Canto Estelar
© Gregorius Vatis Advena 2014, Record L 3, Engl. Song of the Stars, May 2014 to October 2014, Balearic Islands, Hampshire, one verse, 2229 lines, lyric poetry, Portuguese.
© Gregorius Vatis Advena 2014, Record L 3, Engl. Song of the Stars, May 2014 to October 2014, Balearic Islands, Hampshire, one verse, 2229 lines, lyric poetry, Portuguese.
O foco inicial desta obra são “as alegrias” no que revelam uma transcendência íntima espontânea. Ao buscar entender os sentimentos, o eu-lírico questiona sua relação com a verdade, a beleza, o bem e outros conceitos. O céu estrelado torna-se o palco da busca e parte do eu-lírico.
O Canto Estelar é uma evocação da noite como representação da fragilidade. Incapaz de explicar a origem e o significado final dos sentimentos, o eu-lírico confirma-se e duvida de si mesmo como objeto do auto-conhecimento. Recordará, em seu estudo, cenas da infância.
Kinderszenen, X. Fast zu Ernst, por R. Schumann, performance de Cristoph Zbinden – Musopen CC BY 3.0.
O verso é livre – embora passagens isoladas exibam caráter métrico, a liberdade do verso consiste em aceitar qualquer forma sem submeter-se a nenhuma. O poema forma um corpo unitário sem subdivisões. Cá e lá, a cruz pátea (✠) marca possíveis pontos de descanso ao leitor.
As alegrias supremas são noturnas. | |
Começam quando a forma das cores | |
Se esvai e quando as causas terminam. | |
É nessas horas sem roupa nem ruído | |
Que algum dos homens se deita a calar. | 5 |
Não porém a dormir. Os olhos abertos | |
Vagam de um ponto ao outro no escuro – | |
Vago, pois do chão que mira o teto | |
As metrias e as retas cessam de ser. | |
E não existe teto na escuridão. | 10 |
O imenso afora transforma-se no fim | |
Da visão, da perfeição dos sentidos. | |
Um espaço cheio de pontos, perdidos, | |
Inalcançáveis talvez. Ao menos às mãos. | |
Mas as nossas mãos são mesmo infelizes. | 15 |
As alegrias vêm dalguma cegueira doce. | |
Tantos focos que nem desejam ser vistos | |
Nem a vista alcança ou vê de verdade | |
São acenos dum mundo impossível, | |
Fenômenos extremamente arrojados. | 20 |
1
O impenetrável visto como supremo | |
Cala as palavras, a boca e poderes. | |
Se houvesse tantos lábios | |
Como acima de nós as folhas e o brilho, | |
Já se pudera cantar como nem estrelas. | 25 |
Como é fraca a boca e fraca a vista! | |
O primeiro canto de dar às alegrias | |
Seja a canção dos nossos olhos fechados. | |
Quanto mais se escondem das causas | |
Mais as causas de longe os invadem. ✠ | 30 |
Abre-se frente aos sonhos o pentagrama, | |
Vasto onde as notas se inscrevem sem linhas. | |
As partes são canto e canto os olhos ligam, | |
Nem se sabe já se fechados, se abertos, | |
Ligam apenas – e as linhas vão surgindo, | 35 |
Longas, onde quer que exista espaço, | |
Pelo espaço alcance. Mas os olhos fracos | |
Tudo tocam coas mãos e vão enchendo | |
Os caminhos altos de imagens invisíveis. | |
Querem alçar-se aos derradeiros largos, | 40 |
2
Além do traço em que se perdem as letras | |
E o mundo o seu tamanho. Cessam estradas, | |
Agora que o rumo é sem metro e sem fim, | |
E já não erram os passos. Andam apenas, | |
Pois andar é bom, e toda parte é mistério. | 45 |
Nem o vento sabe olor dos astros que traz, | |
Rastos dum deus perdido e de sombras. | |
O medo nosso de sombras se esquece. | |
São a ponte apenas para os jamais, | |
Elas que certamente mais nos temem, | 50 |
Pontes aladas ao nada formosíssimo. | |
Gozo é fitar no alto o berço do escuro, | |
Calmo, e cego fiar-se nas cavas | |
Sem temer – amar a cegueira sem fim, | |
Que as alegrias sublimes são noturnas. | 55 |
Inventam astros e as noites que inventam | |
Foram as noites mais felizes de vidas | |
Na floresta de afrescos abstratos. | |
Se basta um par de pontos entre os quais | |
Passar uma linha, linhas e linhas passam, | 60 |
3
Brincam como cílios. As paralelas bailam, | |
Se cruzam toda parte onde a parte é todo. | |
Esse porém que cala, deitado no espaço, | |
Viajeiro perdido – perde o seu tempo. | |
Mas o tempo a gente sempre vai perdendo, | 65 |
Existe apenas para ser perdido além. | |
O tempo pesa. As alegrias são leves. | |
Os sonhos levantam as asas e levam | |
Rumo a fogos distantes um sopro, | |
Como se fosse fácil vagar – e voar. | 70 |
Não existem números mais na distância, | |
O tempo suspenso prescinde das causas. ✠ | |
Nessas horas de flutuações indescritas | |
O ser indefinido indaga o nada: | |
Que são as alegrias? Donde vêm? | 75 |
As palavras da boca são imensas, | |
Poucas, e as linhas inexplicáveis. | |
Firme apenas o sono que envolve | |
A nudez das respostas. E quão vazias. | |
Mal se encerram os olhos, os olhos veem | 80 |
4
Como toda parte é falta de causa. | |
As pedras de tropeço jazem por aí, | |
Indiferentes, mostrando o que há. | |
E no entanto os ares calam-se tenros. | |
Gozam a sós alguma breve leveza, | 85 |
Breve, já que venta e logo se esvai. | |
Como vento a voar por cá, por lá, | |
Sem mal notar, assim os olhos passam | |
Pela cena. São sedentos de longe. | |
Quando entanto pousam, de ponto a ponto, | 90 |
No chão, e no chão o sentido termina, | |
Acordam. Afora falta ainda o fim. | |
Por quê, portanto, se é tudo engano | |
O ganho das horas e abandonos, | |
Os olhos amam? A verdade nossa | 95 |
Foi sabida desde sempre e de todos: | |
Somos ingênuos. Restamos ingênuos | |
Independente do paladar amargo. | |
Ingênuos vendo as pontes do eterno, | |
Somente eterno em nosso vendo breve. | 100 |
5
Nada ensina a dureza dessas pedras. | |
Malgrado o mal das horas e das almas, | |
As alegrias existem. Não há negá-las. | |
Nem os olhos nem palavras as pedem. | |
Existem simplesmente. Flutuantes. | 105 |
Invadem incalculados ermos do império. | |
E vão-se embora. Vão-se quando querem. | |
Vida nenhuma, mesmo a vida constante, | |
Triunfa, nunca, contra o sopro leve. ✠ | |
Eu, que jazia sobre a relva estelar, | 110 |
E que o sopro menos temo que busco, | |
Ia abrindo os olhos e querendo, | |
Toda parte, alguma estrela cadente. | |
As alegrias não se deixam querer. | |
Os pontos que acima se movem, nunca | 115 |
se movem pelos olhos, sempre alheios. | |
As cadências não se prevê. Vêm do nada, | |
Vão. Cabe ao acaso colhê-las como dão. | |
E no entanto eu permaneço sobre a relva | |
Sem saber o quanto esperarei moções. | 120 |
6
Nem as espero. Aquieto-me apenas. | |
Quero estar pronto quando venha o sopro, | |
Consigo cadência. Preparo-me | |
Como os anciãos quiçá para a morte. | |
Pode ser que venham por última vez, | 125 |
Ou voltem. Hei de gozar o que há, | |
Sem escudo contra a espada invisível. | |
Quando os olhos percebem que as alegrias | |
São o vento, desencantam-se apenas. | |
Vão embora por entre alguma nuvem. | 130 |
Inopinado, o sopro os encontra, | |
Onde quer que se escondam, tenaz. ✠ | |
Esses mais que se deitam no escuro | |
Mirando longe pontos, são deixados. | |
Nada lhes é devido. Abrem | 135 |
Junto aos olhos o desconhecido. | |
Pela porta adentra o breve impalpável, | |
Passa e leva embora a memória. | |
Toca os ingênuos que vão vivendo | |
Pelos dias como se fossem primeiros, | 140 |
7
Nada aprendessem – porque dos sábios | |
E doutros que já viveram e viram tudo | |
Passa longe a cadência. | |
É dos olhos mirando os pontos | |
Que as alegrias se ocupam, tão pequenos | 145 |
Que o gênio quase chora só de pensar. | |
Há de fato, sob os pontos abstratos, | |
Lugar para as simples distâncias? | |
Os astros longe são pedras. | |
Mas toda noite alguns dos olhos sopram | 150 |
Como se o mundo fosse novo e nada | |
Fosse grande. Mundo sem importância. | |
E mesmo quando entreveem, profunda, | |
No chão de tantas mentiras verdade, | |
Esses olhos se perdem pelo extenso | 155 |
Como se todas verdades fossem fáceis. | |
Nas alegrias, a verdade transforma-se | |
Nalgum momento doce. Não importa o breve. | |
Fica um gosto bom no paladar das pupilas. | |
Não lembranças – das alegrias se esquece –, | 160 |
8
Doçura apenas, néctar quase insuportável. | |
Os olhos deitados ainda | |
Prosseguem. Para as pedras há os dias. | |
O ser imerso no abstrato é diferente. | |
Vê cadências e cala, | 165 |
Aberto a voos de imprevisíveis pontos. ✠ | |
Eu, que ainda sempre jazo querendo, | |
Pergunto em vão a bocas impossíveis | |
Por qual motivo me esqueço da vida | |
Vendo alturas. Os sopros são infirmes | 170 |
E as alegrias não conhecem motivo. | |
Vagam pelo silêncio e vão desbravando | |
Nossas horas qual se fôssemos livres. | |
Nada disso existe, nem os infinitos, | |
Nem os pontos, nem os sopros talvez. | 175 |
Mas a brisa perdeu a constância dos olhos, | |
E nos sonhos os nossos pés são alados. | |
Ora, já não sei se recordo ou se durmo | |
Sempre ainda. As lembranças desta vida | |
Mais ainda vivas são paisagens e asas | 180 |
10
Pelas quais voei. Continuo a voar, | |
Incessantemente. Não consigo saber | |
Como existo sem as asas que não existem | |
Nem jamais existiram em mim. Ou existem? | |
Os olhos iludem e sonhos são inocentes. | 185 |
Se a vida é sonho apenas, ora, sonhemos, | |
Já que a noite passa. | |
Mal se recorda o que resta da brevidade. | |
Inobstante os olhos parecem tocar | |
O tempo. O infinito sem tempo de ser. | 190 |
Sou talvez uma nave desairosa? | |
As estrelas sobre a minha cabeça, | |
Pode ser que sejam tão longínquas? | |
Pode. Pode ser que exista espaço | |
Entre nós – e maior que o jardim | 195 |
Por onde corria eu, os pés de criança, | |
Brincando e deixando rabisco. No nada. | |
Pelos rastos de alguma cadência, | |
Como um poema invisível, de vento e | |
Longo, a fim de que ninguém o termine | 200 |
11
De ler, e todos se percam no meio | |
Do caminho, do vão das alegrias. | |
Quero apontar a todas as estrelas | |
E todas as palavras eu quero escrever. | |
Mas que farei de tantas palavras, | 205 |
Eu, que tão pequeno jazo em terra, | |
Eu, que quanto mais transformo os céus | |
Em meus olhos mais os meus olhos se perdem | |
Pelos céus? Se cada estrela tivesse um nome, | |
Quisera encontrar aquela chamada essência. | 210 |
Dizem ser a estrela dos priscos olhos | |
Que não se cansam de ver o engano. | |
Vão enxergando o que há, enxergando | |
Como se fossem cegos, e de repente luz. | |
Como se não houvesse, num mesmo lugar | 215 |
Eterno, duas alegriazinhas iguais. | |
Ver? Os olhos nunca veem o que é, | |
Os olhos veem o que são. E gozam | |
Ver estrelas que nunca foram antes | |
E que depois das alegrias não serão. | 220 |
11
Como, porém? Direi que não existem, | |
Juntos, as alegrias, os astros e os olhos? | |
Que as alegrias nos invadem pelos olhos | |
Mas que começam onde os olhos terminam? | |
Os olhos terminam pelos astros, | 225 |
Mas alegrias já descendem aquém. | |
Penetram mesmo os cegos sem os astros | |
Que não veem estrelas mas que veem | |
O que são. O que sei de tanta insciência, | |
Sei apenas que jazo e que me faço parte | 230 |
Da brevidade. Aceito o vento. | |
Será este o nome? Sentir-se | |
Parte do espaço que os olhos vislumbram? | |
Talvez por isto as alegrias sejam breves, | |
E nem direi das horas que as circundam. | 235 |
Nossos olhos só inventam desejos, | |
Mas não me conformo em tal pensar. | |
Quero saber de que matéria é feito | |
O sopro que invade a vista sem tempo. | |
Quero medir o breve peso do vento | 240 |
12
Que deixa à deriva as almas como naus, | |
Sem velas, num mar de tristeza apenas, | |
Cantando além das canções e cantigas | |
Como se a morte não fosse iminente, | |
Nem as naus carecessem de leme, | 245 |
Pois a vida é grave e já não podem | |
As barcas voar por aí sem cuidado, | |
