isso aí. O resto è somente o valor nominal, | 45 |
| cifras só de alimentar programa de cálculo, | |
| lista computada em máquina. Dinheiro è conversa. | |
| Fosse impresso todo o valor nominal financeiro – | |
| É metal e papel que não cabe nem no Oceano, | |
| sem contar que o Pacífico todo foi invadido | 50 |
| já pelo império plástico, tóxico não reciclável. | |
| Fica peixe tentanto comer sacola de compra e | |
| ver se encontra rumo. Este mundo è de lixo, mas | |
| banco diz que investe em limpeza, aí que è bonito. | |
| Bom è ministro querendo dar lição em banqueiro. | 55 |
| Mexe com banco, negão! Vira e mexe descobrem | |
| novo roubo e converseiro de imprensa e comédia. | |
| Vem ministro falar de improbidade no banco e | |
| dá-lhe multa: Toma! Banco reclama mas paga. | |
| Dois milhões, jornal adora. Depois dalguns dias | 60 |
3
| vence aquela dívida lá do governo ao banco: | |
| Dez milhões. Ministro ri, promete e não paga. | |
| Faz o quê o rapaz? Empresta do mesmo banco! | |
| Doze milhões, inclusos juros e juros de juros. | |
| Terra onde banco se acaba se acaba junto co banco: | 65 |
| I rest my case. Crise? Crise de rico è enxaqueca e | |
| lá se dói perder dinheiro que nunca existiu? | |
| Dói è ficar na fila quando o banco-zumbi | |
| fecha – fecha entre aspas, banco não fecha, | |
| banco muda de nome. Fica a gente na frente, | 70 |
| spera o segurança vir e abrir a portinha. | |
| Uns até se irritam, parece: Cena de filme. | |
| Chato è quando a galera invade. Desce a escada | |
| rumo à caixa forte e força. Cadê lo dinheiro? | |
| Tem alguma coisinha, claro, podem comer | 75 |
| lá no Hilton uma ou duas vezes, com sorte. | |
| Todo resto è dinheiro abstrato e nunca se vê. | |
| Não poder imprimir senão o que existe de ouro? | |
| Essa história do ouro e da prata como padrão, | |
| isso acabou. Oitenta trilhões de dólares-ouro? | 80 |
4
| Minas Gerais teria de ser do tamanho de Júpiter: | |
| Haja extração, colônia, haja porão na Inglaterra! | |
| Quem precisa de ouro, gente? Ouro è bobagem! | |
| Hoje è cartão de crédito. O cara compra a parada | |
| sem tocar em nota e moeda, acabou-se a sujeira, | 85 |
| cifra, lenga-lenga. O mundo virou uma aposta | |
| tipo a da mega-sena. Jogo de azar a quem perde | |
| todo o dinheiro que só existe pra ser perdido – | |
| sorte a quem ganhou fortuna que o povo perdeu. | |
| Foi o cara da bolsa fazendo alarde do nada? | 90 |
| Foi o banco-zumbi que ressuscitou da falência? | |
| Ambos os dois tiveram sim parcela de culpa. | |
| Uma coisa eu digo, ministro: Mexe com banco | |
| não pra depois não dizer que ninguém te avisou! | |
| Essa coisa de Estado intervindo em banco, meu caro, | 95 |
| só quem pode mesmo e quem não pode se arranje! | |
| Mundo justo mais que este è ruim de se crer. | |
| Tudo è lindo, tudo è divino e basta um negócio, | |
| mesmo com banco-zumbi, que nunca falta dinheiro. | |
| Pobre reclama demais. Pra ter dinheiro de fato | 100 |
| basta enriquecer! Banco tem sempre lugar, não | |
| falta nunca espaço pr’uma continha a mais. | |
| Basta enriquecer, è simples, e a vida melhora. | |
| Por isto è que digo: Bom è abrir um banco bonito, | |
| bem bonito mesmo – daqueles que vendem casa, | 105 |
| treta e tudo o mais. Peão? Peão que se dane. |
| Abstrações |
| Dormes em frente à tela aborrecido na rede: | |
| Quando a pupila recoberta em treva se estende | |
| surge a imagem congelada que nunca sumira. | |
