Abstrações
© Gregorius Vatis Advena 2013, Record L 2, Engl. Abstractions, January 2013 to November 2013, Hampshire, dactylic hexameter, ten poems, 100-120 lines, lyric poetry, Portuguese.
© Gregorius Vatis Advena 2013, Record L 2, Engl. Abstractions, January 2013 to November 2013, Hampshire, dactylic hexameter, ten poems, 100-120 lines, lyric poetry, Portuguese.
Era a meta inicial desta antologia ser uma ponte entre as tradições clássica e moderna. No processo de criação, porém, o projeto evolveu e tomou seu próprio corpo emancipatório. O nome da antologia evoca o que se abstrai da realidade sem deixar de ser real – a lírica da contemplação crítica.
As Abstrações são reflexões ou pequenas narrações em verso. Em geral, tematizam efemeridade, anseio e ilusão – fenômenos que em tradições orientais se vê como “as três características” da existência. É uma poesia conflituosa e ao mesmo tempo introspectiva, mas humorosa por vezes.
“Les sons et les parfums tournent dans l'air du soir”, Baudelaire, prelude by C. Debussy, performed by Jeremy Denk – FMA CC BY-NC-ND 3.0.
O verso é hexamétrico – seis tônicas separadas por uma ou duas átonas, ou por pausa. Em geral, o verso começa em tônica e termina em diérese bucólica – o ritmo tátata-táta. É datílico ao evocar o antigo dátilo no ritmo tátata. Todo verso possui ao menos um dátilo tonal. O dátilo classico, porém, era quantitativo.
O uso das formas épicas é tratado no ensaio Prosódia e Grafia. Nesta antologia, a única forma épica é a do verbo ser: [é] em contexto tônico, [è] em contexto átono.
Turva no grau da nuvem perde-se a vila sombria, | |
Fumam das chaminés do porto as águas a névoa. | |
Sonho, espuma e breu envolvem de fúnebre cinza | |
Portos, céu e mar, e os ânimos fogem o homem. | |
Vai vanecendo a silhueta que o trem atravessa | 5 |
Rumo a verdejantes burgos e bosques vistosos. | |
Trilha sozinho. Dentro ninguém repara o percurso, | |
Dorme o mundo estranho, desconhecido e descrito. | |
Longe de ocelos vagos humanos estão as imagens, | |
Perto porém do interior, do vale e do abismo. | 10 |
| |
Vias que terra airosa e viço deixastes embora, | |
Vidas inteiras a vir, caminhais veredas opostas! | |
Passa a confusão da cena correndo cons trilhos e | |
Deixa em nossa memória amor, saudade e derrota. | |
Pobre o cor merencório, fundo e mundo gravíssimo | 15 |
como um antro torto e de prantos refúgio celeste. | |
Alma depoente, cobres-te em verbos ingratos | |
Nunca traduzidos porém ouvidos de dentro. | |
Cala-se a língua pequenina e vozes passivas | |
São falar errante e cada palavra è sem forma. | 20 |
| |
Longe as linhas dançam do horizonte alheadas, | |
Movem como aladas céu, fundidas coa banda. | |
Flente a furto irrompe e dança a baila das orlas, | |
Turva de cílios chuva quando os olhos oscilam. | |
Perto da estrada, as folhas desfiadas esperam | 25 |
Certo sopro ventá-las a toda e nenhuma sorte. | |
Como os sonhos levam quem os sonhos enleva | |
Qual se fossem leves, sopros são sonhos levados. | |
Dormem, porém, sonhando sono alegre de arcanjos | |
Folhas e linha, cílios – e as pálpebras guardam as juras. | 30 |
| |
Vai-se o trenzinho e corre e leva consigo a paisagem, | |
Leva além o verbo, que letras são feias nem simples. | |
Árvore! Nume pientíssimo e núncio sem nome, | |
Vila dos verdes generosos, amigos dos olhos: | |
São apenas tuas a luz e a verdade das almas! | 35 |
Fosse puro o ânimo e fresco qual se de folhas! | |
Seguem trilhos, paragem futuramente passada, | |
Vista e sumida alhures por hemisférios ocultos. | |
Aves invejadas! Parti do claustro nas nuvens! | |
Ide a montes! Fugi procela e plagas humanas! | 40 |
| |
Voa por entre galhos e passa o pássaro afoito, | |
Busca cantando a causa e trina pela colina. | |
Mar de papilhões anis, margaridas mansinhas, | |
Ponde fim, pequenos, ao tempo grande das aves. | |
Casas de lenho, capelas trás o véu transparente | 45 |
Vão ferindo o céu e além terminam as terras. | |
Findam como a gama que ocelos vagos avistam, | |
Perdem-se pós um piscar atrás do trilho corrido. | |
Onde, pássaro afoito, buscar de cores a causa, | |
Onde cantar, se canto è vento perdido nas rodas? | 50 |
| |
Musas mortas leram o livro dos imos do homem e | |
Letras lacrimosas, langura, angusta esperança. | |
Ride, algozes máximos, desses mínimos entes, | |
Lábios inábeis ao canto, hino de amores ingentes. | |
Símplices glórias, voz negada ao cabo dos húmeis, | 55 |
Dai consolo ao mendigo da lira e rico na pena. | |
Houve deuses grandevos e semi-heróis na palavra? | |
Dai sossego ao inquedo abismo e sopro sem termo, | |
Dor feral que apenas astros quiça perceberam. | |
Ser humano è calar, e fora do ser a expressão. | 60 |
| |
Trás o monte escondem-se tantos burgos intactos, | |
Trás as terras perpassadas um rio prestimoso. | |
Rosto brioso raia no bom contraste de ondinas | |
Rumo ao fim das eras e ao terno começo dos olhos. | |
Verde sucede vertigem, cena aos cílios cerrados | 65 |
Corre como o rio, e os cantos colorem as auras. | |
Trás o rio a palavra termina, começam letícias | |
Nunca faladas. Verbo, tenham fim as sentenças! | |
Cala-te, velha musa, não seja a beleza pequena | |
Para em ti caber, que as letras abstratas perecem. | 70 |
| |
Houve mestres de história, doutos e suma verdade? | |
Sábios, nunca fostes ao flume parvo e tão franco. | |
Rio cansado e corredio, sereníssimo curso, | |
Quanto sangue tingiu as tuas lúcidas ondas? | |
Passa a transição eterna fluente por ribas, | 75 |
Plena de castros imotos e grandes vãs catedrais. | |
São difíceis os homens, ruínas modernas tragadas, | |
Sonho e cobiça velha: As ondas deliram as causas. | |
Brado e soluços fartos diluíram com urros | |
Úmidos todo o sangue. Foram lutas inúteis. | 80 |
| |
Longe surge no monte a torre de ameias antigas, | |
Vale redondo e terras desbravadas e virgens. | |
Certa flor dormiu sorvendo a sombra poente, | |
Rubra nuvem desfez o frientíssimo escuro. | |
Como um sol fatigado vai morrendo a colina, | 85 |
Ledas dão graça campinas à triste estrela primeira. | |
Noite invicta, cerraste os olhos pulcros das luzes, | |
Mortas do ocaso que cega as almas bambas na espera. | |
Trilhos lustrosos que iludis o romeiro sem rumo, | |
Désseis visse o trem o súbito termo das cores. | 90 |
| |
Fosse o homem menino pelo campo, correndo, | |
Véu de fantásticas chuvas, mistério puro esquecido. | |
Dizem que há tesouro trás paisagens coradas, | |
Ouro de raios e rosa rara e gemas briantes. | |
Mas o fumo se esvai, cruzando azuis impalpáveis, | 95 |
Nuvem que o sol pertranse de impossível distância. | |
Simples amores sumos! Cantai calados os dias, | |
Trilho e verbo finito que não seduzem a treva. | |
Louca voz de riso, de pranto perene romagem: | |
Sede ingênuos, meninos, sede velhos ingênuos. | 100 |
Abstrações |
Queres mais sentido na vida que olhar o asfalto? | |
Coisa dura è ser ingênuo. O trem que termina | |
dá num mar cinzento: Trilho, viga de ferro, | |
pedra cor de nuvem. Ainda ontem raiava | |
sol num campo. Bom è estar sentado no banco, | 5 |