Senão afundam. Ó alegrias, | |
Fazeis voar as barcas | |
Na tormenta irascível, | 250 |
Como se o mar coubesse num canto | |
Estelar, num canto maior do que abismo. ✠ | |
Transformam-se os olhos em modulações, | |
E no espelho de abstrações mirabolante | |
Os pontos brilhantes são de três espécies: | 255 |
Uns penetram pelo horizonte, | |
Ou menos penetram que vislumbram anseios. | |
Os olhos os vendo já não sabem direito | |
Donde veem, vizinhos do fim do alcance. | |
Estes são perto e sempre perto, | 260 |
13
Porquanto ainda jazo, e como jazo ainda, | |
O horizonte sou eu, e findam sobre mim. | |
Os pontos segundos, divisando alturas, | |
Rescendem pelo zênite, nem o sopro | |
Sabe ventar abaixo os seus olores longe. | 265 |
Conquanto acima estejam da grande linha, | |
Perdidos, direi que sejam longe de mim, | |
Em cujos olhos jaz o próprio zênite? | |
O vértice reto rumo às alturas | |
Traga as alturas como o vento olores. | 270 |
Mais além do zênite os pontos terceiros | |
Flutuam atrás dos olhos, impossíveis. | |
Há que mover-se o corpo para ver. | |
Mas para quê mover-se o que jaz | |
Em liberdade? Quem não sabe de além? | 275 |
É meu sopro que vive atrás dos olhos, | |
Dentro de si as estrelas. | |
Não existem estrelas longe de mim. | |
Vou-as vendo e vou dando risadas | |
Como se fossem de fato infinitas | 280 |
14
E toda a vida as visse finitas. ✠ | |
As alegrias são indivisíveis. | |
Sentimo-las por nós e para si. | |
De todos reunidos frente ao céu | |
À luz dos fogos de artifício, | 285 |
Ainda que juntos, cada um enxerga | |
O céu sozinho, quem o sentiu o sabe. | |
Pouco adianta abraço entre amigos | |
Inda que seja grande o coração. | |
No nosso comércio coas estrelas | 290 |
Ninguém interfere. Calam-se. | |
Deitam-se. E que se deitem a sós, | |
Pois o dia é farto já de ruídos, | |
E não pertencem à vida dos dias | |
As coisas mais profundas de nós. | 295 |
Serão as noites canto à solidão? | |
Os homens que jazem vendo os pontos, | |
Cercados pela floresta, | |
Têm as estrelas e a liberdade, | |
E no silêncio aparente dos astros | 300 |
15
Um matrimônio de cor universal. | |
Se fosse a noite um canto à solidão, | |
A solidão que se transforma em canto | |
Quê seria, já que todo canto é pleno, | |
Ela porém vazia? Direi que o silêncio | 305 |
Seja o pai da solidão? Direi melhor | |
Que o silêncio é pai do canto estelar. | |
Os cantos querem ser ouvidos, | |
Mas ruídos nunca ouvem. Gritam. | |
As alegrias supremas são silêncio. | 310 |
Silêncio apenas. | |
Na solidão os cantos terminam, | |
Quando em verdade começam | |
No silêncio. ✠ | |
Viver como se a nada conhecêssemos | 315 |
Será de fato trazer de volta infâncias? | |
As crianças sabem tudo. São arrojadas. | |
O quanto não sabem vão aprendendo | |
E as suas astúcias são temíveis. | |
É de maior valor o preço do simples, | 320 |
16
Do ver as horas qual se fossem novas, | |
De todo dia sentir-se parte dum algo. | |
Os grandes que jazem sobre a relva | |
Querem aprender a desconhecer o mundo – | |
A vida ingênua é obra de muitos séculos, | 325 |
E no entanto é doce lembrar a infância. | |
Saudades como pegos imensos e risos | |
Que ainda escuto, se as imagens idas | |
Renascessem coas alegrias, morreríamos. | |
Antes esqueça para sempre, eu, | 330 |
Essas horas que já me esqueceram, | |
Essa gente que perdi de vista e vida. | |
Aonde foi o meu primeiro amigo, | |
Onde amores agora, onde aquela | |
Inocência que é mais saudade das horas | 335 |
Que a verdade da infância. A verdade | |
Era o castelo que eu moldava cons amigos | |
E coisas outras de areia. Cavávamos | |
Portas no castelo, cavávamos além, | |
Até que se encontrassem nossas mãos. | 340 |
17
Depois as retirávamos, a pouco e pouco, | |
Que não viesse de ribas a fortaleza. | |
Mas desabava e mostrava aos meus amigos | |
Onde o trabalho das nossas mãos termina. | |
Apenas um dia ficou de pé, | 345 |
Apenas uma vez. E tenho sentido falta, | |
Desde então, desse dia, e já sabia | |
Desde então que passaria a minha vida | |
Inteira em busca desse dia perdido. | |
Olho para trás da alegria dos castelos, | 350 |
Todos de areia e de sonhos, e realizo | |
Que foi aquela a minha obra maior. | |
Vou pensando nessa gente sem rasto, | |
No mar incerto em que o resto lançou-nos, | |
Mar que levou embora os meus castelos. | 355 |
A vida acaba. Sem grandes mistérios. | |
Os homens a que a breve incomoda estudam, | |
Por saber quem sejam. E buscam verdades, | |
Valores, vivendo e desvendando o véu. | |
Os sábios porém passaram por estradas | 360 |
18
Tristes, em busca e vislumbro de veredas, | |
Pois a vida é simples, verdades difíceis. | |
Como os indoutos procurando as causas, | |
Que a dor de ver um castelo em ruínas | |
Fosse mestra e boca de alguma resposta, | 365 |
Foram ver estrelas no meio da noite, | |
Deitados, rogando em vão infinitos. | |
Entendiam desde já que as alegrias | |
Não se esperam jamais. Não se buscam. | |
Houveram-nos alguns por loucos, | 370 |
Pois vagos adentravam ocos, escuros, | |
No amor de abstrações. Mas a verdade, | |
Sim, é que impressões ocultas pululavam | |
Nesses antros abertos, moções sem letra. | |
Se vendo os pontos desvendaram mistérios, | 375 |
Pouco sei. Deixei-os, quem sejam, ser. | |
A vida inquieta. Vive como o medo abissal | |
De que as noites sejam escuras, nós sozinhos | |
Após o barulho inútil que move os dias. | |
Mas as letras de silêncio não se inquietam. | 380 |
19
Foram gentes mundo afora usando verbo e fogo | |
Na conversão das terras. Que me importa missão? | |
Julguei não ser a vida minha uma palavra. | |
Amei o canto do amor no mundo impossível. | |
E no entanto, os simples continuam calados, | 385 |
Fugindo os ruídos, vendo que mesmo a voz | |
De quantos falam morre. Portanto me calo. | |
Sonho apenas. Sonho, pois a noite é longa. | |
Sonho, mas quem eu sou? Eu sou poeira. | |
A vida é vassoura. Vai varrendo a poeira | 390 |
Das coisas e dos sonhos sobre o chão. | |
E quando olvido triunfar, terei vivido, | |
Eu, que não sou nem palavra nem sombra? | |
Capitularam os meus castelos de mentiras | |
E o céu é tão somente um quarto escuro. | 395 |
Quero pedir explicações desmedidas | |
À boca das imagens de meu berço | |
Esperançoso, que se apaguem faróis | |
E que naufraguem naves e consolos. | |
Viverei chorando inquietações doentes, | 400 |
20
Amores que vencem as horas do peito, | |
Desprezo à condição a que me deixo sopro. | |
E que me deixa o sopro? Contradição. | |
Deixa-me o termo da espera e dos cantos, | |
Velha nau de mar sem porto nem rumo | 405 |
Certo, mar de beber e morrer de sal, | |
E pó, e nada além. A senecal constância | |
Vai-se rendendo à sucessão da gota ao riso. | |
E no entanto a constância de certas naus | |
Cruzou os mares. Será feliz a constância? | 410 |
Ou será como o saber dos meus pensamentos | |
Onde as coisas se cruzam adoidadamente? | |
Busco ao leme torto rumos. O mar os traga. | |
Vem a noite. Ó estrelinhas, | |
Estrelinhas que chamo pequenas, pequenas | 415 |
Para caber no diminutivo de meus anseios, | |
Meu coração que não vale nada, vento, | |
Por que parece o céu tão longe de mim? | |
Eu vejo estrelas e quero estar longe do mundo | |
Mas devo estar no mundo para ver estrelas. | 420 |
21
Enquanto lanço questões aos ares, | |
Vou vivendo e vou buscando portos velhos. | |
Deitado sujo ao chão, eu sou poeira. | |
Quando a vida varrer, eu nem terei estado. | |
Busquei de valores, valores não tive. | 425 |
Verdades? O mar não cabe no mundo | |
E sou menor do que o mundo. Sou | |
O ser que se impõe a mim de alhures, | |
Sem nenhuma escolha. As minhas asas | |
De alcançar estrelas nunca voaram. | 430 |
Nem o sabem. Meus saltitantes desejos, | |
Desconhecidos, são ruínas de areia. | |
Tento reconstruí-las coaquelas mãos | |
Dos meus bons amiguinhos de outrora, | |
Protegê-las contra o mar que se avança, | 435 |
Tanto mar que parece eterna angústia, | |
Como se o gênio preferisse a morte | |
Quando mesmo a morte abandona o porto. | |
Vem, portanto, mar, e faz o que queres. | |
Esperarei o fim que houver e vier. | 440 |
22
Aparecem estrelas, longe dos olhos, | |
Perto, sobre folhas, sombras, sobre mim. | |
Cintilam calmas, sempiternas em mim. | |
Deixai-me dizer que vos amo, estrelinhas. | |
Que a brisa leve além o canto meu d’amor, | 445 |
O meu canto simples e o meu amor fiel: | |
Ó meu canto que te perdes em folhas, | |
Ó meu amor que alcanças todo o céu, | |
De que me valem agora as palavras? ✠ | |
Meu verso é trem descarrilhado apenas. | 450 |
Quanto mais eu pensava saber de estrelas | |
Nunca vistas, mais eu vinha perto dos velhos, | |
E já não sei de que eras vêm as alegrias. | |
Ando longe dos versos servindo o tempo, | |
Desses homens que escrevem poemas | 455 |
Para as horas, para hoje, para amanhã. | |
Falarei de antiguidades contemporâneas. | |
O que é hoje por entre oceanos? | |
Ainda não vi, estampado nos astros, | |
O nome dos dias, nem dos séculos. | 460 |
23
Darei a cada ponto o nome dum sentimento. | |
Ainda busco entender do que se fazem | |
As alegrias supremas e o sopro leve. | |
São talvez arrojadas aventuras químicas, | |
Reino molecular secreto. Ou libações | 465 |
Nervosas proto-existenciais complexíssimas. | |
O que se passa em tais sociedades de células, | |
Donde vêm, e cujo líquido por onde escorre, | |
São o berço dos risos como da verdade. | |
Berço que seguro nem sabe que existe, | 470 |
Cérebro, céu de estrelas celulares compacto. | |
Ou será que o sabe? Eu, que penso | |
Nas mitocôndrias sublimes e recônditos | |
Raros de imagens, ainda não avistei | |
As minhas células. Vejo uma coisa apenas: | 475 |
Vejo que nem as sinto. | |
Existir é de fato invisível. | |
Será de fato insensível também existir, | |
Tanto que seja impossível, dentro de nós, | |
Aceder àquela essência pequena de sermos, | 480 |
24
Serei de verdade um mundo, | |
Burgo de células lindas que pela noite | |
Vão inventando os meus olhos e a sombra? | |
As alegrias dentro de mim são maiores | |
Quase que os meus castelos de areia. | 485 |
Mas como serei alegre sem ver a mim mesmo? | |
Ó correr pelos campos, ó paisagens. | |
Por que as estrelinhas do meu cérebro | |
Não têm a forma das árvores, dos vales? | |
Parecem antes um quadro expressionista, | 490 |
Uma tela abstrata, longe do crepúsculo. | |
Talvez eu seja feito para amar as imagens | |
Porque o imo de mim é carência de formas. | |
É preciso pôr-se o sol nas sombras | |
E despertarem no infinito os sonhos | 495 |
Para que vejamos alguma coisa de eterno, | |
Que as alegrias sublimes não têm cor. | |
São tão profundas e tão cientes de si | |
Que são quase tristezas. E quão serenas! | |
Não as tristezas desgostosas do todo. | 500 |
25
São sim a tristeza | |
Da abstração impossível, do além-ser, | |
Porquanto além do ser é não ser | |
E não saber. Serão estas as células | |
Do sublime, além de nome e do limite? | 505 |
O não-ser e o sublime se excluem. | |
Ó estrelinhas, acudi que me aquiete. | |
Já não me importa o gosto insípido | |
Das secreções que nos fazem milagres. | |
Deixo ao bel-prazer das glândulas império | 510 |
Sobre as poções de exagerados elixires, | |
Gotas de humores brandos e reações | |
De proteínas cintilantes que me evitam. | |
Ou a quem sou eu que evito, que para elas | |
Sou um cego, eu, escravo que escrevo. | 515 |
Ingratas! É dessas coisinhas miudinhas | |
Que ventam portanto as alegrias minhas? | |
E eu aqui deitado pensando ver estrelas? | |
Que teimosas células sois! | |
Mais atrevidas que as estrelas amadas, | 520 |