| Como no filme as pausas paralisam os sonhos, | |
| ora se assiste após a velha vertigem o enredo. | 5 |
| Passa a cena inteira frente aos pés da cadeira: | |
| Longe os correios, longe aquela carta grafada, | |
| hoje a bateção no teclado è pré-fabricada; | |
| perto continua a mentira, o buscar de mistério, | |
| barca varando na seta branca o botão pequenino. | 10 |
| Vai buscando mas não há resposta nem busca: | |
| Não existe existir, existir ilude a poeira. | |
| Onde a margem do rio generoso esconde o vau, o | |
| dedo cansado sofre – tocou demais o teclado. | |
| Fica lendo mas o livro acabou, a verdade, | 15 |
| verso acabou, sobrou o comentário da massa. | |
| Pouco vadoso è rio que mais parece oceano | |
| pois ninguém atravessa, só navega e se entrega. | |
| Quanto mais avança não chega a nenhum paradeiro. | |
| Como pode ser infinito o pequeno, o quadrado | 20 |
1
| mar que è rede nem de peixe e nem de consolo? | |
| Basta um toque no xis e o peixe morre na rede. | |
| Tudo o que chamas eu ou meu transita num rio | |
| entre duas margens longe de eu e de meu. | |
| Esses amigos de rede e gente que não conheces | 25 |
| são aspectos perto e longe mesmo que perto. | |
| Vão esparramando imagens, textos e heroicas | |
| fugas que os animados comentam. Dividem a cena, | |
| nunca a vida. Vivem sim por trás da existência. | |
| Pela tela as mãos navegam nas vagas do novo, | 30 |
| porto que nunca è porto como o novo è novelo: | |
| Passa o fio no rumo que o queres fiar pela roca, | |
| antes, depois do dedo o mesmo traço delgado. | |
| Desses mesmos fios se faz a rede moderna, | |
| nova porém caduca porquanto rede è de fio: | 35 |
| Novas na vida apenas moda e morte que è velha. | |
| Esse desassossego não tem amigo que amanse, | |
| moda e nem a morte talvez. A rede è de imagens. | |
| Dentro porém a vida è vária, ninguém a conhece. | |
| Rede não cura o peito, rede não cura oceano, | 40 |
2
| fundo que nem do pego atro o monstro vislumbra. | |
| Buscas debalde a fibra redentora da roca, o | |
| fio que caiba em letra, cifra, traços, imagem. | |
| Tudo o que chamas eu è traço e fio que se quebra, | |
| nem proclames «existe, è verdade» se assim se desfaz. | 45 |
| Morres na rede que rola e reduz o peito a palavra, | |
| nunca pisas no porto o chão de entranhas dum homem. | |
| Sabes do estranho apenas por intermédio do símbolo, | |
| mas no vento o amigo e o pai continuam estranhos. | |
| Dormes em frente à tela, identidade assombrosa, | 50 |
| quando das cinzas ressuscita a ilusão da existência. | |
| Essas navegações dentre alucinadas paragens | |
| são mentira e nem a letra dum livro è constante. | |
| Pulsa o peito, um fogo ao lado alheio da rede? | |
| Há de fato um porto à barca em meio a tormenta? | 55 |
| Talvez se computem sós as letras, nós nos perdemos | |
| como um poema sereno e sem verso, fim do infinito. | |
| Quase toda função desta vida tem seu programa e | |
| novo modo de cálculo, escrita, acúmulo e lista: | |
| Gente outrora dispersa se reencontra na rede. | 60 |
3
| Mas o que não se vê nem conta è límpida essência, | |
| e sim dizerem «eu» ou «meu» duma breve aparência. | |
| É bonito como o novo botão obedece o comando, | |
| é fugaz a união dos nautas num laço singelo. | |
| Onde o discernimento soube o sopro do alheio, | 65 |
| onde existiram dois amantes que a si conhecessem? | |
| Somos o beijo, mas beleza è mais perto do sopro, a | |
