Canto Estelar
© Gregorius Vatis Advena 2014, Record L 3, Engl. Song of the Stars, May 2014 to October 2014, Balearic Islands, Hampshire, one verse, 2229 lines, lyric poetry, Portuguese.
© Gregorius Vatis Advena 2014, Record L 3, Engl. Song of the Stars, May 2014 to October 2014, Balearic Islands, Hampshire, one verse, 2229 lines, lyric poetry, Portuguese.

O foco inicial desta obra são “as alegrias” no que revelam uma transcendência íntima espontânea. Ao buscar entender os sentimentos, o eu-lírico questiona sua relação com a verdade, a beleza, o bem e outros conceitos. O céu estrelado torna-se o palco da busca e parte do eu-lírico.
O Canto Estelar é uma evocação da noite como representação da fragilidade. Incapaz de explicar a origem e o significado final dos sentimentos, o eu-lírico confirma-se e duvida de si mesmo como objeto do auto-conhecimento. Recordará, em seu estudo, cenas da infância.
Kinderszenen, X. Fast zu Ernst, por R. Schumann, performance de Cristoph Zbinden – Musopen CC BY 3.0.
O verso é livre – embora passagens isoladas exibam caráter métrico, a liberdade do verso consiste em aceitar qualquer forma sem submeter-se a nenhuma. O poema forma um corpo unitário sem subdivisões. Cá e lá, a cruz pátea (✠) marca possíveis pontos de descanso ao leitor.
| As alegrias supremas são noturnas. | |
| Começam quando a forma das cores | |
| Se esvai e quando as causas terminam. | |
| É nessas horas sem roupa nem ruído | |
| Que algum dos homens se deita a calar. | 5 |
| Não porém a dormir. Os olhos abertos | |
| Vagam de um ponto ao outro no escuro – | |
| Vago, pois do chão que mira o teto | |
| As metrias e as retas cessam de ser. | |
| E não existe teto na escuridão. | 10 |
| O imenso afora transforma-se no fim | |
| Da visão, da perfeição dos sentidos. | |
| Um espaço cheio de pontos, perdidos, | |
| Inalcançáveis talvez. Ao menos às mãos. | |
| Mas as nossas mãos são mesmo infelizes. | 15 |
| As alegrias vêm dalguma cegueira doce. | |
| Tantos focos que nem desejam ser vistos | |
| Nem a vista alcança ou vê de verdade | |
| São acenos dum mundo impossível, | |
| Fenômenos extremamente arrojados. | 20 |
1
| O impenetrável visto como supremo | |
| Cala as palavras, a boca e poderes. | |
| Se houvesse tantos lábios | |
| Como acima de nós as folhas e o brilho, | |
| Já se pudera cantar como nem estrelas. | 25 |
| Como é fraca a boca e fraca a vista! | |
| O primeiro canto de dar às alegrias | |
| Seja a canção dos nossos olhos fechados. | |
| Quanto mais se escondem das causas | |
| Mais as causas de longe os invadem. ✠ | 30 |
| Abre-se frente aos sonhos o pentagrama, | |
| Vasto onde as notas se inscrevem sem linhas. | |
| As partes são canto e canto os olhos ligam, | |
| Nem se sabe já se fechados, se abertos, | |
| Ligam apenas – e as linhas vão surgindo, | 35 |
| Longas, onde quer que exista espaço, | |
| Pelo espaço alcance. Mas os olhos fracos | |
| Tudo tocam coas mãos e vão enchendo | |
| Os caminhos altos de imagens invisíveis. | |
| Querem alçar-se aos derradeiros largos, | 40 |
2
| Além do traço em que se perdem as letras | |
| E o mundo o seu tamanho. Cessam estradas, | |
| Agora que o rumo é sem metro e sem fim, | |
| E já não erram os passos. Andam apenas, | |
| Pois andar é bom, e toda parte é mistério. | 45 |
| Nem o vento sabe olor dos astros que traz, | |
| Rastos dum deus perdido e de sombras. | |
| O medo nosso de sombras se esquece. | |
| São a ponte apenas para os jamais, | |
| Elas que certamente mais nos temem, | 50 |
| Pontes aladas ao nada formosíssimo. | |
| Gozo é fitar no alto o berço do escuro, | |
| Calmo, e cego fiar-se nas cavas | |
| Sem temer – amar a cegueira sem fim, | |
| Que as alegrias sublimes são noturnas. | 55 |
| Inventam astros e as noites que inventam | |
| Foram as noites mais felizes de vidas | |
| Na floresta de afrescos abstratos. | |
| Se basta um par de pontos entre os quais | |
| Passar uma linha, linhas e linhas passam, | 60 |
3
| Brincam como cílios. As paralelas bailam, | |
| Se cruzam toda parte onde a parte é todo. | |
| Esse porém que cala, deitado no espaço, | |
| Viajeiro perdido – perde o seu tempo. | |
| Mas o tempo a gente sempre vai perdendo, | 65 |
| Existe apenas para ser perdido além. | |
| O tempo pesa. As alegrias são leves. | |
| Os sonhos levantam as asas e levam | |
| Rumo a fogos distantes um sopro, | |
| Como se fosse fácil vagar – e voar. | 70 |
| Não existem números mais na distância, | |
| O tempo suspenso prescinde das causas. ✠ | |
| Nessas horas de flutuações indescritas | |
| O ser indefinido indaga o nada: | |
| Que são as alegrias? Donde vêm? | 75 |
| As palavras da boca são imensas, | |
| Poucas, e as linhas inexplicáveis. | |
| Firme apenas o sono que envolve | |
| A nudez das respostas. E quão vazias. | |
| Mal se encerram os olhos, os olhos veem | 80 |
4
| Como toda parte é falta de causa. | |
| As pedras de tropeço jazem por aí, | |
| Indiferentes, mostrando o que há. | |
| E no entanto os ares calam-se tenros. | |
| Gozam a sós alguma breve leveza, | 85 |
| Breve, já que venta e logo se esvai. | |
| Como vento a voar por cá, por lá, | |
| Sem mal notar, assim os olhos passam | |
| Pela cena. São sedentos de longe. | |
| Quando entanto pousam, de ponto a ponto, | 90 |
| No chão, e no chão o sentido termina, | |
| Acordam. Afora falta ainda o fim. | |
| Por quê, portanto, se é tudo engano | |
| O ganho das horas e abandonos, | |
| Os olhos amam? A verdade nossa | 95 |
| Foi sabida desde sempre e de todos: | |
| Somos ingênuos. Restamos ingênuos | |
| Independente do paladar amargo. | |
| Ingênuos vendo as pontes do eterno, | |
| Somente eterno em nosso vendo breve. | 100 |
5
| Nada ensina a dureza dessas pedras. | |
| Malgrado o mal das horas e das almas, | |
| As alegrias existem. Não há negá-las. | |
| Nem os olhos nem palavras as pedem. | |
| Existem simplesmente. Flutuantes. | 105 |
| Invadem incalculados ermos do império. | |
| E vão-se embora. Vão-se quando querem. | |
| Vida nenhuma, mesmo a vida constante, | |
| Triunfa, nunca, contra o sopro leve. ✠ | |
| Eu, que jazia sobre a relva estelar, | 110 |
| E que o sopro menos temo que busco, | |
| Ia abrindo os olhos e querendo, | |
| Toda parte, alguma estrela cadente. | |
| As alegrias não se deixam querer. | |
| Os pontos que acima se movem, nunca | 115 |
| se movem pelos olhos, sempre alheios. | |
| As cadências não se prevê. Vêm do nada, | |
| Vão. Cabe ao acaso colhê-las como dão. | |
| E no entanto eu permaneço sobre a relva | |
| Sem saber o quanto esperarei moções. | 120 |
6
| Nem as espero. Aquieto-me apenas. | |
| Quero estar pronto quando venha o sopro, | |
| Consigo cadência. Preparo-me | |
| Como os anciãos quiçá para a morte. | |
| Pode ser que venham por última vez, | 125 |
| Ou voltem. Hei de gozar o que há, | |
| Sem escudo contra a espada invisível. | |
| Quando os olhos percebem que as alegrias | |
| São o vento, desencantam-se apenas. | |
| Vão embora por entre alguma nuvem. | 130 |
| Inopinado, o sopro os encontra, | |
| Onde quer que se escondam, tenaz. ✠ | |
| Esses mais que se deitam no escuro | |
| Mirando longe pontos, são deixados. | |
| Nada lhes é devido. Abrem | 135 |
| Junto aos olhos o desconhecido. | |
| Pela porta adentra o breve impalpável, | |
| Passa e leva embora a memória. | |
| Toca os ingênuos que vão vivendo | |
| Pelos dias como se fossem primeiros, | 140 |
7
| Nada aprendessem – porque dos sábios | |
| E doutros que já viveram e viram tudo | |
| Passa longe a cadência. | |
| É dos olhos mirando os pontos | |
| Que as alegrias se ocupam, tão pequenos | 145 |
| Que o gênio quase chora só de pensar. | |
| Há de fato, sob os pontos abstratos, | |
| Lugar para as simples distâncias? | |
| Os astros longe são pedras. | |
| Mas toda noite alguns dos olhos sopram | 150 |
| Como se o mundo fosse novo e nada | |
| Fosse grande. Mundo sem importância. | |
| E mesmo quando entreveem, profunda, | |
| No chão de tantas mentiras verdade, | |
| Esses olhos se perdem pelo extenso | 155 |
| Como se todas verdades fossem fáceis. | |
| Nas alegrias, a verdade transforma-se | |
| Nalgum momento doce. Não importa o breve. | |
| Fica um gosto bom no paladar das pupilas. | |
| Não lembranças – das alegrias se esquece –, | 160 |
8
| Doçura apenas, néctar quase insuportável. | |
| Os olhos deitados ainda | |
| Prosseguem. Para as pedras há os dias. | |
| O ser imerso no abstrato é diferente. | |
| Vê cadências e cala, | 165 |
| Aberto a voos de imprevisíveis pontos. ✠ | |
| Eu, que ainda sempre jazo querendo, | |
| Pergunto em vão a bocas impossíveis | |
| Por qual motivo me esqueço da vida | |
| Vendo alturas. Os sopros são infirmes | 170 |
| E as alegrias não conhecem motivo. | |
| Vagam pelo silêncio e vão desbravando | |
| Nossas horas qual se fôssemos livres. | |
| Nada disso existe, nem os infinitos, | |
| Nem os pontos, nem os sopros talvez. | 175 |
| Mas a brisa perdeu a constância dos olhos, | |
| E nos sonhos os nossos pés são alados. | |
| Ora, já não sei se recordo ou se durmo | |
| Sempre ainda. As lembranças desta vida | |
| Mais ainda vivas são paisagens e asas | 180 |
10
| Pelas quais voei. Continuo a voar, | |
| Incessantemente. Não consigo saber | |
| Como existo sem as asas que não existem | |
| Nem jamais existiram em mim. Ou existem? | |
| Os olhos iludem e sonhos são inocentes. | 185 |
| Se a vida é sonho apenas, ora, sonhemos, | |
| Já que a noite passa. | |
| Mal se recorda o que resta da brevidade. | |
| Inobstante os olhos parecem tocar | |
| O tempo. O infinito sem tempo de ser. | 190 |
| Sou talvez uma nave desairosa? | |
| As estrelas sobre a minha cabeça, | |
| Pode ser que sejam tão longínquas? | |
| Pode. Pode ser que exista espaço | |
| Entre nós – e maior que o jardim | 195 |
| Por onde corria eu, os pés de criança, | |
| Brincando e deixando rabisco. No nada. | |
| Pelos rastos de alguma cadência, | |
| Como um poema invisível, de vento e | |
| Longo, a fim de que ninguém o termine | 200 |
11
| De ler, e todos se percam no meio | |
| Do caminho, do vão das alegrias. | |
| Quero apontar a todas as estrelas | |
| E todas as palavras eu quero escrever. | |
| Mas que farei de tantas palavras, | 205 |
| Eu, que tão pequeno jazo em terra, | |
| Eu, que quanto mais transformo os céus | |
| Em meus olhos mais os meus olhos se perdem | |
| Pelos céus? Se cada estrela tivesse um nome, | |
| Quisera encontrar aquela chamada essência. | 210 |
| Dizem ser a estrela dos priscos olhos | |
| Que não se cansam de ver o engano. | |
| Vão enxergando o que há, enxergando | |
| Como se fossem cegos, e de repente luz. | |
| Como se não houvesse, num mesmo lugar | 215 |
| Eterno, duas alegriazinhas iguais. | |
| Ver? Os olhos nunca veem o que é, | |
| Os olhos veem o que são. E gozam | |
| Ver estrelas que nunca foram antes | |
| E que depois das alegrias não serão. | 220 |
11
| Como, porém? Direi que não existem, | |
| Juntos, as alegrias, os astros e os olhos? | |
| Que as alegrias nos invadem pelos olhos | |
| Mas que começam onde os olhos terminam? | |
| Os olhos terminam pelos astros, | 225 |
| Mas alegrias já descendem aquém. | |
| Penetram mesmo os cegos sem os astros | |
| Que não veem estrelas mas que veem | |
| O que são. O que sei de tanta insciência, | |
| Sei apenas que jazo e que me faço parte | 230 |
| Da brevidade. Aceito o vento. | |
| Será este o nome? Sentir-se | |
| Parte do espaço que os olhos vislumbram? | |
| Talvez por isto as alegrias sejam breves, | |
| E nem direi das horas que as circundam. | 235 |
| Nossos olhos só inventam desejos, | |
| Mas não me conformo em tal pensar. | |
| Quero saber de que matéria é feito | |
| O sopro que invade a vista sem tempo. | |
| Quero medir o breve peso do vento | 240 |
12
| Que deixa à deriva as almas como naus, | |
| Sem velas, num mar de tristeza apenas, | |
| Cantando além das canções e cantigas | |
| Como se a morte não fosse iminente, | |
| Nem as naus carecessem de leme, | 245 |
| Pois a vida é grave e já não podem | |
| As barcas voar por aí sem cuidado, | |
| Senão afundam. Ó alegrias, | |