26
Amadas por serem talvez a vossa imagem. | |
Ou vós a de estrelas? Galinheiro velho, | |
Nem sei se as estrelas são os ovos das células | |
Nem se as minhas pequeninas as filhas do céu. | |
As alegrias que as células sopram, | 525 |
Que motivo as faz? | |
Dizer que as minhas teimosas sou eu | |
Será mentira. Dos céus eu quero as asas, | |
Mas as células já não sabem o que querem, | |
São imprevisíveis. | 530 |
Não sei quem são nem podem elas ser eu, | |
Mas vivem dento de mim, como se fossem eu, | |
E eu escravo delas, que sem elas morro. | |
Será demais querer buscar palavras, | |
Saber, ai, de mim mesmo quem eu sou? | 535 |
As estrelas cintilam caladas, | |
Perto, pois as vejo mais que a mim, | |
De quem sempre estou longe, segregado | |
Das células que me fazem ser o que sou, | |
Fazem sem que o queira, como sempre | 540 |
27
O têm feito desde que acaso uniu as duas | |
Primeiras, numa esquina do colo. | |
Talvez as estrelas sejam criancinhas | |
Que ainda não nasceram, inda esperando. | |
O dessaber desanima, mas nada impede | 545 |
Aos que ainda jazem sobre a relva | |
Estelar fechar os olhos. ✠ | |
Eu, que nunca saberei se as alegrias | |
Vêm de estrelas ou de células, | |
Se o de-mim criou o mundo além-mim | 550 |
Ou se além-mim me fez mundo de-mim, | |
Direi que de-mim e que além-mim | |
São uma coisa apenas, coisa única. | |
Pouco importa | |
Antiguidade do ovo ou das galinhas. | 555 |
Venham donde for, as alegrias existem. | |
Sonham num firmamento fixas, cadentes, | |
Perdem-se num labirinto sublime. | |
Os olhos vão criando formas difusas | |
Pelo espaço | 560 |
28
Nunca repetidas, e vendo mais a fundo | |
E descobrindo mais e mais angustiados. | |
Quanto mais me perco por entre alturas, | |
Mais as alegrias supremas são serenas. | |
São desejos apenas, indescritíveis, | 565 |
São saudade do além-ser impossível. | |
Quero abraçar a meu peito os pontilhões, | |
Pesar em mãos a dimensão geométrica | |
Dos fins, de hipotenusas tangentes, | |
Paralelismos ímpares absolutíssimos | 570 |
E todos graus de adjacências angulares – | |
Pelo quadro-negro por onde os sistemas | |
Se concretizam e provas matemáticas | |
Revelam a essência dos números. | |
Contando estrelas e perdendo as contas, | 575 |
Vejo surgir das sombras o infinito | |
Como erro de cálculo e matemática. | |
Os números cadentes são complexos, | |
E quantos vão crescendo se repetem. | |
Inda não descobri, nem hei, se números | 580 |
29
Quaisquer existam. Negatividades | |
Naturais e fracionárias da cadência | |
São apenas traços humanos, | |
Caça ao vento como às quantidades. | |
As alegrias são de fato incontáveis, | 585 |
Matematicamente inalcançabilíssimas. | |
Que digo, porém? Se é matemática | |
A prova-mor do mundo e do canto estelar, | |
Em que tristeza agirei minha vida, | |
Eu, que nunca soube nem hei de contar? | 590 |
Tende amor, estrelas! | |
A qual das cifras equacionarei o meu ser? | |
Dizer que sou um? Mas em mim existe | |
O todo. Vou destruindo em noites doces | |
As leis das naturezas e dos números, | 595 |
Pois em mim confuso circulam | |
As quantidades infindas como o nada. | |
Vou baixando lento os olhos e as asas. | |
As alegrias não existem sem os números, | |
Mas só no olvido das cifras são verdade. | 600 |
Canto Estelar | Folium II |
Quem saberá contar a verdade no céu? ✠ | |
Outrora eu contava as pedras dum dominó | |
Vermelhas. Não sabia o tamanho do mundo, | |
O tamanho do mundo me via como autista. | |
Esparramava as pedras no chão | 605 |
Que meu pai me dera e construía casas. | |
Ninguém se importava coas minhas casas. | |
Apenas eu sabia quais impérios fundava | |
Em arrumar as pedras sobre as outras. | |
Evitava o que existia ao meu torno, | 610 |
E no esquecimento das causas pairando | |
Surgia o coliseu de Roma, o circo máximo. | |
Era uma construção custosa às minhas mãos. | |
Bastava um vento, um deslize qualquer, | |
E Roma vinha abaixo e restavam ruínas. | 615 |
Era belo o meu sonho arquitetônico, | |
As suas cadências trágicas. | |
Eu meditava surpreso a transição das pedras, | |
Eu já sabia que as alegrias são breves | |
Pois eram como os sonhos. Ora, o fim | 620 |
31
Dos sonhos eu via arruinado pelo chão, | |
Enquanto os homens dos meus derredores | |
Pensavam que o meu silêncio era tolo, | |
Meu silêncio grave. | |
Mas era tão doce aquela gravidade | 625 |
Contemplativa dos olhos silenciados | |
Que o seu silêncio se impunha além | |
Como se a sala inteira fosse meu sopro. | |
Nessas horas, as mais antigas que alcanço, | |
Eu era ingênuo. Não porque fosse criança. | 630 |
As alegrias vinham como as surpresas | |
E todo o meu peito estava aberto. | |
Deitado sobre a relva, agora entendo: | |
As alegrias têm de ser surpresas, | |
Ingenuidade o peito aberto às surpresas. | 635 |
Eu era ingênuo e quero sê-lo ainda. | |
Eu sei a causa da ruína e dos impérios | |
Mas vejo estrelas qual se nada soubesse, | |
E descubro em repetidas cadências | |
Que as repetições também surpreendem. | 640 |
32
Era por isto que nunca me cansava, | |
Quando aos quatro anos, de reconstruir | |
Pequenos coliseus e mundinhos | |
Fadados a ruir, mas belos e tão repletos | |
De surpresa. Não me importava o paradoxo. | 645 |
Eu era parte de Roma e Roma dos sonhos | |
E os sonhos eram o todo. | |
Alegria é ser parte de toda parte, | |
Eterna se algum eterno existe | |
Fora das pedras que nos dão memória, | 650 |
Memória saudades, saudade alegrias. | |
A primeira surpresa me veio de longe | |
Quando exclamei, do banco de trás do carro: | |
– Olha o mar! – e não cabia no carro. | |
Em torno de mim os homens riram | 655 |
Da minha pronúncia errônea dos erres, | |
Da irrelevância do mar e do ingênuo. | |
Era a primeira vez que eu via o infinito. | |
Pois entendi, naquele exato instante, | |
Que a minha vida era a busca do belo, | 660 |
33
Mas o belo era além do horizonte. | |
Era decerto parte dalgum além-ser | |
Inalcançável. Ainda não lera, | |
No poeta, que a alma é incomunicável, | |
Que as alegrias são apenas minhas. | 665 |
São moções de indescritível enlevo | |
Frente à revelação repentina do azul. | |
Eu me abraçava aos traços imprecisos | |
Como se algo de mim corresse ao horizonte, | |
Mas aquele horizonte já estava em mim, | 670 |
Entrava co mar os olhos meus adentro. | |
Deixemos o mar que se acaba distante. | |
O mar é memória. Ora, direi confusões? | |
Como vive em memórias alguma alegria | |
Se memórias vêm de longe, as alegrias | 675 |
De perto? Haverá na saudade | |
Alegria? Deitado e vendo estrelas | |
Fecho os olhos, respiro sopros leves, | |
E a resposta se me esvai. Não sei | |
O que é o vento e donde vêm. | 680 |
34
Os pontos que a vista liga com traços, | |
Imaginados por células, vão se perdendo. | |
Vão revelando outros e ao fundo | |
Imensidões esquecidas. | |
São beiras de nada por onde as alegrias | 685 |
Dormem. Ou sonham. ✠ Deitado alcanço pouco, | |
Eu, que passei a vida inteira deitado | |
E já nem sei se alguém jamais levantou-se. | |
Mas os traços que vão se mostrando | |
Daquém além desenham metros desmedidos, | 690 |
Livres de angústia e de saudades. | |
Apenas o corpo deitado os recorda, | |
Que torna as alegrias memória, | |
Memórias saudade, saudades tristeza. | |
As alegrias não são de se pensar: | 695 |
Pensar e pesar, ainda que só na mente, | |
São somente uma coisa. Ora, pesarei | |
O sopro leve? Sinto apenas | |
O sopro e as surpresas, | |
Que quanto mais os deixamos libertos | 700 |
35
Mais se revelam, e vemos mais estrelas. | |
Lacunas do céu, as minhas meninas | |
Células são demais pequenas que saibam. | |
Se é verdade que não se pode pensar, | |
Jamais, as alegrias, que são alegres | 705 |
Para ser esquecidas, esqueçamo-las. | |
Mas se me esqueço já das alegrias, | |
Não serei eu triste? E se eu não for | |
Alegre nem triste, serei ainda humano? | |
Serão decerto vãs as noites caladas | 710 |
Onde os sábios procuram saberes, | |
Pois os astros refutam todos sábios. | |
Ai! O que eu buscava no infinito | |
Era uma palavra apenas, apenas uma! | |
Será demais o meu desejo? | 715 |
Já não é dos astros que quero saber. | |
É de palavra a busca, | |
É somente de coisas que existem em mim! | |
Ó vaidades, quanta ingênua esperança | |
Eu nutria quando exclamava: Os | 720 |
36
Astros se esquecem, palavras se escrevem. | |
Eu, que não conheci jamais as estrelas, | |
Sei de palavras menos que dos astros? | |
Quem me dará, de qual estrela distante, | |
O nome das alegrias? Parecia-me pouca | 725 |
Empresa a busca dum termo sem limite. | |
As alegrias supremas são intraduzíveis. ✠ | |
Entenderei ao menos o belo? | |
Será menor que os castelos de areia, | |
O dominó vermelho, o banco do carro? | 730 |
Foi no tempo do dominó, se recordo, | |
Que me vi diante do piano e sentei-me. | |
Já conhecia o seu timbre doce, | |
Mas não sabia que a verdadeira lira | |
Estava escondida por detrás das teclas. | 735 |
Pus as minhas mãos sobre as teclas | |
Como se lá deitasse o próprio coração. | |
Pensava que o belo só precisava estar | |
Em mim e que o meu coração era o belo. | |
As teclas devolveram a feia verdade | 740 |
37
Das minhas mãos. E me deram tristeza. | |
Faltavam-me algumas distinções. | |
O belo existe mas se expressa | |
Por técnicas fora do meu coração. | |
Qual dessas usara o mar | 745 |
Quando tocou meu espírito? | |
Corri por toda praia indagando! | |
Como foi isto, alegrias? O mar | |
Abriu a porta dum carro a buscar-me | |
No banco de trás ao lado oposto, | 750 |
E eu, e minh’alma e o ser inteiro | |
Sentado frente à lira possuída, | |
Não sabia tocar um mínimo acorde? | |
O mundo embebe-nos do belo em surpresas, | |
Surpresas, estrelas abstratas. | 755 |
Mas o belo do qual embebemos o mundo, | |
Nós, que somos apenas forma distinta, | |
Vem de concretas técnicas tristes, | |
E das artes que daí se fazem. | |
O piano que outrora eu quis tocar | 760 |
38
Era o belo enfim liberto da arte. | |
Era o mundo da liberdade ingênua, | |
E dum canto estelar inaudível. ✠ | |
Quando atinei co limite do mar, | |
Que o mar divide o mundo coas terras | 765 |
Enquanto o céu se vê de toda parte, | |
Entendi que o meu rumo na vida | |
Era tornar-me astronauta e voar. | |
Era tão clara a minha vocação! | |
Aos oito anos, o trabalho liberta, | 770 |
As profissões nos tornam felizes. | |
Não se trabalha jamais por dinheiro, | |
Dinheiro é grotesco. A vida é busca | |
Do belo e peito aberto às alegrias. | |
As escolhas são livres e grandiosas. | 775 |
Nesse mundo em plena sensatez, | |
Que me impedia de voar a Júpiter, | |
Ver os gases verdes, pais da leveza | |
Quiçá, dos sopros breves e perfeição? | |
Decidira entrar numa imensa máquina | 780 |
39
E zarpar desvendando os espaços, | |
Cruzar um trato infinito de pontos. | |
Faria pousos curtos nalguns planetas | |
E seguiria mais e mais longe o meu rumo | |
Por estrelas e perdições geométricas. | 785 |
Anunciava aos da casa e pela escola | |
Que a viagem sideral era próxima. | |
Os professores que eu amava sorriam, | |
Eu pensava que me levavam a sério. | |
Que eu estude! Que eu pague o preço | 790 |
Da liberdade, antes da noite encantada. | |
Ora que ainda jazo por entre estrelas, | |
Que me tornei enfim senão astronauta? | |
Já naquele tempo eu buscava! | |
Hoje os astros se me tornam palavras | 795 |
Por cujos mundos navego e me perco. | |
Fiz-me logonauta. Mal imaginava, | |
Naquele tempo, que veras profecias | |
Lançava sobre uma vida sem rumo. | |
O poeta é um astronauta, perdido | 800 |
40
Porém livre por entre as nebulosas. | |