ver o mundo passar e não saber de cidade. | |
Verde è muito bom: O mundo parece bonito. | |
Para o trem na estação, a gente passa descendo | |
pela escada e aqueles prédios, aquela feiura. | |
Feio mesmo? Talvez è só desgosto nos olhos, | 10 |
esses sim os feios, treinados em ver as coisas, | |
cada coisa que o único canto è pousar num deserto, | |
verde, de fato, porém deserto e mato intocado. | |
Vai passando a pressa da gente na rua empurrando, | |
indo ao trabalho. Fica pensando o peão pela beira, | 15 |
cuja vida è de beira, se gente è só quem trabalha. | |
Coisa boba. Ninguém se importa com tanta besteira. | |
Dá um aperto no peito a fumaça. Quase que mata. | |
Sabe Deus de que jeito se vive, Deus è que sabe. | |
Sabe nada, quem que sabe de quê nesse mundo? | 20 |
1
Cada esquina è mistério. Vem de longe uma gente, | |
vence a strada e termina na rua. Ir-se embora? | |
Onde o rumo e cadê coragem? A vida è uma pedra. | |
Não existe lugar onde a mão se è mão de verdade | |
não passou sem fazer uma coisa feia. Desgasta. | 25 |
Bom de verdade è ser menino sentado na escola. | |
Vem doutor e diz que trabalho è criar e criar e | |
criam gado, coitados, quase morrendo na seca, | |
plantam se Deus deixar, alavancando uma vida. | |
Dá um dó de levar ao rio o boi, carneando | 30 |
como peão de rua que a gente parece que ama, | |
anda junto a vida inteira e depois que se dane. | |
Tudo boi carneado. Trabalho è criar. Carnear! | |
Gente sem rumo è isso, fica olhando o asfalto. | |
Quando a rua era terra, pegava coa mão e moía, | 35 |
indo embora o grão pelo ar. Nascia uma grama, | |
planta qualquer. Mas essa pedra de asfalto sufoca, | |
rua preta pra carro passar. Ali não se cresce. | |
Tem luar de noite não, a luz è de poste. | |
É, peão, se for de pedra o asfalto, se mata, | 40 |
2
leva também. Leva-te além, alguma cidade, | |
mato, qualquer lugar. A estrada è dura demais, | |
deixa triste o pé das almas, caleja o sossego. | |
É porém caminho de pé, e todo o caminho | |
quando anda è duro de andar mas um dia termina. | 45 |
Coisa qualquer que faças salva, mesmo modesta. | |
Chega alguma parte. Será que chega de fato? | |
Baixa a cabeça. Se chega mesmo ou morre no meio | |
quem que sabe? Mas quando o pé se deixa e recua, | |
quando a boca sabe já que è nada o que espera, | 50 |
só a morte, aí não tem caminho que ajude. | |
Pode ser de terra fresca e todo de verde. | |
Chega não. Talvez, quem sabe, chegue milagre. | |
Pega a enxada! Homem honesto não sobe na vida. | |
Sobe cadê? E trabalho? Tudo boi carneado! | 55 |
Custa andar, e cidade a gente sabe o que é, que | |
mar de pedra, barulho, martelo batendo no prego, | |
carro de lá e de cá, buzina: Mundo-cinzeiro. | |
Nem se ouve nem passarinho. Ouvir de que jeito? | |
Árvore falta, cortaram, tiraram tudo da praça. | 60 |
3
Fica no alto uma nuvem. Chove não, de sujeira. | |
Só pra calar a boca do céu. Se tocam viola? | |
Que esperança? Só se for tocar de sirene! | |
Volta e meia morre alguém por aí. Baleado. | |
Vem de longe querendo riqueza. Vira bandido. | 65 |
Chega aí, conhece ninguém, se abate. Desiste. | |
Fica caçando droga. Gente ruim nesse mundo | |
nunca falta e nem cliente. Pobre que rico, | |
tudo atrás de fumo e de cheiro. Boi carneado! | |
Boa è vida de índio: Caçar e pescar pelo rio. | 70 |
Índio? Cadê maloca, peão? Tomaram seu mundo, | |
deram-lhe a rua que è rua só de carro passar. | |
Rua de gente tem não. Melhor! Gente pra quê? | |
Gente è problema. Bom è viver o gado largado. | |
Gado? Boi que se dane, gado è carne ambulante. | 75 |
Rumo seguro na vida gente nem boi se garante. | |
Pelo menos de noite a gente esquece asfalto, | |
anda aí pela sombra e chega em canto qualquer. | |
Droga de pobre è sperar, sentado o rego no chão. | |
Craque faz milagre nenhum, e nem aguardente, | 80 |
4
viste, peão? Fazer o quê então? Desistir? | |
Todo rumo è rumo pra longe, rumo de embora- | |
nunca-mais-voltar. Ninguém que saiba morrer, | |
nem de perto nem de longe! Ficar na cidade | |
como? Abrir um bar de beber pra viver de fiado | 85 |
rende riqueza não. Beber de graça è gostoso? | |
Vira padre que o vim da missa è teu. Carneado! | |
Cada coisa! Riqueza de pobre è saúde somente, | |
isso quando a vida poupa. Doença não falta. | |
Coisa dura è descer do trem sem rumo nenhum, | 90 |
casa nem cama. Chega morta ao mundo a sperança. | |
Como não? Gente importante tem tempo de ver? | |
Boi que se dane, lugar de carne seca è churrasco. | |
Olha no asfalto o sentido da vida: Seguir a jamais | |
pela estrada, pedra feia. Mas nota que a strada | 95 |
foi de pedra, viste, não pra ter formosura, | |
isso não – foi só pra mostrar um rumo qualquer. | |
Veio longe o teu pé, peão, e veio de longe | |
tão de longe parar aqui? A vida è essa. | |
Cada dia uma cama – pedra, relento, ribeira. | 100 |
Vem até cachorro da rua fazer companhia, | |
Deus è bom demais. Abrigo não falta nem paz. | |
Falta rumo só, mas rumo a gente que inventa. | |
Essa vida è andando aqui. Ali. Sem destino. |
Abstrações |
Máquinas, força perambulante e metálicas flores | |
como feições de horrores úteis brincam co fogo. | |
Caos, um córrego metalurgicamente dourado | |
vai passando em vulcanizado insumo de lavas. | |
Mal imaginava um Euclides a crassa verdade: | 5 |
Dessa caldeira sai o motor do carro, o cavalo | |
fica lá na roça. Cantemos curas de indústria! | |
Tubos cúbicos dão tensão, pressão ao substrato | |
quando na pressa o fogo furioso se alastra. | |
Passa o fluxo desordenado e de longe da aresta | 10 |
dançam as armações alegres, maiores que a lenda. | |
Pela banda e nas margens liquefeito o lamento | |
ferro escorre feito escória. Dai-nos o coque, os | |
fornos altos vociferam, mas tarda a resposta: | |
Inda labora a coqueria, o calor enlouquece, a | 15 |
carga parte às acerias, carvão se apresenta – | |
indassim o mestre de máquinas olha a formosa | |
queda, a caldeira infernal cozendo a sopa do aço | |
quando a faísca elétrica flui. No princípio, o | |
caos proclamava a criação cabal do universo, o | 20 |
1
rolo trator, a comoção do cilindro de vácuo | |
pelo petrecho, o vapor, balancim rotativo. | |
Força adentro o teor do lingote filho da hulha, | |
sangue do sínter pesa e na rede jaz o resíduo, | |
fluido oleoso e moribundo. No torque ressoa | 25 |
como a voz dum sino o novo sistema de arranque. | |
Vai surgindo torta entre emissões a estrutura, o | |
ferro gusa que o forno hospeda, hotel de carbono. | |
Lá de longe repica o bailar da bobina, a soldagem | |
raia, o líquido sol por entre escamas sombrias | 30 |
vence, a verdade ilumina. Que fazer entretanto | |
quando a velhice corrói a ligadura do engenho? | |
Como dantes montado ao cavalo branco o guerreiro | |
firme de arnês corria, ora os pobres trabalham. | |
São valentes mãos a quem ordena uma indústria: | 35 |
Contra o brio do aço lutar, amansar a dureza. | |
Vão passando de impávido arnês buscando a furna | |
donde o fogo inventa o mundo, os motores, o trilho. | |