| Fazeis voar as barcas | |
| Na tormenta irascível, | 250 |
| Como se o mar coubesse num canto | |
| Estelar, num canto maior do que abismo. ✠ | |
| Transformam-se os olhos em modulações, | |
| E no espelho de abstrações mirabolante | |
| Os pontos brilhantes são de três espécies: | 255 |
| Uns penetram pelo horizonte, | |
| Ou menos penetram que vislumbram anseios. | |
| Os olhos os vendo já não sabem direito | |
| Donde veem, vizinhos do fim do alcance. | |
| Estes são perto e sempre perto, | 260 |
13
| Porquanto ainda jazo, e como jazo ainda, | |
| O horizonte sou eu, e findam sobre mim. | |
| Os pontos segundos, divisando alturas, | |
| Rescendem pelo zênite, nem o sopro | |
| Sabe ventar abaixo os seus olores longe. | 265 |
| Conquanto acima estejam da grande linha, | |
| Perdidos, direi que sejam longe de mim, | |
| Em cujos olhos jaz o próprio zênite? | |
| O vértice reto rumo às alturas | |
| Traga as alturas como o vento olores. | 270 |
| Mais além do zênite os pontos terceiros | |
| Flutuam atrás dos olhos, impossíveis. | |
| Há que mover-se o corpo para ver. | |
| Mas para quê mover-se o que jaz | |
| Em liberdade? Quem não sabe de além? | 275 |
| É meu sopro que vive atrás dos olhos, | |
| Dentro de si as estrelas. | |
| Não existem estrelas longe de mim. | |
| Vou-as vendo e vou dando risadas | |
| Como se fossem de fato infinitas | 280 |
14
| E toda a vida as visse finitas. ✠ | |
| As alegrias são indivisíveis. | |
| Sentimo-las por nós e para si. | |
| De todos reunidos frente ao céu | |
| À luz dos fogos de artifício, | 285 |
| Ainda que juntos, cada um enxerga | |
| O céu sozinho, quem o sentiu o sabe. | |
| Pouco adianta abraço entre amigos | |
| Inda que seja grande o coração. | |
| No nosso comércio coas estrelas | 290 |
| Ninguém interfere. Calam-se. | |
| Deitam-se. E que se deitem a sós, | |
| Pois o dia é farto já de ruídos, | |
| E não pertencem à vida dos dias | |
| As coisas mais profundas de nós. | 295 |
| Serão as noites canto à solidão? | |
| Os homens que jazem vendo os pontos, | |
| Cercados pela floresta, | |
| Têm as estrelas e a liberdade, | |
| E no silêncio aparente dos astros | 300 |
15
| Um matrimônio de cor universal. | |
| Se fosse a noite um canto à solidão, | |
| A solidão que se transforma em canto | |
| Quê seria, já que todo canto é pleno, | |
| Ela porém vazia? Direi que o silêncio | 305 |
| Seja o pai da solidão? Direi melhor | |
| Que o silêncio é pai do canto estelar. | |
| Os cantos querem ser ouvidos, | |
| Mas ruídos nunca ouvem. Gritam. | |
| As alegrias supremas são silêncio. | 310 |
| Silêncio apenas. | |
| Na solidão os cantos terminam, | |
| Quando em verdade começam | |
| No silêncio. ✠ | |
| Viver como se a nada conhecêssemos | 315 |
| Será de fato trazer de volta infâncias? | |
| As crianças sabem tudo. São arrojadas. | |
| O quanto não sabem vão aprendendo | |
| E as suas astúcias são temíveis. | |
| É de maior valor o preço do simples, | 320 |
16
| Do ver as horas qual se fossem novas, | |
| De todo dia sentir-se parte dum algo. | |
| Os grandes que jazem sobre a relva | |
| Querem aprender a desconhecer o mundo – | |
| A vida ingênua é obra de muitos séculos, | 325 |
| E no entanto é doce lembrar a infância. | |
| Saudades como pegos imensos e risos | |
| Que ainda escuto, se as imagens idas | |
| Renascessem coas alegrias, morreríamos. | |
| Antes esqueça para sempre, eu, | 330 |
| Essas horas que já me esqueceram, | |
| Essa gente que perdi de vista e vida. | |
| Aonde foi o meu primeiro amigo, | |
| Onde amores agora, onde aquela | |
| Inocência que é mais saudade das horas | 335 |
| Que a verdade da infância. A verdade | |
| Era o castelo que eu moldava cons amigos | |
| E coisas outras de areia. Cavávamos | |
| Portas no castelo, cavávamos além, | |
| Até que se encontrassem nossas mãos. | 340 |
17
| Depois as retirávamos, a pouco e pouco, | |
| Que não viesse de ribas a fortaleza. | |
| Mas desabava e mostrava aos meus amigos | |
| Onde o trabalho das nossas mãos termina. | |
| Apenas um dia ficou de pé, | 345 |
| Apenas uma vez. E tenho sentido falta, | |
| Desde então, desse dia, e já sabia | |
| Desde então que passaria a minha vida | |
| Inteira em busca desse dia perdido. | |
| Olho para trás da alegria dos castelos, | 350 |
| Todos de areia e de sonhos, e realizo | |
| Que foi aquela a minha obra maior. | |
| Vou pensando nessa gente sem rasto, | |
| No mar incerto em que o resto lançou-nos, | |
| Mar que levou embora os meus castelos. | 355 |
| A vida acaba. Sem grandes mistérios. | |
| Os homens a que a breve incomoda estudam, | |
| Por saber quem sejam. E buscam verdades, | |
| Valores, vivendo e desvendando o véu. | |
| Os sábios porém passaram por estradas | 360 |
18
| Tristes, em busca e vislumbro de veredas, | |
| Pois a vida é simples, verdades difíceis. | |
| Como os indoutos procurando as causas, | |
| Que a dor de ver um castelo em ruínas | |
| Fosse mestra e boca de alguma resposta, | 365 |
| Foram ver estrelas no meio da noite, | |
| Deitados, rogando em vão infinitos. | |
| Entendiam desde já que as alegrias | |
| Não se esperam jamais. Não se buscam. | |
| Houveram-nos alguns por loucos, | 370 |
| Pois vagos adentravam ocos, escuros, | |
| No amor de abstrações. Mas a verdade, | |
| Sim, é que impressões ocultas pululavam | |
| Nesses antros abertos, moções sem letra. | |
| Se vendo os pontos desvendaram mistérios, | 375 |
| Pouco sei. Deixei-os, quem sejam, ser. | |
| A vida inquieta. Vive como o medo abissal | |
| De que as noites sejam escuras, nós sozinhos | |
| Após o barulho inútil que move os dias. | |
| Mas as letras de silêncio não se inquietam. | 380 |
19
| Foram gentes mundo afora usando verbo e fogo | |
| Na conversão das terras. Que me importa missão? | |
| Julguei não ser a vida minha uma palavra. | |
| Amei o canto do amor no mundo impossível. | |
| E no entanto, os simples continuam calados, | 385 |
| Fugindo os ruídos, vendo que mesmo a voz | |
| De quantos falam morre. Portanto me calo. | |
| Sonho apenas. Sonho, pois a noite é longa. | |
| Sonho, mas quem eu sou? Eu sou poeira. | |
| A vida é vassoura. Vai varrendo a poeira | 390 |
| Das coisas e dos sonhos sobre o chão. | |
| E quando olvido triunfar, terei vivido, | |
| Eu, que não sou nem palavra nem sombra? | |
| Capitularam os meus castelos de mentiras | |
| E o céu é tão somente um quarto escuro. | 395 |
| Quero pedir explicações desmedidas | |
| À boca das imagens de meu berço | |
| Esperançoso, que se apaguem faróis | |
| E que naufraguem naves e consolos. | |
| Viverei chorando inquietações doentes, | 400 |
20
| Amores que vencem as horas do peito, | |
| Desprezo à condição a que me deixo sopro. | |
| E que me deixa o sopro? Contradição. | |
| Deixa-me o termo da espera e dos cantos, | |
| Velha nau de mar sem porto nem rumo | 405 |
| Certo, mar de beber e morrer de sal, | |
| E pó, e nada além. A senecal constância | |
| Vai-se rendendo à sucessão da gota ao riso. | |
| E no entanto a constância de certas naus | |
| Cruzou os mares. Será feliz a constância? | 410 |
| Ou será como o saber dos meus pensamentos | |
| Onde as coisas se cruzam adoidadamente? | |
| Busco ao leme torto rumos. O mar os traga. | |
| Vem a noite. Ó estrelinhas, | |
| Estrelinhas que chamo pequenas, pequenas | 415 |
| Para caber no diminutivo de meus anseios, | |
| Meu coração que não vale nada, vento, | |
| Por que parece o céu tão longe de mim? | |
| Eu vejo estrelas e quero estar longe do mundo | |
| Mas devo estar no mundo para ver estrelas. | 420 |
21
| Enquanto lanço questões aos ares, | |
| Vou vivendo e vou buscando portos velhos. | |
| Deitado sujo ao chão, eu sou poeira. | |
| Quando a vida varrer, eu nem terei estado. | |
| Busquei de valores, valores não tive. | 425 |
| Verdades? O mar não cabe no mundo | |
| E sou menor do que o mundo. Sou | |
| O ser que se impõe a mim de alhures, | |
| Sem nenhuma escolha. As minhas asas | |
| De alcançar estrelas nunca voaram. | 430 |
| Nem o sabem. Meus saltitantes desejos, | |
| Desconhecidos, são ruínas de areia. | |
| Tento reconstruí-las coaquelas mãos | |
| Dos meus bons amiguinhos de outrora, | |
| Protegê-las contra o mar que se avança, | 435 |
| Tanto mar que parece eterna angústia, | |
| Como se o gênio preferisse a morte | |
| Quando mesmo a morte abandona o porto. | |
| Vem, portanto, mar, e faz o que queres. | |
| Esperarei o fim que houver e vier. | 440 |
22
| Aparecem estrelas, longe dos olhos, | |
| Perto, sobre folhas, sombras, sobre mim. | |
| Cintilam calmas, sempiternas em mim. | |
| Deixai-me dizer que vos amo, estrelinhas. | |
| Que a brisa leve além o canto meu d’amor, | 445 |
| O meu canto simples e o meu amor fiel: | |
| Ó meu canto que te perdes em folhas, | |
| Ó meu amor que alcanças todo o céu, | |
| De que me valem agora as palavras? ✠ | |
| Meu verso é trem descarrilhado apenas. | 450 |
| Quanto mais eu pensava saber de estrelas | |
| Nunca vistas, mais eu vinha perto dos velhos, | |
| E já não sei de que eras vêm as alegrias. | |
| Ando longe dos versos servindo o tempo, | |
| Desses homens que escrevem poemas | 455 |
| Para as horas, para hoje, para amanhã. | |
| Falarei de antiguidades contemporâneas. | |
| O que é hoje por entre oceanos? | |
| Ainda não vi, estampado nos astros, | |
| O nome dos dias, nem dos séculos. | 460 |
23
| Darei a cada ponto o nome dum sentimento. | |
| Ainda busco entender do que se fazem | |
| As alegrias supremas e o sopro leve. | |
| São talvez arrojadas aventuras químicas, | |
| Reino molecular secreto. Ou libações | 465 |
| Nervosas proto-existenciais complexíssimas. | |
| O que se passa em tais sociedades de células, | |
| Donde vêm, e cujo líquido por onde escorre, | |
| São o berço dos risos como da verdade. | |
| Berço que seguro nem sabe que existe, | 470 |
| Cérebro, céu de estrelas celulares compacto. | |
| Ou será que o sabe? Eu, que penso | |
| Nas mitocôndrias sublimes e recônditos | |
| Raros de imagens, ainda não avistei | |
| As minhas células. Vejo uma coisa apenas: | 475 |
| Vejo que nem as sinto. | |
| Existir é de fato invisível. | |
| Será de fato insensível também existir, | |
| Tanto que seja impossível, dentro de nós, | |
| Aceder àquela essência pequena de sermos, | 480 |
24
| Serei de verdade um mundo, | |
| Burgo de células lindas que pela noite | |
| Vão inventando os meus olhos e a sombra? | |
| As alegrias dentro de mim são maiores | |
| Quase que os meus castelos de areia. | 485 |
| Mas como serei alegre sem ver a mim mesmo? | |
| Ó correr pelos campos, ó paisagens. | |
| Por que as estrelinhas do meu cérebro | |
| Não têm a forma das árvores, dos vales? | |
| Parecem antes um quadro expressionista, | 490 |
| Uma tela abstrata, longe do crepúsculo. | |
| Talvez eu seja feito para amar as imagens | |
| Porque o imo de mim é carência de formas. | |
| É preciso pôr-se o sol nas sombras | |
| E despertarem no infinito os sonhos | 495 |
| Para que vejamos alguma coisa de eterno, | |
| Que as alegrias sublimes não têm cor. | |
| São tão profundas e tão cientes de si | |
| Que são quase tristezas. E quão serenas! | |
| Não as tristezas desgostosas do todo. | 500 |
25
| São sim a tristeza | |
| Da abstração impossível, do além-ser, | |
| Porquanto além do ser é não ser | |
| E não saber. Serão estas as células | |
| Do sublime, além de nome e do limite? | 505 |
| O não-ser e o sublime se excluem. | |
| Ó estrelinhas, acudi que me aquiete. | |
| Já não me importa o gosto insípido | |
| Das secreções que nos fazem milagres. | |
| Deixo ao bel-prazer das glândulas império | 510 |
| Sobre as poções de exagerados elixires, | |
| Gotas de humores brandos e reações | |
| De proteínas cintilantes que me evitam. | |
| Ou a quem sou eu que evito, que para elas | |
| Sou um cego, eu, escravo que escrevo. | 515 |
| Ingratas! É dessas coisinhas miudinhas | |
| Que ventam portanto as alegrias minhas? | |
| E eu aqui deitado pensando ver estrelas? | |
| Que teimosas células sois! | |
| Mais atrevidas que as estrelas amadas, | 520 |
26
| Amadas por serem talvez a vossa imagem. | |