| boca è pior que a verdade. Peito è somente conceito, | |
| vírus trojano. Passam o scan, o set-up e consigo | |
| levam a presunção para o lado certo do espelho: | 70 |
| Lado da imagem sem carne, onde a mentira è conspícua, | |
| onde moramos e moram o eu e o meu que chamamos | |
| mas não somos: Nada existe fora do espelho, | |
| fora do espelho a carne è tão somente impressão. | |
| Eles que são heróis, se agiram nobre e calados | 75 |
| não deixaram memória, são perdidos os atos. | |
| Eles que são banais porém deixaram palavras, | |
| têm memória até sem mérito: o verbo è maior e | |
| vida menor que verbo è sofrimento, è momento. | |
| Vais fechando os olhos frente àquele teclado | 80 |
4
| mas da rede não se assiste a tua incerteza. | |
| É de raro proveito o dado e perfis se desgastam | |
| ante o dano das horas que esgota glórias e gana. | |
| Inda se busca amigo na vida e menos palavra? | |
| Pulsa no peito aquela espera do ponto final, | 85 |
| verso derradeiro e confortador, invencível. | |
| Pobre o coração que atende o termo da letra | |
| quando no verbo finito o traço finda do peito. | |
| Esta vida è busca de verbo mais do que amigo! | |
| Vão passando cenas na tela. Os olhos saudosos | 90 |
| leram pelas teclas o livro errante da rede, | |
| mas um toque no xis bastou, a janela se fecha, | |
| joga fora a palavra, a identidade, aparência. | |
| Quem navega entrega-se ao mar, è esta a verdade, | |
| pois flutua, mas vence apenas se o mar permitir. | 95 |
| Não navegues e não caminhes, não existas, | |
| não, transcende apenas a impostura do espelho. | |
| Abre os olhos! Quando a vertigem traga a verdade, | |
| quando o sono se abate em ambos lados da imagem, | |
| tarde da madrugada è tarde demais, è fugaz. | 100 |
| Mas o cor vislumbra à janela um mundo indelével | |
| como se fosse possível além do afã da palavra. | |
| Essa janela è só imagem, mas sopro que sofre | |
| sofre pois a cor è bela e mais que a verdade. |
| Abstrações |
| Versu e sermom vulgare, vita cantemus vetusta, | |
| Nullam in agru color, nuves graves in corde. | |
| Neve eterna descende montes e terram invernesce, | |
| Cade per planu ella flor ante virdes amors. | |
| Curas vero a tantu, frigido montem ascender? | 5 |
| Quem in culme querer, quales curres itiners? | |
| Paucum pectu sape rotas nostras obliquas, | |
| Court inter pedes mort, multu morbu succumbes. | |
| Tenes cum manu forte frumentu e virga cum altra, | |
| Mundu, monstru, nox, umbra ni bruma timente. | 10 |
| | |
| Quando ad oclos surgit imago de baratros albos, | |
| Animu quomo in crux perit crudel e turbatu. | |
| Obe miran, silentiu, neve guberna cum ventu, | |
| Solo consola cel pedes e paula peritia. | |
| Miser spirat in hos periclos nullos calores, | 15 |
| Numqua que firme stat contra nuves tremente, | |
| Quasi perdit ho cuer, hoc animu, virga si vasta | |
| Manu intuta suflar, gelu a digitos duros. | |
| Nulla nata si re amades, causa ni mente, | |
| Buccas de ventu vox furia fauces de infernu. | 20 |
| | |
| Quis iudare abe qui fuge longe de terras? | |
| Nullu refugiu das quando ermitas o rogant. | |
| Preliu procelas ira profliga pedes sin passu, | |
| Semper a mont ambular, home naufragu in neve. | |
| Cum natiom qualconque impera nova superbia, | 25 |
| Vanas curas de lex contra flacos prorumpen. | |
| Paula vero de imperiu gloria si fugas o premiu, | |
| Mort e tyrannu rex, metu tantu e sevitia. | |