Mas a mente ao calcular o problema se alarma, as | |
faces congelam quando a casa de máquinas treme. | 40 |
2
É perigoso ver as mãos acionando o comando, os | |
pés descendo como se pela escada da morte: | |
»Desce logo, diminui a pressão, e cuidado!« | |
Nessa contenda seca o bate-boca se acirra, o | |
dedo tremula sobre a tela, o brinquedo apavora. | 45 |
»Sobe a pressão, reduz a velocidade da banda!« | |
Pela força do modo imperativo a trombeta insensata | |
voa pela estrutura num contraponto de angústias, | |
cena insuportável. Perante o fogo travam batalha | |
contra a flama aqueles fracos, travam batalha | 50 |
como quem reconhece, a guerra nunca se vence | |
nem se perde, somente o cálculo engana atrevidos. | |
Pelas histórias dessa gente insana perpassa | |
todo o querer de mais poder, o queimar indomado | |
contra as coisas, o roubo magistral do tesouro: | 55 |
Surge a máquina, as armas, as novidades urbanas. | |
Esses obreiros queriam melhor, mas pobres e pagos | |
vão lutando armados pela aurora do incêndio: | |
Amam de certo modo o quanto pelejam, pelejam | |
fortes, mas o incêndio devora a própria existência. | 60 |
3
Atos se perdem por entre a bruma suja do engenho, | |
não contudo em vão: Enquanto a lida naufraga a | |
vida emerge vitoriosa, o labor se trascende | |
pelo inferno e na escaldação redime os escravos, | |
eles que vão soldando o sol e maiores que o fogo. | 65 |
Não te preocupes porquanto em nada te acusam, | |
cada um aceita o seu fado e vai-se lançando | |
flama adentro em busca da salvação e da cura – | |
pois a máquina è mãe e vale mais do que a vida a | |
mão que sustenta: Eles não desistem do prélio | 70 |
quando a lida è lida irmanadora das almas. | |
»Anda, vai, diminui a velocidade da banda, | |
vamos senão a gente morre, a máquina explode.« | |
Certos párias são maiores que eterna memória | |
quando vencem o próprio ser em nome do amigo: | 75 |
»Mas a tela quebrou, desobedece o comando, | |
gente, corre, sai, estou perdendo o controle!« | |
Uma coisa è mesmo verdade: A vida dum pere- | |
grino frouxo è só poeira a mais que se espalha. | |
Lá estão, no desespero, buscando equilíbrio as | 80 |
4
mãos suadas, os pés que vão correndo da morte. | |
Quando o socorro sobe e chega ao topo, a fornalha | |
ruge desordenada: A caldeira, o vulção se transborda, | |
cospe lava na cara do mundo e traga os incautos, | |
náufragos sós que agora só quem salva è destino. | 85 |
Dentro e fora, o fogo avança. »Aumenta a pressão!« | |
Doutra parte da fábrica chega auxílio: tardio, o | |
caso è grave, è caso perdido, è caso de apenas | |
salve-se quem puder. Como um ladrão fugitivo a | |
massa vai gritando e buscando a saída às pressas. | 90 |
Pelo império ruente um bravo baixa alavancas e a- | |
vança afoito, o apuro, o pânico, o pranto mesclados. | |
»Vai explodir, quebrou, socorro, corre, cuidado!« | |
Culpa de quem? Quando o lingote pesado despenca | |
pelo coque e no ferro gusa, na poeira das hulhas | 95 |
tudo acaba e desaba, anoitece, a morte devora. | |
É cruel, feições de horrores úteis, custoso o | |
preço do incêndio, o sacrifício pai dos motores. | |
É bonito o labor conquanto ingrato, o trabalho | |
farto e redentor e assassino, um suor castigado. | 100 |
5
Homem brinca co fogo e no fogo o calor se consome: | |
Deve ser a vingança do acaso e do sol que se agita. | |
Eles morreram: O inferno destruïdor arrastando | |
pela explosão as vigas, a vida, o ferro torcido. | |
É, bastava a mão do destino e tudo era salvo. | 105 |
Mas de trabalho e muita morte o mundo se assoma | |
pelo metal, motor, futura ferrugem que aguarda. | |
Máquinas, força perambulante e metálicas flores! | |
Que diria Platão dessas magistrais existências? | |
Inda sobe o vapor saliente dos corpos torrados. | 110 |
Inda sobe a memória ordenada à causa comum, o | |
sangue sacrificado aos assassinos do templo. | |
Age como aqueles gregos que rentes à pedra | |
viram: A pedra è forte. Mas deixaram a pedra | |
pela terra, o inferno atrás, Pitágoras cego. | 115 |
Vida de cavaleiro è livre e montada a cavalo. |
Abstrações |
Sobre a rocha acasalam-se as cobras. Inda se ondulam | |
pela areia seca ou dentro de tocos quentíssimos, | |
entre escusos terrenos sob o sol caudalosos | |
giros, letais e lascivos. De longe acorrem serpentes | |
rumo a congresso de víboras. Agem caudas e vértebra, | 5 |
jactam-se quase de ossosos os maxilares abertos, | |
dentes à espreita. Macabra dança de escamas e ecdise | |
densa excita aos hemipênis as fêmeas vorazes. | |
Costa e costelas uma às outras cobras constritas | |
qual na atrofia da vítima, ora em paixão calefeita | 10 |
rudes amores répteis cravam de marcas a pedra: | |
Gozam em laterais espasmos a morte do antídoto. | |
Vem desse amor infernal nas elações de venenos | |
arte, elegante indústria: Vão guardando peçonha, a | |
dupla poção proteica – o céu e a terra invejam a | 15 |
obra-prima perfeita das ovovivíparas vidas. | |
| |
Junta-se às víboras caravana imensa e colúbridas | |
raças extensas. Ignotos, os maxilares ensaios | |
perdem o véu perante a morta vítima apenas, e | |
pelos músculos torce a boia uma estranha asfixia. | 20 |
Pobre porém a crotálea de airoso e sevo chocalho, | |
pobres almas botrópicas: Mera malha sem viço | |
frente ao ávido neurotóxico fluido, inóculos | |
dentes elápidos, proteróglifas bocas de cobras | |
raro calmas. Chegam corais ao fausto concurso de | 25 |
listras rubro-atro-amarelas, distinta a peçonha | |
pela América. Estas são pacientes contudo, | |
há piores ainda, o congresso apenas começa. | |
| |
Doutra feição de humor se ornaram elápidas longe | |
pela costa que outrora Ovídio temera da Líbia, | 30 |
najas do Nilo cuspindo elixir mortífero aos olhos. | |
São todavia fracas frente a monstros d’Austrália e | |
cobras oxiuranas, do prado ou remota em deserto | |
gênio irascível – irmãs daquela cobra marrom, da | |
cobra-tigre em rajadas listras, a doce elegância | 35 |
mãe de gotas de nunca ouvido antídoto e cura: | |
Foram dom de hemorrágica graça e quiçá citotóxica. | |
Guardam da boca ovantes seiva na espera da presa | |
farta e moritura em respiratórios colapsos. | |
| |
Como è baixo o molecular e levíssimo peso | 40 |
visto em tais delicados venenos. Vasta veloz a | |
gota no sangue e no delicado tecido do corpo, | |
mescla-se ao leme desgovernado das células ávido: | |
Age como outrora as armas dos donos do mato, o | |
diro desbravador arrasando um perfeito sistema. | 45 |
Outras vezes se ouviu dizer de instantâneo colapso, | |
pronta entrega de forças. Quando adentra a bandeira | |
suja dos impostores è espada o destino dos índios. | |
É preciso viver melhor e aprender com perícia, | |
ver e ouvir de quem viveu e conhece a verdade: | 50 |
Nunca ouviram falar dos dendroaspísicos monstros? | |
| |
Correm livres pelos tratos d’África elápidas | |
longas que a fauna universal e as feras temeram. | |
Podes cavar a cova se mordem! Cobra de espírito | |
vário, de raro e de raramente estável caráter, | 55 |