Eu não sou deste mundo. Ninguém é | |
De lugar nenhum. Eu nem sei onde estou, | |
Que vou brincando cego cons astros. | |
Cego? Eu vejo sombra e não sinto falta | 805 |
De nada. Amo os vazios indistintamente. | |
Das metamorfoses do belo que me surgem | |
Sem que nunca as veja, se alguma delas | |
É tangível, lanço-as. As concretizações | |
São longe da verdade e longe as formas. | 810 |
O belo é a sublimação dos sentidos, | |
E não conhecem forma as alegrias. | |
São os olhos que as querem enxergar | |
Num pentagrama extenso de abstrações. | |
Os pontos são belos por serem pontos | 815 |
E nada mais. As linhas que nós ligamos, | |
Porque nossas, são beleza apenas nossa. | |
As imagens que delas descobrimos além, | |
Inventamos, como inventamos a dança | |
Das cadências. As cegueiras são doces | 820 |
41
E cada olhar se eterniza na sombra. | |
Mas se apenas abstrações são belas, | |
Serão as artes abstratas como o ponto? | |
Serão sublimes de fato as alegrias | |
Se é tão concreto o traço das letras? | 825 |
Quem vos diz que os poemas são belos? | |
Pobres os olhos longe do além-ser, | |
É tão pequeno o sublime e tão imenso. | |
Perder-me-ei na busca do impossível? | |
Às almas todas buscas são abrigo, | 830 |
O belo o telhado | |
Por onde o ser repousa, prazer supremo. | |
Mas são conceitos as minhas palavras. | |
Se às almas todas buscas são possíveis, | |
Os achados são distantes das almas. | 835 |
Toda busca evoca a dor dos limites, | |
Do pequeno que não cabe em si mesmo. | |
Que eu deixe além as dores d’além-ser! | |
Que me importa o canto do incomensurável? | |
O sublime é somente o belo extremo. ✠ | 840 |
42
No tempo do dominó vermelho, | |
Quando me sentava ao colo dos velhos, | |
O meu avô cantava como os seus avós | |
Uma velha canção de sertões esquecidos: | |
– No saco do limão, lá, onde eu nasci – | 845 |
Era tão serena a pobreza do verso. | |
Eu ouvia as palavras baixando os olhos. | |
Parecia-me outrora a coisa mais torpe | |
Nascer num saco, eu, que não conhecia | |
Nem conheço direito as metáforas. | 850 |
Ora, os limões eram tão azedos. | |
Ora eu recordo aquele verso doce: | |
Viver a vida inteira lá, | |
No frescor do saco do limão, | |
Na canção antiga de um verso só, | 855 |
Ou do seu único verso que ouvi. | |
Nada é sublime no saco do limão. | |
Nenhum dos astronautas o explora. | |
É pedaço de pano. Vai se romper, | |
Tornar-se trapo, e alguns limões | 860 |
43
Perder-se-ão. Eu, que ainda jazo, | |
Olhos abertos desvendando, | |
Vou enxergando os limões pelo céu, | |
E sinto alegre a liberdade do pano. | |
Lá, onde o velho nasceu no azedume, | 865 |
E o belo é tão distante do sublime, | |
O belo é sutil, abriga as almas. | |
São também conceito meu as almas. | |
Quero pô-las no saco e dar-lhe um nó, | |
E consigo abrigadas andar além | 870 |
Pelos ermos, carregando o peso leve | |
Sobre as minhas costas. E cantando. | |
Inscrevendo no pentagrama da estrada | |
Notas, e brincadeirinhas simples. | |
Vou pensando nesses jogos | 875 |
De limão, jamais sublimes, | |
Nem mesmo os da sutil beleza, | |
E me descubro triste, como quisesse | |
Perto dos limões a margem do além-ser. | |
E no entanto espremo os frutos rudes | 880 |
44
Com todo amor das minhas mãos mentirosas | |
E vejo no sumo que o sublime é líquido. | |
Como não? Eu bebo o mel dos limões | |
E descubro que o belo absoluto é água. | |
São alegrias por onde flutuam | 885 |
Logo e logo afundam as formas | |
Incorruptibilissimamente insípidas. | |
Manam pelo mundo e nos céus inodoras | |
Em reverberações incolores. Emanam | |
A imagem cega do belo supremo: | 890 |
Foge toda forma e sacia toda sede. ✠ | |
Quero escrever teorias tremendas, | |
Verdades profundamente infundadas. | |
Serão portanto estrelas gotas d’água? | |
Eu, que me quis astronauta a voar, | 895 |
Voei tão longe perante infinitudes, | |
E me esqueci de que o porto sublime | |
É porto perto e se chama hidrogênio. | |
Inda é tempo a tornar-me nano-nauta? | |
Ó moléculas, invejo eternamente | 900 |
45
Simplicidades impassíveis vossas. | |
Fosse meu sopro maior que o lipídeo! | |
Contemplo as estrelas donde estou | |
E compreendo que logo serei liberto. | |
Quando a complexidade acabar-se, | 905 |
Quão alegre serei entre os pontos | |
Na metamorfose-mor apocalíptica. | |
Ou serei minh’alma eterna vagando, | |
Ou serei fração de leveza hidrogênica. | |
Aguardam-me, em todo caso, beatitudes | 910 |
Astronáuticas, líquidas, entre estrelas. | |
E como seja a gota a maior alegria, | |
Faz-se em metamorfoses máximas | |
A liquidificação do meu ser universo: | |
Não há beleza maior do que a lágrima. | 915 |
Foi talvez por isto que o mar me tocou, | |
Horizonte que em vão descrevo. | |
As alegrias são mar. As palavras poluem. | |
Oxigênio lhes falta. Leveza de sopros, | |
Se à carência de mar chamamos sede, | 920 |
46
Fome à de pão, não existe palavra | |
Para a carência do sopro? Melhor é calar. | |
Carecer de palavra é liberdade. | |
Como é longe do saco do limão | |
A liberdade! | 925 |
Prendo-me ainda às palavras pobres | |
E me rendo a cantigas, | |
Eu, de quem vontade é confusão apenas. | |
Quero contradizer-me constantemente: | |
Ó contradições e espalhafatos, | 930 |
Libertai-nos do império da lógica. | |
Revele-se a miséria das letras | |
E dentro delas a ingênua esperança. | |
Já me conformo co traço das letras | |
E a redução do meu ser já pequenino. | 935 |
Aquelas almas do saco do limão | |
Quiçá se alegrem nos seus antessonhos. | |
Talvez esqueçam moções do sublime. | |
Já me contradigo, mais uma vez? | |
Não descobri que o ser das alegrias | 940 |
47
Era o sentir-se ser dalguma parte? | |
Que parte de nós seria o porto | |
Perto daquele sublime além-ser? | |
Os astronautas voamos debalde. | |
Se deste belo já não somos pano, | 945 |
Alegria é não ser parte de nada. | |
Também. E me ponho triste a pensar, | |
Pois é tristeza o termos de pensar. | |
Ora, brinquemos cons olhos e os astros. | |
Somos pano ao menos do hidrogênio. | 950 |
Voarei um dia por aí, de verdade, | |
E se as moléculas perderem as asas, | |
Talvez eu me reduza à cadência do fóton. ✠ | |
Eu quisera que a substanciação da luz | |
Fosse uma brincadeira. Quanto mais | 955 |
Vou desvendando as cores, mais recordo | |
O grande mar abrindo a porta do carro. | |
Naqueles anos de horizonte infinito | |
Eu via os quadros pregados na sala. | |
Eram perfeitos os traços, e austeros, | 960 |
48
E a palidez dos homens, paralisados | |
Pela eternidade, lançava aos meus olhos | |
Uma dignidade densa e amedrontadora. | |
Mesmo as árvores livres gozavam | |
Duma perfeição fantasmagórica. | 965 |
Eu, que me sentava à mesa calado, | |
Pondo o peso da mente entre as mãos, | |
Descobria no traço o resumo dum mundo | |
Retângulo. Os seres começavam de fato | |
Dentro daquelas molduras, apenas lá. | 970 |
O resto de fora era um mero resíduo. | |
Era desde então o mundo de dentro, | |
Secreto, que eu amava, o mundo belo | |
E que jamais sorria ao seu além-ser, | |
O além-ser medíocre de fora das molduras | 975 |
Que era apenas eu, cabeça entre as mãos. | |
Fui crescendo em meio à palidez perfeita, | |
Por entre pontos de esferas abstratas | |
Lembrando estrelas de alegrias sérias. | |
Inda às vezes busco em meio a miragens | 980 |
49
As cenas pequenas de além-molduras. | |
Eu me deito sob a relva estelar | |
E cerro os olhos, que as alegrias | |
Não me sejam somente retângulos, | |
Envolvam, cá e lá, algum trapézio. | 985 |
Como, porém, se o mistério das retas | |
É loucura, vou buscando o sublime | |
Como a sensatez harmônica das cores? | |
Na tela, todos os traços se explicam, | |
Parecem projeções da razão ousadas. | 990 |
Explicam-se pela própria moldura, | |
Pelas bordas. É razão que define | |
O fim do mundo em margens resolutas. ✠ | |
Eu, que ainda jazo no entressonho, | |
Levava outrora ao pátio da escola | 995 |
A razão irredutível das causas. | |
Eu conhecia pouco as estrelas | |
E as alegrias eram impiedosas. | |
Mas o meu mestre pouco tardou. | |
A lição ressoa ainda, imperdoante, | 1000 |
50
Lembrando a cada passo o que sou. | |
É que uma vez apareceu, no idílio | |
Do meu pátio perflorido, | |
Durante o recreio | |
Que como a tela eu quisera imóvel – | 1005 |
O gato magro. De que buraco saiu, | |
Ou telha, não me lembra mais. | |
Era um demônio – era feio. | |
Vinha turvar o brilho do éden | |
Onde meus sonhos nus andavam. | 1010 |
Vi com desdém os membros rotos | |
Que expunha, os pelos dispersos, | |
Miado angustiante. | |
Não havia lugar, nem poderia, | |
Para tal criatura no belo absoluto. | 1015 |
Pois decidi, corri | |
Por entre os circundantes | |
E, com toda a força do ser, agi | |
Como ordenava a voz da razão: | |
Dei-lhe um pontapé! | 1020 |
51
Feri o gato. Em torno, | |
Os olhos dos homens indagavam Caim: | |
– Que fizeste? – O gosto do amargo | |
Vestiu, naquele veríssimo instante, | |
A nudez do meu ato impuro estético. | 1025 |
Eu, que sonhara libertar | |
Do egro o meu éden, transformei | |
As quase-lágrimas nalgum remorso | |
Incompreendido. A voz me acusava? | |
Se a minha revolta | 1030 |
Não banisse o gato, | |
O belo seria menor. | |
O belo a que o meu ser anelava | |
Era sem limite e sem concessões. | |
Não havia sentido | 1035 |
Existir, por entre estrelas, | |
Aquele ser impuro. Eu o feri | |
Para que o mundo fosse perfeito. | |
Mas os homens do éden | |
Cercaram-no, como se adorassem | 1040 |
52
O grotesco e não me entendessem. | |
O gato me olhando mancou e foi-se embora. | |
Por entre o jardim que se estrelasse, | |
Deixou para trás o peso da existência. | |
E porque me faltasse uma doce nudez, | 1045 |
Dentro de mim eu contemplei o sublime | |
E dentro de mim calaram-se alegrias. | |
Pus em vão o meu rosto entre as mãos. | |
A minha inocência foi o meu crime. | |
Por que vos calastes, estrelas? | 1050 |
Era somente um brio que o meu peito | |
Buscava em dimensões. Era pureza. | |
A quanto preço o meu sopro entendeu, | |
Na contrição, que certas alegrias | |
São feias! Mas como pudera saber, | 1055 |
Se pequeno, que tanto amor ao sublime | |
Não prescinde, ai, | |
Dalguma vã piedade ao gato magro? | |
Pois o busquei por entre as flores, | |
Depois, correndo em vão pelos astros! | 1060 |
53
Como estendi-lhe os meus braços, | |
Céus, e com quais gotejantes moções | |
E remorso os meus olhos caíram aos pés! | |
Eu fora expulso do éden, mas o pomo | |
Que eu mordera nem era provindo | 1065 |
Da árvore má do saber. Sabia | |
Somente que o meu amor às estrelas | |
Era nu, o que dantes me escapava. | |
Mas não conhecia males | |
Além da ira contra o gato magro, | 1070 |
E me perguntava se as alegrias | |
Seriam as mesmas. O limite | |
Do belo eu desprezara como ao bem. | |
Desde então busquei coas mãos os astros | |
E os astros me fogem junto ao universo. | 1075 |
Eu, que acedo ao coro dos maus deste mundo, | |
Como perceba as estrelas longe de mim, | |
Vou chutando as pedras e as ondas do mar: | |
Quanta mágoa, céus, o meu peito carrega! | |
Querer olhar para sempre as alturas | 1080 |
54
E nunca cuidar das pedras acerca. | |
Será maldade o querer estar alado, | |
Cego ao mundo, no vislumbro eterno | |
De abstrações? Ora, a cada passo | |
Eu pareço estar em mim mesmo alegre. | 1085 |
Mas não vejo a cada passo um gato magro? | |
Que é, estrelinhas, ser bom? Deixar | |
O gato estar e deformar as imagens | |
Sublimes, lembrar-me por onde ando. | |
Ou fechar os olhos, para que nem | 1090 |
A vós, que sois belas, eu perceba, | |
Nem ao gato feio. Não quisera, | |
Naqueles dias do dominó vermelho, | |