| Fabulas curren buccas, odiu, diras doctrinas: | |
| Patrie tantum sunt fils li home communes, | 30 |
| Ipsa de pelle color et ipso sermom loquentes, | |
| Qual si peuplu jus plus habuera de mundu, | |
| Unu poblu magis que totos altros a terram, | |
| Parte queconque habitar obe nullu vicinu, | |
| Numqua in urbe sua corpu de terra aliena. | 35 |
| Facil fortuna furt quando mal dividenda. | |
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| Sub ella neve pugnan quasi mortuas feras. | |
| Sic inter homes pax, facies quomo de gelu, | |
| Fundu vero infernu, furnu de virus feroces. | |
| Venent a portas perir parias vitas sin patria, | 40 |
| Paupres pedes a callu, bucca cedendo a sitim. | |
| Queren fugentes sol, locu alicum de morendi | |
| Posque mundu negaui terras tantas refugiu. | |
| Miser de cuncta part passu expulsu ambulante, | |
| Super petra cade a vices ho corpu curvatu, | 45 |
| Nullu bracciu redder manus ad ossu levandas. | |
| Facie triste cum toga rupta de ventu protegen, | |
| Rugas de oscuru feral, oclos sin obe mirando. | |
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| Cuiu sperar pietat in tal desertu alicuna? | |
| Gelu tantu et ar sunt a pedes companes. | 50 |
| Subito freme terra, mont e neve ruente, | |
| Virgam devorat e spem, villas vasta vetustas. | |
| Nulla conseque vero delir hoc animu forte | |
| Cum ascend in o cuor foco de ventu vincendi, | |
| Grands desirs ad ellas stellas tantu cognotos. | 55 |
| Suben semper plus ultra e contra nature | |
| pedes petras quomo de monts et amurs sinuoses. | |
| Quanta illuserun vix vias malas et somnu | |
| Vitas a fauces unde ni volante egressere. | |
| Homes furt ingannats, iocu de mort torturata. | 60 |
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| Stelle Deu, ametz en umbre vous a mortales? | |
| Courent tuit li vent contre vita e les vents, | |
| Court li vents et la vita è vaine contre le vent. | |
| Prend ella togam li vents, tarde queres salute. | |
| Passa passu melior e spera fine de infernu! | 65 |
| Iam de circa pots verre o culmen abscontu, | |
| Grande gaudiu a corde raru amorem stilante. | |
| Que te sustene ment, quale premiu quereres? | |
| Non te atende res in frigidu monte que morte. | |
| Magis miras a cel, magis longe ceruleus, | 70 |
| Tantum livor te circat, tibi parat extremam. | |
| Nullu flavu ni sol veult o solu salvere. | |
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| Ultima curvam vides ante victoriam clamante, | |
| Vent in o monte nox atra gelu tremores. | |
| Ubeconque mirares anima nulla apparere, | 75 |
| Perdes in vastu vall oclos animu pensu. | |
| Cadet a vices virga, crema neve ellas manus | |
| Quando molle prends vitam cum digitos mortuos. | |
| Veuls in van ambuler si cata passu periclos? | |
| Meurs in neve iam, exul, nulla morata! | 80 |
| Vero mult se plaint o cives a nullu peuplu, | |
| Nuls desire voir home expulsu de cunctos. | |
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| Date, celi, poete parabola ad hora narranda | |
| Clara cum ella lux fine de facies facit. | |
| Advena curre cito ad ultimu culme de monte, | 85 |
| Genu flexu mort mirat in lapides latas. | |
| Corpus iam declinatu crepa virgam de veteru, | |
| Cranios vide mults mortos in terra clavatos, | |
| Frigide cova ouverta d'homes illac arrivetes, | |
| Locu a regressu nul, mundu invernu feroce. | 90 |
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| Sed in baratru altissimu tingen neve miracles! | |