move como a coda em barrocas bailas o esbelto | |
corpo delgado: A mamba negra apavora e passa | |
mais veloz que o corredor atleta de Atenas, | |
cruza cansada vinte quilômetros cada hora, um | |
terço do corpo erguido e buscando ensejo de bote. | 60 |
Sobem as árvores. Máquinas irascibilíssimas, | |
são doadoras de morte e gratuita agonia, as | |
omnitóxicas glândulas guardam raro tesouro. | |
| |
Tal poção è paraíso dum homem que invade a | |
própria veia na agulha dum cocaínico líquido. | 65 |
Quando a víbora piedosa inocula econômica- | |
mente a injeção, a mamba negra morde com gosto, | |
lança o que puder de peçonha, o serviço è completo. | |
Ela recusa a carne humana mas se lança agitada a | |
múltiplas ágeis mordidas, doze se a sorte acode. | 70 |
Dura este assassinato uns dez ou vinte minutos, | |
luta ingrata contra o mar e triunfo da gota. | |
Quatro-centos gramas vão navegando no sangue, | |
sim, navegar è preciso e navegando naufragam | |
nesse mar Cleópatra e multidões da coorte. | 75 |
| |
Quem não temeria as dendrotoxinas selvagens? | |
Basta se aproximar de longe a sombra da mamba, | |
basta abrir a boca em perigosíssimo alarme e | |
foge em debandada a matilha, o leão, o elefante | |
sai desesperado às pressas, a selva se esconde. | 80 |
Há quem não se impressione: A solução è o mangusto | |
quando morde a cabeça e balança a cobra e mata. | |
Mas quem fica mordido morre e morre bonito: | |
Pelo campo aberto falta antídoto e herpeste, o | |
monstro morde e passa mas a morte se hospeda | 85 |
pelas marcas rubras. Quando morde a cabeça o | |
termo, o colapso è generalizado e mais rápido! | |
Rumo ao congresso as elápidas dançam pela ribeira, | |
sobre a rocha lasciva misturam raríssimos ritos: | |
Macho mordendo macho estrebuchando por fêmea, | 90 |
gozo grupal em meio às redes rudes de areia e | |
guizo de anéis. Enroscam-se pelas vértebras frias, | |
vão bailar além num dessabe-se-o-quê de calores | |
onde estrangulam e emanam loções, gozoso veneno, | |
proto-amor magistral reptilicamente expressado. | 95 |
| |
Mas depois a metamorfose da carne e do carma | |
faz um milagre: Passado e presente se aproximam | |
ora que ainda vês a imagem do tempo em que foste | |
mamba negra e que és. Ainda saliva nos dentes | |
teus o venenoso véu que disfarça as palavras, | 100 |
inda vives como as cobras na espera do bote. | |
Hoje se vê correr na cidade uma prole de ofídios | |
ora eretos, outrora macacos. O réptil evolve, | |
cobras elápidas são agora uma estirpe distinta, | |
são pessoas grandes: o mestre, o homem de letras, | 105 |
sábios, poetas que vão se arrogando importância, | |
seres perigosíssimos como os homens de bem e | |
muitos outros, guardiões duma toxina retórica. | |
Inda se ondula pela areia seca e quentíssimo | |
toco o lascivo e caudaloso simpósio de víboras, | 110 |
mescla cardiotóxica, espasmos de rara elegância. |
Abstrações |
Quando se encontram no pentagrama de cima, ou de | |
baixo se preferires (qualquer que seja a clave, | |
sol ou dó, ou que seja escala menor ou maior), | |
duas vozes, três de repente ou quatro cantando | |
ponto contra ponto, ocorre o prélio melódico: | 5 |
É que as notas se fundem loucas umas às outras, | |
lembram o bosque por onde o desavisado passante | |
quase creu que fosse harmonia a guerra das aves – | |
máxima a polifonia que outrora Josquin emulava! | |
Deu impulso à missa triste de Orlando di Lasso, | 10 |
passos por onde Bach bebeu as águas de fusas, o | |
caos da contenda, o atrito tonal. Um raro comércio | |
move a linha por entre as indagações do compasso. | |
Notas vão-se casando e repulsando, os amantes | |
cujo amor corrosivo emana uns suaves efeitos. | 15 |
Nossas aurículas pouco atentas e dadas a incerto | |
tom se contentam. Não porém sem norte se entortam | |
pela clave os sons, as vozes dependem de vozes. | |
Vão nascendo interrompendo-se, e mútua mente. | |
| |
Quando se cruzam notas pelos quatro espaços | 20 |
como pontos afoitos, é preciso cuidado. | |
Sobre o papel, aquelas duas cores contrárias | |
dão trabalho à vida auditiva e ver a verdade | |
custa caro. Ali, numa linha de cima, começa a | |
fusa com haste por baixo mas olhando pro alto. | 25 |
Vem a segunda na contra-mão procurando problema! | |
Como se não bastasse, a terceira escolhe o caminho | |
duma já das duas, e a quarta. Não por acorde: O | |
grande encontro è melódico, n’é harmônico não. | |
É, meu filho, cada traste è tomando o seu rumo | 30 |
lá pra cima, abaixo, aguda e grave a conversa: | |
Mas o rumo embora pareça sem rumo è prescrito, | |
viu, tudo è estudado. Tudo tem seu momento: | |
Hora de consonância, hora de dissonância, | |
hora de pausa. Hora do cara pensar que basta | 35 |
pôr tudo junto e ver o que rola, quando a verdade | |
mesmo è deliberada, è raciocínio, è regrada. | |
| |
Sabe novela? Então, contraponto não é diferente, | |
sempre a repetição daquilo, o mesmo boato, | |
isso, aquela fofoca de sexta-feira na esquina: | 40 |
Todo mundo repete, mas cada qual a seu tempo, | |
cada um se dizendo senhor da versão verdadeira. | |
Tem o canto firme. E tem os sósias do canto: | |
Um termina, começa o outro, è como telhado – | |
telha contra telha, telha amparando telha | 45 |
pois nenhuma cai: a de baixo apoia a de cima, | |
vai passando a mesma gota d’água por todas. | |
É regime democrático mesmo, o sistema, | |
filho, è participativo, è bonito, arrojado: | |
Cabe todo mundo e todo mundo aparece. | 50 |
Canto sozinho è canto gregoriano, entenda, | |
saiba com quantos paus se faz um contraponto. | |
Não me venha dizer que bate-boca não pode | |
nem dizer que bonito è seu arranjo de acorde, | |
vá, me poupe. Vá passear na floresta enquanto o | 55 |
lobo não vem. Ali tem muito pássaro e vaca | |
lá do pasto ensina, contraponto è destino. | |
| |
Nota traço compasso voz cadência soprano | |
cláusula clave tenor passagem trítono frase | |
linha pentagrama escala e diaboli musica | 60 |
quinta imitação dissonância quarta terceira | |
passa segunda primeira do ré me fá passará se | |
dó de baixo do ré do mi do fá consonância | |
passo pausa appogiatura sétima sexta | |
ponto contra ponto contra próximo ponto | 65 |
contra ponto contra próximo ponto que ponto | |
ponto contra próximo contra ponto começa | |
quando se encontram ponto fusas a clave | |
ponto dá-se contra guerra melódica ponto | |
lá do pasto ponto ensina o próximo lobo | 70 |
dando ponto pulso contra a missa de Lasso | |
raro contra comércio ponto próximo ponto | |
contra ponto contra contrapontro primeiro | |
canto ponto gregoriano próximo contra | |
ponto ponto ponto ponto ponto e pronto | 75 |
contra ponto: Ali tem muito pássaro e vaca | |
lá do pasto ensina, contraponto è destino. | |
| |
Não se sabe na confusão da fuga a verdade | |
nem a voz maior: O canto não è de ninguém. | |
Como è falso o renitente tom da certeza | 80 |
quando imita o que não existe: Sim, a beleza | |
toca, pelas notas dum pentagrama invisível, | |
toda a corda eletrizada das células, toca | |