Ser mau. Nem pedira outrora ao mar | |
Viesse abrir a porta do carro atrás, | 1095 |
Dizer que as alegrias existem. | |
Que de fato quisera ser e saber? | |
Nem sei se algum querer eu havia, | |
Eu, a quem o mar e o céu surpreendiam. | |
Hoje eu sei que na estrada sublime, | 1100 |
55
Por onde em sertões eu carregasse | |
O saco do limão nas costas, eu não | |
Me incomodasse, não mais, se atrás | |
De mim viesse, na sua estranheza, | |
O gato magro. Mas não virá, jamais, | 1105 |
Porque os meus pés o feriram. Nem eu | |
Carrego, nem sei, o saco do limão. | |
Fecho os meus olhos como se acima | |
Nada existisse, em mim o mar escuro. | |
E no entanto, a brevidade basta | 1110 |
E surgem, nos vãos do inadmissível, | |
As alegrias supremas, noturnas, e leves. | |
Nem me perguntam quem sou, o que fiz | |
E quantos chutes desferidos ao mar, | |
Ao chão dos inocentes. Deito-me, | 1115 |
Como não sou bom, ao mesmo chão | |
Que me rende ao juízo final. Mas juízes, | |
Que não conheço, punem a minha razão | |
Coas alegrias-ser, que não mereço. | |
No inferno ledo que vislumbro cego, | 1120 |
56
O limite do belo é sempre o bem | |
Que a nudez do meu ser desconhece. | |
Quanto mais o tempo vai percebo mais | |
A infinitez do meu crime. Se gustei | |
A maçã do saber proibida e nada sei, | 1125 |
Quanto mais o pomo da árvore da vida | |
Não me desse de amargo? Basta de ultrajes | |
Contra o gato magro. Eu, que buscava | |
Apenas estrelas, não cobiçava pomo | |
Nem saberes. Comi sem querer. Acaso | 1130 |
Por engano. Não desobedeci, jamais, | |
A leis desconhecidas. Conheci-as | |
Tarde, em queda. | |
Ferirei por acaso as folhas | |
Da árvore? Eu corro pelos astros | 1135 |
Fugindo-a como quem à morte. | |
Navego em meu foguete astronáutico | |
Rumo às terras estéreis do universo. | |
Jazem longe em projeções hipotéticas | |
Onde o mal não alcança as pretensões. | 1140 |
57
Não circulam no espaço mar nem carro, | |
Nem castelos existem nem areia. | |
O dominó vermelho cai ao chão | |
Sem fundo, fundo o saco do limão. | |
Ó vidinha, fecha logo os teus olhos. | 1145 |
As mãos que as minhas mãos ligavam | |
Castelos de areia adentro, calaram. | |
Mas eu canto ainda e vou pousando | |
Sobre a relva sonhos meus sem mácula, | |
Como se o tempo fosse todo ingênuo, | 1150 |
Não soubesse da morte e do opróbrio. | |
Ai, o tempo é tão somente conceito, | |
Espaço é vento. Quero estar deitado. | |
Eu vejo céus e sei que a vida é crime. | |
Eu desconheço as leis das alegrias. | 1155 |
Mas como jazo e deitado vou andando, | |
Ergo as mãos para tocar o vazio | |
E me preenche o nada como os astros. | |
As estrelas são sublimes | |
Pois contemplamos de muito longe. | 1160 |
58
Quero vê-las duma distância correta. | |
A distância mais correta das causas | |
É o nada, como a liberdade do vácuo. | |
Apenas nela cresce a flor. | |
É preciso longe estar de muitas coisas | 1165 |
Para estar perto do quanto importa. | |
Que me importa, porém, que sou mau? | |
Importa o sopro breve que me enleva. | |
A minha condição revelo aos astros | |
E levo ao vago a verdade que sou. | 1170 |
Por quê, amadas estrelas minhas, | |
Se é tão somente os céus a que anelo, | |
Todo traço que marco é maldade? | |
Não dissera, num verso mais feliz, | |
Que as alegrias são sentir-se parte | 1175 |
De alguma ou de universas partes? | |
As alegrias são partes sem espaço. | |
Não existem perto nem longe. Existem. | |
Será portanto o mal querer as causas | |
Perto demais? Por isto talvez eu feri | 1180 |
59
O gato magro, eu, que tanto quisera | |
E tão perto de mim a perfeição do éden. | |
Muito é perfeito a quem sabe mirar. | |
Mas o saber é breve e me esqueço | |
Que o gozo é peito aberto às surpresas. ✠ | 1185 |
Cerrei a sete chaves minhas entranhas | |
Para o magro. Basta um sopro contudo | |
E já se torna o ser tristeza. | |
Maldade foi amor demais às essências. | |
Quando a cegueira abandona a doçura | 1190 |
Vão chutando os pés as pedras, e doem. | |
Como, estrelas? Eu quero estar alegre | |
Toda parte, mas espaço é falta de alegria. | |
Quero estar de peito aberto | |
Mas o peito que resta tanto abismo! | 1195 |
Saltar? Eu me reduzo à pequenez dum sonho. | |
Como é sonho a minha essência, salto. | |
Onde alegrias evadem o vão de espaços, | |
Voar e cair são a mesma viagem. | |
No peito, abismo aberto é liberdade; | 1200 |
Canto Estelar | Folium III |
Maldade tapar um poço e seguir. | |
O poço a quem passa poço apenas, | |
Nem maldade nem poço no abismo. | |
Entendo o gáudio da distância. | |
No pentagrama que os átomos como as notas | 1205 |
Preenchem, mesmo as linhas que ligam | |
São quimeras. Infinitamente longínquas, | |
Sós, as massas e as minutas frações. | |
A matéria escura que as circunda cala, | |
Vaga e flutua, corre – sonha. Sente? | 1210 |
Mergulho na escuridão fantástica | |
Como se fosse a luz o supérfluo. | |
Os olhos brilham de entrever o nada, | |
E no vislumbro da vácua liberdade, | |
Nada se teme e nada ocorre de mal. | 1215 |
Estou sozinho e deixo como os astros | |
No rosto escuro o traço universal. | |
A sublimação dos males seja a poeira: | |
O grão se perde tão longe dos sonhos | |
Que nem lhe resta um ser a ferir. | 1220 |
61
Abri meus olhos um segundo em terra | |
E vi que o mundo é corriqueiro atrito. | |
Fora do palco onde concorrem massas | |
Paira uma treva tranquila e me espera. | |
Cabem, no abismo da negra energia, | 1225 |
Os universos e a vida dos homens. | |
Do fluido etéreo de infindo além-ser, | |
As alegrias como acaso infláveis: | |
Omniversos que explodem se expandem | |
Qual pulsar e os sentimentos máximos. | 1230 |
No vago que escapa as mãos do abstrato | |
Surge estrela, lembrando o mirar | |
De que os raios somente artifício. | |
Por entre sóis e distração de flamas, | |
As obras verdadeiras não se vê. | 1235 |
Que digo, porém? Desejo ainda | |
Que o bem me governe, ser e pés. | |
Mas que governo eu busco de mim | |
Se fugindo o mal os homens fujo? | |
No além-espaço onde alegrias sopram | 1240 |
62
E do ser a sós a nudez é suprema, | |
Os sonhos não têm anseios éticos. | |
Fora dos olhos os olhos só contemplam, | |
Repousam livres da incúria de agir. | |
Mas vivo abaixo e sirvo a terra atômica, | 1245 |
Mar de atritos que apenas lei mitiga. | |
Não me importo. Sigo leis que importa | |
Ao bem das concentrações passageiras, | |
Sociedades de prótons e de proletários: | |
O que quer que seja. Conheço o seu fim. | 1250 |
Lembro que à treva seguem os dias | |
E no claro circula o gato magro. | |
Como porém recordo a maçã, | |
Os males que aos pés outrora agi, | |
Quero deixar o gato ser; que passe, | 1255 |
Junto ao pelo a prole dos egros. | |
Contemplo as conglomerações grotescas, | |
E como sei que sou poeira, a sós | |
Ou cercado, dou à prole o que devo. | |
As alegrias não se apagam com leis. | 1260 |
63
Tornam-se humanas. Acedem, humildes, | |
A compromissos antiestelares graves: | |
Olhar ao lado, ao derredor de si, | |
Quando o peito quisera ver os vastos. | |
O peito eu disse abrir a surpresas? | 1265 |
Que mendaz eu sou, comigo mesmo, | |
Se a surpresa escolho apenas eu? | |
As alegrias só revestem verdade | |
Se as surpresas livres como o sopro. | |
Como o peito a muito poucas grato, | 1270 |
Tapa o poço e cadências se calam. | |
Deixei embora estrelas, ai de mim, | |
E deitado sobre o sangue de Abel, | |
A desventura eu sofri de Caim. | |
Se estendo as mãos, serei bondoso? | 1275 |
Fazer o bem requer de mim conhecê-lo. | |
Mas eu não sei quem sou e que faço. | |
No dessaber que me insulta as horas | |
Deito-me como se o bem o belo estelar. | |
A mão que ofereço abraça os dois, | 1280 |
64
Na espera de que vejam os altos. | |
Amor? Mas qual daqueles amei? | |
Não o mau, porque desejo estrelas; | |
Não o bom, a quem desconheci; | |
Nem amor e nem ódio lhes devo. | 1285 |
Como canto o meu canto estelar, | |
E minha lira peito aberto a surpresas, | |
Convém não seja réu da consciência, | |
Que a canção de meus olhos seja pura. | |
Que me arrogo, porém, que sou poeira? | 1290 |
A tanta audácia o meu ser se permite | |
Que já me conto ao coro dos justos, | |
Eu, que ergui no idílio dum divo jardim | |
A foice de outrora Caim? Aquele gato | |
Magro persegue os sonhos. | 1295 |
Não, estrelas, o canto meu é culpa, | |
Gato a terra inteira. Riquezas minhas, | |
Dizei-me como pôr em cima dos ombros | |
O sangue de holocaustos seculares. | |
Séculos? É também conceito o tempo | 1300 |
65
Como espaço. Vós que acima entrevejo | |
Sois talvez uma bolha pequena de ar, | |
Flutuando entre bolhas milhares, | |
E bolas milhares, quase imensas | |
Como o todo, somente moleculazinha, | 1305 |
Ponto o corpo máximo, ultra-universos | |
Onde o tempo um movimento apenas. | |
E no entanto, como eu sou poeira, | |
A pouca culpa que trago culpa imensa. | |
Eu ganharia os gozos do olvido | 1310 |
Se a culpa minha, maior que poeira, | |
Não me fizesse imortal nesta terra. | |
Contemplo a sós minhas mãos | |
E reconheço nos punhos as penas. | |
Como deitar-me sobre o sangue | 1315 |
Dos mortos cantando a voz dos astros? | |
Eu me deitara, estrelinhas, a morrer, | |
Eu, que já dos campos nada anelo | |
Senão dividir o destino dos corpos. | |
Mas como à relva eu caio e me perco | 1320 |
66
Dentro de vós na escuridão saudosa, | |
As alegrias, que nem mereço nem peço, | |
Vendo um peito aberto à tristeza, | |
Descem, dum sopro leve, sobre mim, | |
Como se fosse o puro os meus olhos. | 1325 |
Como aceito a surpresa que não peço, | |
Vejo no escuro, mais e mais profundo, | |
O espelho da verdade além da voz. | |
O peito em fenda faz as pazes | |
Com distâncias e vejo as imagens. | 1330 |
Os astros vão vivendo, sendo ao menos, | |
Cada qual segundo a própria natura, | |
Como o quer algum mistério multiverso. | |
Eu vejo estrelas e vivo o que sou. | |
E porque busque o belo, quero o bem. | 1335 |
Fazer aos outros o que a mim desejo? | |
Será de fato bom que me abandonem | |
Como os quero abandonar, ou maldade? | |
Não sei de quais remédios careço. | |
A nudez que procuro é perdida. | 1340 |
67
Esses tolos que quero deixar, | |
Também os forma a mesma poeira | |
Que me nasce. Seremos irmãos? | |
São acaso hereditariedades, | |
São Abel e Caim por acaso. | 1345 |
Nascem, contendem. E morrerão. | |
Inobstante, a nudez se revela | |
Nos astros. Os brilhos se diferem | |
Como tamanhos, porém nos raios | |
Seus navegam idênticos fótons. | 1350 |
Por leis dalgum mistério gozoso, | |
Uma única dessas estrelas | |
Pudera ser uma outra, qualquer. | |
O segredo de uma, que digo, | |
A própria atômica identidade | 1355 |
Está contida, se numa – em todas. | |
Inclui-se aos seres a poeira. | |
Deitado e vendo acima as estrelas, | |
Nos pontos encontro minhas faces. | |
Como o pó permeia eternidades, | 1360 |
68
Olho o derredor, como convém, | |
E no pó dos meus irmãos, em pé, | |
O ser que vislumbro nos seus passos – | |
Sou eu, a minha própria imagem. | |
Tapando os poços daquelas vidas | 1365 |
Vou tapando os de mim mesmo, | |
Abel e Caim. Mesmo no começo, | |
No éden, na própria fauna estranha | |
Eu estava contido. Maldoso, | |
Na fúria contra a pele do gato | 1370 |
Houve ferido a mim mesmo. | |
Ora que as alegrias supremas | |
Revelam serem parte do todo, | |
Toda parte está contida em mim. | |
E em casa de Caim, ou de Abel, | 1375 |
Tomado de horror, e piedade, | |
O meu braço é generoso aos dois, | |
Como se fossem os dois meus braços. | |
O estômago dói | |
Do chute contra mim mesmo. | 1380 |
69
Eu quero fechar os meus olhos, | |