| Ou vós a de estrelas? Galinheiro velho, | |
| Nem sei se as estrelas são os ovos das células | |
| Nem se as minhas pequeninas as filhas do céu. | |
| As alegrias que as células sopram, | 525 |
| Que motivo as faz? | |
| Dizer que as minhas teimosas sou eu | |
| Será mentira. Dos céus eu quero as asas, | |
| Mas as células já não sabem o que querem, | |
| São imprevisíveis. | 530 |
| Não sei quem são nem podem elas ser eu, | |
| Mas vivem dento de mim, como se fossem eu, | |
| E eu escravo delas, que sem elas morro. | |
| Será demais querer buscar palavras, | |
| Saber, ai, de mim mesmo quem eu sou? | 535 |
| As estrelas cintilam caladas, | |
| Perto, pois as vejo mais que a mim, | |
| De quem sempre estou longe, segregado | |
| Das células que me fazem ser o que sou, | |
| Fazem sem que o queira, como sempre | 540 |
27
| O têm feito desde que acaso uniu as duas | |
| Primeiras, numa esquina do colo. | |
| Talvez as estrelas sejam criancinhas | |
| Que ainda não nasceram, inda esperando. | |
| O dessaber desanima, mas nada impede | 545 |
| Aos que ainda jazem sobre a relva | |
| Estelar fechar os olhos. ✠ | |
| Eu, que nunca saberei se as alegrias | |
| Vêm de estrelas ou de células, | |
| Se o de-mim criou o mundo além-mim | 550 |
| Ou se além-mim me fez mundo de-mim, | |
| Direi que de-mim e que além-mim | |
| São uma coisa apenas, coisa única. | |
| Pouco importa | |
| Antiguidade do ovo ou das galinhas. | 555 |
| Venham donde for, as alegrias existem. | |
| Sonham num firmamento fixas, cadentes, | |
| Perdem-se num labirinto sublime. | |
| Os olhos vão criando formas difusas | |
| Pelo espaço | 560 |
28
| Nunca repetidas, e vendo mais a fundo | |
| E descobrindo mais e mais angustiados. | |
| Quanto mais me perco por entre alturas, | |
| Mais as alegrias supremas são serenas. | |
| São desejos apenas, indescritíveis, | 565 |
| São saudade do além-ser impossível. | |
| Quero abraçar a meu peito os pontilhões, | |
| Pesar em mãos a dimensão geométrica | |
| Dos fins, de hipotenusas tangentes, | |
| Paralelismos ímpares absolutíssimos | 570 |
| E todos graus de adjacências angulares – | |
| Pelo quadro-negro por onde os sistemas | |
| Se concretizam e provas matemáticas | |
| Revelam a essência dos números. | |
| Contando estrelas e perdendo as contas, | 575 |
| Vejo surgir das sombras o infinito | |
| Como erro de cálculo e matemática. | |
| Os números cadentes são complexos, | |
| E quantos vão crescendo se repetem. | |
| Inda não descobri, nem hei, se números | 580 |
29
| Quaisquer existam. Negatividades | |
| Naturais e fracionárias da cadência | |
| São apenas traços humanos, | |
| Caça ao vento como às quantidades. | |
| As alegrias são de fato incontáveis, | 585 |
| Matematicamente inalcançabilíssimas. | |
| Que digo, porém? Se é matemática | |
| A prova-mor do mundo e do canto estelar, | |
| Em que tristeza agirei minha vida, | |
| Eu, que nunca soube nem hei de contar? | 590 |
| Tende amor, estrelas! | |
| A qual das cifras equacionarei o meu ser? | |
| Dizer que sou um? Mas em mim existe | |
| O todo. Vou destruindo em noites doces | |
| As leis das naturezas e dos números, | 595 |
| Pois em mim confuso circulam | |
| As quantidades infindas como o nada. | |
| Vou baixando lento os olhos e as asas. | |
| As alegrias não existem sem os números, | |
| Mas só no olvido das cifras são verdade. | 600 |
| Canto Estelar | Folium II |
| Quem saberá contar a verdade no céu? ✠ | |
| Outrora eu contava as pedras dum dominó | |
| Vermelhas. Não sabia o tamanho do mundo, | |
| O tamanho do mundo me via como autista. | |
| Esparramava as pedras no chão | 605 |
| Que meu pai me dera e construía casas. | |
| Ninguém se importava coas minhas casas. | |
| Apenas eu sabia quais impérios fundava | |
| Em arrumar as pedras sobre as outras. | |
| Evitava o que existia ao meu torno, | 610 |
| E no esquecimento das causas pairando | |
| Surgia o coliseu de Roma, o circo máximo. | |
| Era uma construção custosa às minhas mãos. | |
| Bastava um vento, um deslize qualquer, | |
| E Roma vinha abaixo e restavam ruínas. | 615 |
| Era belo o meu sonho arquitetônico, | |
| As suas cadências trágicas. | |
| Eu meditava surpreso a transição das pedras, | |
| Eu já sabia que as alegrias são breves | |
| Pois eram como os sonhos. Ora, o fim | 620 |
31
| Dos sonhos eu via arruinado pelo chão, | |
| Enquanto os homens dos meus derredores | |
| Pensavam que o meu silêncio era tolo, | |
| Meu silêncio grave. | |
| Mas era tão doce aquela gravidade | 625 |
| Contemplativa dos olhos silenciados | |
| Que o seu silêncio se impunha além | |
| Como se a sala inteira fosse meu sopro. | |
| Nessas horas, as mais antigas que alcanço, | |
| Eu era ingênuo. Não porque fosse criança. | 630 |
| As alegrias vinham como as surpresas | |
| E todo o meu peito estava aberto. | |
| Deitado sobre a relva, agora entendo: | |
| As alegrias têm de ser surpresas, | |
| Ingenuidade o peito aberto às surpresas. | 635 |
| Eu era ingênuo e quero sê-lo ainda. | |
| Eu sei a causa da ruína e dos impérios | |
| Mas vejo estrelas qual se nada soubesse, | |
| E descubro em repetidas cadências | |
| Que as repetições também surpreendem. | 640 |
32
| Era por isto que nunca me cansava, | |
| Quando aos quatro anos, de reconstruir | |
| Pequenos coliseus e mundinhos | |
| Fadados a ruir, mas belos e tão repletos | |
| De surpresa. Não me importava o paradoxo. | 645 |
| Eu era parte de Roma e Roma dos sonhos | |
| E os sonhos eram o todo. | |
| Alegria é ser parte de toda parte, | |
| Eterna se algum eterno existe | |
| Fora das pedras que nos dão memória, | 650 |
| Memória saudades, saudade alegrias. | |
| A primeira surpresa me veio de longe | |
| Quando exclamei, do banco de trás do carro: | |
| – Olha o mar! – e não cabia no carro. | |
| Em torno de mim os homens riram | 655 |
| Da minha pronúncia errônea dos erres, | |
| Da irrelevância do mar e do ingênuo. | |
| Era a primeira vez que eu via o infinito. | |
| Pois entendi, naquele exato instante, | |
| Que a minha vida era a busca do belo, | 660 |
33
| Mas o belo era além do horizonte. | |
| Era decerto parte dalgum além-ser | |
| Inalcançável. Ainda não lera, | |
| No poeta, que a alma é incomunicável, | |
| Que as alegrias são apenas minhas. | 665 |
| São moções de indescritível enlevo | |
| Frente à revelação repentina do azul. | |
| Eu me abraçava aos traços imprecisos | |
| Como se algo de mim corresse ao horizonte, | |
| Mas aquele horizonte já estava em mim, | 670 |
| Entrava co mar os olhos meus adentro. | |
| Deixemos o mar que se acaba distante. | |
| O mar é memória. Ora, direi confusões? | |
| Como vive em memórias alguma alegria | |
| Se memórias vêm de longe, as alegrias | 675 |
| De perto? Haverá na saudade | |
| Alegria? Deitado e vendo estrelas | |
| Fecho os olhos, respiro sopros leves, | |
| E a resposta se me esvai. Não sei | |
| O que é o vento e donde vêm. | 680 |
34
| Os pontos que a vista liga com traços, | |
| Imaginados por células, vão se perdendo. | |
| Vão revelando outros e ao fundo | |
| Imensidões esquecidas. | |
| São beiras de nada por onde as alegrias | 685 |
| Dormem. Ou sonham. ✠ Deitado alcanço pouco, | |
| Eu, que passei a vida inteira deitado | |
| E já nem sei se alguém jamais levantou-se. | |
| Mas os traços que vão se mostrando | |
| Daquém além desenham metros desmedidos, | 690 |
| Livres de angústia e de saudades. | |
| Apenas o corpo deitado os recorda, | |
| Que torna as alegrias memória, | |
| Memórias saudade, saudades tristeza. | |
| As alegrias não são de se pensar: | 695 |
| Pensar e pesar, ainda que só na mente, | |
| São somente uma coisa. Ora, pesarei | |
| O sopro leve? Sinto apenas | |
| O sopro e as surpresas, | |
| Que quanto mais os deixamos libertos | 700 |
35
| Mais se revelam, e vemos mais estrelas. | |
| Lacunas do céu, as minhas meninas | |
| Células são demais pequenas que saibam. | |
| Se é verdade que não se pode pensar, | |
| Jamais, as alegrias, que são alegres | 705 |
| Para ser esquecidas, esqueçamo-las. | |
| Mas se me esqueço já das alegrias, | |
| Não serei eu triste? E se eu não for | |
| Alegre nem triste, serei ainda humano? | |
| Serão decerto vãs as noites caladas | 710 |
| Onde os sábios procuram saberes, | |
| Pois os astros refutam todos sábios. | |
| Ai! O que eu buscava no infinito | |
| Era uma palavra apenas, apenas uma! | |
| Será demais o meu desejo? | 715 |
| Já não é dos astros que quero saber. | |
| É de palavra a busca, | |
| É somente de coisas que existem em mim! | |
| Ó vaidades, quanta ingênua esperança | |
| Eu nutria quando exclamava: Os | 720 |
36
| Astros se esquecem, palavras se escrevem. | |
| Eu, que não conheci jamais as estrelas, | |
| Sei de palavras menos que dos astros? | |
| Quem me dará, de qual estrela distante, | |
| O nome das alegrias? Parecia-me pouca | 725 |
| Empresa a busca dum termo sem limite. | |
| As alegrias supremas são intraduzíveis. ✠ | |
| Entenderei ao menos o belo? | |
| Será menor que os castelos de areia, | |
| O dominó vermelho, o banco do carro? | 730 |
| Foi no tempo do dominó, se recordo, | |
| Que me vi diante do piano e sentei-me. | |
| Já conhecia o seu timbre doce, | |
| Mas não sabia que a verdadeira lira | |
| Estava escondida por detrás das teclas. | 735 |
| Pus as minhas mãos sobre as teclas | |
| Como se lá deitasse o próprio coração. | |
| Pensava que o belo só precisava estar | |
| Em mim e que o meu coração era o belo. | |
| As teclas devolveram a feia verdade | 740 |
37
| Das minhas mãos. E me deram tristeza. | |
| Faltavam-me algumas distinções. | |
| O belo existe mas se expressa | |
| Por técnicas fora do meu coração. | |
| Qual dessas usara o mar | 745 |
| Quando tocou meu espírito? | |
| Corri por toda praia indagando! | |
| Como foi isto, alegrias? O mar | |
| Abriu a porta dum carro a buscar-me | |
| No banco de trás ao lado oposto, | 750 |
| E eu, e minh’alma e o ser inteiro | |
| Sentado frente à lira possuída, | |
| Não sabia tocar um mínimo acorde? | |
| O mundo embebe-nos do belo em surpresas, | |
| Surpresas, estrelas abstratas. | 755 |
| Mas o belo do qual embebemos o mundo, | |
| Nós, que somos apenas forma distinta, | |
| Vem de concretas técnicas tristes, | |
| E das artes que daí se fazem. | |
| O piano que outrora eu quis tocar | 760 |
38
| Era o belo enfim liberto da arte. | |
| Era o mundo da liberdade ingênua, | |
| E dum canto estelar inaudível. ✠ | |
| Quando atinei co limite do mar, | |
| Que o mar divide o mundo coas terras | 765 |
| Enquanto o céu se vê de toda parte, | |
| Entendi que o meu rumo na vida | |
| Era tornar-me astronauta e voar. | |
| Era tão clara a minha vocação! | |
| Aos oito anos, o trabalho liberta, | 770 |
| As profissões nos tornam felizes. | |
| Não se trabalha jamais por dinheiro, | |
| Dinheiro é grotesco. A vida é busca | |
| Do belo e peito aberto às alegrias. | |
| As escolhas são livres e grandiosas. | 775 |
| Nesse mundo em plena sensatez, | |
| Que me impedia de voar a Júpiter, | |
| Ver os gases verdes, pais da leveza | |
| Quiçá, dos sopros breves e perfeição? | |
| Decidira entrar numa imensa máquina | 780 |
39
| E zarpar desvendando os espaços, | |
| Cruzar um trato infinito de pontos. | |
| Faria pousos curtos nalguns planetas | |
| E seguiria mais e mais longe o meu rumo | |
| Por estrelas e perdições geométricas. | 785 |
| Anunciava aos da casa e pela escola | |
| Que a viagem sideral era próxima. | |
| Os professores que eu amava sorriam, | |
| Eu pensava que me levavam a sério. | |
| Que eu estude! Que eu pague o preço | 790 |
| Da liberdade, antes da noite encantada. | |
| Ora que ainda jazo por entre estrelas, | |
| Que me tornei enfim senão astronauta? | |
| Já naquele tempo eu buscava! | |
| Hoje os astros se me tornam palavras | 795 |
| Por cujos mundos navego e me perco. | |
| Fiz-me logonauta. Mal imaginava, | |
| Naquele tempo, que veras profecias | |
| Lançava sobre uma vida sem rumo. | |
| O poeta é um astronauta, perdido | 800 |
40
| Porém livre por entre as nebulosas. | |
| Eu não sou deste mundo. Ninguém é | |
| De lugar nenhum. Eu nem sei onde estou, | |