mas è fato, a barra dupla encerra a cadência – | |
todo canto è belo porquanto è curto e singelo. | 85 |
É bonito e doloroso assistir o conflito do | |
sopro anunciando na fuga o fim da pureza – | |
é bonita a fé dum transtornado temente | |
quando à beira da morte busca eterna semente. | |
Ele chora pela força que impede a vitória, | 90 |
fim que o tempo entrelaçou no mesmo remendo – | |
ele se torna a toccata redentora de Bach: A | |
vida è canto que só se pode cantar uma vez – | |
quem quiser ouvir esteja atento, que logo | |
vem a barra e tudo acaba e ninguém dissuade. | 95 |
Mas o gado segue seu passo, vagando calado | |
pela sombra, os olhos endereçados à grama. | |
Quando o pasto parecer indigno do canto, | |
quando o canto for menor que a idade recorda, | |
vaca incauta: Ela te aguarda. Ela te aguarda. | 100 |
Abstrações |
Toda fantasia, confuso e fortuito, parece | |
mas perece quando a cor descobre a verdade: | |
Verde sobre o mundo a linha cinza eminente | |
forma a meta-metamorfose incauta. Da curva | |
sombra cinza folha sombra flores verde | 5 |
noite vagas cinza n’água sombra sombras | |
cinza folhas fronde esconde espelho verde | |
sombro n’água e cinza verde e verde e cinza. | |
Nuvem negro-claro fosca e sistema impressão e | |
toca perdida, verde no labirinto apodítico. | 10 |
Ovo bozó, a cinza unidas na lava porquanto | |
rota e verde tenso. Grande parvas e quando | |
menos sombrias cinza, muito menos inqueda | |
vida tonta já se movendo verde e nos foscos | |
cantos, dança constante. Cinza ser movimento, | 15 |
tom, sussurro verde ao derredor, epiléptica. | |
Traço baço-estranho e mouco, cinza conquanto | |
círculo flutuante do mar e verde das bordas, | |
ponto dondo e casto cinza. Escuros entanto | |
pálido três e verde esquálido nuvem amena, | 20 |
1
verde e sombra seca o som, o versa mistura. | |
Luz de cinza, diclofenaco del ovo bozó se | |
cospe caminhão luvas uvas verde cadência. | |
Foram bolastes cinza perdera será denotavam | |
filme sorvete verde, quimera tenso de túneis | 25 |
ave de sons ouvidos. Jamais em cinza nenhum. | |
Longe estrela verde potássio: viver sofrimento | |
cinza sintaxe luz, porém o côncavo gama | |
grande matiz. Verde inexiste ser inexiste, | |
ovo bozó pela relatividade dos pares. | 30 |
Vistos banhavam correriam verde pudessem, | |
ondas tenha cinza brio ilusão corriqueiras. | |
Fluidos verde elevam, foi, morrer transparente | |
mente na cinza chama do ré mi fá sol e lá, | |
verde sim, se dou ré me faz chorar si mi nada. | 35 |
Vaga e cinza dó ré mi fá sol lá sem dó, | |
dó do sol sem verde lá. Se o dó dançaria | |
nuvem vaga imagem cinzas deixa vozes | |
sombra vagas fronde noite verde n’água | |
cinza esconde sombras flor e cinza e nuvem | 40 |
2
vaga fronde e cinza e verde e verde e cinza. | |
Iam voz esconde vagais alado cinza vorazes | |
manda mamar. Clarão e verde e fluiu prateado | |
tempo, raro de olhar. Cinza claros o risco, | |
ponto e verde a meta-matemática e curvo. | 45 |
Listra caírem frente ao ser e cinza deitadas | |
leva estranha, verde comer. Convexa madeixa | |
cruza cinza causou tivesse dum ovo bozó de. | |
Pois que a teoria da verde atividade, | |
cinza embora a relatividade e das mortes: | 50 |
Ó cantardes pouca sorte, verde momento! | |
Perde rubro ao cinza o sonho, sonho mentira, | |
tudo passa e doce o medo e verde e mistério. | |
Eis esquerda pedra cinza, os anos modernas, | |
folha cambelando verde: Querer, ser, sofrer. | 55 |
Doido cinza Alice país, maravilha prosaico, | |
dentro ruído e rua e cinza e rasgo e de carro, | |
trem das árvores sempre verde nunca na ponte. | |
Postes cinza nasceste terá solfejo e sulfato | |
d’ovo bozó florescente. Hora verdes e boca | 60 |
3
fala que nunca cinza acaba o cloreto de manga, | |
manjo, mangá que embora verde então ventilasse | |
canta metálicas: Ave fêmea cinza no asfalto. | |
Correm belas éguas de pés e verde rapaces. | |
Era drogado? Não e verde e tudo mentira | 65 |
passa, passa, avenida cinza, irreais artefato. | |
Verde? Vovó de biquíni balança a sandália, | |
cai no chão o jiló da cumbuca cinza da bruxa, | |
verde o fio-dental-edredom grudado no modess. | |
Sapo de para com de cinza que passa e portanto | 70 |
tudo passarem verde enquanto. Camadas diante | |
d’ovo bozó que sofre sempre cinza, vivendo | |
rato e vi rato vendo e roendo o rabo verde, | |
spelho cinza e vago vozes soam sombras | |
vagas verdes cinzas folhas vagam vão e | 75 |
vêm em vão e n’água cinzas vozes sombras | |
flor e noite e cinza e verde e verde e cinza. | |
Olho que para da contra semi-outrora te cinza | |
formam do verde escuro vampiro onírico têm de. |
4
Ovo bozó, ovo bozó – e cinza – e mormente | 80 |
tudo passa as mordomo são mordente que verde. | |
Verde bozó, capitão, cafetão do capeta e peitão se | |
vândalos um, que longe a reta demais paralelam. | |
Vale próximo movem cinza estranho de pontos, | |
pontos de estranho verde movem próximo vale? | 85 |
Cena e trator! Desejo è dor. A cinza è verdade. | |
Ovo bozó, ovo bozó, verde e jante o bozó dos | |
dedos os quais, retângulo cinza dá-lhe entretanto | |
longe da escada verde: Jacó numismática nuvem. | |
Abre-se quando quem todavia as nunca foi cinza, | 90 |
digo e repito, verde de dó que porém sobretudo. | |
Trás o trânsito três transtorno e cinza vermelha: | |
Ovo bozó, ovo bozó coa vovó que a da verde e | |
beija o chupa-cabra e rebola a vaca da cinza! | |
Pousa a pupila sobre a sombra verde e medita | 95 |
semirretas, prisco o cinza, vertigem de arestas. | |
Passo, sofres, verde, morremos, viveis, cessarão e | |
quando sentar, sentar e cinza. Das quais existência | |
letra e livro verde que quando cai de repente. | |
Ovo bozó, que noite-quase-dia e que os cinza | 100 |
scondem verdes vozes sombro espelho soam | |
cinza imagem fronde vaga deixa nuvem | |
flores vagam folhas cinza e sombra e cinza | |
verde e cinza e verde e cinza imagem sombram. | |
São quimeras e pouca verde e cinza momento | 105 |
nada, cinza a pata choca do chão que morrendo | |
beija: Tudo papa verde, tudo ilusão que sofres | |
ovo bozó, ovo, povo, ovo bozó. |
Abstrações |
Bom è abrir um lindo e financeiro instituto | |
tipo um banco-zumbi, aquele banco falido | |
mas ativo: Todo mundo sabe que è treta, | |
só cliente que não. O cara guarda dinheiro, | |
quer sacar não pode: Defeito, o caixa lamenta | 5 |
pelo transtorno. Fim de ano toma empréstimo, | |
compra casa e diz que pode pagar depois, que | |
banco è bom demais. A casa não vale a garagem | |
mas è casa própria, orgulho e sonho da gente. | |
Banco ruim è bom também. Vive de empréstimo e | 10 |
Nunca fecha. Ministro torce a cara, protesta, | |
manda abrir falência. «Mas ministro, queísso? | |
Essa gente toda aí que depende do banco, | |
como vive se o banco quebra? Tem que ajudar!» | |
Tudo ator de primeira. Governo empresta fortuna, | 15 |
faz aquele cu-doce mas cede. Gente do demo | |
mesmo è peão de bolsa, povo de ações e valores. | |
Volta e meia chega alguém caçando conversa: | |