Tratar os gatos, a prole dos egros | |
Como estrelas e como a cadência. | |
Curvas avançam pelo escuro | |
Dando ao céu momento. Pela estrada | 1385 |
Eu quero andar, e pelos silêncios, | |
E se na esquina das vias deparar-me | |
Com barulho de sombras ou gatos, | |
Eu tirarei, do saco do limão, | |
Uma prenda divina e dar-lhes-ei, | 1390 |
Que do sumo extraiam maravilhas | |
E o campo beba mais do que sangue. | |
Quem sabe algum sertão de avoengos, | |
Sob as auras do espírito leve, | |
Veja surgir um paraíso perdido. | 1395 |
Caim pudera enfim redimir-se, | |
Não por mérito, mas por verdade: | |
Caim é toda a gente vendo estrelas. ✠ | |
As alegrias que nascem do saco | |
Guardam algum limão azedo e fresco | 1400 |
70
A toda boca, toda sede se aplaca. | |
Quem de fora me visse, astronauta | |
De pano e remendo velho | |
Quase roto do tempo, humidade | |
E das rugas da fruta, | 1405 |
Certo tivesse dó do meu peso. | |
Mas a vista se engana em ganância! | |
Se o pó se rompe e cai limão na estrada, | |
Passa o pé de ninguém, e qualquer, | |
E descobre uma fonte. Que me importa | 1410 |
O limão cair se o fim do céu cadência? | |
Caia pois, que o seu segredo brilhe, | |
Líquido como as alegrias supremas. | |
Chamarei de perda o rio parabólico | |
Por onde as águas passam alheias | 1415 |
Aos tantos olhos? | |
Se o mundo mudar, temerei o fim | |
Do meu canto estelar? | |
Quando em castelos velhos de areia | |
Eu descobri, na distância do mar, | 1420 |
71
As impressões de horizontes além, | |
E mais além os pontos, desdenhei | |
A luz dos postes caindo a calçadas. | |
Eu mirava as ofuscadas estrelas | |
Como se a luz abaixo fora a dor, | 1425 |
A morte longe do mar. Nas folhas | |
Que alguma cor laranja abraçava | |
Logo eu chorava o progresso da cor. | |
Evitava passar pelas ruas. | |
Hoje eu me sento ao pé desses postes | 1430 |
E deixo a cor pousar em meu peito. | |
Hoje eu sei que nenhuma luz é mentira, | |
Nem me incomoda o tom que a mão alheia | |
Fez cair no meio do asfalto. Todo fóton | |
Afaga os seus sonhos, toda rua estrela. | 1435 |
Miro o mistério dos postes elétricos | |
E as eletricidades me fazem alegres. | |
Inda procuro em calçadas voltagem | |
Dum verso que me faça raio. | |
Como, porém, eu dissera que o belo | 1440 |
72
Sublime é como líquido pluriforme? | |
Bem melhor é reduzi-lo | |
À força atrás do poste, que é feio, | |
Mas invisivelmente suprema. Falar? | |
Deito-me à relva só, e pouco importa | 1445 |
Se acima paira um poste ou espaço. | |
Desconheço a matéria do sopro | |
Onde alegria se transforma em lugar, | |
E como pouco saiba eu apenas direi | |
Que as alegrias são meu poste ou espaço. | 1450 |
Indassim menti, que nada conheço, | |
Nem o poste, nem passo. | |
Serei apenas eu, que sou palavra? | |
Diziam, nos velhos anos de olvido, | |
Que as palavras do grego têm espírito. | 1455 |
Quando aprendi, no relógio verbal, | |
Os sinais do sopro lene e dos ásperos, | |
E que na língua antiga a parábola | |
Deu à luz o que grafamos palavra, | |
Eu preferi à vida a presença do verbo. | 1460 |
73
Como pude crer pelo tempo | |
Que as parábolas pouco bastassem, | |
Que os fenômenos fossem infindos? | |
Se vejo alguma estrela e me perco, | |
Os pontos só existem | 1465 |
Porque palavras os levam ao zênite, | |
Ponto-além ao qual conferem parábola. | |
Devo dizer que a ponte dos astros | |
Apenas ponto a percorrer palavras? | |
Se já minutas estrelas, quê de mim? | 1470 |
Contudo existo, como assim o pense, | |
Levando o peso da essência pequena. | |
Calar-me-ei perante a lenidade. | |
Não por acaso o grego deu aos astros | |
Espírito lene, que a noite tranquila, | 1475 |
Presa da luz que traz ao mundo dia. | |
Não por acaso o sol carrega, hélio, | |
Espírito áspero, calor confuso. | |
Mas que coisa o sol, senão estrela? | |
Donde terá perdido a lenidade? | 1480 |
74
Perdeu depois do zênite, | |
Que auroras o fim da parábola. | |
Acusarei de crime os dias, | |
Eu, que contemplo no infinito | |
O nascer e o termo das palavras? | 1485 |
Não existe infinito sem parábola, | |
E no entanto as parábolas findam. | |
Amo além extensões que nada importam. | |
Os anos-luz que me separam do espelho | |
Pousam lentos sobre o véu das vistas. | 1490 |
Como, se as distâncias tão estéreis, | |
Do fundo vago vem alegria? | |
As palavras prescindem de estrelas. | |
Se as alegrias não conhecem cor, | |
Por que cintilam coloridas? | 1495 |
É destino das cores começar, | |
Palavras calar atrás do ponto. ✠ | |
Não alcançam letras o além-ser, | |
Além que não sei se belo na distância | |
Ou no abismo intrínseco de mim. | 1500 |
75
Néscio da palavra e do ponto, | |
Ser é mais além de tudo e de nada. | |
É uma esfinge. | |
Que me importa saber o ser? | |
Mas que nome darei ao meu ser | 1505 |
Se deitado o peso ao chão, poeira, | |
E se em poeira se perde o limite | |
Entre dois, meu ser e meu não-ser? | |
Fecho em vão meus olhos, abro em vão. | |
Em não-ser está concebido o ser, | 1510 |
Negativamente sendo – logo, não sendo | |
Sou, astronauta. E se ser eu sou, | |
Se algo é, o algo é ser para quem? | |
Apenas para si mesmo ou para além? | |
Além do ser ninguém sabe o que é, | 1515 |
E se o si mesmo é ser é mistério. | |
Como não? Eu, que penso e pareço, | |
Penso como parábola, não como ponto. | |
Relegado e vendo estrelas, | |
Sei que a parábola o passo do ponto, | 1520 |
76
Nem o ponto um ponto sem palavra. | |
Como porém desconheço se os dois | |
Serão da mesma coisa, calo-me | |
Sob os parabólicos pontos. Vejo, | |
Dentro de mim e do quanto peso, | 1525 |
Que sou e que não sou em meu sopro. | |
Dirão que sou apenas porque penso. | |
Mas o pensar que não pensa a si mesmo: | |
Deixa de ser? Deixo de ser um instante | |
Para ser mais, um não além-parábolas. | 1530 |
Que digo? Que eu deixe enfim | |
De tratar o ser como se fosse estar | |
Aquém, além dum outro ser ou de mim. | |
Quem sou eu, estrelas de espírito lene, | |
Para saber se sou e quem, que coisa sou? | 1535 |
Aos sofismas prefiro um verso simples, | |
Eu, que invento em poemas o verbo ser | |
A que seja uma ponte entre os pontos | |
E as parábolas, como se fossem dois | |
O que de fato apenas um, mas dois | 1540 |
77
Perante os olhos fracos das almas. | |
Seja pois o verbo do belo absoluto, | |
Se mau, ao menos mal necessário. ✠ | |
Que bom que mau cantar, estrelinhas? | |
Retorno à relva onde meu corpo pousa, | 1545 |
E já não temo a vida e nem o vago. | |
Temerei do acaso a morte | |
Se sendo pó venci no sopro a vida? | |
Que me separa, sábios, da mesma massa | |
Que acima transforma os céus em astros? | 1550 |
Se a massa cessa, nem por isto é longe, | |
Dentro de mim a quintessência enérgica, | |
Mesmo poder que permeia o que há, | |
Pois como sou poeira, há-me sempre, | |
Certo em toda parte. Metamorfoses | 1555 |
Heterogêneas, onde a morte do pó? | |
Ai se pudesse ser menor do que sou, | |
Eu, que tenho apenas infinito em mim. | |
Quando eu morrer, eu formarei estrelas. | |
Serei, em toda força do termo e do ponto, | 1560 |
78
Serei enfim astronauta. Voarei pelo ser, | |
Voarei, na reconciliação derradeira | |
Coa treva tranquila, irei pelo ser | |
E pelo não-ser, e pelo belo absoluto | |
E pelo saco do limão, e pelos mares – | 1565 |
Como um poema em vão que ninguém lerá | |
E que no entanto vive escrito em todos. | |
Assim será completa a presença de mim, | |
Ponto-universo e somente-parábola. | |
Serei eu mesmo as alegrias que invadem | 1570 |
O verso dos olhos ingênuos. | |
Mas inda vivo e, como vivo, contemplo | |
O belo dos astros e a dor do gato magro. | |
Nas dúvidas que pairam de meu ser, | |
Sigo e defino o meu ser pelas dívidas. | 1575 |
Se algum momento eu busco a cadência | |
Como fuga dos atos, ressoa a cadência: | |
– Que fizeste? – e perco-me em gota, | |
Na dissolução amarga da poeira. | |
Como enfim na verdade o consolo, | 1580 |
79
Desfaço-me em gota como se o sumo | |
O fresco elixir do limão e do saco. ✠ | |
É bom dividir alegrias? | |
Indivisíveis! Sopram do acaso. | |
Há diferença entre sentir e pó, | 1585 |
E as alegrias, que invadem sentires, | |
Vêm dalguma poeira soprada ninguém | |
Entende donde. Dividir o que sinto? | |
Indescritível! Sopro incauto. | |
Se as alegrias parecem inumanas, | 1590 |
Como esperar me façam humano? | |
Dissera bem que são sentir-se | |
Parte dum todo em toda parte. | |
Os homens somos parte do todo. | |
Oxalá me induzam alegrias, vez ou mais, | 1595 |
A ver em torno o bem do gato magro! | |
Não por cálculo, que as alegrias | |
Vêm de matemáticas mais abstratas. | |
São a visão, direi, da verdade. | |
Abertos olhos, a boca e poderes, | 1600 |
80
Deito o peito | |
E no horizonte, além daquele verbo, | |
As surpresas se fazem descobertas. | |
Comtemplo a nudez | |
E a verdade. | 1605 |
Saberei o segredo do vero, | |
Eu, que indago a noite e o ser? | |
Mais eu vejo além e mais eu desconheço. | |
Não sei, não nego. | |
Será nudez não saber o que sinto? | 1610 |
No peito não há dessaber, eu o sei. | |
Como negar os sentimentos próprios? | |
A nudez que reveste as alegrias | |
Não desvenda a verdade como forma. | |
Se o vero é belo | 1615 |
Convém ao vero um fluir hidrogênico: | |
Apenas água espelha a profundez. | |
Se a verdade nudez das almas, | |
Que será nudez? A noite | |
Contendo os dias? Penso na aurora | 1620 |
81
E sei que o pó que circunda o sol | |
Acaso apenas, noite a natura maior | |
Das eras, ao longe as luzes pequenas. | |
No estado de todos os dias | |
Vive a mesma exceção das esferas | 1625 |
Onde à noite o céu esconde os astros. | |
Assim o faz a superfície da lua | |
Como em Marte e lugares ingratos | |
O solo, o ar e as noites vermelhas. | |
E no entanto, nas noites vermelhas | 1630 |
Não menor a nudez se menos visível. | |
É que a nudez não revela as esferas | |
Nem haverá no que não sabe sentir. | |
Os olhos voltados ao canto estelar, | |
Um canto menos do céu que dos olhos, | 1635 |
Eu vejo a treva lene e luzes simples, | |
Que as formas plenas vanidade apenas, | |
E atino em ares onde estou, que sou. | |
Ainda não vi, perdido e descoberto, | |
A minha essência proto-pulvérica. | 1640 |
82
Por metáfora mais que por verdade | |
Direi somente que sou o que sinto. | |
E como sei o que sinto, sou verdade | |
Mais do que metáfora. Por que, cantar, | |
Se os universos que entendo são vazios | 1645 |
E toda parte eternidade das noites, | |
Tanta alegria cabe embora no peito? | |
Mas os vazios são vazios para quem? | |
Eu vejo estrelas e estendo o meu dedo | |
Rumo à nudez de ser, que é ser inane. | 1650 |
E se em meu peito as alegrias cabem | |
É que o meu peito é somente um vazio. | |
Vou buscando um ponto no escuro | |
E somente encontro parábolas. ✠ Que valor | |
O ser que encerra apenas as letras? | 1655 |
Fui chamado a cantar um canto estelar, | |
Eu, que na lene orquestra do eterno | |
Recebi de instrumento o silêncio – | |
Eu, que nem corda nem aura de flautas, | |
Apenas trago, apenas sou palavras. | 1660 |
83
Não me sobem à mente ainda imagens? | |
Eu me sentava ao lado dos discos | |
Ouvindo mudo as alegrias sinfônicas. | |
Eu me escondia em vão atrás do piano | |
Como se perto da corda eu fosse nota, | 1665 |
Voasse, donde não sei, e nem aonde, | |
Felicidade invisível. | |
Estrelas, eu me sentava também, | |
Quando o mundo me fechava os olhos, | |
À beira do teclado erguendo as mãos, | 1670 |
E no entanto as mãos, se amor descia, | |
Já não subia do toque nada sublime. | |
Como foi isto, pequenas, que me passava | |
Naquelas horas de abismo e de amargo? | |