| Que vou brincando cego cons astros. | |
| Cego? Eu vejo sombra e não sinto falta | 805 |
| De nada. Amo os vazios indistintamente. | |
| Das metamorfoses do belo que me surgem | |
| Sem que nunca as veja, se alguma delas | |
| É tangível, lanço-as. As concretizações | |
| São longe da verdade e longe as formas. | 810 |
| O belo é a sublimação dos sentidos, | |
| E não conhecem forma as alegrias. | |
| São os olhos que as querem enxergar | |
| Num pentagrama extenso de abstrações. | |
| Os pontos são belos por serem pontos | 815 |
| E nada mais. As linhas que nós ligamos, | |
| Porque nossas, são beleza apenas nossa. | |
| As imagens que delas descobrimos além, | |
| Inventamos, como inventamos a dança | |
| Das cadências. As cegueiras são doces | 820 |
41
| E cada olhar se eterniza na sombra. | |
| Mas se apenas abstrações são belas, | |
| Serão as artes abstratas como o ponto? | |
| Serão sublimes de fato as alegrias | |
| Se é tão concreto o traço das letras? | 825 |
| Quem vos diz que os poemas são belos? | |
| Pobres os olhos longe do além-ser, | |
| É tão pequeno o sublime e tão imenso. | |
| Perder-me-ei na busca do impossível? | |
| Às almas todas buscas são abrigo, | 830 |
| O belo o telhado | |
| Por onde o ser repousa, prazer supremo. | |
| Mas são conceitos as minhas palavras. | |
| Se às almas todas buscas são possíveis, | |
| Os achados são distantes das almas. | 835 |
| Toda busca evoca a dor dos limites, | |
| Do pequeno que não cabe em si mesmo. | |
| Que eu deixe além as dores d’além-ser! | |
| Que me importa o canto do incomensurável? | |
| O sublime é somente o belo extremo. ✠ | 840 |
42
| No tempo do dominó vermelho, | |
| Quando me sentava ao colo dos velhos, | |
| O meu avô cantava como os seus avós | |
| Uma velha canção de sertões esquecidos: | |
| – No saco do limão, lá, onde eu nasci – | 845 |
| Era tão serena a pobreza do verso. | |
| Eu ouvia as palavras baixando os olhos. | |
| Parecia-me outrora a coisa mais torpe | |
| Nascer num saco, eu, que não conhecia | |
| Nem conheço direito as metáforas. | 850 |
| Ora, os limões eram tão azedos. | |
| Ora eu recordo aquele verso doce: | |
| Viver a vida inteira lá, | |
| No frescor do saco do limão, | |
| Na canção antiga de um verso só, | 855 |
| Ou do seu único verso que ouvi. | |
| Nada é sublime no saco do limão. | |
| Nenhum dos astronautas o explora. | |
| É pedaço de pano. Vai se romper, | |
| Tornar-se trapo, e alguns limões | 860 |
43
| Perder-se-ão. Eu, que ainda jazo, | |
| Olhos abertos desvendando, | |
| Vou enxergando os limões pelo céu, | |
| E sinto alegre a liberdade do pano. | |
| Lá, onde o velho nasceu no azedume, | 865 |
| E o belo é tão distante do sublime, | |
| O belo é sutil, abriga as almas. | |
| São também conceito meu as almas. | |
| Quero pô-las no saco e dar-lhe um nó, | |
| E consigo abrigadas andar além | 870 |
| Pelos ermos, carregando o peso leve | |
| Sobre as minhas costas. E cantando. | |
| Inscrevendo no pentagrama da estrada | |
| Notas, e brincadeirinhas simples. | |
| Vou pensando nesses jogos | 875 |
| De limão, jamais sublimes, | |
| Nem mesmo os da sutil beleza, | |
| E me descubro triste, como quisesse | |
| Perto dos limões a margem do além-ser. | |
| E no entanto espremo os frutos rudes | 880 |
44
| Com todo amor das minhas mãos mentirosas | |
| E vejo no sumo que o sublime é líquido. | |
| Como não? Eu bebo o mel dos limões | |
| E descubro que o belo absoluto é água. | |
| São alegrias por onde flutuam | 885 |
| Logo e logo afundam as formas | |
| Incorruptibilissimamente insípidas. | |
| Manam pelo mundo e nos céus inodoras | |
| Em reverberações incolores. Emanam | |
| A imagem cega do belo supremo: | 890 |
| Foge toda forma e sacia toda sede. ✠ | |
| Quero escrever teorias tremendas, | |
| Verdades profundamente infundadas. | |
| Serão portanto estrelas gotas d’água? | |
| Eu, que me quis astronauta a voar, | 895 |
| Voei tão longe perante infinitudes, | |
| E me esqueci de que o porto sublime | |
| É porto perto e se chama hidrogênio. | |
| Inda é tempo a tornar-me nano-nauta? | |
| Ó moléculas, invejo eternamente | 900 |
45
| Simplicidades impassíveis vossas. | |
| Fosse meu sopro maior que o lipídeo! | |
| Contemplo as estrelas donde estou | |
| E compreendo que logo serei liberto. | |
| Quando a complexidade acabar-se, | 905 |
| Quão alegre serei entre os pontos | |
| Na metamorfose-mor apocalíptica. | |
| Ou serei minh’alma eterna vagando, | |
| Ou serei fração de leveza hidrogênica. | |
| Aguardam-me, em todo caso, beatitudes | 910 |
| Astronáuticas, líquidas, entre estrelas. | |
| E como seja a gota a maior alegria, | |
| Faz-se em metamorfoses máximas | |
| A liquidificação do meu ser universo: | |
| Não há beleza maior do que a lágrima. | 915 |
| Foi talvez por isto que o mar me tocou, | |
| Horizonte que em vão descrevo. | |
| As alegrias são mar. As palavras poluem. | |
| Oxigênio lhes falta. Leveza de sopros, | |
| Se à carência de mar chamamos sede, | 920 |
46
| Fome à de pão, não existe palavra | |
| Para a carência do sopro? Melhor é calar. | |
| Carecer de palavra é liberdade. | |
| Como é longe do saco do limão | |
| A liberdade! | 925 |
| Prendo-me ainda às palavras pobres | |
| E me rendo a cantigas, | |
| Eu, de quem vontade é confusão apenas. | |
| Quero contradizer-me constantemente: | |
| Ó contradições e espalhafatos, | 930 |
| Libertai-nos do império da lógica. | |
| Revele-se a miséria das letras | |
| E dentro delas a ingênua esperança. | |
| Já me conformo co traço das letras | |
| E a redução do meu ser já pequenino. | 935 |
| Aquelas almas do saco do limão | |
| Quiçá se alegrem nos seus antessonhos. | |
| Talvez esqueçam moções do sublime. | |
| Já me contradigo, mais uma vez? | |
| Não descobri que o ser das alegrias | 940 |
47
| Era o sentir-se ser dalguma parte? | |
| Que parte de nós seria o porto | |
| Perto daquele sublime além-ser? | |
| Os astronautas voamos debalde. | |
| Se deste belo já não somos pano, | 945 |
| Alegria é não ser parte de nada. | |
| Também. E me ponho triste a pensar, | |
| Pois é tristeza o termos de pensar. | |
| Ora, brinquemos cons olhos e os astros. | |
| Somos pano ao menos do hidrogênio. | 950 |
| Voarei um dia por aí, de verdade, | |
| E se as moléculas perderem as asas, | |
| Talvez eu me reduza à cadência do fóton. ✠ | |
| Eu quisera que a substanciação da luz | |
| Fosse uma brincadeira. Quanto mais | 955 |
| Vou desvendando as cores, mais recordo | |
| O grande mar abrindo a porta do carro. | |
| Naqueles anos de horizonte infinito | |
| Eu via os quadros pregados na sala. | |
| Eram perfeitos os traços, e austeros, | 960 |
48
| E a palidez dos homens, paralisados | |
| Pela eternidade, lançava aos meus olhos | |
| Uma dignidade densa e amedrontadora. | |
| Mesmo as árvores livres gozavam | |
| Duma perfeição fantasmagórica. | 965 |
| Eu, que me sentava à mesa calado, | |
| Pondo o peso da mente entre as mãos, | |
| Descobria no traço o resumo dum mundo | |
| Retângulo. Os seres começavam de fato | |
| Dentro daquelas molduras, apenas lá. | 970 |
| O resto de fora era um mero resíduo. | |
| Era desde então o mundo de dentro, | |
| Secreto, que eu amava, o mundo belo | |
| E que jamais sorria ao seu além-ser, | |
| O além-ser medíocre de fora das molduras | 975 |
| Que era apenas eu, cabeça entre as mãos. | |
| Fui crescendo em meio à palidez perfeita, | |
| Por entre pontos de esferas abstratas | |
| Lembrando estrelas de alegrias sérias. | |
| Inda às vezes busco em meio a miragens | 980 |
49
| As cenas pequenas de além-molduras. | |
| Eu me deito sob a relva estelar | |
| E cerro os olhos, que as alegrias | |
| Não me sejam somente retângulos, | |
| Envolvam, cá e lá, algum trapézio. | 985 |
| Como, porém, se o mistério das retas | |
| É loucura, vou buscando o sublime | |
| Como a sensatez harmônica das cores? | |
| Na tela, todos os traços se explicam, | |
| Parecem projeções da razão ousadas. | 990 |
| Explicam-se pela própria moldura, | |
| Pelas bordas. É razão que define | |
| O fim do mundo em margens resolutas. ✠ | |
| Eu, que ainda jazo no entressonho, | |
| Levava outrora ao pátio da escola | 995 |
| A razão irredutível das causas. | |
| Eu conhecia pouco as estrelas | |
| E as alegrias eram impiedosas. | |
| Mas o meu mestre pouco tardou. | |
| A lição ressoa ainda, imperdoante, | 1000 |
50
| Lembrando a cada passo o que sou. | |
| É que uma vez apareceu, no idílio | |
| Do meu pátio perflorido, | |
| Durante o recreio | |
| Que como a tela eu quisera imóvel – | 1005 |
| O gato magro. De que buraco saiu, | |
| Ou telha, não me lembra mais. | |
| Era um demônio – era feio. | |
| Vinha turvar o brilho do éden | |
| Onde meus sonhos nus andavam. | 1010 |
| Vi com desdém os membros rotos | |
| Que expunha, os pelos dispersos, | |
| Miado angustiante. | |
| Não havia lugar, nem poderia, | |
| Para tal criatura no belo absoluto. | 1015 |
| Pois decidi, corri | |
| Por entre os circundantes | |
| E, com toda a força do ser, agi | |
| Como ordenava a voz da razão: | |
| Dei-lhe um pontapé! | 1020 |
51
| Feri o gato. Em torno, | |
| Os olhos dos homens indagavam Caim: | |
| – Que fizeste? – O gosto do amargo | |
| Vestiu, naquele veríssimo instante, | |
| A nudez do meu ato impuro estético. | 1025 |
| Eu, que sonhara libertar | |
| Do egro o meu éden, transformei | |
| As quase-lágrimas nalgum remorso | |
| Incompreendido. A voz me acusava? | |
| Se a minha revolta | 1030 |
| Não banisse o gato, | |
| O belo seria menor. | |
| O belo a que o meu ser anelava | |
| Era sem limite e sem concessões. | |
| Não havia sentido | 1035 |
| Existir, por entre estrelas, | |
| Aquele ser impuro. Eu o feri | |
| Para que o mundo fosse perfeito. | |
| Mas os homens do éden | |
| Cercaram-no, como se adorassem | 1040 |
52
| O grotesco e não me entendessem. | |
| O gato me olhando mancou e foi-se embora. | |
| Por entre o jardim que se estrelasse, | |
| Deixou para trás o peso da existência. | |
| E porque me faltasse uma doce nudez, | 1045 |
| Dentro de mim eu contemplei o sublime | |
| E dentro de mim calaram-se alegrias. | |
| Pus em vão o meu rosto entre as mãos. | |
| A minha inocência foi o meu crime. | |
| Por que vos calastes, estrelas? | 1050 |
| Era somente um brio que o meu peito | |
| Buscava em dimensões. Era pureza. | |
| A quanto preço o meu sopro entendeu, | |
| Na contrição, que certas alegrias | |
| São feias! Mas como pudera saber, | 1055 |
| Se pequeno, que tanto amor ao sublime | |
| Não prescinde, ai, | |
| Dalguma vã piedade ao gato magro? | |
| Pois o busquei por entre as flores, | |
| Depois, correndo em vão pelos astros! | 1060 |
53
| Como estendi-lhe os meus braços, | |
| Céus, e com quais gotejantes moções | |
| E remorso os meus olhos caíram aos pés! | |
| Eu fora expulso do éden, mas o pomo | |
| Que eu mordera nem era provindo | 1065 |
| Da árvore má do saber. Sabia | |
| Somente que o meu amor às estrelas | |
| Era nu, o que dantes me escapava. | |
| Mas não conhecia males | |
| Além da ira contra o gato magro, | 1070 |
| E me perguntava se as alegrias | |
| Seriam as mesmas. O limite | |
| Do belo eu desprezara como ao bem. | |
| Desde então busquei coas mãos os astros | |
| E os astros me fogem junto ao universo. | 1075 |
| Eu, que acedo ao coro dos maus deste mundo, | |
| Como perceba as estrelas longe de mim, | |
| Vou chutando as pedras e as ondas do mar: | |
| Quanta mágoa, céus, o meu peito carrega! | |
| Querer olhar para sempre as alturas | 1080 |
54
| E nunca cuidar das pedras acerca. | |
| Será maldade o querer estar alado, | |
| Cego ao mundo, no vislumbro eterno | |
| De abstrações? Ora, a cada passo | |
| Eu pareço estar em mim mesmo alegre. | 1085 |
| Mas não vejo a cada passo um gato magro? | |
| Que é, estrelinhas, ser bom? Deixar | |
| O gato estar e deformar as imagens | |
| Sublimes, lembrar-me por onde ando. | |
| Ou fechar os olhos, para que nem | 1090 |
| A vós, que sois belas, eu perceba, | |
| Nem ao gato feio. Não quisera, | |
| Naqueles dias do dominó vermelho, | |
| Ser mau. Nem pedira outrora ao mar | |