«Banco zumbi vendendo toca a valor de palácio? | |
Vale nem a cueca essa porra! Pago a metade!» | 20 |
1
Aí bastou. A comoção se alastra na bolsa, | |
nervo à flor da pele. Fazer negócio de otário | |
custa caro: Perde valor num dia o bagulho e | |
banco se alarma: Diz que a casa è boa, garante! | |
Quando a novidade se espalha o banco se irrita, | 25 |
inda mais se è banco-zumbi. Não tem piedade: E | |
banco è flor que se cheire? Não perde nem tempo, | |
manda carta: «Dinheiro da casa paga amanhã! | |
Paga logo ou sai, vagabundo!» Pobre è assim. | |
Banco e bolsa se acusam, o bate-boca de praxe: | 30 |
Teve banco aí dizendo que a culpa è da bolsa, | |
desde o começo peão botando fogo na lenha, | |
todo dia fazendo o preço da casa aumentar. Mas | |
quem não sabe o começo de falatório no mundo? | |
Seis bilhões de bocas! Converseiro, rapaz, que | 35 |
nem novela da Globo vence. Culpa de quem? | |
Culpa do mundo! Daí se reúne gente do mundo | |
todo e começa a falar de crise e reforma do mundo e | |
banco dando dinheiro pro povo e país se acabando e | |
banco tomando a casa do povo. Dinheiro cadê? | 40 |
2
Tem dinheiro mesmo, existe? Oitenta trilhões, | |
dizem, de americanos dólares correm na Terra. | |
Disso, porém, dinheiro impresso, nota e moeda | |
modo-de dar comida a pobre, cinco trilhões, è | |
isso aí. O resto è somente o valor nominal, | 45 |
cifras só de alimentar programa de cálculo, | |
lista computada em máquina. Dinheiro è conversa. | |
Fosse impresso todo o valor nominal financeiro – | |
É metal e papel que não cabe nem no Oceano, | |
sem contar que o Pacífico todo foi invadido | 50 |
já pelo império plástico, tóxico não reciclável. | |
Fica peixe tentanto comer sacola de compra e | |
ver se encontra rumo. Este mundo è de lixo, mas | |
banco diz que investe em limpeza, aí que è bonito. | |
Bom è ministro querendo dar lição em banqueiro. | 55 |
Mexe com banco, negão! Vira e mexe descobrem | |
novo roubo e converseiro de imprensa e comédia. | |
Vem ministro falar de improbidade no banco e | |
dá-lhe multa: Toma! Banco reclama mas paga. | |
Dois milhões, jornal adora. Depois dalguns dias | 60 |
3
vence aquela dívida lá do governo ao banco: | |
Dez milhões. Ministro ri, promete e não paga. | |
Faz o quê o rapaz? Empresta do mesmo banco! | |
Doze milhões, inclusos juros e juros de juros. | |
Terra onde banco se acaba se acaba junto co banco: | 65 |
I rest my case. Crise? Crise de rico è enxaqueca e | |
lá se dói perder dinheiro que nunca existiu? | |
Dói è ficar na fila quando o banco-zumbi | |
fecha – fecha entre aspas, banco não fecha, | |
banco muda de nome. Fica a gente na frente, | 70 |
spera o segurança vir e abrir a portinha. | |
Uns até se irritam, parece: Cena de filme. | |
Chato è quando a galera invade. Desce a escada | |
rumo à caixa forte e força. Cadê lo dinheiro? | |
Tem alguma coisinha, claro, podem comer | 75 |
lá no Hilton uma ou duas vezes, com sorte. | |
Todo resto è dinheiro abstrato e nunca se vê. | |
Não poder imprimir senão o que existe de ouro? | |
Essa história do ouro e da prata como padrão, | |
isso acabou. Oitenta trilhões de dólares-ouro? | 80 |
4
Minas Gerais teria de ser do tamanho de Júpiter: | |
Haja extração, colônia, haja porão na Inglaterra! | |
Quem precisa de ouro, gente? Ouro è bobagem! | |
Hoje è cartão de crédito. O cara compra a parada | |
sem tocar em nota e moeda, acabou-se a sujeira, | 85 |
cifra, lenga-lenga. O mundo virou uma aposta | |
tipo a da mega-sena. Jogo de azar a quem perde | |
todo o dinheiro que só existe pra ser perdido – | |
sorte a quem ganhou fortuna que o povo perdeu. | |
Foi o cara da bolsa fazendo alarde do nada? | 90 |
Foi o banco-zumbi que ressuscitou da falência? | |
Ambos os dois tiveram sim parcela de culpa. | |
Uma coisa eu digo, ministro: Mexe com banco | |
não pra depois não dizer que ninguém te avisou! | |
Essa coisa de Estado intervindo em banco, meu caro, | 95 |
só quem pode mesmo e quem não pode se arranje! | |
Mundo justo mais que este è ruim de se crer. | |
Tudo è lindo, tudo è divino e basta um negócio, | |
mesmo com banco-zumbi, que nunca falta dinheiro. | |
Pobre reclama demais. Pra ter dinheiro de fato | 100 |
basta enriquecer! Banco tem sempre lugar, não | |
falta nunca espaço pr’uma continha a mais. | |
Basta enriquecer, è simples, e a vida melhora. | |
Por isto è que digo: Bom è abrir um banco bonito, | |
bem bonito mesmo – daqueles que vendem casa, | 105 |
treta e tudo o mais. Peão? Peão que se dane. |
Abstrações |
Dormes em frente à tela aborrecido na rede: | |
Quando a pupila recoberta em treva se estende | |
surge a imagem congelada que nunca sumira. | |
Como no filme as pausas paralisam os sonhos, | |
ora se assiste após a velha vertigem o enredo. | 5 |
Passa a cena inteira frente aos pés da cadeira: | |
Longe os correios, longe aquela carta grafada, | |
hoje a bateção no teclado è pré-fabricada; | |
perto continua a mentira, o buscar de mistério, | |
barca varando na seta branca o botão pequenino. | 10 |
Vai buscando mas não há resposta nem busca: | |
Não existe existir, existir ilude a poeira. | |
Onde a margem do rio generoso esconde o vau, o | |
dedo cansado sofre – tocou demais o teclado. | |
Fica lendo mas o livro acabou, a verdade, | 15 |
verso acabou, sobrou o comentário da massa. | |
Pouco vadoso è rio que mais parece oceano | |
pois ninguém atravessa, só navega e se entrega. | |
Quanto mais avança não chega a nenhum paradeiro. | |
Como pode ser infinito o pequeno, o quadrado | 20 |
1
mar que è rede nem de peixe e nem de consolo? | |
Basta um toque no xis e o peixe morre na rede. | |
Tudo o que chamas eu ou meu transita num rio | |
entre duas margens longe de eu e de meu. | |
Esses amigos de rede e gente que não conheces | 25 |
são aspectos perto e longe mesmo que perto. | |
Vão esparramando imagens, textos e heroicas | |
fugas que os animados comentam. Dividem a cena, | |
nunca a vida. Vivem sim por trás da existência. | |
Pela tela as mãos navegam nas vagas do novo, | 30 |
porto que nunca è porto como o novo è novelo: | |
Passa o fio no rumo que o queres fiar pela roca, | |
antes, depois do dedo o mesmo traço delgado. | |
Desses mesmos fios se faz a rede moderna, | |
nova porém caduca porquanto rede è de fio: | 35 |
Novas na vida apenas moda e morte que è velha. | |
Esse desassossego não tem amigo que amanse, | |
moda e nem a morte talvez. A rede è de imagens. | |
Dentro porém a vida è vária, ninguém a conhece. | |
Rede não cura o peito, rede não cura oceano, | 40 |
2
fundo que nem do pego atro o monstro vislumbra. | |
Buscas debalde a fibra redentora da roca, o | |
fio que caiba em letra, cifra, traços, imagem. | |
Tudo o que chamas eu è traço e fio que se quebra, | |
nem proclames «existe, è verdade» se assim se desfaz. | 45 |
Morres na rede que rola e reduz o peito a palavra, | |
nunca pisas no porto o chão de entranhas dum homem. | |
Sabes do estranho apenas por intermédio do símbolo, | |
mas no vento o amigo e o pai continuam estranhos. | |
Dormes em frente à tela, identidade assombrosa, | 50 |