Quanto mais eu buscava nos pontos | 1675 |
A música, a música mais me fugia. | |
Corria como um louco o meu espírito | |
Áspero, mas a técnica espírito lene. | |
Quantas vezes, serenos, eu suplicava | |
Do belo a supressão das perícias? | 1680 |
84
O piano era surdo como a música! | |
No abismo que só infância conhece | |
Os coliseus do dominó desabavam. | |
O mar que me fizera o ser horizonte | |
Já não vinha abrir a porta do carro. | 1685 |
Eu corria, então, em fuga desastrada | |
Ao desalmado mar de castelos e areia, | |
Para entrar e me esconder de estrelas, | |
Mas que esperanças, em que castelo | |
E lugar eu cabia? Cabia em palavras? | 1690 |
Cala a boca, poeta – deixa a poeira! | |
Eu ando e corro e morro em toda parte | |
E toda parte estou preso em palavra. | |
Mar! Vem afogar, hiato, a minha voz, | |
Leva embora de mim o verbo sem lira. | 1695 |
Ai as imagens, ai a mente contrita – | |
Quando deixei no teclado o meu sonho | |
E descobri que a minha vida é sem música, | |
Eu quis tragar o mar e o mar secou. | |
Apareceu meu pai coaquele dicionário | 1700 |
85
E co latim e grego debaixo do braço. | |
Eu conjugava os verbos como se fossem | |
Tempo e declinava o nome como as coisas. | |
De que me vale império sobre pedras? | |
Ainda não vi, no conjugar de aoristos, | 1705 |
Mesmo dos fortes, nem nos particípios, | |
Nem no ablativo absoluto a liquidez | |
Daqueles espíritos cadentes, semínimos, | |
Da clave de ré menor ou modo frígico, | |
Nem contraponto. O meu tempo termina | 1710 |
Como a clausula dissecta desiderans. | |
Tempo? Tempo é desinência apenas. | |
Eu temo entanto a tristeza na morte, | |
Não poder levar, no rumo astronáutico, | |
Notas – apenas uma. Deito-me à relva | 1715 |
E compreendo amargo o pesar da poeira. | |
Quanto espaço o som da nota ocupa? | |
Serenos! Nem o pó eu desejo levar | |
Na viagem, eu quero apenas um sopro. | |
A vibração das cordas me basta! | 1720 |
86
Mas a voz das cordas quem me traz? | |
As minhas mãos sem perícia repousam. | |
Se sopra em mim dum pego qualquer | |
Sou eu a corda que sopra inaudível. | |
Como não? Porque as mãos não me sirvam | 1725 |
Para a lira e todas cordas me fujam, | |
Deito-me sobre o mar e me faço corda, | |
Que as alegrias um dia me toquem, | |
Transformem música muda em líquida. | |
Eu comparava outrora as parábolas | 1730 |
Co dicionário de grego e sorria. | |
Na confiança da corda intocada | |
Bastava saber o donde vêm palavras | |
E soaria livre o canto, além do verbo. | |
Foi naqueles dias que me perguntei | 1735 |
Se a corda e o cor uma coisa somente, | |
A corda que vibra como o cor pulsando. | |
Eram tão iguais os casos declinados | |
Que talvez, no mistério sânscrito | |
Dos seres, a raiz lhes fosse a mesma. | 1740 |
87
Eu, que sou corda e lira sem nota, | |
Sei que a corda que sou e meu cor | |
Essência da mesma poeira e do abismo. | |
Ora, a corda que as alegrias tocam | |
Qual será senão o pego que pulsam? | 1745 |
Vivem como os dois naquela sonata | |
Que soa harmonia, porém contraponto. | |
E no entanto, pareciam dois distintos. | |
Eu quero um canto, serenos, longe, | |
Seja nem harmonia nem contraponto. | 1750 |
Deixo a minha nota a ser composta, | |
A corda muda às alegrias supremas. ✠ | |
Porquanto acima eu veja, nas cadências, | |
Que a verdade me invoca longe da lira | |
E perto apenas de verbo eu me encontro, | 1755 |
Dou-me o trabalho de invadir o verso. | |
Trabalho? Eu fora melhor astronauta, | |
Eu, a quem labor e a liberdade espelham, | |
Digo, espelharam-se um dia idênticos. | |
Nem tampouco astronauta eu cresci, | 1760 |
88
Que a ciência das coisas certas fugia | |
Como ao mar as calmas matemáticas. | |
Ora, a profissão que eu procurava, | |
Por hídricos gênios de metamorfoses, | |
Era a viagem sublime aos elementos | 1765 |
Que entre hiatos espelham verdade. | |
Em tal labor ocupo minha indústria, | |
Nem existe em meu sopro trabalho | |
Além da busca de espelho e de ser. | |
O que brilha é somente abstrato, | 1770 |
No ponto a nudez, nudez a verdade: | |
Pobre, pois nada tem, apenas é – | |
Pobre como a liberdade apenas. | |
Outrora me indagavam os homens | |
Quê seria senão um ser astronáutico. | 1775 |
E vi seguirem muitos o seu comércio, | |
Outros amor às leis e cura de vidas, | |
Alguns a construção das pontes. | |
Mas eu era a busca dum ônus | |
Que talvez trabalho algum rendesse. | 1780 |
89
O mundo é comércio, | |
Jogo e troca e moção de fortunas. | |
Receba aquele que der e dê quem tiver, | |
E quem não tem se vire. | |
Eu, que me deito sem comércio, | 1785 |
Vejo acima o que paira sobre o jogo, | |
Que acima como abaixo a troca é vã | |
E de nada carece o que sabe querer – | |
Pois não rareia, que é plena, verdade. | |
É comércio de só poeira o que quero? | 1790 |
Se troca de coisas torna os homens ricos | |
Mas nem nas coisas nem homens verdade, | |
Prefiro dar a verdade em troca de nada, | |
Porquanto o vero a poeira não compra – | |
Caro o ser que não carece de preço, | 1795 |
Rico. Prossigo astronauta. | |
Se a cura por mera poeira e sustento | |
Põe às minhas mãos enxada, dou ao chão | |
O pulso necessário apenas, nada mais. | |
Talvez a verdade seja um chão, | 1800 |
Canto Estelar | Folium IV |
Pois de pisar o céu não tenho pés, | |
Apenas alma. Se piso o chão de pé, | |
O céu de alma, deito-me à relva | |
Para estar de alma e não de pé. | |
Mas se mesmo de alma estou deitado | 1805 |
E se deitado iguais os pés e alma, | |
Estou no chão ou estou no céu? | |
Ó serenos, dai algum perdão maior | |
À minha triste inconstância e dizer. | |
Não incluo à pobreza dos meus versos | 1810 |
As grandes pretensões apodíticas. | |
Já não constatamos, noutro espaço, | |
Que no extremo vazio que nos cerca | |
O chão e céu são a mesma verdade? | |
Eu me lanço ao chão, estrelinhas, | 1815 |
Para alçar-me, mais e longe de além. | |
Não me importo se pousa a meu lado | |
O peso já da enxada e terra ingrata. | |
Abel lhe deu uso e Caim, e não a nego. | |
A mão na enxada longe porém da obra, | 1820 |
91
Que enxada e mão é poeira o que movem, | |
Obra o que restou imóvel nos olhos. ✠ | |
Se a verdade for nudez imutável, | |
Onde estão as alegrias, indo e vindo, | |
Por que distantes e tão incertas? | 1825 |
Serão talvez sublimações hidrogênicas, | |
Líquidos sopros do saco do limão. | |
Direi que são efêmeras? | |
O que não cabe n’alma chamarei pequeno? | |
São balde maior do que o peito. | 1830 |
Balde? Nem no pano o peito cabe. | |
Se as alegrias foram breves, | |
Breve o peito. Quando o mar me tocou | |
E me descobri na linha reta, | |
Quis medir a grandeza em segundos, | 1835 |
Mas são a morte do tempo as alegrias. | |
Quando o meu peito pensou conhecê-las | |
Perdi do fundo a lembrança e vi-me tempo. | |
São surpresa e sopro. | |
Porque sopro, não se prendem. Abrigam-se, | 1840 |
92
Por átimos, no abismo, e peito as sopra | |
Para além. Quis transformar a surpresa | |
Em costume, que é castelo de tempo, | |
Mas surpresa a que o cor se acostuma | |
Não o toca e vive longe do espelho. | 1845 |
Outrora as alegrias me enlevaram | |
E vendo o mar eu contemplei verdade. | |
Não se esquece os primeiros encontros, | |
E as alegrias de ontem vivem hoje, | |
Não surpresas, lembranças | 1850 |
De certas imagens que vêm de repente. | |
Foi no tempo do dominó | |
Que atinei cons ponteiros correndo. | |
Apareceu na gaveta de baixo | |
Um relógio de bolso – mecânico: | 1855 |
Era preciso dar corda todo dia. | |
Foi fitando a marca das horas, paradas, | |
Que notei mistério. Indagava os velhos | |
Por que, se o tempo passa, | |
Eu mirava o relógio e via doze horas | 1860 |
93
No mesmo lugar – e mesmo os ponteiros, | |
Indo além, voltavam. Os velhos calavam. | |
Talvez não quisessem revelar | |
Que o tempo é ponteiros. O tempo é mais: | |
Ponteiros girando em torno dum único ponto. | 1865 |
Então as horas posição dum ponto apenas? | |
Fora de mim, o mar e os castelos de areia | |
Eram ainda os mesmos. Não havia passarem. | |
Depois e antes só se vê por movimento? | |
O que move, move o que dantes jazia | 1870 |
E depois também jazerá. Eterno relógio: | |
O que se move está cercado pelo imóvel | |
Como pelo que dura cercado o que passa. | |
Foi o dicionário de latim, de meu pai, | |
Que me disse: Abre-me, mão, na letra m! | 1875 |
Movi-me pois e vi, por entre as parábolas, | |
Que o nome momento vem de movimento, | |
Que as alegrias dum segundo apenas | |
Serão o gáudio de todos os tempos. | |
Duram, invisíveis, como a verdade | 1880 |
94
Aparentemente longe, imota, intocada. | |
Intocada para quem? Eu descobria | |
A verdade mirando o relógio mecânico, | |
Contemplando o dominó vermelho, vendo | |
Que o tempo é ponto, a verdade espaço. | 1885 |
O ponto não conhece espaço inteiro | |
Nem momento o sabe, pois indo e vindo | |
Vai daqui além ou vai de ponto a ponto, | |
Enquanto o vero dura em todos os traços | |
Nem carece de andanças daqui além. | 1890 |
Mas que seria dos olhos sem as cadências? | |
Não são momento e ponto e tempo cadências? | |
Eu, que pergunto aos astros como aos velhos | |
Sem resposta, sem resposta descubro | |
Os passos dum sopro verdadeiro. | 1895 |
Sem embargo o meu sopro, mesmo disforme, | |
Ponto apenas. Como, se apenas ponto, | |
Dentro de mim verdade? Direi porventura | |
Que todo ponto verdade? Eu vejo estrelas, | |
Serenos, e cada ponto | 1900 |
95
Resume em si o espaço inteiro da verdade. | |
As alegrias sopram por perto | |
Qual se cada ponto emanasse além-ser, | |
Nem houvesse abismo entre espaço e ponto. ✠ | |
Aqui estou, por entre estrelas vasto – | 1905 |
Estrelas eu, que somente deito e me calo. | |
Como as melodias que não sabem | |
Nunca que existem será de mim silêncio. | |
Nebulosas do nada, pergunto-me | |
Se cabe mais uma melodia no infindo. | 1910 |
O canto estelar que buscava, | |
Como pode existir se o peito apenas um? | |
Fora preciso que os outros cantos calassem | |
Para que o meu peito inteiro fosse ouvido. | |
E no entanto, o meu peito faz-se orelha | 1915 |
Para que soe em si o verdadeiro inteiro. | |
Minto? Serei eu mesmo o todo em silêncio? | |
Quisera ser o coma incontável das notas, | |
A fim de que se ouvisse em mim as notas | |
Das melodias e do impossível, conjuntas, | 1920 |
96
Cada qual porém distinta. Eu guardaria | |
O canto universal, abstração derradeira | |
De ser e contra-ser, num único ponto. | |
Mas sou pequeno. ✠ | |
Vai chegando ao fim o meu canto estelar, | 1925 |
Que menos canto ressoa que o mar. | |
Hei de alçar-me não aos céus, ao chão, | |
Por onde atrás duma pedra me espera ainda, | |
Talvez, um gato magro. Nem sabia, coitado, | |
Nem no jardim do éden nem na minha relva | 1930 |
O gato magro sabia dum canto estelar. | |
Queria apenas passar – como um ponteiro | |
Que em verdade nem sabe que vai passando, | |
Preenchendo o meu relógio de lembranças | |
E dalguma tristeza eterna, incurável. | 1935 |
Fugiu a verdade que busquei no infinito, | |
Fugiu por entre estrelas e pelos relógios, | |
E nem no velho saco do limão me consolo. | |
No entanto, sopro, passa o gato magro | |
E vejo o rosto invário da verdade | 1940 |
97
E cubro em vão os meus olhos de mar, | |
Que a só verdade é quanto bem lhe devo | |
E nem me deu no éden o canto estelar. | |
Percebo bem o mal que se me abate? | |
Eu buscava a verdade em tais distâncias | 1945 |
Fechando os olhos aos pés que passavam? | |
Os pés dos outros | |
Foram sempre a verdade mais de perto. | |
O vero desconhece o perto como o longe. | |
Já que ainda procuro o que me falta | 1950 |