| Viesse abrir a porta do carro atrás, | 1095 |
| Dizer que as alegrias existem. | |
| Que de fato quisera ser e saber? | |
| Nem sei se algum querer eu havia, | |
| Eu, a quem o mar e o céu surpreendiam. | |
| Hoje eu sei que na estrada sublime, | 1100 |
55
| Por onde em sertões eu carregasse | |
| O saco do limão nas costas, eu não | |
| Me incomodasse, não mais, se atrás | |
| De mim viesse, na sua estranheza, | |
| O gato magro. Mas não virá, jamais, | 1105 |
| Porque os meus pés o feriram. Nem eu | |
| Carrego, nem sei, o saco do limão. | |
| Fecho os meus olhos como se acima | |
| Nada existisse, em mim o mar escuro. | |
| E no entanto, a brevidade basta | 1110 |
| E surgem, nos vãos do inadmissível, | |
| As alegrias supremas, noturnas, e leves. | |
| Nem me perguntam quem sou, o que fiz | |
| E quantos chutes desferidos ao mar, | |
| Ao chão dos inocentes. Deito-me, | 1115 |
| Como não sou bom, ao mesmo chão | |
| Que me rende ao juízo final. Mas juízes, | |
| Que não conheço, punem a minha razão | |
| Coas alegrias-ser, que não mereço. | |
| No inferno ledo que vislumbro cego, | 1120 |
56
| O limite do belo é sempre o bem | |
| Que a nudez do meu ser desconhece. | |
| Quanto mais o tempo vai percebo mais | |
| A infinitez do meu crime. Se gustei | |
| A maçã do saber proibida e nada sei, | 1125 |
| Quanto mais o pomo da árvore da vida | |
| Não me desse de amargo? Basta de ultrajes | |
| Contra o gato magro. Eu, que buscava | |
| Apenas estrelas, não cobiçava pomo | |
| Nem saberes. Comi sem querer. Acaso | 1130 |
| Por engano. Não desobedeci, jamais, | |
| A leis desconhecidas. Conheci-as | |
| Tarde, em queda. | |
| Ferirei por acaso as folhas | |
| Da árvore? Eu corro pelos astros | 1135 |
| Fugindo-a como quem à morte. | |
| Navego em meu foguete astronáutico | |
| Rumo às terras estéreis do universo. | |
| Jazem longe em projeções hipotéticas | |
| Onde o mal não alcança as pretensões. | 1140 |
57
| Não circulam no espaço mar nem carro, | |
| Nem castelos existem nem areia. | |
| O dominó vermelho cai ao chão | |
| Sem fundo, fundo o saco do limão. | |
| Ó vidinha, fecha logo os teus olhos. | 1145 |
| As mãos que as minhas mãos ligavam | |
| Castelos de areia adentro, calaram. | |
| Mas eu canto ainda e vou pousando | |
| Sobre a relva sonhos meus sem mácula, | |
| Como se o tempo fosse todo ingênuo, | 1150 |
| Não soubesse da morte e do opróbrio. | |
| Ai, o tempo é tão somente conceito, | |
| Espaço é vento. Quero estar deitado. | |
| Eu vejo céus e sei que a vida é crime. | |
| Eu desconheço as leis das alegrias. | 1155 |
| Mas como jazo e deitado vou andando, | |
| Ergo as mãos para tocar o vazio | |
| E me preenche o nada como os astros. | |
| As estrelas são sublimes | |
| Pois contemplamos de muito longe. | 1160 |
58
| Quero vê-las duma distância correta. | |
| A distância mais correta das causas | |
| É o nada, como a liberdade do vácuo. | |
| Apenas nela cresce a flor. | |
| É preciso longe estar de muitas coisas | 1165 |
| Para estar perto do quanto importa. | |
| Que me importa, porém, que sou mau? | |
| Importa o sopro breve que me enleva. | |
| A minha condição revelo aos astros | |
| E levo ao vago a verdade que sou. | 1170 |
| Por quê, amadas estrelas minhas, | |
| Se é tão somente os céus a que anelo, | |
| Todo traço que marco é maldade? | |
| Não dissera, num verso mais feliz, | |
| Que as alegrias são sentir-se parte | 1175 |
| De alguma ou de universas partes? | |
| As alegrias são partes sem espaço. | |
| Não existem perto nem longe. Existem. | |
| Será portanto o mal querer as causas | |
| Perto demais? Por isto talvez eu feri | 1180 |
59
| O gato magro, eu, que tanto quisera | |
| E tão perto de mim a perfeição do éden. | |
| Muito é perfeito a quem sabe mirar. | |
| Mas o saber é breve e me esqueço | |
| Que o gozo é peito aberto às surpresas. ✠ | 1185 |
| Cerrei a sete chaves minhas entranhas | |
| Para o magro. Basta um sopro contudo | |
| E já se torna o ser tristeza. | |
| Maldade foi amor demais às essências. | |
| Quando a cegueira abandona a doçura | 1190 |
| Vão chutando os pés as pedras, e doem. | |
| Como, estrelas? Eu quero estar alegre | |
| Toda parte, mas espaço é falta de alegria. | |
| Quero estar de peito aberto | |
| Mas o peito que resta tanto abismo! | 1195 |
| Saltar? Eu me reduzo à pequenez dum sonho. | |
| Como é sonho a minha essência, salto. | |
| Onde alegrias evadem o vão de espaços, | |
| Voar e cair são a mesma viagem. | |
| No peito, abismo aberto é liberdade; | 1200 |
| Canto Estelar | Folium III |
| Maldade tapar um poço e seguir. | |
| O poço a quem passa poço apenas, | |
| Nem maldade nem poço no abismo. | |
| Entendo o gáudio da distância. | |
| No pentagrama que os átomos como as notas | 1205 |
| Preenchem, mesmo as linhas que ligam | |
| São quimeras. Infinitamente longínquas, | |
| Sós, as massas e as minutas frações. | |
| A matéria escura que as circunda cala, | |
| Vaga e flutua, corre – sonha. Sente? | 1210 |
| Mergulho na escuridão fantástica | |
| Como se fosse a luz o supérfluo. | |
| Os olhos brilham de entrever o nada, | |
| E no vislumbro da vácua liberdade, | |
| Nada se teme e nada ocorre de mal. | 1215 |
| Estou sozinho e deixo como os astros | |
| No rosto escuro o traço universal. | |
| A sublimação dos males seja a poeira: | |
| O grão se perde tão longe dos sonhos | |
| Que nem lhe resta um ser a ferir. | 1220 |
61
| Abri meus olhos um segundo em terra | |
| E vi que o mundo é corriqueiro atrito. | |
| Fora do palco onde concorrem massas | |
| Paira uma treva tranquila e me espera. | |
| Cabem, no abismo da negra energia, | 1225 |
| Os universos e a vida dos homens. | |
| Do fluido etéreo de infindo além-ser, | |
| As alegrias como acaso infláveis: | |
| Omniversos que explodem se expandem | |
| Qual pulsar e os sentimentos máximos. | 1230 |
| No vago que escapa as mãos do abstrato | |
| Surge estrela, lembrando o mirar | |
| De que os raios somente artifício. | |
| Por entre sóis e distração de flamas, | |
| As obras verdadeiras não se vê. | 1235 |
| Que digo, porém? Desejo ainda | |
| Que o bem me governe, ser e pés. | |
| Mas que governo eu busco de mim | |
| Se fugindo o mal os homens fujo? | |
| No além-espaço onde alegrias sopram | 1240 |
62
| E do ser a sós a nudez é suprema, | |
| Os sonhos não têm anseios éticos. | |
| Fora dos olhos os olhos só contemplam, | |
| Repousam livres da incúria de agir. | |
| Mas vivo abaixo e sirvo a terra atômica, | 1245 |
| Mar de atritos que apenas lei mitiga. | |
| Não me importo. Sigo leis que importa | |
| Ao bem das concentrações passageiras, | |
| Sociedades de prótons e de proletários: | |
| O que quer que seja. Conheço o seu fim. | 1250 |
| Lembro que à treva seguem os dias | |
| E no claro circula o gato magro. | |
| Como porém recordo a maçã, | |
| Os males que aos pés outrora agi, | |
| Quero deixar o gato ser; que passe, | 1255 |
| Junto ao pelo a prole dos egros. | |
| Contemplo as conglomerações grotescas, | |
| E como sei que sou poeira, a sós | |
| Ou cercado, dou à prole o que devo. | |
| As alegrias não se apagam com leis. | 1260 |
63
| Tornam-se humanas. Acedem, humildes, | |
| A compromissos antiestelares graves: | |
| Olhar ao lado, ao derredor de si, | |
| Quando o peito quisera ver os vastos. | |
| O peito eu disse abrir a surpresas? | 1265 |
| Que mendaz eu sou, comigo mesmo, | |
| Se a surpresa escolho apenas eu? | |
| As alegrias só revestem verdade | |
| Se as surpresas livres como o sopro. | |
| Como o peito a muito poucas grato, | 1270 |
| Tapa o poço e cadências se calam. | |
| Deixei embora estrelas, ai de mim, | |
| E deitado sobre o sangue de Abel, | |
| A desventura eu sofri de Caim. | |
| Se estendo as mãos, serei bondoso? | 1275 |
| Fazer o bem requer de mim conhecê-lo. | |
| Mas eu não sei quem sou e que faço. | |
| No dessaber que me insulta as horas | |
| Deito-me como se o bem o belo estelar. | |
| A mão que ofereço abraça os dois, | 1280 |
64
| Na espera de que vejam os altos. | |
| Amor? Mas qual daqueles amei? | |
| Não o mau, porque desejo estrelas; | |
| Não o bom, a quem desconheci; | |
| Nem amor e nem ódio lhes devo. | 1285 |
| Como canto o meu canto estelar, | |
| E minha lira peito aberto a surpresas, | |
| Convém não seja réu da consciência, | |
| Que a canção de meus olhos seja pura. | |
| Que me arrogo, porém, que sou poeira? | 1290 |
| A tanta audácia o meu ser se permite | |
| Que já me conto ao coro dos justos, | |
| Eu, que ergui no idílio dum divo jardim | |
| A foice de outrora Caim? Aquele gato | |
| Magro persegue os sonhos. | 1295 |
| Não, estrelas, o canto meu é culpa, | |
| Gato a terra inteira. Riquezas minhas, | |
| Dizei-me como pôr em cima dos ombros | |
| O sangue de holocaustos seculares. | |
| Séculos? É também conceito o tempo | 1300 |
65
| Como espaço. Vós que acima entrevejo | |
| Sois talvez uma bolha pequena de ar, | |
| Flutuando entre bolhas milhares, | |
| E bolas milhares, quase imensas | |
| Como o todo, somente moleculazinha, | 1305 |
| Ponto o corpo máximo, ultra-universos | |
| Onde o tempo um movimento apenas. | |
| E no entanto, como eu sou poeira, | |
| A pouca culpa que trago culpa imensa. | |
| Eu ganharia os gozos do olvido | 1310 |
| Se a culpa minha, maior que poeira, | |
| Não me fizesse imortal nesta terra. | |
| Contemplo a sós minhas mãos | |
| E reconheço nos punhos as penas. | |
| Como deitar-me sobre o sangue | 1315 |
| Dos mortos cantando a voz dos astros? | |
| Eu me deitara, estrelinhas, a morrer, | |
| Eu, que já dos campos nada anelo | |
| Senão dividir o destino dos corpos. | |
| Mas como à relva eu caio e me perco | 1320 |
66
| Dentro de vós na escuridão saudosa, | |
| As alegrias, que nem mereço nem peço, | |
| Vendo um peito aberto à tristeza, | |
| Descem, dum sopro leve, sobre mim, | |
| Como se fosse o puro os meus olhos. | 1325 |
| Como aceito a surpresa que não peço, | |
| Vejo no escuro, mais e mais profundo, | |
| O espelho da verdade além da voz. | |
| O peito em fenda faz as pazes | |
| Com distâncias e vejo as imagens. | 1330 |
| Os astros vão vivendo, sendo ao menos, | |
| Cada qual segundo a própria natura, | |
| Como o quer algum mistério multiverso. | |
| Eu vejo estrelas e vivo o que sou. | |
| E porque busque o belo, quero o bem. | 1335 |
| Fazer aos outros o que a mim desejo? | |
| Será de fato bom que me abandonem | |
| Como os quero abandonar, ou maldade? | |
| Não sei de quais remédios careço. | |
| A nudez que procuro é perdida. | 1340 |
67
| Esses tolos que quero deixar, | |
| Também os forma a mesma poeira | |
| Que me nasce. Seremos irmãos? | |
| São acaso hereditariedades, | |
| São Abel e Caim por acaso. | 1345 |
| Nascem, contendem. E morrerão. | |
| Inobstante, a nudez se revela | |
| Nos astros. Os brilhos se diferem | |
| Como tamanhos, porém nos raios | |
| Seus navegam idênticos fótons. | 1350 |
| Por leis dalgum mistério gozoso, | |
| Uma única dessas estrelas | |
| Pudera ser uma outra, qualquer. | |
| O segredo de uma, que digo, | |
| A própria atômica identidade | 1355 |
| Está contida, se numa – em todas. | |
| Inclui-se aos seres a poeira. | |
| Deitado e vendo acima as estrelas, | |
| Nos pontos encontro minhas faces. | |
| Como o pó permeia eternidades, | 1360 |
68
| Olho o derredor, como convém, | |
| E no pó dos meus irmãos, em pé, | |
| O ser que vislumbro nos seus passos – | |
| Sou eu, a minha própria imagem. | |
| Tapando os poços daquelas vidas | 1365 |
| Vou tapando os de mim mesmo, | |
| Abel e Caim. Mesmo no começo, | |
| No éden, na própria fauna estranha | |
| Eu estava contido. Maldoso, | |
| Na fúria contra a pele do gato | 1370 |
| Houve ferido a mim mesmo. | |
| Ora que as alegrias supremas | |
| Revelam serem parte do todo, | |
| Toda parte está contida em mim. | |
| E em casa de Caim, ou de Abel, | 1375 |
| Tomado de horror, e piedade, | |
| O meu braço é generoso aos dois, | |
| Como se fossem os dois meus braços. | |
| O estômago dói | |
| Do chute contra mim mesmo. | 1380 |
69
| Eu quero fechar os meus olhos, | |