| Miser primum de cel radiu diluculu et stellas | |
| Anteque muria mirat e pleure in aurore supreme. | |
| Vois le mysterium froid, joie qui cherche du mondu | |
| Comme li ciel le pied du paupre a nulla demeura. | 95 |
| Viens chanter, mon fils, voix des hommes perdus, | |
| Songe le triste état du pas sans but ni chemin. | |
| Tant de niège descend, nuit, l'hiver de la terre, | |
| Lourd le pas mendiant, le mont la ville du loup. | |
| Courent tous les vents contre l'ivresse du coeur. | 100 |
| Abstrações |
| Deus dos deserdados, chega ao fim o pateta! | |
| Como nada fiz na vida além do meu verso | |
| morro tarde. Deito-me escuro e vejo no teto | |
| turvo a luz que o carro, vindo da rua à janela, | |
| vai deixando para trás. Pergunto às paredes | 5 |
| onde estou. Eu preferia que a luz não passasse | |
| pela cortina da sala. Fechar os olhos ajuda? | |
| Nem sabia que estavam abertos. Vias se fecham, | |
| quase parece a vida parede e quadrado cercado. | |
| Toda hora nossa è última e vendo a pintura | 10 |
| penso: Será possível? Passar fazendo nada. | |
| Quero dormir, esquecer, o sono porém engana: | |
| Durmo mal e acordo cansado, o peito pesado. | |
| Nada? Que diria Deus perante o poeta? | |
| Deus condena inércia mas è vão responder. | 15 |
| Quis ajudar alguém e dar ao mundo uma prenda | |
| como se o mundo esperasse, desejasse, pedisse. | |
| Spera dinheiro, tenho apenas o inverso, verso. | |
| Nunca salvei uma vida embora às vezes quisesse. | |
| Eu portanto confesso, nada fiz e não presto. | 20 |
1
| Quem è Deus? Perante a vida repito que nada | |
| fiz além. O impulso da gente busca por tanta | |
| coisa grande e nunca descansa e morre buscando. | |
| Nem bozó de beira de estrada resolve o dilema: | |
| Já pensei numa improvisada e penso demais. | 25 |
| Morro buscando. Morro, claro, e busco a verdade. | |
| Tudo vai de como a gente enxerga essa vida, | |
| pois se a vida è grande, como somos pequenos? | |
| Mas se for pequena, como queremos ser grandes? | |
| Nada vai de como a gente enxerga essa vida, | 30 |
| vida que acaba coa gente como a gente coa vida. | |
| Tem quem fuja. Quando falava assim pela escola, | |
| (pois na escola andava já descontente da vida), | |
| tinha um amigo meu, não sei se aluno ou docente, | |
| gente boa que sempre dizia: Casa que passa! | 35 |
| Certa vez me tomou a leitura: «Eh, Baudelaire, | |
| quanta falta te fez ua boceta. Tivesse fodido | |
| nunca teria escrito isso aí.» Amigo do peito, | |
| ia ao baile caçar mulher. Caçou mas casou-se, | |
| teve um filho: vida simples, aquela vidinha, | 40 |
2
| gente jovem caçando amor, afeição – fodeção! | |
| Certo ele, bacana! Botar filhote no mundo | |
| quem não pode! No esforço tudo vai se criando, | |
| tudo: peão, menino, cachorro, tudo procria. | |
| Mas se a vida for grande, como fica a vidinha? | 45 |
| Morre tarde. Vejo a parede, gado as gramíneas. | |
| Que diria o rapaz se a vida de cada um esperasse | |
| algo de cada um que ninguém sabe dar? Abstrações? | |
| Eis o que o mundo espera, filho, mais que a vida. | |
| Como Platão no Simpósio grego evocava seu parto, | 50 |
| obra imortal, eu vou buscando no muro o sublime, | |
| marco o farol dos carros que nunca foram sublimes | |
| nem no novo modelo – e como invadem as vidas! | |
| Eu, averso à novidade? Suspeitas não faltam. | |
| É que busco o novo mas buscando envelheço. | 55 |
| Noto o poeta do agora como corre do velho | |