quando das cinzas ressuscita a ilusão da existência. | |
Essas navegações dentre alucinadas paragens | |
são mentira e nem a letra dum livro è constante. | |
Pulsa o peito, um fogo ao lado alheio da rede? | |
Há de fato um porto à barca em meio a tormenta? | 55 |
Talvez se computem sós as letras, nós nos perdemos | |
como um poema sereno e sem verso, fim do infinito. | |
Quase toda função desta vida tem seu programa e | |
novo modo de cálculo, escrita, acúmulo e lista: | |
Gente outrora dispersa se reencontra na rede. | 60 |
3
Mas o que não se vê nem conta è límpida essência, | |
e sim dizerem «eu» ou «meu» duma breve aparência. | |
É bonito como o novo botão obedece o comando, | |
é fugaz a união dos nautas num laço singelo. | |
Onde o discernimento soube o sopro do alheio, | 65 |
onde existiram dois amantes que a si conhecessem? | |
Somos o beijo, mas beleza è mais perto do sopro, a | |
boca è pior que a verdade. Peito è somente conceito, | |
vírus trojano. Passam o scan, o set-up e consigo | |
levam a presunção para o lado certo do espelho: | 70 |
Lado da imagem sem carne, onde a mentira è conspícua, | |
onde moramos e moram o eu e o meu que chamamos | |
mas não somos: Nada existe fora do espelho, | |
fora do espelho a carne è tão somente impressão. | |
Eles que são heróis, se agiram nobre e calados | 75 |
não deixaram memória, são perdidos os atos. | |
Eles que são banais porém deixaram palavras, | |
têm memória até sem mérito: o verbo è maior e | |
vida menor que verbo è sofrimento, è momento. | |
Vais fechando os olhos frente àquele teclado | 80 |
4
mas da rede não se assiste a tua incerteza. | |
É de raro proveito o dado e perfis se desgastam | |
ante o dano das horas que esgota glórias e gana. | |
Inda se busca amigo na vida e menos palavra? | |
Pulsa no peito aquela espera do ponto final, | 85 |
verso derradeiro e confortador, invencível. | |
Pobre o coração que atende o termo da letra | |
quando no verbo finito o traço finda do peito. | |
Esta vida è busca de verbo mais do que amigo! | |
Vão passando cenas na tela. Os olhos saudosos | 90 |
leram pelas teclas o livro errante da rede, | |
mas um toque no xis bastou, a janela se fecha, | |
joga fora a palavra, a identidade, aparência. | |
Quem navega entrega-se ao mar, è esta a verdade, | |
pois flutua, mas vence apenas se o mar permitir. | 95 |
Não navegues e não caminhes, não existas, | |
não, transcende apenas a impostura do espelho. | |
Abre os olhos! Quando a vertigem traga a verdade, | |
quando o sono se abate em ambos lados da imagem, | |
tarde da madrugada è tarde demais, è fugaz. | 100 |
Mas o cor vislumbra à janela um mundo indelével | |
como se fosse possível além do afã da palavra. | |
Essa janela è só imagem, mas sopro que sofre | |
sofre pois a cor è bela e mais que a verdade. |
Abstrações |
Versu e sermom vulgare, vita cantemus vetusta, | |
Nullam in agru color, nuves graves in corde. | |
Neve eterna descende montes e terram invernesce, | |
Cade per planu ella flor ante virdes amors. | |
Curas vero a tantu, frigido montem ascender? | 5 |
Quem in culme querer, quales curres itiners? | |
Paucum pectu sape rotas nostras obliquas, | |
Court inter pedes mort, multu morbu succumbes. | |
Tenes cum manu forte frumentu e virga cum altra, | |
Mundu, monstru, nox, umbra ni bruma timente. | 10 |
| |
Quando ad oclos surgit imago de baratros albos, | |
Animu quomo in crux perit crudel e turbatu. | |
Obe miran, silentiu, neve guberna cum ventu, | |
Solo consola cel pedes e paula peritia. | |
Miser spirat in hos periclos nullos calores, | 15 |
Numqua que firme stat contra nuves tremente, | |
Quasi perdit ho cuer, hoc animu, virga si vasta | |
Manu intuta suflar, gelu a digitos duros. | |
Nulla nata si re amades, causa ni mente, | |
Buccas de ventu vox furia fauces de infernu. | 20 |
| |
Quis iudare abe qui fuge longe de terras? | |
Nullu refugiu das quando ermitas o rogant. | |
Preliu procelas ira profliga pedes sin passu, | |
Semper a mont ambular, home naufragu in neve. | |
Cum natiom qualconque impera nova superbia, | 25 |
Vanas curas de lex contra flacos prorumpen. | |
Paula vero de imperiu gloria si fugas o premiu, | |
Mort e tyrannu rex, metu tantu e sevitia. | |
Fabulas curren buccas, odiu, diras doctrinas: | |
Patrie tantum sunt fils li home communes, | 30 |
Ipsa de pelle color et ipso sermom loquentes, | |
Qual si peuplu jus plus habuera de mundu, | |
Unu poblu magis que totos altros a terram, | |
Parte queconque habitar obe nullu vicinu, | |
Numqua in urbe sua corpu de terra aliena. | 35 |
Facil fortuna furt quando mal dividenda. | |
| |
Sub ella neve pugnan quasi mortuas feras. | |
Sic inter homes pax, facies quomo de gelu, | |
Fundu vero infernu, furnu de virus feroces. | |
Venent a portas perir parias vitas sin patria, | 40 |
Paupres pedes a callu, bucca cedendo a sitim. | |
Queren fugentes sol, locu alicum de morendi | |
Posque mundu negaui terras tantas refugiu. | |
Miser de cuncta part passu expulsu ambulante, | |
Super petra cade a vices ho corpu curvatu, | 45 |
Nullu bracciu redder manus ad ossu levandas. | |
Facie triste cum toga rupta de ventu protegen, | |
Rugas de oscuru feral, oclos sin obe mirando. | |
| |
Cuiu sperar pietat in tal desertu alicuna? | |
Gelu tantu et ar sunt a pedes companes. | 50 |
Subito freme terra, mont e neve ruente, | |
Virgam devorat e spem, villas vasta vetustas. | |
Nulla conseque vero delir hoc animu forte | |
Cum ascend in o cuor foco de ventu vincendi, | |
Grands desirs ad ellas stellas tantu cognotos. | 55 |
Suben semper plus ultra e contra nature | |
pedes petras quomo de monts et amurs sinuoses. | |
Quanta illuserun vix vias malas et somnu | |
Vitas a fauces unde ni volante egressere. | |
Homes furt ingannats, iocu de mort torturata. | 60 |
| |
Stelle Deu, ametz en umbre vous a mortales? | |
Courent tuit li vent contre vita e les vents, | |
Court li vents et la vita è vaine contre le vent. | |
Prend ella togam li vents, tarde queres salute. | |
Passa passu melior e spera fine de infernu! | 65 |
Iam de circa pots verre o culmen abscontu, | |
Grande gaudiu a corde raru amorem stilante. | |
Que te sustene ment, quale premiu quereres? | |
Non te atende res in frigidu monte que morte. | |
Magis miras a cel, magis longe ceruleus, | 70 |
Tantum livor te circat, tibi parat extremam. | |
Nullu flavu ni sol veult o solu salvere. | |
| |
Ultima curvam vides ante victoriam clamante, | |
Vent in o monte nox atra gelu tremores. | |
Ubeconque mirares anima nulla apparere, | 75 |
Perdes in vastu vall oclos animu pensu. | |
Cadet a vices virga, crema neve ellas manus | |
Quando molle prends vitam cum digitos mortuos. | |
Veuls in van ambuler si cata passu periclos? | |
Meurs in neve iam, exul, nulla morata! | 80 |
Vero mult se plaint o cives a nullu peuplu, | |
Nuls desire voir home expulsu de cunctos. | |
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Date, celi, poete parabola ad hora narranda | |
Clara cum ella lux fine de facies facit. | |