| Tratar os gatos, a prole dos egros | |
| Como estrelas e como a cadência. | |
| Curvas avançam pelo escuro | |
| Dando ao céu momento. Pela estrada | 1385 |
| Eu quero andar, e pelos silêncios, | |
| E se na esquina das vias deparar-me | |
| Com barulho de sombras ou gatos, | |
| Eu tirarei, do saco do limão, | |
| Uma prenda divina e dar-lhes-ei, | 1390 |
| Que do sumo extraiam maravilhas | |
| E o campo beba mais do que sangue. | |
| Quem sabe algum sertão de avoengos, | |
| Sob as auras do espírito leve, | |
| Veja surgir um paraíso perdido. | 1395 |
| Caim pudera enfim redimir-se, | |
| Não por mérito, mas por verdade: | |
| Caim é toda a gente vendo estrelas. ✠ | |
| As alegrias que nascem do saco | |
| Guardam algum limão azedo e fresco | 1400 |
70
| A toda boca, toda sede se aplaca. | |
| Quem de fora me visse, astronauta | |
| De pano e remendo velho | |
| Quase roto do tempo, humidade | |
| E das rugas da fruta, | 1405 |
| Certo tivesse dó do meu peso. | |
| Mas a vista se engana em ganância! | |
| Se o pó se rompe e cai limão na estrada, | |
| Passa o pé de ninguém, e qualquer, | |
| E descobre uma fonte. Que me importa | 1410 |
| O limão cair se o fim do céu cadência? | |
| Caia pois, que o seu segredo brilhe, | |
| Líquido como as alegrias supremas. | |
| Chamarei de perda o rio parabólico | |
| Por onde as águas passam alheias | 1415 |
| Aos tantos olhos? | |
| Se o mundo mudar, temerei o fim | |
| Do meu canto estelar? | |
| Quando em castelos velhos de areia | |
| Eu descobri, na distância do mar, | 1420 |
71
| As impressões de horizontes além, | |
| E mais além os pontos, desdenhei | |
| A luz dos postes caindo a calçadas. | |
| Eu mirava as ofuscadas estrelas | |
| Como se a luz abaixo fora a dor, | 1425 |
| A morte longe do mar. Nas folhas | |
| Que alguma cor laranja abraçava | |
| Logo eu chorava o progresso da cor. | |
| Evitava passar pelas ruas. | |
| Hoje eu me sento ao pé desses postes | 1430 |
| E deixo a cor pousar em meu peito. | |
| Hoje eu sei que nenhuma luz é mentira, | |
| Nem me incomoda o tom que a mão alheia | |
| Fez cair no meio do asfalto. Todo fóton | |
| Afaga os seus sonhos, toda rua estrela. | 1435 |
| Miro o mistério dos postes elétricos | |
| E as eletricidades me fazem alegres. | |
| Inda procuro em calçadas voltagem | |
| Dum verso que me faça raio. | |
| Como, porém, eu dissera que o belo | 1440 |
72
| Sublime é como líquido pluriforme? | |
| Bem melhor é reduzi-lo | |
| À força atrás do poste, que é feio, | |
| Mas invisivelmente suprema. Falar? | |
| Deito-me à relva só, e pouco importa | 1445 |
| Se acima paira um poste ou espaço. | |
| Desconheço a matéria do sopro | |
| Onde alegria se transforma em lugar, | |
| E como pouco saiba eu apenas direi | |
| Que as alegrias são meu poste ou espaço. | 1450 |
| Indassim menti, que nada conheço, | |
| Nem o poste, nem passo. | |
| Serei apenas eu, que sou palavra? | |
| Diziam, nos velhos anos de olvido, | |
| Que as palavras do grego têm espírito. | 1455 |
| Quando aprendi, no relógio verbal, | |
| Os sinais do sopro lene e dos ásperos, | |
| E que na língua antiga a parábola | |
| Deu à luz o que grafamos palavra, | |
| Eu preferi à vida a presença do verbo. | 1460 |
73
| Como pude crer pelo tempo | |
| Que as parábolas pouco bastassem, | |
| Que os fenômenos fossem infindos? | |
| Se vejo alguma estrela e me perco, | |
| Os pontos só existem | 1465 |
| Porque palavras os levam ao zênite, | |
| Ponto-além ao qual conferem parábola. | |
| Devo dizer que a ponte dos astros | |
| Apenas ponto a percorrer palavras? | |
| Se já minutas estrelas, quê de mim? | 1470 |
| Contudo existo, como assim o pense, | |
| Levando o peso da essência pequena. | |
| Calar-me-ei perante a lenidade. | |
| Não por acaso o grego deu aos astros | |
| Espírito lene, que a noite tranquila, | 1475 |
| Presa da luz que traz ao mundo dia. | |
| Não por acaso o sol carrega, hélio, | |
| Espírito áspero, calor confuso. | |
| Mas que coisa o sol, senão estrela? | |
| Donde terá perdido a lenidade? | 1480 |
74
| Perdeu depois do zênite, | |
| Que auroras o fim da parábola. | |
| Acusarei de crime os dias, | |
| Eu, que contemplo no infinito | |
| O nascer e o termo das palavras? | 1485 |
| Não existe infinito sem parábola, | |
| E no entanto as parábolas findam. | |
| Amo além extensões que nada importam. | |
| Os anos-luz que me separam do espelho | |
| Pousam lentos sobre o véu das vistas. | 1490 |
| Como, se as distâncias tão estéreis, | |
| Do fundo vago vem alegria? | |
| As palavras prescindem de estrelas. | |
| Se as alegrias não conhecem cor, | |
| Por que cintilam coloridas? | 1495 |
| É destino das cores começar, | |
| Palavras calar atrás do ponto. ✠ | |
| Não alcançam letras o além-ser, | |
| Além que não sei se belo na distância | |
| Ou no abismo intrínseco de mim. | 1500 |
75
| Néscio da palavra e do ponto, | |
| Ser é mais além de tudo e de nada. | |
| É uma esfinge. | |
| Que me importa saber o ser? | |
| Mas que nome darei ao meu ser | 1505 |
| Se deitado o peso ao chão, poeira, | |
| E se em poeira se perde o limite | |
| Entre dois, meu ser e meu não-ser? | |
| Fecho em vão meus olhos, abro em vão. | |
| Em não-ser está concebido o ser, | 1510 |
| Negativamente sendo – logo, não sendo | |
| Sou, astronauta. E se ser eu sou, | |
| Se algo é, o algo é ser para quem? | |
| Apenas para si mesmo ou para além? | |
| Além do ser ninguém sabe o que é, | 1515 |
| E se o si mesmo é ser é mistério. | |
| Como não? Eu, que penso e pareço, | |
| Penso como parábola, não como ponto. | |
| Relegado e vendo estrelas, | |
| Sei que a parábola o passo do ponto, | 1520 |
76
| Nem o ponto um ponto sem palavra. | |
| Como porém desconheço se os dois | |
| Serão da mesma coisa, calo-me | |
| Sob os parabólicos pontos. Vejo, | |
| Dentro de mim e do quanto peso, | 1525 |
| Que sou e que não sou em meu sopro. | |
| Dirão que sou apenas porque penso. | |
| Mas o pensar que não pensa a si mesmo: | |
| Deixa de ser? Deixo de ser um instante | |
| Para ser mais, um não além-parábolas. | 1530 |
| Que digo? Que eu deixe enfim | |
| De tratar o ser como se fosse estar | |
| Aquém, além dum outro ser ou de mim. | |
| Quem sou eu, estrelas de espírito lene, | |
| Para saber se sou e quem, que coisa sou? | 1535 |
| Aos sofismas prefiro um verso simples, | |
| Eu, que invento em poemas o verbo ser | |
| A que seja uma ponte entre os pontos | |
| E as parábolas, como se fossem dois | |
| O que de fato apenas um, mas dois | 1540 |
77
| Perante os olhos fracos das almas. | |
| Seja pois o verbo do belo absoluto, | |
| Se mau, ao menos mal necessário. ✠ | |
| Que bom que mau cantar, estrelinhas? | |
| Retorno à relva onde meu corpo pousa, | 1545 |
| E já não temo a vida e nem o vago. | |
| Temerei do acaso a morte | |
| Se sendo pó venci no sopro a vida? | |
| Que me separa, sábios, da mesma massa | |
| Que acima transforma os céus em astros? | 1550 |
| Se a massa cessa, nem por isto é longe, | |
| Dentro de mim a quintessência enérgica, | |
| Mesmo poder que permeia o que há, | |
| Pois como sou poeira, há-me sempre, | |
| Certo em toda parte. Metamorfoses | 1555 |
| Heterogêneas, onde a morte do pó? | |
| Ai se pudesse ser menor do que sou, | |
| Eu, que tenho apenas infinito em mim. | |
| Quando eu morrer, eu formarei estrelas. | |
| Serei, em toda força do termo e do ponto, | 1560 |
78
| Serei enfim astronauta. Voarei pelo ser, | |
| Voarei, na reconciliação derradeira | |
| Coa treva tranquila, irei pelo ser | |
| E pelo não-ser, e pelo belo absoluto | |
| E pelo saco do limão, e pelos mares – | 1565 |
| Como um poema em vão que ninguém lerá | |
| E que no entanto vive escrito em todos. | |
| Assim será completa a presença de mim, | |
| Ponto-universo e somente-parábola. | |
| Serei eu mesmo as alegrias que invadem | 1570 |
| O verso dos olhos ingênuos. | |
| Mas inda vivo e, como vivo, contemplo | |
| O belo dos astros e a dor do gato magro. | |
| Nas dúvidas que pairam de meu ser, | |
| Sigo e defino o meu ser pelas dívidas. | 1575 |
| Se algum momento eu busco a cadência | |
| Como fuga dos atos, ressoa a cadência: | |
| – Que fizeste? – e perco-me em gota, | |
| Na dissolução amarga da poeira. | |
| Como enfim na verdade o consolo, | 1580 |
79
| Desfaço-me em gota como se o sumo | |
| O fresco elixir do limão e do saco. ✠ | |
| É bom dividir alegrias? | |
| Indivisíveis! Sopram do acaso. | |
| Há diferença entre sentir e pó, | 1585 |
| E as alegrias, que invadem sentires, | |
| Vêm dalguma poeira soprada ninguém | |
| Entende donde. Dividir o que sinto? | |
| Indescritível! Sopro incauto. | |
| Se as alegrias parecem inumanas, | 1590 |
| Como esperar me façam humano? | |
| Dissera bem que são sentir-se | |
| Parte dum todo em toda parte. | |
| Os homens somos parte do todo. | |
| Oxalá me induzam alegrias, vez ou mais, | 1595 |
| A ver em torno o bem do gato magro! | |
| Não por cálculo, que as alegrias | |
| Vêm de matemáticas mais abstratas. | |
| São a visão, direi, da verdade. | |
| Abertos olhos, a boca e poderes, | 1600 |
80
| Deito o peito | |
| E no horizonte, além daquele verbo, | |
| As surpresas se fazem descobertas. | |
| Comtemplo a nudez | |
| E a verdade. | 1605 |
| Saberei o segredo do vero, | |
| Eu, que indago a noite e o ser? | |
| Mais eu vejo além e mais eu desconheço. | |
| Não sei, não nego. | |
| Será nudez não saber o que sinto? | 1610 |
| No peito não há dessaber, eu o sei. | |
| Como negar os sentimentos próprios? | |
| A nudez que reveste as alegrias | |
| Não desvenda a verdade como forma. | |
| Se o vero é belo | 1615 |
| Convém ao vero um fluir hidrogênico: | |
| Apenas água espelha a profundez. | |
| Se a verdade nudez das almas, | |
| Que será nudez? A noite | |
| Contendo os dias? Penso na aurora | 1620 |
81
| E sei que o pó que circunda o sol | |
| Acaso apenas, noite a natura maior | |
| Das eras, ao longe as luzes pequenas. | |
| No estado de todos os dias | |
| Vive a mesma exceção das esferas | 1625 |
| Onde à noite o céu esconde os astros. | |
| Assim o faz a superfície da lua | |
| Como em Marte e lugares ingratos | |
| O solo, o ar e as noites vermelhas. | |
| E no entanto, nas noites vermelhas | 1630 |
| Não menor a nudez se menos visível. | |
| É que a nudez não revela as esferas | |
| Nem haverá no que não sabe sentir. | |
| Os olhos voltados ao canto estelar, | |
| Um canto menos do céu que dos olhos, | 1635 |
| Eu vejo a treva lene e luzes simples, | |
| Que as formas plenas vanidade apenas, | |
| E atino em ares onde estou, que sou. | |
| Ainda não vi, perdido e descoberto, | |
| A minha essência proto-pulvérica. | 1640 |
82
| Por metáfora mais que por verdade | |
| Direi somente que sou o que sinto. | |
| E como sei o que sinto, sou verdade | |
| Mais do que metáfora. Por que, cantar, | |
| Se os universos que entendo são vazios | 1645 |
| E toda parte eternidade das noites, | |
| Tanta alegria cabe embora no peito? | |
| Mas os vazios são vazios para quem? | |
| Eu vejo estrelas e estendo o meu dedo | |
| Rumo à nudez de ser, que é ser inane. | 1650 |
| E se em meu peito as alegrias cabem | |
| É que o meu peito é somente um vazio. | |
| Vou buscando um ponto no escuro | |
| E somente encontro parábolas. ✠ Que valor | |
| O ser que encerra apenas as letras? | 1655 |
| Fui chamado a cantar um canto estelar, | |
| Eu, que na lene orquestra do eterno | |
| Recebi de instrumento o silêncio – | |
| Eu, que nem corda nem aura de flautas, | |
| Apenas trago, apenas sou palavras. | 1660 |
83
| Não me sobem à mente ainda imagens? | |
| Eu me sentava ao lado dos discos | |
| Ouvindo mudo as alegrias sinfônicas. | |
| Eu me escondia em vão atrás do piano | |
| Como se perto da corda eu fosse nota, | 1665 |
| Voasse, donde não sei, e nem aonde, | |
| Felicidade invisível. | |
| Estrelas, eu me sentava também, | |
| Quando o mundo me fechava os olhos, | |
| À beira do teclado erguendo as mãos, | 1670 |
| E no entanto as mãos, se amor descia, | |
| Já não subia do toque nada sublime. | |
| Como foi isto, pequenas, que me passava | |
| Naquelas horas de abismo e de amargo? | |