| rumo à modernidade e contemporâneas essências... | |
| Como se Richard nunca tivesse composto Tristão, | |
| como se fosse mesmo tudo autêntico e fresco. | |
| Não se escreve para o tempo e sim para a vida, | 60 |
3
| firme, inexoravelmente, que nem o regente | |
| surdo indiferente ao público algoz dessa vida. | |
| Deus não dà asa a cobra, rapaz: Prefere abutre. | |
| Parem de escrever, de sentir, de viver, de morrer. | |
| Parem com esta inútil samsara. Calem a boca, | 65 |
| pelo amor da boca. Bonito è sentar numa pedra, | |
| ver que è tudo mentira e meditar, meditar, | |
| ver, meditar até morrer – e parar de morrer! | |
| Ser è viver e foder, passar è maior que nascer. | |
| Já falei demais, porém prossigo e com gosto – | 70 |
| Tinha uma amiga que apareceu do nada dizendo: | |
| «Era viado ou mal-resolvido o Fernando Pessoa! | |
| Essa negatividade do cara, essas coisas! | |
| Dá no saco!» Freud explica e bonito è vidinha, | |
| isso, bonito è novela e Epicuro vive escondido. | 75 |
| Vida de nunca ser notado e perdida è verdade, | |
| ir passando o peixe num lago calmo e profundo. | |
| Coisa verdadeira è coisa além desse tédio, | |
| dessa dicotomia vida-e-morte, è vitória. | |
| Mas o fim do verso, eternidade è derrota. | 80 |
4
| Que derrota, rapaz, não vale a pena memória. | |
| Passa a razão além da razão e todas as causas | |
| foram irracionais e è fortuito existirmos. | |
| Eu que sei? Em milhares de anos esta poeira | |
| proto-verbal será piada se houver existência. | 85 |
| Riso è poema hodierno, contudo o mesmíssimo riso | |
| velho que entoa firme o moderno velho do agora. | |
| Quero deixar poeira de eterna e nenhuma memória. | |
| Quero arrancar um riso escroto dum povo pior. | |
| Povo? Na morte ou memória, vou passando calmo | 90 |
| como se todo instante me fosse a última hora... | |
| Nada melhor do que a compaixão, divino elemento. | |
| Quero encontrar a luz que torne nobre a vidinha! | |
| Quero parar, quero deixar de querer o que passa. | |
| Quando melhor vier, deixarei de lado o poema. | 95 |
| Nunca escolhi poemas, sempre fui escolhido. | |
| Tanto pareço ter vivido que nunca fui jovem, | |
| eu que não sou, apenas passo e como passo | |
| não existo de fato. Sou um farol de automóvel, | |
| luz amarelada nas telas abstratas do teto. | 100 |
5
| Teto è bom. È irrelevante o infinito. Bonito | |
| mesmo è morrer e parar de morrer. Ser è ilusão. | |
| Pois assim è que é: Você pensa que é, e do nada | |
| passa e quem fica passa a vida chorando o que passa. | |
| Dor que è dor è dor porque nasce do apego: Apague. | 105 |
| Nada que existe em mim existe além do que è mim. | |
| Vou deixando a cortina aberta, sentindo uma brisa | |
| fresca e de muito longe. Vou buscando uma estrela | |
| como se fosse a minha antiga e maior companheira, | |
| mas me engano, não, a estrela nem me conhece, | 110 |
| ela que adentra o meu peito, eu que vou me apegando: | |
| Por quê? È do apego que nasce o desespero e me perco. | |
| Lanço o meu olhar aos astros e sei que sou fraco: | |
| Ai se soubésseis, estrelinhas, o fim dos segredos! | |
| Mas as estrelas são demais, joviais, arrojadas, | 115 |
| são irreverentes mesmo. Cintilam e cantam | |
| lá do alto o seu canto inovador, a resposta. | |
| Eu, da janela, fico ouvindo a grande verdade, | |
| única voz que o firmamento ecoa aos que choram: | |
| Deixe de viadagem e vá trabalhar, vagabundo! | 120 |