Advena curre cito ad ultimu culme de monte, | 85 |
Genu flexu mort mirat in lapides latas. | |
Corpus iam declinatu crepa virgam de veteru, | |
Cranios vide mults mortos in terra clavatos, | |
Frigide cova ouverta d'homes illac arrivetes, | |
Locu a regressu nul, mundu invernu feroce. | 90 |
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Sed in baratru altissimu tingen neve miracles! | |
Miser primum de cel radiu diluculu et stellas | |
Anteque muria mirat e pleure in aurore supreme. | |
Vois le mysterium froid, joie qui cherche du mondu | |
Comme li ciel le pied du paupre a nulla demeura. | 95 |
Viens chanter, mon fils, voix des hommes perdus, | |
Songe le triste état du pas sans but ni chemin. | |
Tant de niège descend, nuit, l'hiver de la terre, | |
Lourd le pas mendiant, le mont la ville du loup. | |
Courent tous les vents contre l'ivresse du coeur. | 100 |
Abstrações |
Deus dos deserdados, chega ao fim o pateta! | |
Como nada fiz na vida além do meu verso | |
morro tarde. Deito-me escuro e vejo no teto | |
turvo a luz que o carro, vindo da rua à janela, | |
vai deixando para trás. Pergunto às paredes | 5 |
onde estou. Eu preferia que a luz não passasse | |
pela cortina da sala. Fechar os olhos ajuda? | |
Nem sabia que estavam abertos. Vias se fecham, | |
quase parece a vida parede e quadrado cercado. | |
Toda hora nossa è última e vendo a pintura | 10 |
penso: Será possível? Passar fazendo nada. | |
Quero dormir, esquecer, o sono porém engana: | |
Durmo mal e acordo cansado, o peito pesado. | |
Nada? Que diria Deus perante o poeta? | |
Deus condena inércia mas è vão responder. | 15 |
Quis ajudar alguém e dar ao mundo uma prenda | |
como se o mundo esperasse, desejasse, pedisse. | |
Spera dinheiro, tenho apenas o inverso, verso. | |
Nunca salvei uma vida embora às vezes quisesse. | |
Eu portanto confesso, nada fiz e não presto. | 20 |
1
Quem è Deus? Perante a vida repito que nada | |
fiz além. O impulso da gente busca por tanta | |
coisa grande e nunca descansa e morre buscando. | |
Nem bozó de beira de estrada resolve o dilema: | |
Já pensei numa improvisada e penso demais. | 25 |
Morro buscando. Morro, claro, e busco a verdade. | |
Tudo vai de como a gente enxerga essa vida, | |
pois se a vida è grande, como somos pequenos? | |
Mas se for pequena, como queremos ser grandes? | |
Nada vai de como a gente enxerga essa vida, | 30 |
vida que acaba coa gente como a gente coa vida. | |
Tem quem fuja. Quando falava assim pela escola, | |
(pois na escola andava já descontente da vida), | |
tinha um amigo meu, não sei se aluno ou docente, | |
gente boa que sempre dizia: Casa que passa! | 35 |
Certa vez me tomou a leitura: «Eh, Baudelaire, | |
quanta falta te fez ua boceta. Tivesse fodido | |
nunca teria escrito isso aí.» Amigo do peito, | |
ia ao baile caçar mulher. Caçou mas casou-se, | |
teve um filho: vida simples, aquela vidinha, | 40 |
2
gente jovem caçando amor, afeição – fodeção! | |
Certo ele, bacana! Botar filhote no mundo | |
quem não pode! No esforço tudo vai se criando, | |
tudo: peão, menino, cachorro, tudo procria. | |
Mas se a vida for grande, como fica a vidinha? | 45 |
Morre tarde. Vejo a parede, gado as gramíneas. | |
Que diria o rapaz se a vida de cada um esperasse | |
algo de cada um que ninguém sabe dar? Abstrações? | |
Eis o que o mundo espera, filho, mais que a vida. | |
Como Platão no Simpósio grego evocava seu parto, | 50 |
obra imortal, eu vou buscando no muro o sublime, | |
marco o farol dos carros que nunca foram sublimes | |
nem no novo modelo – e como invadem as vidas! | |
Eu, averso à novidade? Suspeitas não faltam. | |
É que busco o novo mas buscando envelheço. | 55 |
Noto o poeta do agora como corre do velho | |
rumo à modernidade e contemporâneas essências... | |
Como se Richard nunca tivesse composto Tristão, | |
como se fosse mesmo tudo autêntico e fresco. | |
Não se escreve para o tempo e sim para a vida, | 60 |
3
firme, inexoravelmente, que nem o regente | |
surdo indiferente ao público algoz dessa vida. | |
Deus não dà asa a cobra, rapaz: Prefere abutre. | |
Parem de escrever, de sentir, de viver, de morrer. | |
Parem com esta inútil samsara. Calem a boca, | 65 |
pelo amor da boca. Bonito è sentar numa pedra, | |
ver que è tudo mentira e meditar, meditar, | |
ver, meditar até morrer – e parar de morrer! | |
Ser è viver e foder, passar è maior que nascer. | |
Já falei demais, porém prossigo e com gosto – | 70 |
Tinha uma amiga que apareceu do nada dizendo: | |
«Era viado ou mal-resolvido o Fernando Pessoa! | |
Essa negatividade do cara, essas coisas! | |
Dá no saco!» Freud explica e bonito è vidinha, | |
isso, bonito è novela e Epicuro vive escondido. | 75 |
Vida de nunca ser notado e perdida è verdade, | |
ir passando o peixe num lago calmo e profundo. | |
Coisa verdadeira è coisa além desse tédio, | |
dessa dicotomia vida-e-morte, è vitória. | |
Mas o fim do verso, eternidade è derrota. | 80 |
4
Que derrota, rapaz, não vale a pena memória. | |
Passa a razão além da razão e todas as causas | |
foram irracionais e è fortuito existirmos. | |
Eu que sei? Em milhares de anos esta poeira | |
proto-verbal será piada se houver existência. | 85 |
Riso è poema hodierno, contudo o mesmíssimo riso | |
velho que entoa firme o moderno velho do agora. | |
Quero deixar poeira de eterna e nenhuma memória. | |
Quero arrancar um riso escroto dum povo pior. | |
Povo? Na morte ou memória, vou passando calmo | 90 |
como se todo instante me fosse a última hora... | |
Nada melhor do que a compaixão, divino elemento. | |
Quero encontrar a luz que torne nobre a vidinha! | |
Quero parar, quero deixar de querer o que passa. | |
Quando melhor vier, deixarei de lado o poema. | 95 |
Nunca escolhi poemas, sempre fui escolhido. | |
Tanto pareço ter vivido que nunca fui jovem, | |
eu que não sou, apenas passo e como passo | |
não existo de fato. Sou um farol de automóvel, | |
luz amarelada nas telas abstratas do teto. | 100 |
5
Teto è bom. È irrelevante o infinito. Bonito | |
mesmo è morrer e parar de morrer. Ser è ilusão. | |
Pois assim è que é: Você pensa que é, e do nada | |
passa e quem fica passa a vida chorando o que passa. | |
Dor que è dor è dor porque nasce do apego: Apague. | 105 |
Nada que existe em mim existe além do que è mim. | |
Vou deixando a cortina aberta, sentindo uma brisa | |
fresca e de muito longe. Vou buscando uma estrela | |
como se fosse a minha antiga e maior companheira, | |
mas me engano, não, a estrela nem me conhece, | 110 |
ela que adentra o meu peito, eu que vou me apegando: | |
Por quê? È do apego que nasce o desespero e me perco. | |
Lanço o meu olhar aos astros e sei que sou fraco: | |
Ai se soubésseis, estrelinhas, o fim dos segredos! | |
Mas as estrelas são demais, joviais, arrojadas, | 115 |
são irreverentes mesmo. Cintilam e cantam | |
lá do alto o seu canto inovador, a resposta. | |
Eu, da janela, fico ouvindo a grande verdade, | |
única voz que o firmamento ecoa aos que choram: | |
Deixe de viadagem e vá trabalhar, vagabundo! | 120 |