| Quanto mais eu buscava nos pontos | 1675 |
| A música, a música mais me fugia. | |
| Corria como um louco o meu espírito | |
| Áspero, mas a técnica espírito lene. | |
| Quantas vezes, serenos, eu suplicava | |
| Do belo a supressão das perícias? | 1680 |
84
| O piano era surdo como a música! | |
| No abismo que só infância conhece | |
| Os coliseus do dominó desabavam. | |
| O mar que me fizera o ser horizonte | |
| Já não vinha abrir a porta do carro. | 1685 |
| Eu corria, então, em fuga desastrada | |
| Ao desalmado mar de castelos e areia, | |
| Para entrar e me esconder de estrelas, | |
| Mas que esperanças, em que castelo | |
| E lugar eu cabia? Cabia em palavras? | 1690 |
| Cala a boca, poeta – deixa a poeira! | |
| Eu ando e corro e morro em toda parte | |
| E toda parte estou preso em palavra. | |
| Mar! Vem afogar, hiato, a minha voz, | |
| Leva embora de mim o verbo sem lira. | 1695 |
| Ai as imagens, ai a mente contrita – | |
| Quando deixei no teclado o meu sonho | |
| E descobri que a minha vida é sem música, | |
| Eu quis tragar o mar e o mar secou. | |
| Apareceu meu pai coaquele dicionário | 1700 |
85
| E co latim e grego debaixo do braço. | |
| Eu conjugava os verbos como se fossem | |
| Tempo e declinava o nome como as coisas. | |
| De que me vale império sobre pedras? | |
| Ainda não vi, no conjugar de aoristos, | 1705 |
| Mesmo dos fortes, nem nos particípios, | |
| Nem no ablativo absoluto a liquidez | |
| Daqueles espíritos cadentes, semínimos, | |
| Da clave de ré menor ou modo frígico, | |
| Nem contraponto. O meu tempo termina | 1710 |
| Como a clausula dissecta desiderans. | |
| Tempo? Tempo é desinência apenas. | |
| Eu temo entanto a tristeza na morte, | |
| Não poder levar, no rumo astronáutico, | |
| Notas – apenas uma. Deito-me à relva | 1715 |
| E compreendo amargo o pesar da poeira. | |
| Quanto espaço o som da nota ocupa? | |
| Serenos! Nem o pó eu desejo levar | |
| Na viagem, eu quero apenas um sopro. | |
| A vibração das cordas me basta! | 1720 |
86
| Mas a voz das cordas quem me traz? | |
| As minhas mãos sem perícia repousam. | |
| Se sopra em mim dum pego qualquer | |
| Sou eu a corda que sopra inaudível. | |
| Como não? Porque as mãos não me sirvam | 1725 |
| Para a lira e todas cordas me fujam, | |
| Deito-me sobre o mar e me faço corda, | |
| Que as alegrias um dia me toquem, | |
| Transformem música muda em líquida. | |
| Eu comparava outrora as parábolas | 1730 |
| Co dicionário de grego e sorria. | |
| Na confiança da corda intocada | |
| Bastava saber o donde vêm palavras | |
| E soaria livre o canto, além do verbo. | |
| Foi naqueles dias que me perguntei | 1735 |
| Se a corda e o cor uma coisa somente, | |
| A corda que vibra como o cor pulsando. | |
| Eram tão iguais os casos declinados | |
| Que talvez, no mistério sânscrito | |
| Dos seres, a raiz lhes fosse a mesma. | 1740 |
87
| Eu, que sou corda e lira sem nota, | |
| Sei que a corda que sou e meu cor | |
| Essência da mesma poeira e do abismo. | |
| Ora, a corda que as alegrias tocam | |
| Qual será senão o pego que pulsam? | 1745 |
| Vivem como os dois naquela sonata | |
| Que soa harmonia, porém contraponto. | |
| E no entanto, pareciam dois distintos. | |
| Eu quero um canto, serenos, longe, | |
| Seja nem harmonia nem contraponto. | 1750 |
| Deixo a minha nota a ser composta, | |
| A corda muda às alegrias supremas. ✠ | |
| Porquanto acima eu veja, nas cadências, | |
| Que a verdade me invoca longe da lira | |
| E perto apenas de verbo eu me encontro, | 1755 |
| Dou-me o trabalho de invadir o verso. | |
| Trabalho? Eu fora melhor astronauta, | |
| Eu, a quem labor e a liberdade espelham, | |
| Digo, espelharam-se um dia idênticos. | |
| Nem tampouco astronauta eu cresci, | 1760 |
88
| Que a ciência das coisas certas fugia | |
| Como ao mar as calmas matemáticas. | |
| Ora, a profissão que eu procurava, | |
| Por hídricos gênios de metamorfoses, | |
| Era a viagem sublime aos elementos | 1765 |
| Que entre hiatos espelham verdade. | |
| Em tal labor ocupo minha indústria, | |
| Nem existe em meu sopro trabalho | |
| Além da busca de espelho e de ser. | |
| O que brilha é somente abstrato, | 1770 |
| No ponto a nudez, nudez a verdade: | |
| Pobre, pois nada tem, apenas é – | |
| Pobre como a liberdade apenas. | |
| Outrora me indagavam os homens | |
| Quê seria senão um ser astronáutico. | 1775 |
| E vi seguirem muitos o seu comércio, | |
| Outros amor às leis e cura de vidas, | |
| Alguns a construção das pontes. | |
| Mas eu era a busca dum ônus | |
| Que talvez trabalho algum rendesse. | 1780 |
89
| O mundo é comércio, | |
| Jogo e troca e moção de fortunas. | |
| Receba aquele que der e dê quem tiver, | |
| E quem não tem se vire. | |
| Eu, que me deito sem comércio, | 1785 |
| Vejo acima o que paira sobre o jogo, | |
| Que acima como abaixo a troca é vã | |
| E de nada carece o que sabe querer – | |
| Pois não rareia, que é plena, verdade. | |
| É comércio de só poeira o que quero? | 1790 |
| Se troca de coisas torna os homens ricos | |
| Mas nem nas coisas nem homens verdade, | |
| Prefiro dar a verdade em troca de nada, | |
| Porquanto o vero a poeira não compra – | |
| Caro o ser que não carece de preço, | 1795 |
| Rico. Prossigo astronauta. | |
| Se a cura por mera poeira e sustento | |
| Põe às minhas mãos enxada, dou ao chão | |
| O pulso necessário apenas, nada mais. | |
| Talvez a verdade seja um chão, | 1800 |
| Canto Estelar | Folium IV |
| Pois de pisar o céu não tenho pés, | |
| Apenas alma. Se piso o chão de pé, | |
| O céu de alma, deito-me à relva | |
| Para estar de alma e não de pé. | |
| Mas se mesmo de alma estou deitado | 1805 |
| E se deitado iguais os pés e alma, | |
| Estou no chão ou estou no céu? | |
| Ó serenos, dai algum perdão maior | |
| À minha triste inconstância e dizer. | |
| Não incluo à pobreza dos meus versos | 1810 |
| As grandes pretensões apodíticas. | |
| Já não constatamos, noutro espaço, | |
| Que no extremo vazio que nos cerca | |
| O chão e céu são a mesma verdade? | |
| Eu me lanço ao chão, estrelinhas, | 1815 |
| Para alçar-me, mais e longe de além. | |
| Não me importo se pousa a meu lado | |
| O peso já da enxada e terra ingrata. | |
| Abel lhe deu uso e Caim, e não a nego. | |
| A mão na enxada longe porém da obra, | 1820 |
91
| Que enxada e mão é poeira o que movem, | |
| Obra o que restou imóvel nos olhos. ✠ | |
| Se a verdade for nudez imutável, | |
| Onde estão as alegrias, indo e vindo, | |
| Por que distantes e tão incertas? | 1825 |
| Serão talvez sublimações hidrogênicas, | |
| Líquidos sopros do saco do limão. | |
| Direi que são efêmeras? | |
| O que não cabe n’alma chamarei pequeno? | |
| São balde maior do que o peito. | 1830 |
| Balde? Nem no pano o peito cabe. | |
| Se as alegrias foram breves, | |
| Breve o peito. Quando o mar me tocou | |
| E me descobri na linha reta, | |
| Quis medir a grandeza em segundos, | 1835 |
| Mas são a morte do tempo as alegrias. | |
| Quando o meu peito pensou conhecê-las | |
| Perdi do fundo a lembrança e vi-me tempo. | |
| São surpresa e sopro. | |
| Porque sopro, não se prendem. Abrigam-se, | 1840 |
92
| Por átimos, no abismo, e peito as sopra | |
| Para além. Quis transformar a surpresa | |
| Em costume, que é castelo de tempo, | |
| Mas surpresa a que o cor se acostuma | |
| Não o toca e vive longe do espelho. | 1845 |
| Outrora as alegrias me enlevaram | |
| E vendo o mar eu contemplei verdade. | |
| Não se esquece os primeiros encontros, | |
| E as alegrias de ontem vivem hoje, | |
| Não surpresas, lembranças | 1850 |
| De certas imagens que vêm de repente. | |
| Foi no tempo do dominó | |
| Que atinei cons ponteiros correndo. | |
| Apareceu na gaveta de baixo | |
| Um relógio de bolso – mecânico: | 1855 |
| Era preciso dar corda todo dia. | |
| Foi fitando a marca das horas, paradas, | |
| Que notei mistério. Indagava os velhos | |
| Por que, se o tempo passa, | |
| Eu mirava o relógio e via doze horas | 1860 |
93
| No mesmo lugar – e mesmo os ponteiros, | |
| Indo além, voltavam. Os velhos calavam. | |
| Talvez não quisessem revelar | |
| Que o tempo é ponteiros. O tempo é mais: | |
| Ponteiros girando em torno dum único ponto. | 1865 |
| Então as horas posição dum ponto apenas? | |
| Fora de mim, o mar e os castelos de areia | |
| Eram ainda os mesmos. Não havia passarem. | |
| Depois e antes só se vê por movimento? | |
| O que move, move o que dantes jazia | 1870 |
| E depois também jazerá. Eterno relógio: | |
| O que se move está cercado pelo imóvel | |
| Como pelo que dura cercado o que passa. | |
| Foi o dicionário de latim, de meu pai, | |
| Que me disse: Abre-me, mão, na letra m! | 1875 |
| Movi-me pois e vi, por entre as parábolas, | |
| Que o nome momento vem de movimento, | |
| Que as alegrias dum segundo apenas | |
| Serão o gáudio de todos os tempos. | |
| Duram, invisíveis, como a verdade | 1880 |
94
| Aparentemente longe, imota, intocada. | |
| Intocada para quem? Eu descobria | |
| A verdade mirando o relógio mecânico, | |
| Contemplando o dominó vermelho, vendo | |
| Que o tempo é ponto, a verdade espaço. | 1885 |
| O ponto não conhece espaço inteiro | |
| Nem momento o sabe, pois indo e vindo | |
| Vai daqui além ou vai de ponto a ponto, | |
| Enquanto o vero dura em todos os traços | |
| Nem carece de andanças daqui além. | 1890 |
| Mas que seria dos olhos sem as cadências? | |
| Não são momento e ponto e tempo cadências? | |
| Eu, que pergunto aos astros como aos velhos | |
| Sem resposta, sem resposta descubro | |
| Os passos dum sopro verdadeiro. | 1895 |
| Sem embargo o meu sopro, mesmo disforme, | |
| Ponto apenas. Como, se apenas ponto, | |
| Dentro de mim verdade? Direi porventura | |
| Que todo ponto verdade? Eu vejo estrelas, | |
| Serenos, e cada ponto | 1900 |
95
| Resume em si o espaço inteiro da verdade. | |
| As alegrias sopram por perto | |
| Qual se cada ponto emanasse além-ser, | |
| Nem houvesse abismo entre espaço e ponto. ✠ | |
| Aqui estou, por entre estrelas vasto – | 1905 |
| Estrelas eu, que somente deito e me calo. | |
| Como as melodias que não sabem | |
| Nunca que existem será de mim silêncio. | |
| Nebulosas do nada, pergunto-me | |
| Se cabe mais uma melodia no infindo. | 1910 |
| O canto estelar que buscava, | |
| Como pode existir se o peito apenas um? | |
| Fora preciso que os outros cantos calassem | |
| Para que o meu peito inteiro fosse ouvido. | |
| E no entanto, o meu peito faz-se orelha | 1915 |
| Para que soe em si o verdadeiro inteiro. | |
| Minto? Serei eu mesmo o todo em silêncio? | |
| Quisera ser o coma incontável das notas, | |
| A fim de que se ouvisse em mim as notas | |
| Das melodias e do impossível, conjuntas, | 1920 |
96
| Cada qual porém distinta. Eu guardaria | |
| O canto universal, abstração derradeira | |
| De ser e contra-ser, num único ponto. | |
| Mas sou pequeno. ✠ | |
| Vai chegando ao fim o meu canto estelar, | 1925 |
| Que menos canto ressoa que o mar. | |
| Hei de alçar-me não aos céus, ao chão, | |
| Por onde atrás duma pedra me espera ainda, | |
| Talvez, um gato magro. Nem sabia, coitado, | |
| Nem no jardim do éden nem na minha relva | 1930 |
| O gato magro sabia dum canto estelar. | |
| Queria apenas passar – como um ponteiro | |
| Que em verdade nem sabe que vai passando, | |
| Preenchendo o meu relógio de lembranças | |
| E dalguma tristeza eterna, incurável. | 1935 |
| Fugiu a verdade que busquei no infinito, | |
| Fugiu por entre estrelas e pelos relógios, | |
| E nem no velho saco do limão me consolo. | |
| No entanto, sopro, passa o gato magro | |
| E vejo o rosto invário da verdade | 1940 |
97
| E cubro em vão os meus olhos de mar, | |
| Que a só verdade é quanto bem lhe devo | |
| E nem me deu no éden o canto estelar. | |
| Percebo bem o mal que se me abate? | |
| Eu buscava a verdade em tais distâncias | 1945 |
| Fechando os olhos aos pés que passavam? | |
| Os pés dos outros | |
| Foram sempre a verdade mais de perto. | |
| O vero desconhece o perto como o longe. | |
| Já que ainda procuro o que me falta | 1950 |