Como outrora o chão co dominó vermelho, | |
Quero que a busca das minhas verdades | |
Comece daqui por perto, pelo chão | |
E pelos pés e pelos olhos que passam. | |
Tirar de mim a memória do mar! | 1955 |
Por que me buscaram daquela sala | |
Onde montava o dominó do ingênuo, | |
Sim, e me deram de amigo horizonte? | |
Quero gritar e correr além como o rei | |
Que arrancou coas próprias mãos os olhos! | 1960 |
98
Mas, serenos, mostrai-me logo as mãos | |
Com que do corpo arrancarei lembranças! | |
Mostrai-me o pensar de que o mar acabou! | |
Eu temia outrora as nuvens como a cegueira | |
Cobrindo o céu que as ambições amavam. | 1965 |
Temo agora os céus e busco as nuvens | |
E a palidez dos postes e pouca luz. | |
Foi no tempo dos castelos de areia, | |
Antes, que subi por acima das nuvens. | |
Antes do grande anseio astronáutico | 1970 |
Já voavam de avião os meus olhos, | |
Eu sozinho indagando os tripulantes | |
Se existe mundo além daquelas nuvens. | |
Lembro como hoje a janela estreita, | |
Sob os meus pés as nuvens e o mundo. | 1975 |
Eu estava nos céus e céus eu buscava. | |
Se o sol não tinha fim | |
Donde viria a noite e donde estrelas? | |
Navegando chegavam, | |
Levando embora as mentiras e as cores, | 1980 |
99
Deixando as ondas, o pélago | |
Abaixo como acima os pontos livres. | |
Eram livres nas leis dos meus castelos | |
De areia, nos sonhos onde as mãos cavavam | |
Portas até que se encontrassem, no fundo. | 1985 |
No fundo do abismo eu dava as mãos às estrelas | |
E durava o quanto de areia fizéssemos, | |
Durava como os sonhos e como as cadências. | |
Foi talvez em tais viagens distantes | |
Que as alegrias supremas despertaram. | 1990 |
Quando eu mirava as nuvens sob os astros, | |
Quisera acordar dormentes, | |
Saber se existe mundo sob as nuvens, | |
Porquanto o mundo eu descobria acima. | |
Respondiam estrelas a cantar | 1995 |
Que ali moravam, ali pairava essência, | |
O belo, o bom e o vero, as alegrias | |
Maiores que as nuvens: – Menino, | |
Se um dia o mar e o mundo forem cinzas, | |
Lembra o que somos e donde viemos. – | 2000 |
100
No sonho que abria os meus sentidos, | |
Meu coração era o céu estrelado | |
Que amargas nuvens jamais apagariam. | |
O pentagrama que os pontos preenchem, | |
Linhas que vão surgindo e se perdendo | 2005 |
Como os olhos as façam imagens, | |
O vento que venta olor aos sublimes, | |
Que me importam agora tantos rastos, | |
Rostos de além e dança calma calada? | |
Cercou-me tarde a floresta de estrelas | 2010 |
Quando mirando a treva tranquila vi, | |
No quanto lhes fio, quanto mal existe, | |
E nas ondas os pés contrariando o mar | |
Co mesmo golpe que outrora o gato magro, | |
E do éden verdade em veredito e voz. | 2015 |
Era tão verde viver no mundo estelar | |
Esperando as alegrias supremas. | |
Parte das noites, talvez a maior, | |
Cobriu o céu coaquele mar de nuvens | |
A quem impus os meus castros de areia. ✠ | 2020 |
101
Acostumei, ou tento, alguns anseios | |
Ao coma e me consolo certas vezes | |
Vendo constância na cor das nuvens. | |
Deixo à mostra o rosto, o pouco sopro | |
Que eu cuidava ser minh’alma, | 2025 |
Quando a noite das danças cadentes | |
Foi o mais feliz dos meus encontros. | |
Deixo à mostra o rasto da minha vida | |
Que a chuva, se quer molhar, que molhe. | |
Não dissemos que o belo | 2030 |
Sublime corre como água e disforme? | |
Não me esforço nem resisto à gota. | |
De repente, a minha relva é mar | |
E meu canto à deriva. Tenha fim, | |
Serenos sopros, fim o meu abismo! | 2035 |
Os meus amigos ora são velhos mortos | |
E angústia. A minha relva é pesada, | |
As nuvens se tornam palavras. | |
Eu conjuguei irregulares verbos | |
Em vão, que tempo nenhum perfeito. | 2040 |
102
Nesta terra por onde as minhas letras, | |
Se prossigo, serão ainda a barbárie | |
Frente ao gato magro de holocaustos, | |
Quero ainda o verso dos velhos | |
Para o remorso dos novos? | 2045 |
Como a noite em que vim pelas ruas | |
E nos postes as luzes se apagaram | |
E vendo as nuvens remordi meus lábios, | |
Remordo o meu sopro e me escondo sombra, | |
Remorso do verbo e do vazio. | 2050 |
O amor que confiei às sombras | |
Quando os meus olhos eram cor ingênuos, | |
Aonde foi? Eu confiava tanto em pupilas | |
Que andava pela noite entre as árvores | |
Densa cadentes, pontos por mim adentro. | 2055 |
Hoje vejo nuvens, | |
Cerro os meus olhos e quero apenas acaso. | |
Entretanto, serenos, certo as nuvens passam. | |
Abro as minhas asas e zarpo às miríades. | |
Eu não me impeço, apesar de quem sou, | 2060 |
103
De buscar deitado as cadências. | |
É somente a mim mesmo que encontro | |
E que busco, fingindo ver eternidades. | |
Fugir dos homens? Viver em todos seres! ✠ | |
De repente, a terra se move | 2065 |
E me tremo, tomado de susto. | |
Ergue-se o vulto e mira | |
Ofegante dentro das minhas abstrações, | |
Por onde os nossos temores se encontram. | |
Era uma ovelha! Donde saiu e como chegou, | 2070 |
Mistério sabe. Estava ali deitada a hora | |
Toda junto à minha enxada e cegueira. | |
Nem sabia, coitada, que ali jazia o mal. | |
Eu me ergui da terra e seus olhos seguiram | |
Junto ao medo os movimentos, | 2075 |
Aqueles olhos oblíquos de eu tanto amar | |
Os olhos do gato magro. | |
Serão surpresa os temores do fraco? | |
Correu. Correu embora como louca e varou | |
Por onde podia até sumir, na derradeira | 2080 |
104
Curva das nuvens, sem tempo e sem cerca, | |
Longe de mim e de tudo o que eu amo. | |
Vai, minha filha, corre longe daqui, | |
Que destes pés e das mãos | |
E dos olhos que vês é pouco o bem | 2085 |
Que chega afora. Correu além, berrando | |
Grave o seu ovino abandono às estrelas. | |
Eu, que já de pé buscava enxada, | |
Em vão o saco do limão, | |
E remoía o ter-me alçado acima do sonho, | 2090 |
Deixei que se fosse a pobrezinha | |
Nem curei dizer que as estrelas não ouvem. | |
Deixei-me levar consigo, eu, que fiquei | |
E que fui embora, parte de si e de mim, | |
Como o canto que me faz nas alegrias | 2095 |
Estar em toda parte e talvez em nenhuma, | |
Peito aberto aos espelhos, | |
Contemplações da verdade | |
E do sublime. | |
Tivera todo argumento do mundo | 2100 |
105
E razão de calar e deitar e moer-me. | |
Não, não o fiz, eu me rendo à poeira | |
De elementos brutos que redime o sopro, | |
E porque sopro entendo que me alegro | |
Não por mim, e sim pelo que me cerca. | 2105 |
Mas quando os olhos, a boca e poderes | |
Me fazem belo sem razão | |
E me alegro de ser a poeira que sou, | |
Não resisto. | |
Deixo-me estar pelas eternidades, | 2110 |
Eu, que sei que o gozo é momento, | |
Eu, que já de cedo mirava os ponteiros | |
E via os castelos vir abaixo e dominó, | |
E desprezava o saco do limão rasgado | |
Como o gato magro a que dei pontapés, | 2115 |
E que de amigos buscava o mar e os austeros | |
Homens dos quadros na casa velha | |
E mais em vão as cordas que apenas fugiam, | |
Eu, agora menos que ponto e parábola, | |
Longe do verbo e da nota. ✠ São noturnas, | 2120 |
106
No meu coração, as alegrias supremas. | |
Pairam e sopram e passam como entendem. | |
Não peço e quando busco apenas sofro. | |
Deixo-me pois, assustador de ovinos sonhos, | |
Aberto e de peito vazio e nada espero. | 2125 |
As ovelhas outras que estavam deitadas | |
Já fugiram de mim, e fugiram comigo. | |
Aonde fomos? Decerto perpassamos nuvens: | |
Percebe que a chuva passou, | |
Que a relva é seca, não porém sedenta, | 2130 |
Que as notas do pentagrama luzem, | |
Mesmo as estrelas que já pereceram. | |
Deixaram além, na velocidade da luz, | |
Da força, do raio donde nasce além-ser, | |
Porquanto nem existem mais e ainda são, | 2135 |
Velocidades excelso apêndice do ser, | |
A coda que põe a morte para trás da luz. | |
Que me ocupam, estrelas, vida e morte? | |
Há palavra que, sendo, deixe ainda de ser? | |
Antes de aceso o fogo já queimava e morto. | 2140 |
107
O sopro que apaga o foco o guarda consigo, | |
Não o destrói e nem à luz que avança além | |
Depois de extinta a flama, feita poeira. | |
Ora, serenos, é fogo a poeira que sou. | |
Quero deitar-me ainda e, vendo estrelas, | 2145 |
Sonhar que serei velocidade apenas, | |
Um raio, longe do pó que deixo extinto | |
E que renasce no raio e na metamorfose. | |
Sonhos são somente sopros insanos. | |
Eu, que levanto o meu corpo e me enxergo, | 2150 |
Percebo quão distante estou do eterno, | |
Pequenas as mãos na enxada. | |
Talvez os meus desejos sejam só palavra | |
Naquele velho dicionário meu de grego, | |
Que já não explica dos verbos a origem | 2155 |
Nem me contenta o rol dos aoristos: | |
Estou distante do eterno e do instante. | |
Procuro em vão por máquina astronáutica. | |
Lento o meu sopro como espíritos ásperos, | |
Não serei jamais astronauta. | 2160 |
108
A minha liberdade sonho somente e castros | |
De areia, de areia o sentimento sublime, | |
O belo absoluto, a verdade – e o homem. | |
Aonde irei, estrelas? Toda parte um mar | |
E mar silêncio, ruir de castelos e verso. | 2165 |
Ai de mim, ai de mim, ai que conheço | |
E já vos digo e digo aos astros acima | |
Que rumo tomarei, que farei de meu rumo. | |
Doravante, minhas celulazinhas | |
E nervos e estrelas cerebrais, | 2170 |
Deitai ao chão as asas que vos sobram, | |
Que já na próxima noite eu não serei | |
O que sou – serei das pedras, | |
Serei, se quiserdes, pedreiro. | |
Ouvi dizer que abandonaram o vale. | 2175 |
Quero andar naquele rumo | |
Pois deixaram pedras: | |
Quero carregar algumas. | |
Porei, coa força que dentro couber, | |
Umas sobre as outras, cobrindo a terra | 2180 |
109
Logo ali, na beira donde o vento passa | |
E dizem derrubar as casas e até ruínas. | |
Quero erguer naqueles ermos abrigo. | |
As suas paredes serão de fora tortas | |
Mas de dentro firmes e firme o teto. | 2185 |
Levarei de móveis as pedras | |
Do dominó. Levarei ponteiros | |
E o dicionário de grego. Deixarei | |
Do lado de fora, no fundo do abismo, | |
O mar, pois a pedra é penhasco. | 2190 |
Deixo também um pasto, se alguma ovelha | |
Ou gato magro quiser. Mas esses dois, | |
Serenos, esses não virão. E farei, | |
Numa parte além, o meu uso da enxada. | |
O mais verdadeiro serão janelas. | 2195 |
Quisera, pobre de mim, que as janelas | |
Fossem do tamanho do mundo – maiores | |
Como as alegrias. Mas as mãos | |
São pequenas e a casa | |
Se fez dum braço apenas. Pelas janelas | 2200 |
110
Entrarão de noite as alegrias e os sonhos. | |
Virão soprando de espíritos lenes. | |
Já que não posso reter | |
E nem buscar eu posso | |
Nem comércio de mundo mas pode trazer, | 2205 |
Construirei albergue às alegrias, | |
Que de passagem por entre duas pontes | |
Mais felizes que o peito pousem, | |
Venham quando queiram e lá pernoitem, | |
Na breve escala dos voos. | 2210 |
Quem vier por longe e vir cons olhos vãos | |
A minha casa, certo dirá que é ruína, | |
Pois verá talvez o espelho de meu peito, | |
Espelho errado que apenas eu decifro: | |
A casa é torta mas nela eu vivo forte. | 2215 |
As alegrias do fim, que sabem melhor | |
E sabem mais o que sou e que sinto, | |
Terão, no breve pouso janelas adentro, | |
A gratidão dum homem pequeno e momento. | |
Talvez jamais retornem. | 2220 |
Eu, que espero apenas, nada mais espero: | |
Deixo à doce surpresa a sua escolha, | |
A liberdade ao acaso. Se numa noite | |
Quiserem voltar e que eu me sinta parte | |
De toda parte, as minhas janelas tortas | 2225 |
Estarão abertas. Se desejarem soprar | |
Um canto estelar ao meu silêncio, | |
Que venham. E quando o canto calar, | |
Que passem. Passem. Partam como quiserem. |