| Como outrora o chão co dominó vermelho, | |
| Quero que a busca das minhas verdades | |
| Comece daqui por perto, pelo chão | |
| E pelos pés e pelos olhos que passam. | |
| Tirar de mim a memória do mar! | 1955 |
| Por que me buscaram daquela sala | |
| Onde montava o dominó do ingênuo, | |
| Sim, e me deram de amigo horizonte? | |
| Quero gritar e correr além como o rei | |
| Que arrancou coas próprias mãos os olhos! | 1960 |
98
| Mas, serenos, mostrai-me logo as mãos | |
| Com que do corpo arrancarei lembranças! | |
| Mostrai-me o pensar de que o mar acabou! | |
| Eu temia outrora as nuvens como a cegueira | |
| Cobrindo o céu que as ambições amavam. | 1965 |
| Temo agora os céus e busco as nuvens | |
| E a palidez dos postes e pouca luz. | |
| Foi no tempo dos castelos de areia, | |
| Antes, que subi por acima das nuvens. | |
| Antes do grande anseio astronáutico | 1970 |
| Já voavam de avião os meus olhos, | |
| Eu sozinho indagando os tripulantes | |
| Se existe mundo além daquelas nuvens. | |
| Lembro como hoje a janela estreita, | |
| Sob os meus pés as nuvens e o mundo. | 1975 |
| Eu estava nos céus e céus eu buscava. | |
| Se o sol não tinha fim | |
| Donde viria a noite e donde estrelas? | |
| Navegando chegavam, | |
| Levando embora as mentiras e as cores, | 1980 |
99
| Deixando as ondas, o pélago | |
| Abaixo como acima os pontos livres. | |
| Eram livres nas leis dos meus castelos | |
| De areia, nos sonhos onde as mãos cavavam | |
| Portas até que se encontrassem, no fundo. | 1985 |
| No fundo do abismo eu dava as mãos às estrelas | |
| E durava o quanto de areia fizéssemos, | |
| Durava como os sonhos e como as cadências. | |
| Foi talvez em tais viagens distantes | |
| Que as alegrias supremas despertaram. | 1990 |
| Quando eu mirava as nuvens sob os astros, | |
| Quisera acordar dormentes, | |
| Saber se existe mundo sob as nuvens, | |
| Porquanto o mundo eu descobria acima. | |
| Respondiam estrelas a cantar | 1995 |
| Que ali moravam, ali pairava essência, | |
| O belo, o bom e o vero, as alegrias | |
| Maiores que as nuvens: – Menino, | |
| Se um dia o mar e o mundo forem cinzas, | |
| Lembra o que somos e donde viemos. – | 2000 |
100
| No sonho que abria os meus sentidos, | |
| Meu coração era o céu estrelado | |
| Que amargas nuvens jamais apagariam. | |
| O pentagrama que os pontos preenchem, | |
| Linhas que vão surgindo e se perdendo | 2005 |
| Como os olhos as façam imagens, | |
| O vento que venta olor aos sublimes, | |
| Que me importam agora tantos rastos, | |
| Rostos de além e dança calma calada? | |
| Cercou-me tarde a floresta de estrelas | 2010 |
| Quando mirando a treva tranquila vi, | |
| No quanto lhes fio, quanto mal existe, | |
| E nas ondas os pés contrariando o mar | |
| Co mesmo golpe que outrora o gato magro, | |
| E do éden verdade em veredito e voz. | 2015 |
| Era tão verde viver no mundo estelar | |
| Esperando as alegrias supremas. | |
| Parte das noites, talvez a maior, | |
| Cobriu o céu coaquele mar de nuvens | |
| A quem impus os meus castros de areia. ✠ | 2020 |
101
| Acostumei, ou tento, alguns anseios | |
| Ao coma e me consolo certas vezes | |
| Vendo constância na cor das nuvens. | |
| Deixo à mostra o rosto, o pouco sopro | |
| Que eu cuidava ser minh’alma, | 2025 |
| Quando a noite das danças cadentes | |
| Foi o mais feliz dos meus encontros. | |
| Deixo à mostra o rasto da minha vida | |
| Que a chuva, se quer molhar, que molhe. | |
| Não dissemos que o belo | 2030 |
| Sublime corre como água e disforme? | |
| Não me esforço nem resisto à gota. | |
| De repente, a minha relva é mar | |
| E meu canto à deriva. Tenha fim, | |
| Serenos sopros, fim o meu abismo! | 2035 |
| Os meus amigos ora são velhos mortos | |
| E angústia. A minha relva é pesada, | |
| As nuvens se tornam palavras. | |
| Eu conjuguei irregulares verbos | |
| Em vão, que tempo nenhum perfeito. | 2040 |
102
| Nesta terra por onde as minhas letras, | |
| Se prossigo, serão ainda a barbárie | |
| Frente ao gato magro de holocaustos, | |
| Quero ainda o verso dos velhos | |
| Para o remorso dos novos? | 2045 |
| Como a noite em que vim pelas ruas | |
| E nos postes as luzes se apagaram | |
| E vendo as nuvens remordi meus lábios, | |
| Remordo o meu sopro e me escondo sombra, | |
| Remorso do verbo e do vazio. | 2050 |
| O amor que confiei às sombras | |
| Quando os meus olhos eram cor ingênuos, | |
| Aonde foi? Eu confiava tanto em pupilas | |
| Que andava pela noite entre as árvores | |
| Densa cadentes, pontos por mim adentro. | 2055 |
| Hoje vejo nuvens, | |
| Cerro os meus olhos e quero apenas acaso. | |
| Entretanto, serenos, certo as nuvens passam. | |
| Abro as minhas asas e zarpo às miríades. | |
| Eu não me impeço, apesar de quem sou, | 2060 |
103
| De buscar deitado as cadências. | |
| É somente a mim mesmo que encontro | |
| E que busco, fingindo ver eternidades. | |
| Fugir dos homens? Viver em todos seres! ✠ | |
| De repente, a terra se move | 2065 |
| E me tremo, tomado de susto. | |
| Ergue-se o vulto e mira | |
| Ofegante dentro das minhas abstrações, | |
| Por onde os nossos temores se encontram. | |
| Era uma ovelha! Donde saiu e como chegou, | 2070 |
| Mistério sabe. Estava ali deitada a hora | |
| Toda junto à minha enxada e cegueira. | |
| Nem sabia, coitada, que ali jazia o mal. | |
| Eu me ergui da terra e seus olhos seguiram | |
| Junto ao medo os movimentos, | 2075 |
| Aqueles olhos oblíquos de eu tanto amar | |
| Os olhos do gato magro. | |
| Serão surpresa os temores do fraco? | |
| Correu. Correu embora como louca e varou | |
| Por onde podia até sumir, na derradeira | 2080 |
104
| Curva das nuvens, sem tempo e sem cerca, | |
| Longe de mim e de tudo o que eu amo. | |
| Vai, minha filha, corre longe daqui, | |
| Que destes pés e das mãos | |
| E dos olhos que vês é pouco o bem | 2085 |
| Que chega afora. Correu além, berrando | |
| Grave o seu ovino abandono às estrelas. | |
| Eu, que já de pé buscava enxada, | |
| Em vão o saco do limão, | |
| E remoía o ter-me alçado acima do sonho, | 2090 |
| Deixei que se fosse a pobrezinha | |
| Nem curei dizer que as estrelas não ouvem. | |
| Deixei-me levar consigo, eu, que fiquei | |
| E que fui embora, parte de si e de mim, | |
| Como o canto que me faz nas alegrias | 2095 |
| Estar em toda parte e talvez em nenhuma, | |
| Peito aberto aos espelhos, | |
| Contemplações da verdade | |
| E do sublime. | |
| Tivera todo argumento do mundo | 2100 |
105
| E razão de calar e deitar e moer-me. | |
| Não, não o fiz, eu me rendo à poeira | |
| De elementos brutos que redime o sopro, | |
| E porque sopro entendo que me alegro | |
| Não por mim, e sim pelo que me cerca. | 2105 |
| Mas quando os olhos, a boca e poderes | |
| Me fazem belo sem razão | |
| E me alegro de ser a poeira que sou, | |
| Não resisto. | |
| Deixo-me estar pelas eternidades, | 2110 |
| Eu, que sei que o gozo é momento, | |
| Eu, que já de cedo mirava os ponteiros | |
| E via os castelos vir abaixo e dominó, | |
| E desprezava o saco do limão rasgado | |
| Como o gato magro a que dei pontapés, | 2115 |
| E que de amigos buscava o mar e os austeros | |
| Homens dos quadros na casa velha | |
| E mais em vão as cordas que apenas fugiam, | |
| Eu, agora menos que ponto e parábola, | |
| Longe do verbo e da nota. ✠ São noturnas, | 2120 |
106
| No meu coração, as alegrias supremas. | |
| Pairam e sopram e passam como entendem. | |
| Não peço e quando busco apenas sofro. | |
| Deixo-me pois, assustador de ovinos sonhos, | |
| Aberto e de peito vazio e nada espero. | 2125 |
| As ovelhas outras que estavam deitadas | |
| Já fugiram de mim, e fugiram comigo. | |
| Aonde fomos? Decerto perpassamos nuvens: | |
| Percebe que a chuva passou, | |
| Que a relva é seca, não porém sedenta, | 2130 |
| Que as notas do pentagrama luzem, | |
| Mesmo as estrelas que já pereceram. | |
| Deixaram além, na velocidade da luz, | |
| Da força, do raio donde nasce além-ser, | |
| Porquanto nem existem mais e ainda são, | 2135 |
| Velocidades excelso apêndice do ser, | |
| A coda que põe a morte para trás da luz. | |
| Que me ocupam, estrelas, vida e morte? | |
| Há palavra que, sendo, deixe ainda de ser? | |
| Antes de aceso o fogo já queimava e morto. | 2140 |
107
| O sopro que apaga o foco o guarda consigo, | |
| Não o destrói e nem à luz que avança além | |
| Depois de extinta a flama, feita poeira. | |
| Ora, serenos, é fogo a poeira que sou. | |
| Quero deitar-me ainda e, vendo estrelas, | 2145 |
| Sonhar que serei velocidade apenas, | |
| Um raio, longe do pó que deixo extinto | |
| E que renasce no raio e na metamorfose. | |
| Sonhos são somente sopros insanos. | |
| Eu, que levanto o meu corpo e me enxergo, | 2150 |
| Percebo quão distante estou do eterno, | |
| Pequenas as mãos na enxada. | |
| Talvez os meus desejos sejam só palavra | |
| Naquele velho dicionário meu de grego, | |
| Que já não explica dos verbos a origem | 2155 |
| Nem me contenta o rol dos aoristos: | |
| Estou distante do eterno e do instante. | |
| Procuro em vão por máquina astronáutica. | |
| Lento o meu sopro como espíritos ásperos, | |
| Não serei jamais astronauta. | 2160 |
108
| A minha liberdade sonho somente e castros | |
| De areia, de areia o sentimento sublime, | |
| O belo absoluto, a verdade – e o homem. | |
| Aonde irei, estrelas? Toda parte um mar | |
| E mar silêncio, ruir de castelos e verso. | 2165 |
| Ai de mim, ai de mim, ai que conheço | |
| E já vos digo e digo aos astros acima | |
| Que rumo tomarei, que farei de meu rumo. | |
| Doravante, minhas celulazinhas | |
| E nervos e estrelas cerebrais, | 2170 |
| Deitai ao chão as asas que vos sobram, | |
| Que já na próxima noite eu não serei | |
| O que sou – serei das pedras, | |
| Serei, se quiserdes, pedreiro. | |
| Ouvi dizer que abandonaram o vale. | 2175 |
| Quero andar naquele rumo | |
| Pois deixaram pedras: | |
| Quero carregar algumas. | |
| Porei, coa força que dentro couber, | |
| Umas sobre as outras, cobrindo a terra | 2180 |
109
| Logo ali, na beira donde o vento passa | |
| E dizem derrubar as casas e até ruínas. | |
| Quero erguer naqueles ermos abrigo. | |
| As suas paredes serão de fora tortas | |
| Mas de dentro firmes e firme o teto. | 2185 |
| Levarei de móveis as pedras | |
| Do dominó. Levarei ponteiros | |
| E o dicionário de grego. Deixarei | |
| Do lado de fora, no fundo do abismo, | |
| O mar, pois a pedra é penhasco. | 2190 |
| Deixo também um pasto, se alguma ovelha | |
| Ou gato magro quiser. Mas esses dois, | |
| Serenos, esses não virão. E farei, | |
| Numa parte além, o meu uso da enxada. | |
| O mais verdadeiro serão janelas. | 2195 |
| Quisera, pobre de mim, que as janelas | |
| Fossem do tamanho do mundo – maiores | |
| Como as alegrias. Mas as mãos | |
| São pequenas e a casa | |
| Se fez dum braço apenas. Pelas janelas | 2200 |
110
| Entrarão de noite as alegrias e os sonhos. | |
| Virão soprando de espíritos lenes. | |
| Já que não posso reter | |
| E nem buscar eu posso | |
| Nem comércio de mundo mas pode trazer, | 2205 |
| Construirei albergue às alegrias, | |
| Que de passagem por entre duas pontes | |
| Mais felizes que o peito pousem, | |
| Venham quando queiram e lá pernoitem, | |
| Na breve escala dos voos. | 2210 |
| Quem vier por longe e vir cons olhos vãos | |
| A minha casa, certo dirá que é ruína, | |
| Pois verá talvez o espelho de meu peito, | |
| Espelho errado que apenas eu decifro: | |
| A casa é torta mas nela eu vivo forte. | 2215 |
| As alegrias do fim, que sabem melhor | |
| E sabem mais o que sou e que sinto, | |
| Terão, no breve pouso janelas adentro, | |
| A gratidão dum homem pequeno e momento. | |
| Talvez jamais retornem. | 2220 |
| Eu, que espero apenas, nada mais espero: | |
| Deixo à doce surpresa a sua escolha, | |
| A liberdade ao acaso. Se numa noite | |
| Quiserem voltar e que eu me sinta parte | |
| De toda parte, as minhas janelas tortas | 2225 |
| Estarão abertas. Se desejarem soprar | |
| Um canto estelar ao meu silêncio, | |
| Que venham. E quando o canto calar, | |
| Que passem. Passem. Partam como quiserem. |